24/11/2023

A Inviolabilidade da Vida - Carta Aberta ao Conselho Nacional de Saúde *

1. A inviolabilidade da vida, é princípio primeiro da existência humana, pois açambarca a esfera religiosa, a esfera biótica, a esfera jurídica, a esfera social e a esfera cultural da vida humana; a inviolabilidade da vida é signo que estabelece um pressuposto fundamental para a vida humana, a saber, que a vida em seu todo é inviolável, é inalterável, é irrevogável, é intocável; mas este signo não é somente pressuposto por fundamentos religiosos e/ou culturais, mas estabelecido e talhado nas rochas inexpugnáveis do direito, e pelos luminosos caracteres da ciência.

2. As constituições dos países desenvolvidos, sem exceção, apregoam a inviolabilidade da vida; por exemplo, na Declaração da Independência dos EUA, Thomas Jefferson afirma: “Consideramos essas verdades auto-evidentes, que os homens são criados iguais, que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade. Que para garantir esses direitos, os governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados. Que sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva desses fins, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo, baseando-se em tais princípios e organizando seus poderes da forma que lhes for mais conveniente, para realizar sua segurança e felicidade[1]; ou a própria Constituição dos EUA, em que se afirma: “Ninguém será... privado da vida[2]. A maior democracia do mundo, estabelece como base de sua existência os direitos inalienáveis, os quais são a vida, a liberdade e a busca da felicidade; por isso, estes direitos são tidos como invioláveis.

3. Outro exemplo, é o que a constituição alemã afirma: “Todos têm o direito à vida e à integridade física[3]. A proposição da constituição alemã, reafirma um pressuposto da reta razão, pois, evidentemente, todos têm direito a vida, pois, a vida é um direito de todos, já que para se falar em direito ou em direitos, é necessário a própria vida; sem vida não há direito; e a defesa da vida é base para a própria existência do direito.

4. Além disso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma: “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal[4]. Na declaração dos direitos humanos, se consuma toda a base jurídica dos direitos básicos e fundamentais da vida humana; todo indivíduo tem direito a vida, pois, a vida é direito do indivíduo desde que o mesmo é concebido; logo, é princípio da própria dignidade humana o respeito pela vida, o que é atestado e confirmado por aquilo que se afirma como Direitos Humanos; a universalidade dos direitos humanos, é preservada e dignificada pelo respeito e o direito à vida, que conjuntamente com a liberdade, são direitos invioláveis e inalienáveis.

5. Deste modo, a vida é princípio jurídico fundamental, sobre o qual está estabelecido a Constituição Federal do Brasil; os direitos fundamentais precedem e se estabelecem antes de qualquer forma de “direitos” sociais e/ou individuais; os direitos sociais e/ou individuais para serem “supostamente” aceitos e/ou ab-rogados não podem ser contra os direitos fundamentais; a inviolabilidade de algum dos direitos fundamentais, como a inviolabilidade da vida, precede e antecede qualquer forma de “direitos”; por isso, qualquer atentado contra a vida, ainda que velado sob a forma de supostos “direitos individuais” não é válida pela nossa Constituição; a afirmação categórica da inviolabilidade da vida, prescreve que a vida é inalterável e intocável desde sua concepção até a morte; não há nenhum suposto “direito individual” que fira e interfira no direito fundamental estabelecido pela Constituição; o direito à vida é talhado de maneira imorredoura na Constituição Federal como direito inviolável.

6. E estas afirmações são apresentadas contra a recente atitude do Conselho Nacional de Saúde e os órgãos governamentais que tratam da Saúde em quererem colocar o aborto em pauta; o aborto é contra a inviolabilidade da vida, e por isso, o aborto é inconstitucional; logo, o aborto não é permitido pela carta magna do Estado brasileiro; a recente resolução 715 do Conselho Nacional de Saúde afirma que os senhores querem implementar o aborto, e até mesmo a ADPF 442 voltou a julgamento no Supremo Tribunal Federal; e não sei se fortuita coincidência, ou manipulação programada; como não acredito em coincidências, a manipulação programa do comunismo integrou como pauta a legalização do aborto, tanto no âmbito da saúde como no âmbito do poder judiciário. Com isso, decidi me pronunciar diante de vós, para afirmar categoricamente que o aborto é contra a estrutura constitucional do Estado brasileiro, bem como o aborto é contra os Direitos Humanos; portanto, a simples evocação da possibilidade do aborto constitui um atentado contra a democracia e um atentado contra os direitos humanos.

