27/03/2025

Comentário a Epístola VI de Pseudo-Dionísio

Prefácio.

 

Após o primeiro grupo de epístolas - as cinco primeiras (I-V) -, que versam sobre temas concernentes a duas das obras do Corpus Dionysiacum (DN e MT), se tem o segundo grupo de epístolas - as cinco últimas (VI-X) -, que versa sobre temas gerais em consonância com o programa teológico dionísico, mas não em ordem as obras restantes do Corpus Dionysiacum.

Deste modo, a epístola VI, a menor das epístolas dionísicas, inicia esta segunda parte com um tema de grande importância, a saber, sobre a verdade, sobre o modo de ensinar a verdade; certamente, uma elocução a partir da sentença paulina de seguir a verdade em amor (cf. Ef 4.15); logo, esta epístola demonstra o que concerne a atitude do fiel, do teólogo, do pastor, do bispo, enfim, de todos os cristãos, sejam imbuídos de autoridade eclesiástica ou não, de propagar a verdade, de ensiná-la e proclamá-la.

Assim sendo, àqueles que ensinam a verdade, devem o fazer de modo adequado, isto é, de acordo com a própria verdade; pois, o ensino da verdade deve ser adequado a própria verdade tanto no conteúdo quanto no modo de ensino; por isso, àqueles que ensinam a verdade devem ensiná-la plenamente e de acordo com o método da própria verdade, a saber, em amor; a verdade deve ser ensinada na caridade, pois, a verdadeira caridade sempre é caridade na verdade; logo, a dignidade da caridade está em ordem a verdade; pois, segundo Bento XVI, “a verdade é luz que dá sentido e valor à caridade”.

Esta epístola engendra este preceito teológico; embora, de modo ambíguo; o que fez com que muitos estudiosos duvidassem da autenticidade desta epístola, bem como de sua importância teológica; e, conquanto seja uma epístola ambígua (o que de outra maneira e de outro modo será analisado posteriormente de modo mais adequado), isto não diminui sua importância, pois esta epístola traz o esclarecimento necessário sobre o que concerne ao ensino da verdade.

Portanto, no programa teológico dionísico esta epístola é a porta de entrada para as epístolas seguintes, bem como abaliza o modo como se deve ensinar os mistérios concernentes a Deus, a Verdade Primeira; pois, a fé sempre tem por objeto a verdade (cf. DN, VII, § 4); e esta fé, a fé que busca entendimento (cf. Prosl., I), sempre será uma fé que busca a compreensão e a explicação da verdade, já que a verdade é o que engendra o entendimento da fé.

Assim sendo, os tópicos teológicos tal como Pseudo-Dionísio os delineia em suas obras, sempre tem imbuídos o estudo da verdade, tanto de maneira específica, no que concerne a doutrina sagrada, quanto de maneira geral, no que concerne ao estudo da sabedoria filosófica; isto é, tanto em relação a luz superior quanto em relação a luz interior.

Portanto, esta epístola, a menor epístola de Pseudo-Dionisio, é a propedêutica do Corpus Dionysiacum; pois, o que versa esta epístola, é a base de tudo quanto vai ser explicado e desenvolvido em todo o programa teológico dionísico. Enquanto que o De Mystica Theologia é o método do programa teológico dionísico, se pode afirmar que a epístola VI é o preâmbulo ao programa teológico dionísico.

Por isso, nesta epístola se descortina o principium da doutrina dionísica, bem como se evidencia a pressuposição necessária para a formação da correta hermenêutica concernente ao Corpus Dionysiacum mesmo diante das ambiguidades inerentes ao mesmo - o “dionisianismo intelectual” -, a qual abaliza as ambiguidades e as coloca em ordem a revelação (cf. 2Co 10.4).

Soli Deo Gloria!

In Nomine Iesus!

26 de março de 2025.

 

Texto de Pseudo-Dionísio (Epist. VI)[1].

Sosípatro, não consideres uma vitória o vituperar um culto e doutrina porque não te parecem corretos. Pois, ainda que tenha feito corretamente, nem por isso há atuado bem. Porque é possível que tanto a ti como a muitos outros suceda que a verdade, única e escondida, não seja vista entre as falsas aparências. Efetivamente, se uma coisa não é vermelha, nem por isso tem de ser branca; e se uma coisa não é cavalo, nem por isso tem de ser homem. E, se confias em mim, agirás assim: deixa de criticar os outros e ensina realmente a verdade, de maneira que ao ensiná-la seja totalmente irrefutável.

 

A. Proêmio.

1. “Os pássaros da mesma espécie aninham-se juntos: assim a verdade volta para os que a praticam” (Eclo. 27.10); ora, estas palavras competem à matéria e ao assunto desta epístola; pois, a verdade, ao ser praticada, demonstra duas coisas: primeiro, o conhecimento da verdade. “que quer que todos os homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade” (1Tm 2.4). Segundo, o assentimento pleno para com a verdade; e o assentir a verdade é ser guiado por ela. “Envia a tua luz e a tua verdade, para que me guiem e me levem ao teu santo monte e aos teus tabernáculos” (Sl 43.3).

