26/12/2025

Explicação do “Epigrama sobre Hegel” de Karl Marx

Proêmio

 

O “Epigrama II” ou “Epigrama sobre Hegel” (1837)[1] é um texto fundamental da filosofia marxiana, e é um dos textos mais impressionantes sobre a interpretação de Hegel; certamente, neste poema, Marx evidencia que compreendeu Hegel melhor do que muitos de seus intérpretes mais eruditos; aliás, neste poema se tem mais princípios para compreender Hegel do que muitas análises que comportam centenas páginas.

Assim, compreender este poema é uma chave hermenêutica fundamental para se entender o marxismo; pois, o marxismo é fruto do sistema da ciência de Hegel; além do que, compreender este poema é compreender o efeito da efetivação do sistema da ciência; na verdade, compreender a análise marxiana sobre a filosofia de Hegel, ainda que feita em poucos versos, é compreender o modo mais adequado para se entender Hegel; pois, certamente numa coisa o pensamento marxista é útil, a saber: para compreender adequadamente a filosofia de Hegel; os marxistas são mestres por excelência na filosofia de Hegel.

Deste modo, este poema tem muito a ensinar, não somente sobre Hegel, mas sobre o próprio Marx; pois, ao descortinar no que consiste a filosofia de Hegel e o laborar de Hegel, Marx também demonstra no que consistirá sua filosofia e o seu laborar do ponto de vista intelectual.

 

§ 1

 

Hegel como “deus”. Nos cerca de vinte versos de Marx sobre Hegel, se compreende algo fundamental, que muitos, mesmo após análises aprofundadas da Fenomenologia do Espírito não compreendem, a saber, que Hegel se coloca como “deus”. As sentenças de Marx não somente interrogam de maneira exclamativa aspectos da filosofia de Hegel, mas principalmente Marx se coloca como Hegel para poder interpretá-lo; e, sob esta perspectiva, dir-se-ia que a análise de Marx sobre Hegel é quase que fenomenológica (no sentido husserliano).

Por isso, o primeiro verso, neste sentido, é assaz elucidador: “Desde que eu encontrei o mais alto das coisas e as profundezas delas também”, isto é, Hegel é aquele que encontrou, que conhece, o mais alto das coisas e as profundezas delas também; ou dito em outros termos, é aquele que tem o conhecimento do bem (o mais alto das coisas) e do mal (as profundezas delas também). Ora, só quem tem o conhecimento do bem e do mal é Deus; então, obviamente quem arrola para si isso quer se tornar como “deus”.

E isso também se comprova pelo próximo verso: “Rude sou eu como um Deus, envolto pela escuridão como um Deus”; o próprio Marx constata que o propósito de Hegel é ser como “deus”; mas, não como o Deus verdadeiro que por si é impossível; mas como um “deus” é que rude e envolto em escuridão; o Deus que Hegel quer se tornar, embora seja a tentativa de usurpar o verdadeiro Deus, na verdade é o que na Escritura se chama de “deus deste século (cf. 2Co 4.4); o “deus” que Hegel se torna é o “deus” rude e envolto em escuridão, a saber, Satanás.

E isto está em perfeita conformidade com o real propósito de Hegel em seu sistema da ciência; pois, a própria busca de Hegel é uma busca que envolve toda sua vida; por isso, Marx acertadamente afirma: “Por muito tempo procurei e naveguei no oceano profundo e ondulante do Pensamento”, isto é, Hegel adentrou as profundezas do pensamento, ou como ele mesmo diz as profundezas da Coisa, e assim ele navegou, ou seja, palmilhou por muito tempo o oceano profundo e ondulante do Pensamento para compreender a Coisa, pois só se chega as profundezas da Coisa pelo rigor do conceito[2], isto é, através do conceito de Ideia.

E ao chegar ao oceano profundo do Pensamento, Hegel descobre algo: “Lá eu encontrei a Palavra: agora eu me agarro a ela rapidamente”, isto é, na profundidade da Coisa, ele encontra a Palavra; mas, será que esta Palavra é Cristo ou a Escritura? Não, esta Palavra que Hegel encontra não é Cristo e não é a Sagrada Escritura; então, que significa esta Palavra? É a Ideia; Hegel encontrou a Ideia, e a ela se agarra rapidamente, ele a toma para si, e a estabelece em si rapidamente; ou seja, Hegel se torna a própria Ideia, pois para Hegel ele se torna a Palavra.