7. Estas afirmações podem parecer um tanto quanto dogmáticas e/ou fundamentalistas; mas não o são; conquanto seja um humilde teólogo que as escreva, tais afirmações baseiam-se nos aspectos supracitados (n. 1), e cobrem uma gama variada de núcleos de sentido que transcendem o aspecto religioso e a doutrina cristã; todavia, como a Igreja cristã é coluna e firmeza da verdade (cf. 1Tm 3.15), nós cristãos temos de nos posicionar diante da inominável abominação que é o aborto, não somente em defesa de uma doutrina religiosa, mas em defesa de um fundamento inalienável da vida humana, fundamento esse que transcende qualquer credo religioso, porque é comprovado não somente pela verdade revelada (Bíblia), mas atestado e comprovado pela reta razão, comum a todos os seres humanos, e imbuída de forma intrínseca pelo Criador em todos os seres vivos e em toda a ordem da realidade. Por isso, o aborto é contra todas as esferas da vida humana; portanto, apresento-lhes uma defesa da vida, da inviolabilidade da vida, a partir de três destas esferas; uma defesa da inviolabilidade da vida em três prismas: (i) primeiro, a inviolabilidade da vida na esfera religiosa; (ii) segundo, a inviolabilidade da vida na esfera biótica; (iii) terceiro, a inviolabilidade da vida na esfera jurídica.

8. [i] Primeiro, a inviolabilidade da vida na esfera religiosa. A vida é inviolável é dogma da religião; particularmente é dogma do cristianismo; um cristão verdadeiro afirma a verdade da inviolabilidade da vida, desde sua concepção até a morte; a defesa da vida, é doutrina e fundamento do cristianismo; e os textos confessionais e os escritos teológicos são uma confirmação deste fato, presente no cristianismo desde seus primórdios; de Tertuliano até o Concílio Vaticano II, passando por Tomás de Aquino, por Lutero, por Calvino, e outros, sejam católicos, protestantes ou ortodoxos, a afirmação da inviolabilidade da vida é pressuposto categórico de todo o cristianismo. A identidade dos cristãos, também é descrita no respeito a vida e na afirmação impoluta da inviolabilidade da vida.

9. O Didaquê, primeiro catecismo cristão (séc. I d.C.), um resumo da doutrina dos Apóstolos, afirma: “Não mate a criança no seio de sua mãe e nem depois que ela tenha nascido[5]. Em outro documento cristão antigo, a Epístola a Diogneto (séc. II d.C.), se assevera: “Eles procriam filhos, mas não eliminam nunca os fetos[6]. Portanto, os primeiros documentos confessionais dos cristãos, asseveram e atestam a verdade de que a vida é inviolável; a ordenação do Didaquê para não se matar as crianças no ventre da mãe, isto é, para não se cometer aborto, é parte da doutrina cristã; os cristãos não cometem aborto, bem como se colocam contra o aborto; e a afirmação da Epístola a Diogneto confirma esta fato, ao afirmar que os cristãos procriam filhos, e nunca, NUNCA eliminam os fetos, isto é, os cristãos nunca cometem abortos ou apoiam a prática do aborto; quem pratica o aborto ou quem apoia o aborto não é cristão; quem pratica o aborto e apoia o aborto é pagão.

10. Tertuliano, por exemplo, afirma de maneira indiscutível: “É um homicídio antecipado impedir alguém de nascer[7]. A afirmação de Tertuliano, no séc. II. d.C., já comprova o que o aborto é homicídio; a lei moral de Deus, os Dez Mandamentos, prescreve o mandamento: “Não matarás” (Êx 20.13). E como o aborto é um homicídio, aprovar e/ou aceitar o aborto é incorrer em aprovação do homicídio ou do assassinato de uma criança inocente, e, portanto, apoiar o aborto é tornar-se participante de homicídios; pois, o aborto não somente é homicídio, mas é uma forma de holocausto; é um holocausto silencioso, onde as vidas concebidas no ventre são assassinadas como um ato infame e ignóbil. Portanto, aborto é contra a lei de Deus, e por isso, o aborto é rejeitado veementemente pelos cristãos.