Com isso, se constata que aqueles que praticam a verdade, a própria verdade se volta a estes com sua face luminosa; pois, os efeitos da verdade permeiam todo o indivíduo, de tal modo que este passa a semear a verdade; e a verdade uma vez semeada sempre frutifica, e com isso, aquele que a semeia recebe dos frutos destas sementes quando estas frutificam. “Os que semeiam em lágrimas segarão com alegria. Aquele que leva a preciosa semente, andando e chorando, voltará, sem dúvida, com alegria, trazendo consigo os seus molhos” (Sl 126.5-6).

2. Por isso, Sirach faz uma comparação simples para designar aqueles que praticam a verdade, a saber, com os pássaros; pois do mesmo modo como os pássaros da mesma espécie aninham-se juntos, assim aqueles que praticam a verdade estão aninhados com a verdade e com aqueles que praticam a verdade (cf. 1Jo 1.7); e quem pratica a verdade vive na luz, pois quem pratica a verdade tem suas obras feitas em Deus. “Mas quem pratica a verdade vem para a luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas, porque são feitas em Deus” (Jo 3.21). Além do que, quem pratica a verdade habita onde a verdade faz sua morada, isto é, com o próprio Deus - a Verdade (cf. Dt 32.4b).

Deste modo, a verdade ao ser praticada traz benesses ao que a praticam; pois, os que praticam a verdade, devem fazê-lo de acordo com a própria verdade, que prescreve tanto o que deve ser praticado quanto o modo de praticá-la; logo, a verdade indica tanto o caminho como a maneira de se caminhar; além disso, se pode afirmar que aquilo de que depende a lei e os profetas (cf. Mt 7.12), está em ordem ao mandamento do amor (cf. Jo 13.34), o qual é praticado não por palavras, mas por obra e em verdade. “Meus filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade. E nisto conhecemos que somos da verdade e diante dele asseguraremos nosso coração” (1Jo 3.18-19).

3. Assim, aqueles que estão aninhados com a verdade, devem conhecê-la e vivê-la de modo integral e em sobriedade; pois, a vida na verdade, é uma vida em sinceridade, retidão, temor a Deus e em se desviar do mal, tal como o testemunho de Jó (cf. Jó 1.1); no entanto, aqueles que vivem de acordo com a verdade, podem decair na tentação do orgulho e da vanglória, e com isso desprezarem a verdade no coração e/ou por ações (cf. 2Pe 2.18, 3.17); logo, os que estão aninhados com a verdade, devem vivê-la de acordo com a própria verdade, ensinando-a e praticando-a, o que evita muito dos desvios provenientes do orgulho e da vanglória (cf. Fp 2.3).

Com isso, se estabelecem dois aspectos impreteríveis no ensino da verdade, a saber: primeiro, o conteúdo a ser ensinado, a saber, a própria verdade (cf. Tt 2.1); segundo, o modo de ensiná-la, a saber, na caridade (cf. Ef 4.15). Pois, aqueles que falam a Palavra de Deus, devem fazê-lo com verdade. “e aquele em quem está a minha palavra, que fale a minha palavra, com verdade” (Jr 23.28b).

Ora, a verdade só é ensinada sob a razão da esperança da fé (cf. 1Pe 3.15). Portanto, se compreende que o ensino da verdade deve cumprir estes requisitos inerentes, a fim de que “ao ensiná-la seja totalmente irrefutável”; logo, etc.

 

B. Comentário.

1. Após a epístola V, direcionada a Doroteu, se tem a epístola VI, direcionada a Sosípatro; ora, não só se muda a epístola, mas também se muda a ordem geral dos assuntos; pois, enquanto que as epístolas I a V, versa sobre temas concernentes a duas obras do Corpus Dionysiacum (DN e MT), as epístolas VI a X, versam sobre temas gerais concernentes a existência teológica e ao amplo escopo da tarefa teológica, conquanto também evoquem aspectos de outras obras de Pseudo-Dionísio.

Por isso, do mesmo modo como se tem uma ordem de assuntos nas primeiras cinco epístolas, nas último cinco epístolas também se tem uma ordem, mas quanto a assuntos mais gerais e não tanto quanto uma ordem específica engendradas nas obras do programa teológico dionísico.

No entanto, esta ordem mais específica, apresenta um outro aspecto que complementa o programa teológico dionísico, com observações mais particulares sobre temas evocados e/ou pouco falados nas obras, embora mencionados; portanto, as epístolas VI a X, perfazem outros aspectos do que os que são analisados nas obras do Corpus Dionysiacum.

2. Ora, esta epístola evoca o tema da verdade; e, segundo Alberto, Pseudo-Dionósio nesta epístola se põe a arguir a Sosípatro quanto ao modo correto do combate a idolatria, o que mostra seu zelo pela fé em Cristo[2]; todavia, isto gera um problema, pois o zelo sem entendimento é tão ruim quanto a falta de zelo, tal como o Apóstolo houvera afirmado: “Porque lhes dou testemunho de que têm zelo de Deus, mas não com entendimento” (Rm 10.2).

E esta epístola versa justamente sobre a necessidade do zelo com entendimento, ou do zelo em função da verdade, sempre em função da verdade, mas da verdade em amor (cf. Ef 4.15); não do amor para a verdade, que corrompe o zelo, mas sempre da verdade seguida pelo amor, que concerne tanto a ordem da revelação de Deus sobre Si, quanto da ordem estabelecida pela revelação sobre como os fiéis devem agir e se portar ante aqueles que estão contra a verdade, tendo em vista que nada é possível contra a verdade, tal como o Apóstolo diz: “Porque nada podemos contra a verdade, senão pela verdade” (2Co 13.8).