Por esta razão, Hegel afirmara que a Ideia é o poder absoluto que se dá a luz[3]; por isso, quem domina a Ideia domina todas as coisas; assim, é mais do que óbvio que o propósito de Hegel (e Marx o segue cabalmente nisso) é se tornar “deus”, o “deus” que concebe a Ideia. A filosofia de Hegel é uma filosofia de auto-deificação do próprio Hegel, o que se sumaria na seguinte proposição: com Hegel, em Hegel e para Hegel; e quem é subjugado por esta filosofia, procura fazer o mesmo que Hegel, só que sob o domínio de Hegel, como o próprio Marx constata no penúltimo verso.

 

§ 2

 

A consequência da filosofia de Hegel, confusão diabólica. A proposição de que ideias tem consequências é totalmente evidente em Hegel; pois, ao Hegel procurar ser como “deus”, ele na verdade instaura uma filosofia sistêmica com terríveis consequências; por isso, Marx sentencia as consequências da filosofia de Hegel (e de sua filosofia): “Palavras que eu ensino todas misturadas em uma confusão diabólica”, isto é, as palavras, os ensinamentos de Hegel, toda sua filosofia, ao serem misturadas, geram uma confusão diabólica, a qual destrói a inteligência e obnubila a consciência.

Ora, esta confusão por sua vez, não somente é para destruir a inteligência e obnubilar a consciência de uma vez, mas sim para gerar de início outra consequência, a saber: “Assim, qualquer um pode pensar exatamente o que quiser”, isto é, gerar ceticismo quanto ao conhecimento, já que se todo mundo pode pensar exatamente o que quiser não se tem mais certezas quanto ao conhecimento; em suma, fora isso que Kant propugnara; mas, Hegel vai além, ele estabelece que cada um pode pensar exatamente o que quiser, não em função do ato de livre pensar, algo inerente ao ser humano, mas sim que cada um institua a própria realidade ao pensar; em Hegel, o ato de pensar é o mesmo que criar a realidade (no marxismo também se tem a mesma proposição, embora seja algo mais específico quanto a esfera sócio-política).

E isso gera uma confusão total, já que assim não se tem certeza e nem verdade. No entanto, ainda que Hegel consiga efetuar isso cabalmente, ele defronta-se com alguns problemas, como Marx afirma: “Nunca, pelo menos, ele é cercado por limitações estritas”, isto é, ele nunca defronta-se com limitações estritas, apenas com limitações não-estritas (flexíveis), pois ainda que ele possa instituir que o ato de pensar é o mesmo que criar a realidade, e ordenar isso a partir das categorias do sistema da ciência, ele não pode medir e nem regular as consequências disso; por isso, Hegel não é cercado por limitações estritas, mas sim por limitações flexíveis, as quais, ele pode adequar ao seu próprio sistema.

Ora, estas limitações são descritas com duas metáforas, a saber: “Borbulhando para fora da inundação, caindo do penhasco”, isto é, é como algo que borbulha para fora de uma inundação, e como o cair do penhasco; no entanto, estas duas metáforas não dizem respeito àqueles que são dominados por Hegel, mas sim sobre aqueles que buscam sair deste domínio; estes, por sua vez, serão como algo borbulhando fora da inundação, isto é, não conseguirão nadar contra a correnteza da inundação, ou então serão como aquele que cai do penhasco; e se sabe quais são os efeitos de se nadar contra a correnteza em uma inundação e de cair do penhasco.

Por isso, Marx continua a descrever no que consiste as palavras de Hegel: “Assim são as palavras e pensamentos de seu Amado que o Poeta inventa”, isto é, Hegel faz filosofia em função de um ser amado; e Hegel inventa palavras e pensamentos sobre este ser amado; no caso, o Amado seria para se referir a Deus; mas, como Hegel não busca ao Deus Verdadeiro, mas sim a Satanás, então o ser amado de Hegel é o próprio Demônio.

Por esta razão, se diz de Hegel que, “Ele entende o que pensa, inventa livremente o que sente”, isto é, Hegel entende o que pensa, e inventa livremente o que sente; ora, se Hegel inventa o que sente, ele não consegue entender o que pensa; se ele inventa o sentir, então ele também inventa o pensar; e de fato Hegel faz isso: ele inventa uma nova forma de pensar, com uma nova doutrina sobre as operações do intelecto, e com isso, institui o que as pessoas devem sentir.