11. Agostinho, constatara que o aborto é parte de uma libidinagem cruel que procura tornar as pessoas estéreis e/ou procura extinguir a vida no ventre da mãe[8]. Esta libidinagem, é expressão daquilo que Eric Voegelin chamara de “libido dominandi”, a qual é expressão da tentativa de eliminar o significado expresso na história pelo simbolismo cristão[9], onde na tentativa de dominação total, alguma ideologia se utiliza da sexualização excessiva, tanto no sentido puramente sexual, na revolução sexual, quanto no sentido da obnubilação da percepção pela sensualização da vontade. A constatação de Agostinho, em sua época, a época das ebulições do fim do império romano, demonstrara um problema que se tornara novamente levantado pelo comunismo, a saber, da libidinagem cruel que procura matar crianças no ventre de suas mães; é parte da “lidido dominandi” do comunismo incentivar a prática do aborto, para a partir disso, corromper a ordem moral da sociedade e poder implementar a cultura de morte preconizada nos escritos dos doutrinadores do comunismo. Santo Agostinho já alertara sobre os princípios oriundos desta libidinagem cruel em sua época; e seu alerta serve-nos de alerta ainda maior, devido à época de confusões em que vivemos.

12. Ainda, Tomás de Aquino afirma que o aborto, é “sempre um pecado mortal, porque a prole não pode seguir, daí a intenção da natureza ser completamente frustrada[10]. Logo, na proposição tomista, o aborto é contra a lei natural, contra a intenção da natureza; o aborto é algo não somente contra a lei revelada, mas contra a própria lei natural; e a lei natural é a mesma para todos os homens, em todas as épocas; portanto, o aborto é sempre um pecado mortal, bem como é sempre contra a lei natural; o aborto é contra a revelação e contra a razão; por isso, o aborto ser rejeitado pela doutrina religiosa e pela reta razão. Não é necessariamente necessário ser religioso para ser contra o aborto, basta apenas ter um pingo de bom senso e de juízo para poder ter a percepção de que o aborto é uma prática vil e ignominiosa. Os que apoiam o aborto incorrem na fanfarra da bazófia, incentivada e propagada pelo comunismo.

13. E mais recentemente, no séc. XX, o Concílio Vaticano II afirmara: “são infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho; em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador[11]. Deste modo, o respeito a pessoa humana, o respeito a inviolabilidade da vida, o respeito pleno para com a dignidade humana, é fundamento para que a vida humana se desenvolva; por isso, o Concílio afirma que o aborto é infame, infamante, corruptor, desonrado e ofensivo.

14. O aborto é infame porque é marcado pela infâmia do homicídio, pela baixeza do assassinato, pela vileza da morte de um ser humano; o aborto é infamante porque é marcado pelo avilte para com a dignidade humana, pela injúria do homicídio de um ser humano, pela insolência do desrespeito a vida, pelo opróbrio do holocausto silencioso; o aborto é corruptor porque é marcado pela corrupção do bem natural, pela desvirtuação da natureza, pela instituição programada de um mal que corrói; o aborto é desonrado porque é marcado pelo atentado contra a honra da vida, pela desonra para com a inviolabilidade da vida, pela destruição da dignidade humana; e o aborto é ofensivo porque é marcado pela agressão a vida, pela degradação da lei moral natural, pelo prejuízo a ordem social, pela derrocada da justiça e da paz. O aborto é a encarnação da carranca de Satanás através de um homicídio velado sob o mote de “suposto” direito individual.

15. [ii] Segundo, a inviolabilidade da vida na esfera biótica. A vida é inviolável, é algo afirmado não somente pela religião, mas pela própria esfera biótica da vida humana; a ciência comprova a vida desde sua concepção; desde o momento onde o espermatozoide fecunda o óvulo, se tem uma vida, se tem um ser humano; a Bíblia e a ciência confirmam tal asseveração; nas Sagradas Escrituras, o salmista afirma: “Tu viste quando os meus ossos estavam sendo feitos, quando eu estava sendo formado na barriga da minha mãe, crescendo ali em segredo, tu me viste antes de eu ter nascido. Os dias que me deste para viver foram todos escritos no teu livro quando ainda nenhum deles existia” (Sl 139.15-16 NTLH). Além disso, o profeta Jeremias também afirma: “Antes que eu te formasse no ventre, eu te conheci; e, antes que saísses da madre, te santifiquei e às nações te dei por profeta” (Jr 1.5). Portanto, na Bíblia a vida é confirmada desde sua concepção.