3. Por isso, nesta epístola, Pseudo-Dionísio faz cinco coisas: primeiro, põe a questão; segundo, evoca que fazer o que é correto está de acordo com o laborar correto; terceiro, prescreve a necessidade do cuidado com as falsas aparências; quarto, evoca um exemplo sobre o que permeia as falsas aparências; quinto, evoca a tríplice estrutura através da qual a verdade é efetivamente ensinada.

4. Primeiro, põe a questão, onde diz: “Sosípatro, não consideres uma vitória o vituperar um culto e doutrina porque não te parecem corretos”; ora, Pseudo-Dionísio põe a questão de modo direito a Sosípatro, a fim de delinear que a vida em função da verdade, que também requer a defesa da verdade, não é de aparências; as aparências enganam (cf. Pv 28.21), ainda mais em se tratando do combate racional em prol da verdade; por isso, a Escritura exorta a julgar conforme a reta justiça (cf. Jo 7.24), isto é, da justiça de acordo com a verdade.

Pois, vituperar um culto ou uma doutrina não pode ser porque não parecem corretos, mas sim porque realmente não são corretos; assim, se distingue entre o confronto racional e a contumélia; ora, o que está contra a verdade sempre deve ser confrontado; no entanto, o que parece estar errado não deve ser motivo de contumélia, senão se afronta a própria verdade.

Portanto, o que Pseudo-Dionísio exorta é para que não se faça um julgamento precipitado contra uma doutrina, senão acaba-se decaindo em vituperar tal doutrina sem ter amparo da verdade; no entanto, tendo o amparo da verdade, e tendo um justo julgamento de acordo com a verdade, se deve combater veementemente o erro e aquilo que está contra a verdade.

5. Segundo, evoca que fazer o que é correto está de acordo com o laborar correto, onde diz: “Pois, ainda que tenha feito corretamente, nem por isso há atuado bem”; ora, diante da questão posta, se deve compreender que, ainda que uma doutrina tenha sido confutada corretamente, nem por isso significa que isto tenha sido de maneira adequada; o bem do combate ao erro é a verdade transparecer límpida e cristalina, e não o vencer um debate ou uma diatribe; a garbosidade no debate em função da verdade, acaba por desfigurar a própria verdade; a defesa da verdade deve ser feita em função da própria verdade e não da promoção de quem a defende.

Por isso, a atuação correta na defesa da verdade é em função da verdade ser honrada, sublimada e demonstrada em todo seu fulgor, transparecendo seu bem e sua beleza. Portanto, para fazer o que é correto em prol da verdade, se deve laborar de forma correta, isto é, fazer o que é correto está de acordo e é demonstrado no laborar correto. E, em se tratando da verdade, este laborar é o zelo com entendimento.

6. Terceiro, prescreve a necessidade do cuidado com as falsas aparências, onde diz: “Porque é possível que tanto a ti como a muitos outros suceda que a verdade, única e escondida, não seja vista entre as falsas aparências”; ora, sendo necessário a compreensão sobre o laborar correto em função da  verdade, se deve ter o cuidado com as falsas aparências; pois, a Escritura diz que o próprio Diabo se transfigura em anjo de luz (cf. 2Co 11.14); com isso, a própria verdade pode estar desfigurada em meio a enganos permeados pelas falsas aparências; pois, a verdade é sinfônica e é permeada por múltiplos aspectos.

Por isso, Pseudo-Dionísio exorta a Sosípatro que tenha cuidado, tanto ele como a muitos outros, que no combate em prol da verdade, se acabe que a própria verdade não seja contemplada; as falsas aparências tendem a esconder a verdade; portanto, mesmo diante do combate em prol da verdade, pode acontecer que na confutação ao erro, que a própria verdade não seja vista; e a não-visão da verdade é um dos grandes males que atingem ao ser humano; e é uma terrível miséria quando aqueles que defendem a verdade, movidos pelas falsas aparências, acabam por não contemplar a própria verdade.

Assim, na defesa e no ensino da verdade, se deve ter cuidado com as falsas aparências.

7. Quarto, evoca um exemplo sobre o que permeia as falsas aparências, onde diz: “Efetivamente, se uma coisa não é vermelha, nem por isso tem de ser branca; e se uma coisa não é cavalo, nem por isso tem de ser homem”; ora, após ter prescrito a necessidade de ser ter cuidado com as falsas aparências, evoca um exemplo; pois, se uma coisa efetivamente não for vermelha, nem por isso tem de ser branca, ou se uma coisa for azul nem por isso tem de ser vermelha; ou dito em outros termos, existem acidentes racionais que conduzem a falsas aparências; por isso, aquele que busca conhecer a Deus adentra na caligine divina (cf. Êx 20.21b), depois de ter passado por todas as falsas aparências; se sobrelevar as falsas aparências é condição preponderante para conhecer a verdade.

Além disso, se uma coisa não é cavalo, nem por isso tem de ser homem; ou se uma coisa não é peixe nem por isso tem de ser um boi; etc. Portanto, as falsas aparências são permeadas por simplória contradição, a qual, na verdade não é contradição dialética, mas que expressa a própria contradição daqueles que não vão além das falsas aparências, ou daqueles que apenas conseguem contemplar as falsas aparências, dado a não amarem a verdade, e, por isso, acabam por ficar sujeitos ao engano (cf. 2Ts 2.11-12), o qual se manifesta as mais das vezes pelas contradições vis das falsas aparências.