Pois, ao fazer isso, chega-se ao estado de total sujeição ao seu sistema através da confusão diabólica causada, tal como Marx assevera: “Assim, cada um pode sugar por si mesmo o néctar nutritivo da sabedoria”, isto é, cada um inventa para si o que é a sabedoria, e toma esta sabedoria disposta por Hegel, que na verdade é confusão diabólica, como o néctar para si; ora, se alguém se alimenta de confusão diabólica, então será dominado por confusão diabólica - pois, do que a alma é alimentada delineia no que a alma se torna. E isto, por sua vez, instaura um subjetivismo terrível e enlouquecedor, já que se cada um pensa o que quer no sentido anteriormente descrito, então cada um se torna um “deus”. A cultura hegeliana é a cultura em que cada ser humano se torna um “deus”, ou no dizer de Nietzsche, no super-homem.

Assim, Hegel se torna o iniciador dos homens no conhecimento do bem e do mal; e isso o coloca como adjutor de Satanás; com isso, Marx constata o que Hegel causa e como Hegel se coloca ao causar isso: “Agora você sabe tudo, já que eu não disse nada para você!”, isto é, Hegel que conduz os homens por este caminho sem volta, ao instaurar o que quer, e ao seduzir os homens, não assume nada do que faz e se retira de cena; é como o processo bíblico da tentação do demônio: o demônio tenta, arma o laço, mas depois que alguém cai, ele sai de cena e trata de acusar aquele a quem engodou para cair no laço.

Hegel conduz os homens para a perdição, mas em hipótese nenhuma assume isso em seu sistema da ciência; e os frutos do sistema hegeliano procederão do mesmo modo. E, no sentido moral, isso é canalhice da pior espécie, da mais hedionda e abjeta forma de destruir uma pessoa. E esta é nuance por excelência da filosofia de Hegel.

 

§ 3

 

A falsa busca por descrever a realidade. Depois, de evocar uma espécie de “reviravolta”, não em si mesma, mas para demonstrar a confusão que é inerente a filosofia de Hegel, Marx prossegue para a terceira estrofe, onde explica em quatro versos a posição histórica da filosofia de Hegel entre Kant e Fichte. Pois, Hegel é homem de seu tempo, e sua filosofia também reflete isso; na verdade, ao explicar a posição histórica da filosofia de Hegel, ainda que veladamente, Marx descortina no que realmente consiste o sistema hegeliano em comparação com Kant e Fichte (também poderia ter comparado Hegel com Schelling ou com Schleiermacher).

Marx afirma: “Kant e Fichte sobem para o céu azul”, isto é, as filosofias de Kant e Fichte segundo a concepção de Hegel (e de Marx) são utopias, pois sobem ao céu azul sem trazer nada de útil para a vida cotidiana; pois, Kant e Fichte, estão “Procurando por alguma terra distante”, isto é, estão procurando algo no além, algo que não podem encontrar; em suma, esta é a concepção de Hegel sobre Kant e Fichte (e sobre Schelling também); Hegel os concebe como filósofos que não entendem a realidade; e nisso Hegel está em parte certo, pois com a exceção de Schelling, Kant e Fichte não concebem e nem entendem adequadamente a realidade.

E, embora Hegel os critique assim, principalmente na Fenomenologia do Espírito, o próprio Hegel também não compreende a realidade; tanto o é, que procura criar outra realidade, a saber, a Segunda Realidade, a realidade fora da realidade, a realidade paralela, a Matrix; no entanto, Marx assevera a concepção de Hegel diante de outras filosofias de sua época: “Eu apenas procuro compreender profundo e verdadeiro”, isto é, Hegel se concebe como aquele que procura compreender o profundo e verdadeiro, ou seja, a própria realidade, ou: “Aquilo que – na rua eu encontro”, isto é, aquilo que ele mesmo vê e entende no cotidiano. Para Hegel, apenas sua filosofia é a forma de compreender a realidade, os outros filósofos são “utópicos”.

Ora, embora Hegel arrole isso para si em contraste a Kant e a Fichte, tanto Kant quanto Fichte ainda continuam sob a realidade, ainda que não a compreendam e ainda que tenham ceticismo quanto a possibilidade de compreender a realidade; e, Hegel, nem sequer isso faz, ele busca transmogrifar a realidade, busca criar outra realidade, aprisionando as consciências dos homens a seu sistema da ciência.