16. Mas a ciência também confirma a vida desde sua concepção; a fecundação ocorre no momento em que há a fusão do óvulo com o espermatozoide, o que forma a realidade do zigoto ou célula-ovo; e neste ato de fecundação, há a união cromossômica das células germinais masculina e feminina, o que ocorre num período de 24 horas; e assim, na formação do zigoto, se observa que este é uma vida, pois, no zigoto estão todas as informações genéticas fundamentais da pessoa que se desenvolverá, sendo gestadas a medida do desenvolvimento do feto até seu nascimento; e estas características fazem deste zigoto um ser humano, fazem deste ser vivo, um ser único e irrepetível; portanto, cientificamente desde a concepção já se tem um ser humano, um ser vivo; e qualquer atentado contra este ser humano, é homicídio e assassinato.

17. Além disso, a confirmação da ciência contra o aborto é evidenciada pelo fato de que os maiores cientistas da humanidade foram cristãos; e estes sempre foram a favor da vida, e principalmente aqueles que se dedicaram as ciências da vida, sempre foram a favor da vida e contra o aborto. Louis Pasteur, o grande cientista francês, afirmara a conhecida lei da biogênese, que vida somente provêm de vida, ao comprovar o desvario e os erros da geração espontânea. Pasteur afirma que a geração espontânea é uma quimera, pois é desmentida pela simples observação de um germe, e por isso, a geração espontânea é contrária a vida; e a vida, é a afirmação básica, o princípio primeiro, daquilo que Pasteur chama de “economia geral da criação”[12], isto é, da estrutura básica a qual toda a natureza está imbuída, naquilo que fora designado pelas leis gerais da ciência. E a evocação do exemplo de Pasteur, principalmente no que tange a geração espontânea, é justamente porque a geração espontânea é a raiz, na modernidade, donde provêm a ideia da aceitação do aborto; por isso, aceitar e propugnar o aborto é o mesmo que incorrer no erro científico da geração espontânea; se a geração espontânea é quimera, então, o aborto é a carranca da quimera; ou melhor, o aborto também é uma quimera. Deste modo, o aborto é contra a economia geral da criação, da natureza, a qual existe indelevelmente como parte da esfera biótica da vida, atestada e confirmada pelas ciências naturais.

18. Com isso, a partir desta lei universal da ciência, a lei da biogênese, se estabelece que só pode haver vida onde há vida; e onde há vida, esta, por ser vida, é inviolável; e, evidentemente, a vida, desde sua concepção, é inviolável; Pasteur comprova isso através da lei da biogênese, pois, se somente vida pode gerar vida, então, entre o que deve ser defendido de maneira impoluta, está a vida; a vida deve ser defendida porque só pode haver vida onde há vida, e isto, tanto no sentido biótico, quanto no sentido cultural, quanto no sentido social; e, como a vida é de suma importância para o desenvolvimento da civilização, então, no processo natural da existência humana, o ponto fulcral, o aspecto fundamental e indissolúvel, é a vida; quem valora a vida valora o progresso intrínseco a existência humana, e quem apoia o aborto destrói o desenvolvimento da existência humana, que só se desenvolve com a vida e com a defesa da vida. Então, a dignidade e a valorização da vida, é pressuposto básico de uma das mais importantes leis da ciência; a própria ciência é sublimada e desenvolvida pelo respeito a inviolabilidade da vida. Logo, não há base científica para a defesa do aborto.

19. Além da proposição de Pasteur, tem-se a proposição do geneticista francês Jérôme Lejeune, pai da genética moderna, que foi um cientista anti-aborto; e sendo geneticista, e um dos maiores de todos os tempos, seu testemunho constitui uma preciosa lição a respeito desta questão; Lejeune defende de maneira veemente a dignidade da vida desde sua concepção, isto é, desde a formação do zigoto[13]. Logo, é princípio do pai da genética moderna a proposição de que a vida é iniciada no momento da concepção, e por isso, inviolável desde sua concepção até o momento da morte.