8. Quinto, evoca a tríplice estrutura através da qual a verdade é efetivamente ensinada, onde diz: “E, se confias em mim, agirás assim: deixa de criticar os outros e ensina realmente a verdade, de maneira que ao ensiná-la seja totalmente irrefutável”; ora, tendo descrito alguns perigos e atitudes erradas em relação ao ensino e a defesa da verdade, evoca uma tríplice exortação a fim de aqueles que ensinam e defendem a verdade possam ensiná-la de modo adequado; pois, a verdade deve ser ensinada em conformidade com o método da própria verdade; a glória de quem ensina a verdade é ensiná-la de tal modo, que a verdade transpareça límpida tanto no conteúdo quanto no método de ensino.

9. E três são as exortações para que a verdade seja corretamente ensinada: primeiro, o agir correto; ora, requer-se daquele que ensina a verdade, que aja com confiança, sinceridade e integridade; pois, o maior testemunho no ensino da verdade é a autoridade daquele que a ensina, e esta autoridade é alcançada através da vida em piedade, honestidade e virtude, tal como diz o salmista (cf. Sl 24.3-6) e tal como o exemplo do Senhor Jesus (cf. Mt 7.28-29); etc.

Segundo, deixar de criticar os outros; ora, requer-se daquele que ensina a verdade que não critique os outros; mas não critique os que não estão contra a verdade; os outros que são designados nesta epístola são aqueles que não estão contra a verdade, mas que estão em favor da verdade; aliás, é preceito racional óbvio que não se deve criticar como errado quem não está errado; por isso, se deve agir de modo tal que não se incorra em crítica de estar contra a verdade contra quem não está contra a verdade; e, em contrapartida, se deve criticar e combater aqueles que efetivamente estão contra a verdade, pois é bem-aventurado aquele que não respeita os soberbos (cf. Sl 40.4).

Terceiro, ensinar realmente a verdade; ora, tendo a vida correta diante da verdade e evitando a volúpia no combate pela verdade, então, se pode ensinar corretamente a verdade; e ensiná-la tanto no que concerne a própria verdade quanto com o exemplo da vida na verdade; e, cumprindo estes requisitos básicos, ao se ensinar a verdade, se a ensinará de tal forma que a verdade brilhará em todo seu fulgor e beleza, a fim de que a imutabilidade da verdade transpareça, e se possa efetivamente constatar que a verdade é irrefutável; por isso, quem a ensina corretamente, ao fazê-lo também é totalmente irrefutável, não por causa de si, mas por causa da própria verdade.

10. Assim, o ensino da verdade deve ter por parâmetros estes breves e preciosos conselhos que Pseudo-Dionísio ensinara a Sosípatro; pois, a verdade deve ser encontrada na caridade, mas sempre caridade na verdade, tal como Bento XVI afirmara: “A verdade há de ser procurada, encontrada e expressa na ‘economia’ da caridade, mas esta por sua vez há de ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da verdade[3]. Portanto, se deve ter em mente esta perspectiva, que em suma, é a perspectiva que Pseudo-Dionísio engendra nesta epístola, de modo a não se descambar no “dionisianismo afetivo” na defesa da verdade, o qual acaba por desfigurar a própria verdade em função de alguma falsa forma de amor.

11. Pois, não se deve aceitar uma verdade que não tenha caridade, mas também não se deve aceitar uma suposta caridade que não tenha a verdade; por isso, “Lutero, com sua clara visão bíblica, chama o amor que fere ou neutraliza a verdade de ‘amor maldito’, ainda que se apresente na mais piedosa roupagem[4]. Assim, se deve ter o amor que evidencia a verdade, e toda e qualquer tentativa de afirmar uma “forma” de amor que fere ou neutraliza a verdade deve ser rejeitada, já que possui as falsas aparências do engano, que se manifesta em aparência de piedade, mas que nega na prática a eficácia da mesma (cf. 2Tm 3.5); também com este tipo de falsa aparência se deve ter um cuidado vigilante no ensino e na defesa da verdade; pois, não existe verdade sem amor, mas também não existe amor sem a verdade; etc.

 

C. Dúbias.

Em relação as pressuposições estabelecidas ao se explicar esta epístola, surgiram quatro dúbias:

Primeiro, se a verdade deve ser entendida a luz da caridade.

Segundo, se a caridade deve ter preeminência sobre a verdade.

Terceiro, se a afetividade convém a teologia.

Quarto, se a afetividade impugna a intelectualidade.

 

<Dúbia I>

Acerca da primeira, procede-se assim: se a verdade deve ser entendida a luz da caridade.

E parece que sim.

I. [Argumentos].

1. A caridade é mais importante do que a verdade, posto que a caridade, e não a verdade, é o vínculo da perfeição (cf. Cl 3.14); e o que conduz a perfeição deve ser o princípio aferidor para o entendimento de outras coisas; ora, como a caridade é o vínculo da perfeição, então, todas as outras coisas devem ser entendidas a luz da caridade.