Portanto, Hegel arrola uma falsa busca da realidade para descrever a realidade; e todo filósofo que não se baseia na realidade para fazer suas reflexões filosóficas, sempre é movido por algum propósito nefasto; e a filosofia de um filósofo que não se baseia na realidade sempre é expressão do divertimento de um homem em estado de tédio, de um niilista no sentido pleno do termo. A filosofia de Hegel, na verdade, é o desnudar niilista do próprio Hegel.

 

§ 4

 

A sujeição de todos a Hegel. E tendo feito estas considerações, Marx prossegue a quarta e última estrofe, fornecendo alguns princípios de sua análise cirúrgica da filosofia de Hegel em poucos versos; Marx, termina seu epigrama retomando a si a palavra, e não com o “eu-poético” de Hegel como faz em quase todos os versos anteriores; Marx afirma: “Perdoe-nos epigramatistas”, isto é, busca a benevolência dos epigramatistas dado as nuances dialéticas que foram manifestas neste epigrama sobre Hegel; aliás, Marx descortina a razão de buscar esta benevolência ao asseverar: “Para cantar músicas com reviravoltas desagradáveis”, isto é, ao poetizar sobre a filosofia de Hegel não pode deixar de manifestar as reviravoltas inerentes ao sistema hegeliano, ou mais propriamente não pode deixar de se expressar de acordo com a parafernalia dialética do sistema hegeliano.  

E, assim, Marx termina constatando um fato indubitável da vida na contemporaneidade, a saber: “Em Hegel estamos todos tão completamente submersos”, isto é, todos estão sujeitos a filosofia de Hegel, todos estão submersos no oceano do sistema hegeliano, todos estão na beira do penhasco do sistema da ciência; isto, por si, constitui-se na mais precisa sentença já escrita sobre a filosofia de Hegel; na verdade, Marx descortina o propósito da filosofia hegeliana, a saber: subjugar todos ao sistema da ciência; e, de fato, Hegel, de maneira cabal, conseguira efetuar tal domínio.

No entanto, Marx termina com uma sentença pragmática no último verso, ao afirmar: “Mas com sua Estética ainda temos que ser purgados”, isto é, Marx afirma que em conjunto com a estética de Hegel os homens vão enfrentar o purgatório, mas purgatório no sentido existencial-social; ou seja, os homens vão ser purgados em conjunto e em consonância com a estética de Hegel; o “purgatório” da vida sócio-cultural será feito com a estética de Hegel e pela estética de Hegel.

E aqui está uma das chaves hermenêuticas fundamentais para se antevê o que surgirá no âmbito da vida sócio-cultural até que este purgar seja completo, isto é, até que não exista mais expressão de beleza real na vida social; ou dito em outros termos, até subjugue todas as expressões reais, e transmogrife o ímpeto pela realidade, em ímpeto “artificial” movido pelo sistema da ciência.

A estética de Hegel é para purgar os transcendentais da vida humana, ou seja, para retirá-los totalmente da vida humana ou transmogrifá-los a partir das categorias do sistema da ciência.

 

***

 

Ora, o que fora dito basta quanto a uma explicação deste epigrama de Marx sobre Hegel; no entanto, que se saiba que neste epigrama são apresentadas, de maneira velada, várias referências cruzadas a filosofia de Hegel, que a explicam de maneira simples e sintética; e que se saiba uma coisa, tudo o que Marx afirma neste epigrama sobre a filosofia de Hegel é corretíssimo e assaz útil; quem quiser entender Hegel adequadamente, há de se debruçar sobre a interpretação aprofundada deste epigrama, e certamente colherá excelentes princípios para compreender o pensamento hegeliano. 

E termina aqui esta explicação. θεῷ χάρις



[1] In: Karl Marx e Friedrich Engels, Marx-Engels Collected Works Vol. 1: Karl Marx 1835-1843 [Lawrence & Wishart, 1975], pág. 576-577.

[2] cf. G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito [2ª ed. Petropólis, RJ: Vozes, 2003], pref., § 4, pág. 27.

[3] In: Johannes Hoffmeister, Dokument zu Hegels Entwicklung [Sttutgart: Frommann, 1936], pág. 348. 


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