20. E o que dizer de tantos outros exemplos de geneticistas e de cientistas que compreenderam esta verdade fundamental; a própria existência da ciência demonstra a necessidade primordial do respeito a vida; por isso, João Paulo II afirmara que, “todo o homem sinceramente aberto à verdade e ao bem pode, pela luz da razão e com o secreto influxo da graça, chegar a reconhecer, na lei natural inscrita no coração (cf. Rm 2.14-15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início até ao seu termo, e afirmar o direito que todo o ser humano tem de ver plenamente respeitado este seu bem primário[14].

21. [iii] Terceiro, a inviolabilidade da vida na esfera jurídica. A vida é inviolável, e atesta isso não somente a esfera religiosa e a esfera biótica, mas também a esfera jurídica da vida humana; na verdade, a esfera jurídica apenas confirma este fato primordial que provêm da esfera religiosa e da esfera biótica, e o afirma em categóricas palavras, ao constatar que a vida é inviolável; os códigos das leis, apresentam e confirmam este fato, que todo homem aberto a verdade, e que iluminado pela luz da reta razão pode chegar a conhecer, independente de condição social, econômica e religiosa. E, sobre a reta razão, Cícero afirmara: “A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus[15]. Pela reta razão, é que se funda e se estabelece a esfera jurídica da vida humana, e é pela reta razão que se prescreve o bem, e se afasta do mal; e o direito positivo, as instituições de leis humanas, deve ser abalizada pelo direito natural, fundado na lei natural, na reta razão.

22. Por isso, a esfera jurídica apregoa a inviolabilidade da vida; a reta razão assim o prescreve, a fim de descrever o bem e afastar o mal; pois, a vida é o bem primeiro do ser humano, e conjuntamente com a liberdade, é um dos bens maiores da existência humana; a esfera jurídica da realidade, só existe e é preservada com a defesa da vida; sem vida não há direito; sem a defesa da vida não há justiça; sem a preservação da vida não há ordem constitucional; todo o aparato jurídico do Estado brasileiro depende e subscreve a defesa a vida; não somente o atestam a Constituição ao afirmar a inviolabilidade da vida[16], e o Código Penal ao condenar o aborto[17], mas porque o direito é fundado na reta razão, princípio fundamental sem o qual a existência da democracia e do Estado se tornam obsoletas e esclerosadas; sem a reta razão a democracia é enfraquecida e o Estado incorre nos descaminhos do Estado Total. É pelo reconhecimento do direito a vida, da inviolabilidade da vida, que se fundamenta a vida em sociedade e a própria política; João Paulo II assevera: “Sobre o reconhecimento de tal direito [da inviolabilidade da vida] é que se funda a convivência humana e a própria comunidade política[18] [em colchetes: acréscimos meus].

23. Mas porque a esfera jurídica da realidade atesta logicamente a inviolabilidade da vida? Esta é uma questão assaz importante que se responde de dois modos: primeiro, pela natureza da ordem jurídica da realidade; segundo, pela preservação da ordem jurídica da realidade.

Primeiro, pela natureza da ordem jurídica da realidade. A esfera jurídica da realidade, possui uma natureza; e esta natureza é o que identifica a esfera jurídica como parte integrante da ordem da realidade; e esta identidade, é o que demonstra a própria razão de ser do direito; o direito só existe em consonância com a esfera jurídica da realidade, pois, o direito nasce, se estabelece e se desenvolve a partir da realidade; portanto, a natureza da ordem jurídica da realidade é abalizada pela realidade, e a partir da realidade é que se tem o saber constitutivo do direito; por isso, os mestres do direito romano estabeleceram que as leis humanas deviam ser instituídas a partir da natureza: o direito natural deve preceder, abalizar e dignificar o direito positivo. E a vida, é parte da realidade; a vida é o que de mais precioso existe para os seres vivos, particularmente para os seres humanos; sem vida não há realidade, e a própria realidade se desintegra; logo, a inviolabilidade da vida é parte integrante e indissolúvel da própria realidade. Assim sendo, a natureza da ordem jurídica da realidade é testemunha deste apriorismo da existência humana, a saber, testemunha da inviolabilidade da vida.