2. Ademais, a fé verdadeira é a fé que opera em amor (cf. Gl 5.6); ora, o conhecimento da fé é o que conduz o homem ao devido fim; logo, se a fé opera em caridade, então a caridade é o devido fim do homem; portanto, a verdade deve ser entendida a luz da caridade.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, o salmista diz: “Envia a tua luz e a tua verdade, para que me guiem e me levem ao teu santo monte e aos teus tabernáculos” (Sl 43.3); ora, a verdade é enviada aos homens para que lhes sirva de guia para Deus; logo, é pela verdade que os homens se achegam a Deus, e através da qual conhecem Seu amor.

III. [Solução].

1. Ora, segundo Tomás, a verdade é o objeto da fé (cf. STh IIa IIae, q. 1, a. 1, co.); logo, a fé surge e é abalizada a partir da verdade; por isso, o Apóstolo diz que a fé vem pelo ouvir a Palavra de Deus (cf. Rm 10.17), isto é, pelo entender e compreender a Palavra de Deus; portanto, a fé advêm através da compreensão da verdade que é Cristo; por isso, aquele que tem fé em Deus, crê que Ele é e que é galardoador dos que o buscam (cf. Hb 11.6); pois, a fé a medida que conhece a verdade, se assenta na verdade e confia-se a verdade, já que Deus mesmo é a verdade (cf. Dt 32.4b).

2. Por isso, a fé em Deus, a confiança em Deus, é o que conduz os homens a salvação, já que os homens ao confiarem nEle o invocam, e todo aquele que o invoca é salvo (cf. Rm 10.13); além disso, no texto sapencial se diz: “Aqueles que confiam nele compreenderão a verdade, e os que são fiéis habitarão com ele no amor, porque a graça e a misericórdia são para os seus escolhidos” (Sb 3.9); logo, quem tem fé em Deus compreende a verdade; e ao compreender a verdade, passam a habitar com Deus em sinceridade e integridade (cf. Sl 15.1-5), e nisto conhecem seu amor, posto que a graça e a misericórdia são outorgadas a todos quantos confiam nEle para a salvação, a qual os conduz no conhecimento da verdade; pois, a graça e a misericórdia são outorgadas para o conhecimento da verdade, já que Aquele que é a Verdade também desvela plenamente a graça e a misericórdia (cf. Jo 1.17).

3. Portanto, a caridade deve ser entendida a luz da verdade, já que o conhecimento da caridade advém após o conhecimento da verdade, e isto tanto na ordem da revelação quanto na ordem das ações humanas, ou seja, tanto na doutrina quanto na ética.

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro argumento se responde que sendo a caridade o vínculo da perfeição, tal como afirma o Apóstolo, tal perfeição só é alcançada tendo sido iluminada pela verdade; pois, a perfeição de algo é atingir seu devido fim; ora, o fim do homem é a fruição de Deus, que é a Verdade; então, o fim do homem é o pleno conhecimento da Verdade; por isso, a caridade é a demonstração da perfeição do conhecimento da verdade, mas a verdade advêm antes da caridade, pois não pode haver demonstração se antes não haver sido feito a predicação; logo, o princípio aferidor do entendimento de todas as outras coisas é a verdade, sendo a caridade o princípio aferidor da vida na verdade e em prol da verdade. Portanto, a caridade é o vínculo da perfeição, enquanto que a verdade é o metal que dá forma a este vínculo; sem este metal não se tem a força deste vínculo; logo, sem verdade, não existe verdadeira caridade; por isso, quanto maior o conhecimento da verdade, mais firme será o vínculo da caridade e mais bela a demonstração da beleza da fé através da caridade.

2. Quanto ao segundo argumento se responde que a fé que opera, que obra em amor, é a fé que tem suas operações fundamentais na verdade; o testemunho da fé é através da caridade; mas a gestação e a formação da fé é através da verdade; e, como primeiro se tem o gestar e o formar a fé, que provêm da verdade, então em primeiro lugar se tem a verdade, e, somente depois, o obrar em caridade; a verdadeira fé assente na verdade para obrar em amor; este é o sentido do termo utilizado pelo Apóstolo no texto referido; pois, o obrar em amor é efeito da fé, não sua causa; a causa da fé é a verdade, enquanto que o efeito da fé é o obrar em amor; a causa da fé provêm unicamente de Deus, enquanto que o efeito ao provir dEle também convém a participação da ação humana em liberdade. Portanto, como o conhecimento das causas advêm antes do conhecimento dos efeitos, convém que o entendimento das causas ilumine o entendimento dos efeitos; portanto, a caridade deve ser entendida a luz da verdade e deve ser praticada como demonstração da verdade.

 

<Dúbia II>

Acerca da segunda, procede-se assim: se a caridade deve ter preeminência sobre a verdade.

E parece que sim.

I. [Argumentos].

1. A caridade é a maior entre as virtudes teologais (cf. 1Co 13.13b); por isso, a caridade tem preeminência sobre a verdade; portanto, etc.

2. Ademais, o Príncipe dos Apóstolos diz que o amor cobre multidão de pecados (cf. 1Pe 4.8); logo, é mais importante amar do que conhecer a verdade; portanto, a caridade deve ter preeminência sobre a verdade.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, Tomás diz que a verdade diz respeito ao ser, enquanto que o bem é conseguinte ao ser (cf. STh Ia, q. 16, a. 4, co.); ora, a caridade é um bem; portanto, como a verdade diz respeito ao ser, e a verdade é anterior ao bem, então, a verdade tem preeminência sobre a caridade.

III. [Solução].

1. A preeminência de algo se diz de dois modos: um quanto a anterioridade, isto é, ao modo como é anterior; o outro quanto a superioridade na ordem do ser. Ora, se diz que a verdade é superior a caridade destes dois modos; primeiro, quanto a anterioridade, pois, a verdade é anterior a caridade, tanto no modo como Deus se revela: primeiro, como verdade (cf. Dt 32.4b; Jo 14.6), e depois como amor (cf. Sl 103.17; 1Jo 4.8); quanto no que é preceituado aos fiéis, em viverem na verdade (cf. 2Jo 1.4) e em caridade (cf. Rm 13.8; Ef 4.15).

2. E, segundo, quanto a superioridade na ordem do ser; pois, a verdade diz respeito ao ser e o bem é conseguinte ao ser, como colhe-se da sentença de Tomás, então, a verdade é anterior a qualquer tipo de bem; e, sendo a caridade um bem, então, é posterior a verdade, posto que a caridade só é corretamente entendida e vivida sob a verdade; portanto, se quanto ao ser a verdade é anterior a caridade, isto demonstra por si que a verdade tem preeminência sobre a caridade quanto a ordem, tanto no que Deus revela de Si quanto na própria ordem das coisas; pois, é próprio do bem o estar em ordem; e esta ordem é abalizada e justificada no ser a partir da verdade e em consonância com a verdade.

3. Outrossim, é que Deus, a verdade, causa a caridade nos fiéis (cf. Ct 2.4); ora, Ele causa a caridade como fruto do conhecimento que outorga de Si, isto é, do conhecimento da Verdade; portanto, a verdade tem preeminência sobre a caridade quanto a salvação, já que o conhecimento da verdade traz libertação do pecado (cf. Jo 8.32), mas também quanto a santificação, posto que as boas obras são frutos da reconciliação (cf. Ef 2.10); logo, se compreende que a verdade tem preeminência sobre a caridade quanto a nós e quanto ao modo de Deus se revelar bem como da ordem que convém ao nosso conhecimento a respeito dEle pela revelação, mas não quanto ao Ser de Deus, que tem a verdade e a caridade de forma perfeitíssima e em igualdade de infinitude.

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro argumento se responde que a caridade é a maior das virtudes teologais segundo o dito do Apóstolo, dado que a participação na caridade instaura a imagem do participado no participante; mas, só participa do amor de Deus, aquele que confia nEle e a Ele se fia em fé e devoção (cf. Hb 11.6); ora, aquele que confia em Deus, por conseguinte, obtém o conhecimento da verdade, para então, habitar com Deus em amor e amar (cf. Sb 3.9); logo, quanto aos fiéis a caridade advém após o conhecimento da verdade, ao mesmo tempo em que a própria caridade é evidência do novo nascimento (cf. 1Jo 4.7); portanto, em relação as virtudes teologais, as mesmas são precedidas pelo conhecimento da verdade como hábito da graça, para então serem efetivadas na perfeita caridade. Pois, as virtudes teologais são efeito da graça, e não da virtude natural; por isso, são alcançadas apenas pelos eleitos, os quais, vivem-nas de acordo com a verdade e pelas preceituações da caridade.

2. Quanto ao segundo argumento se responde que a preceituação à amar deve ser vivida de acordo com a verdade (cf. Ef 4.15); por isso, é importante amar, mas para amar é necessário conhecer a verdade, pois não se ama o que se desconhece; e só se ama de verdade quando se conhece a verdade; ora, o amor pela verdade engendra a verdade em amor; por isso, tanto conhecer a verdade quanto amar são da mesma importância, posto que estão interligados e são subsequentes; assim, a verdade tem preeminência em relação a caridade, quanto a dignidade que lhe é própria, mas a caridade demonstra seu fulgor ao estar sobre a verdade e ser o vínculo da perfeição (cf. Cl 3.14) que encaminha em direção a verdade primeira.

 

<Dúbia III>

Acerca da terceira, procede-se assim: se a afetividade convém a teologia.

E parece que sim.

I. [Argumentos].

1. A afetividade convém a teologia dado ao objeto e ao propósito da teologia; por isso, a via afetiva diz respeito ao que concerne a existência teológica mais propriamente do que a via intelectual; logo, a afetividade convém a teologia.

2. Ademais, a Escritura diz que Deus é amor (cf. 1Jo 4.8); então, convém que a elucubração teológica se oriente na reflexão sobre o amor de Deus; ora, a reflexão sobre o amor orienta a afetividade; logo, como a teologia lida com Deus, e Deus é amor, então a afetividade convém a teologia.

3. Ademais, o doctor ecstaticus afirma que à teologia não convém a forma intelectual, especulativa, mas sim a forma suave, afetiva, a qual se alcança com fervorosa caridade (cf. In MT, pref.); ora, de acordo com esta sentença, se compreende que a via afetiva convém a teologia; na verdade, é a que melhor convém a teologia.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, Tomás afirma que a teologia é mais ciência especulativa do que prática (cf. STh Ia, q. 1, a. 4, co.); ora, se é mais especulativa do que prática, então, convém mais a via intelectual do que a via afetiva.