24. Segundo, pela preservação da ordem jurídica da realidade. Se a natureza da ordem jurídica da realidade testemunha sobre a realidade da vida, não somente é por sua própria natureza, mas principalmente pela preservação da ordem jurídica da realidade; pois, a defesa da inviolabilidade da vida constitui-se não somente a defesa da continuidade da raça humana, mas também constitui-se do próprio ato de preservar a ordem jurídica da realidade de práticas que destroem a própria realidade; a permissividade do aborto é algo que destrói a ordem jurídica da realidade bem como mancha a existência da sociedade; pois, o aborto é homicídio e um atentado contra a vida, e tudo o que é contra a vida, evidentemente, é contra a ordem jurídica da realidade. Portanto, a inviolabilidade da vida é pressuposto indiscutível e irrevogável para que a ordem jurídica da realidade seja preservada.

25. E, somente tendo consciência disto, é que se pode preservar a ordem jurídica da realidade, a qual é imbuída como responsabilidade humana, naquilo que é essencialmente e naturalmente humano; quando esta preservação é feita de maneira sóbria e eficaz, a própria lei natural é novamente estabelecida como regra de conduta humana universal e como normativa para o direito. Pio XII, em sábias palavras, afirmara: “Assim, podemos esperar que a lei natural, gravada pelo Criador nos corações dos homens, possa em breve, como deve em última análise, prevalecer como regra universal da conduta humana sobre caprichos arbitrários e interesses sórdidos que aqui e ali usurparam o seu lugar, e que, em consequência, a nova geração possa ser salva do analfabetismo moral com que está ameaçada[19]. 

26. A esfera jurídica da ordem da realidade, é apresentada aos homens, a partir da lei natural, e cristalizada através dos códigos de leis; por isso, as leis humanas, provenientes do direito positivo, afirmam categoricamente aquilo que é proveniente do direito natural; e o direito natural afirma categoricamente a vida; na verdade, o direito natural é embasado pela vida, a própria vida é parte da dignidade inerente ao direito natural; e as leis humanas, instituídas para o bem de todos, devem respeitar os preceitos do direito natural; Tomás de Aquino afirma: “a vontade humana, a partir de um consentimento comum, pode fazer algo justamente naquelas que por si mesma não têm qualquer oposição à justiça natural[20]. E o preceito primeiro, o preceito maior do direito natural, é a vida; por isso, os códigos de leis afirmam categoricamente a proposição de que a vida é um direito fundamental, e por isso, a vida é inviolável.

27. Entendido estes três breves aspectos, pode-se prosseguir para defrontarmo-nos com a proposição advogada quase que de maneira religiosa pelos propugnadores do aborto, a saber, que o aborto é questão de saúde pública; realmente, o aborto é questão de saúde pública: não a aceitação do aborto, mas a proibição de aborto; não existe saúde pública onde há a permissividade para com o aborto; porque o aborto, sendo homicídio, é contrário a saúde; e a lógica básica da estrutura da Constituição confirma esta verdade, pois, os direitos fundamentais afirmam a vida, e a vida, evidentemente é a base para a saúde; logicamente, o que é anti-vida é anti-saúde; então, como querem propugnar o aborto com “unhas e dentes” afirmando que o mesmo é questão de saúde pública? É um dos maiores sofismas que já foi criado pela imbecilidade humana, pois, algo para ser favorável a saúde tem de ser pró-vida; e o aborto nunca é favorável a saúde, pois, aborto é homicídio, e por isso, o aborto é sempre anti-vida.

28. E tal proposição é confirmada pela Constituição; como fora dito, existe uma lógica estrutural básica na Constituição; e sendo tal estruturação lógica, significa que cumpre as leis do pensamento correto, as leis da lógica, que são as leis gerais que guiam a racionalidade humana; uma das leis das lógica estabelecidas por Aristóteles, e confirmada por todos os grandes pensadores posteriores, é a lei do terceiro excluído, isto é, é necessário ser X ou não-X; em relação ao pensamento racional tal proposição está totalmente correta, já que ou uma coisa é aquilo que a confirma racionalmente ou então é a negação desta coisa. E ao se aplicar isso a proposição de que o aborto é questão de saúde pública, se observa quão ilógica e irracional é tal proposição; pois, o aborto é morte, é homicídio; portanto, como que a permissividade para com aborto é tida como questão de saúde pública; é pressuposto irrevogável e intocável da existência da saúde a proteção a vida, no encargo estabelecido pela Constituição a saúde, no velar pela inviolabilidade da vida. O aborto é ilógico e irracional, mas o aborto também é contra a estrutura lógico-jurídica prescrita na Constituição, o que não precisa ser um constitucionalista erudito para se compreender.