III. [Solução].

1. A ciência sagrada pode estar disposta em duas vias, tendo em vista suas duas partes constitutivas, assim como em toda ciência; embora convenha que a ciência sagrada esteja disposta de acordo com a ordenação da via intelectual; pois, a ordem que convém a ciência sagrada, dado a ser mais ciência especulativa do que prática, é a que demonstra a via intelectual como ordenadora; e isto ordena o saber teológico de acordo com seu objeto e de acordo com as operações do intelecto humano, dado que a afetividade nunca proporciona uma melhor intelectualidade, conquanto uma salutar intelectualidade proporcione uma mais fervorosa afetividade.

2. A designação, portanto, de que a via intelectual é a que convém a teologia, é a fim do desenvolvimento adequado da inteligência na elucubração teológica, bem como para ordenar adequadamente tanto a parte intelectiva quanto a parte sensual da alma; pois, se se tomar a via afetiva como pressuposto orientador acaba por se engessar as faculdades intelectuais da alma, dando forma apenas a parte sensual, a qual, acaba por se desfigurar e corromper a vontade, já que não existe vontade firme que não se estabeleça sob racionalidade sólida; logo, se se corrompe a firmeza da vontade ao se estabelecer a via afetiva como princípio orientador, então, se terá a destruição da inteligência; mas, pelo contrário, se se estabelece a via intelectual, então, se refletirá adequadamente o que concerne a elucubração teológica, bem como se conseguirá ordenar a sensibilidade de acordo com a Palavra de Deus (cf. Sl 119.103).

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro argumento se responde que a afetividade convém a teologia, enquanto demonstração do objeto teológico, não quanto a definição; ou seja, quanto a expressão, não quanto a elucubração; por isso, a via afetiva convém como expressão prática da existência teológica, não como preceito fundante da existência teológica; portanto, a afetividade convém a teologia de modo secundário, não de modo primário, o que por si é algo óbvio dado o objeto da teologia ser o assunto especulativo por excelência.

2. Quanto ao segundo argumento se responde que a Escritura apresenta que Deus é amor como parte do zênite da revelação; e, isto, embora demonstre um aspecto concernente ao Ser de Deus, não impugna os outros aspectos do que Deus revelou de Si; por isso, a elucubração teológica surge do amor de Deus e do amor a Deus, mas não se orienta somente na reflexão sobre o amor de Deus; portanto, a teologia, como lida com Deus, lida com a proposição bíblica de que Deus é amor; todavia, não lida apenas com esta proposição, mas com todo o conselho de Deus, o qual apresenta o que concerne ao Ser de Deus com diversas proposições, as quais são expressas pela sentença “Deus é”; pois, a Escritura apresenta vários designativos sobre o que Deus é, e não somente que é amor, pois igualmente fala que Deus é verdade (cf. Jr 10.10a), é justo (cf. Sl 11.7), é terrível (cf. Sl 76.7a), é um fogo consumidor (cf. Hb 12.29), etc. Por isso, ao se refletir sobre o amor de Deus, logicamente, se refletirá sobre o amor humano; mas, toda elucubração racional é orientada pela razão e não pela afetividade, mesmo em se tratando do amor; portanto, a afetividade convém a teologia sob a regra disposta anteriormente; pois, a Escritura não só apresenta que Deus é amor; assim, a reflexão teológica não pode ser somente orientada a partir desta proposição, mas ser disposta a partir do todo da lógica da revelação.

3. Quanto ao terceiro argumento se responde que a sentença do doctor ecstaticus é uma deformação da norma concernente a teologia; pois, convém a teologia a forma suave, afetiva, mas de modo derivado, isto é, como expressão de uma reflexão racional sólida e argumentativa, não como norte orientador da reflexão teológica; portanto, a fervorosa caridade é demonstração da precisão da reflexão teológica, e não a base da mesma; logo, a via afetiva convém a teologia deste modo, mas não como a que melhor convém a teologia; pois, como a teologia é mais ciência especulativa do que prática, então convém mais a forma intelectual, especulativa, do que a forma suave, afetiva. Ora, a forma suave, afetiva, deve ser expressão da inteligência bem formada que surge como fruto do objeto elucubrado, não como base ou fundamento de tal elucubração, o que não somente é evidente pelos preceitos revelacionais, mas também a partir da reta razão.

V. [Resposta ao Em Contrário].

1. Em relação a isso, se constata que a via intelectual deve ser o princípio orientador, enquanto que a via afetiva deve ser a demonstração da via intelectual; pois, sendo a teologia mais ciência especulativa do que prática, isto por si evidencia qual deve ser o princípio orientador da existência teológica, a saber, a via intelectual e não a via afetiva. Logo, colhe-se a razão da proposição em contrário.

 

<Dúbia IV>

Acerca da quarta, procede-se assim: se a afetividade impugna a intelectualidade.

E parece que não.

I. [Argumentos].

1. A afetividade deve guiar a intelectualidade, porque o amor é mais excelente do que o conhecimento; logo, amar é melhor do que conhecer; ora, a afetividade enobrece a intelectualidade; portanto, a afetividade não impugna a intelectualidade.

2. Ademais, o conhecimento se inicia pela experiência sensível; e, em se tratando das coisas de Deus, também; pois, a Sagrada Escritura é útil para agradar a sensibilidade (cf. Sl 119.103), isto é, para atinar a afetividade; portanto, a afetividade não impugna a intelectualidade.