29. A propugnação de que o aborto é questão de saúde pública, além de ser contra as leis que regem o pensamento correto, contra as leis da lógica, a própria permissividade para com o aborto demonstra a esquizofrenia constitucional por parte do Estado brasileiro; pois, se a Constituição prescreve a vida como direito fundamental, e a própria saúde só é estabelecida pelo respeito a dignidade da vida, então, como é que se fala de aborto como questão de saúde pública? A aprovação do aborto, seja por parte do Conselho Nacional de Saúde, seja por parte do Poder Judiciário, demonstra certa esquizofrenização do propósito estabelecido a estes pela Constituição; pois, se a esfera jurídica da ordem da realidade é contra o aborto, então, tudo aquilo que diz respeito a existência jurídica do Estado brasileiro também tem de ser; e, se a esfera biótica da ordem da realidade é contra o aborto, então, tudo aquilo que diz respeito a valoração da saúde também tem de ser; a propugnação do aborto sobre o mote de que é questão de saúde pública é um sofisma, porque o aborto é anti-vida, e por isso, é anti-saúde; logo, o aborto é contra a saúde, e por isso, a aprovação do aborto é a derrocada da saúde. Não existem argumentos racionais e/ou científicos para se aprovar o aborto do ponto de vista jurídico e do ponto de vista da saúde.

30. Além disso, a Constituição prescreve que entre os direitos sociais está a proteção a maternidade[21]; e, entre os aspectos fundamentais da proteção a maternidade, um dos direitos sociais, está a proibição do aborto; portanto, como se protegerá a maternidade onde se há permissão para o aborto; por isso, a permissividade para com o aborto é contra os direitos sociais; então, como que o aborto, que é contrário aos direitos fundamentais e contrário aos direitos sociais, pode ser aceito como um “suposto” direito individual; aliás, entre os fundamentos que constituem o Estado brasileiro está a “dignidade da pessoa humana”[22], o que per se, evidencia que constitucionalmente a existência do Estado brasileiro é contra tudo aquilo que viola a dignidade humana. O Brasil é edificado e se desenvolve somente com o respeito pela dignidade da pessoa humana; e não há nada mais ultrajante para a dignidade humana do que a aprovação do aborto. Por isso, constitucionalmente, de acordo com os direitos fundamentais e os direitos sociais, a vida é inviolável, e inviolável desde sua concepção, pois, a concepção de vida provém da ciência, e a ciência atesta de maneira irredutível a vida desde sua concepção.

31. Portanto, em consonância com este quesito, a inviolabilidade da vida também adentra na esfera social, pois é fundamento para a própria ordem social; a respeito disso, o exemplo da Constituição alemã é contundente ao afirmar: “Todos têm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, desde que não violem os direitos de outros e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral[23]. Deste modo, no livre desenvolvimento de cada pessoa, para que haja o desenvolvimento social, há de se ter o livre direito a tal desenvolvimento pessoal, que a Constituição Federal apresenta sobre os encargos dos direitos fundamentais e inalienáveis, desde que este não atente contra a ordem constitucional ou contra a lei moral; o que a constituição alemã afirma de forma incisiva é o que permeia a Constituição brasileira e o entendimento natural sobre a ordem constitucional no Estado brasileiro; pois, o que nossa ordem constitucional prescreve é aquilo que está em consonância com os direitos fundamentais, os quais são atestados e confirmados pela lei moral natural, igual para todos os homens e que independe de doutrina religiosa; portanto, tudo aquilo que está contra estes direitos fundamentais está contra a lei moral natural, e por isso, logicamente, é anticonstitucional; o aborto é contra os direitos fundamentais, e por isso, a prática do aborto é a desfiguração da ordem social, e a inoculação de um veneno mortífero na sociedade, que atenta contra a ordem constitucional e que é uma vileza para com a lei moral natural. Onde há aborto não há ordem social, e a própria esfera social da vida humana se torna uma existência fixada em lixo moral e em perpetuação do erro e da injustiça: onde há permissão ao aborto, ao homicídio, logo, passa a haver permissividade para com qualquer tipo de crime; isto torna a sociedade em assembleia de injustiça, em quadrilha de bazófios; e onde há injustiça a ordem social torna-se vil e inócua. Portanto, a permissão do aborto destrói o húmus do encargo social intrínseco a natureza humana.

32. Com isso, o respeito pela pessoa humana, a valoração da dignidade humana, afirmada em ecos cósmicos pela proclamação altissonante da inviolabilidade da vida, é fundamento da paz; sem vida não há paz; e onde há legalização do aborto, do homicídio, os fundamentos da paz são desfigurados e corrompidos; a paz, tão necessária à vida humana, só existe e é preservada com o respeito a dignidade humana e com o respeito pleno a vida; só existe paz sob os princípios cristãos fundamentais, nos quais, está imbuído a justiça e a verdade; por isso, esta paz, preservada no respeito pela pessoa humana, na valoração da dignidade humana, na proclamação da inviolabilidade da vida, se torna uma paz duradoura e em benefícios de todas as gentes. Nas incontestáveis palavras de Pio XII, esta paz, é “uma paz na qual prevemos com confiança que esses princípios cristãos fundamentais estão incorporados, cuja aplicação pode assegurar a vitória do amor sobre o ódio, do direito sobre o poder, da justiça sobre o egoísmo, e na qual a busca de valores eternos prevalecerá sobre a busca de bens meramente temporais[24].

Que o bondoso Deus nos livre da infâmia e do vilipêndio do aborto, para prosseguirmos como nação e como sociedade nos brilhantes caminhos da vida, da justiça, da liberdade e da paz, o propósito para o qual existimos como nação e como povo brasileiro. 



Este texto é uma carta aberta enviada ao Conselho Nacional de Saúde devido as propostas de descriminalização do aborto evocadas numa resolução do referido conselho em julho de 2023 (a resolução 715).

[1] Paul Leicester Ford (ed.), The Works of Thomas Jefferson Vol. 2: 1771-1779 [New York and London: G. P. Putnam’s Sons, 1904], pág. 200ss.

[2] A Constituição dos Estados Unidos da América, e. c. V.

[3] Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, art. 2, n. 2.

[4] Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 3.

[5] Didaquê, cap. II, n. 2.

[6] Epístola a Diogneto, cap. V.

[7] Tertuliano, Apologeticum, livro IX, cap. 8.

[8] cf. Agostinho, De Nuptiis et Concupiscentiis, cap. XV, In: PL 44, pág. 423-424.

[9] cf. Eric Voegelin, Ensaios Publicados 1966-1985 [São Paulo: É Realizações, 2019], pág. 269.

[10] Tomás de Aquino, Commentaria in Librum Sententiarum, livro 4, d. 31, q. 2, a. 3, exp.

[11] Gaudium et Spes, n. 27.

[12] cf. Pasteur Vallery-Radot (ed.), Ouevres de Pasteur Vol. 2: Fermentations et Générations dites Spontanées [Paris: Masson et Cie., 1922], pág. 346.

[13] cf. Jérôme Lejeune, En el Comienzo, La Vida - Conferencias Inéditas (1968-1992) [Madrid: BAC, 2019].

[14] João Paulo II, Evangelium Vitae, n. 2.

[15] Cicero, Da República, III, 17.

[16] cf. Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5.

[17] cf. Código Penal, arts. 124-126.

[18] João Paulo II, Evangelium Vitae, n. 2.

[19] Pio XII, Letter to the President Franklin D. Roosevelt, 16 March 1940.

[20] Tomás de Aquino, Summa Theologiae, IIa IIae q. 57, a. 2, ad. 2.

[21] cf. Constituição da República Federativa do Brasil, art. 6.

[22] Constituição da República Federativa do Brasil, art. 1, inciso III.

[23] Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, art. 2, n. 1.

[24] Pio XII, Letter to the President Franklin D. Roosevelt, 20 September 1941. 


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