3. Ademais, o cronista da criação ao receber a revelação da lei de Deus foi conduzido à caligine (cf. Êx 20.21b); ora, ele só adentrou na caligine depois de se purificar, isto é, depois de ordenar sua afetividade em santidade a Deus; portanto, a afetividade não impugna a intelectualidade.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, a Escritura afirma: “a sensualidade, o vinho e o mosto tiram a inteligência” (Os 4.11); ora, a afetividade desordenada conduz a sensualidade, e esta obnubila a inteligência.

III. [Solução].

1. A afetividade deve ser orientada a partir da perfeição da reta razão; pois, do contrário, a afetividade se torna desordenada; e afetividade desordenada engendra vícios na parte sensual da alma, tornando a alma viciada e viciosa; portanto, se a afetividade não for fruto da reta razão, se torna em instrumento de sensualização; e este tipo de sensualização, por sua vez, corrói e destrói a inteligência; com isso, a afetividade desordenada, isto é, toda sensualidade que não está em conformidade com a reta razão, acaba por destruir a própria racionalidade; logo, a afetividade, se tomada como norte orientador do ser, não só impugna como também destrói a intelectualidade. Pois, o conhecimento intelectual da verdade é que ordena a afetividade, isto é, o amor; e como amar é aborrecer tudo aquilo que concerne ao falso caminho (cf. 1Co 13.4-6), e isto é alcançado com entendimento, então, somente com o conhecimento da verdade se ordena corretamente e utilmente a afetividade, tal como diz a Escritura: “Pelos teus mandamentos alcancei entendimento; pelo que aborreço todo falso caminho” (Sl 119.104).

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro argumento se responde que o amor é o caminho mais excelente, tal como diz o Apóstolo (cf. 1Co 12.31b), mas, este amor só é alcançado e entendido a luz da verdade; por isso, o conhecimento da verdade ensina a via do amor, isto é, a via intelectual ensina o caminho da via afetiva; logo, conhecer a verdade é o único caminho para amar corretamente; e, como não há amor sem conhecimento da verdade, então, colhe-se a razão de que a afetividade enobrece a intelectualidade; por isso, amar não é melhor do que conhecer, pois não se ama o que não se conhece; portanto, o conhecimento da verdade é o que abaliza, ensina e dignifica a via do amor.

2. Quanto ao segundo argumento se responde que, conquanto o conhecimento se inicie pela experiência sensível, não é a experiência sensível que ordena o saber, e isto tanto em relação as coisas naturais quanto em relação as coisas reveladas; assim, o conhecimento que se inicia pela experiência é abalizado pelo raciocínio e não pela afetividade; e, em se tratando das coisas de Deus, se inicia com a experiência da fé (cf. Is 7.9b), e depois se prossegue para o entendimento da razão da fé (cf. 1Pe 3.15); e, mesmo que a Sagrada Escritura seja útil para agradar a sensibilidade, só o é para os fiéis, após ter sido útil para gerar nestes a fé (cf. Jo 20.31); logo, a utilidade da Sagrada Escritura está em primeiro gerar a fé nos eleitos (cf. Rm 10.17); depois, ensinar o caminho da salvação (cf. 2Tm 3.15); depois, atinar a afetividade, e os aspectos conseguintes (cf. 2Tm 3.16-17).

3. Quanto ao terceiro argumento se responde que a experiência do cronista da criação diz respeito ao efeito que a super-luminosidade de Deus causa nos homens; por isso, os homens para contemplá-lo verdadeiramente nesta vida, como hábito da graça, adentram a caligine; e isto não só significa a atitude que devem ter ante o esplendor da glória de Deus, mas o próprio efeito desta glória nos fiéis; por isso, o cronista da criação só adentrou na caligine depois que fora purificado, ao se ordenar em santidade a Deus, de acordo com a vontade de Deus (cf. Êx 19-20); mas, só ordenou sua santidade a Deus depois de ter recebido a revelação de Deus de como deveria se portar ao adentrar na caligine; por isso, compreendeu primeiro a revelação de Deus, depois, se purificou com os meios de graça que lhe foram outorgados pelo próprio Deus; assim, não foi pela afetividade que adentrou na caligine, mas pelo conhecimento de Deus, o qual, depois, o ensinou o que concerne a afetividade, a saber, a como viver retamente diante de Deus a partir do conhecimento que Deus revelou de Si.

V. [Resposta ao Em Contrário].

1. Em relação a isso, se constata que a afetividade aqui se trata de se tomar a afetividade como norte orientador; embora a verdadeira afetividade seja assaz importante, ao se tomá-la como norte orientador, se sabe que ocasiona desordem na alma, gestando assim a incontinência ou a sensualidade; todavia, estando a alma em ordem, a afetividade é conduzida pela intelectualidade, gerando bons frutos. Por isso, mesmo que pareça ser algo bom, ou algo benéfico, se a afetividade se tornar o norte orientador do ser, se descamba em excesso de afetividade, o qual engendra a sensualidade, que acaba por ocasionar a destruição da inteligência. Logo, colhe-se a proposição em contrário, no entanto, com a observação a respeito de que se trata da sensualidade desordenada, aquela que não tem está imbuída no âmbito do relacionamento matrimonial entre homem e mulher.



[1] O texto da epíst. VI, provêm da edição espanhola das obras de Pseudo-Dionísio (In: Pseudo Dionísio Areopagita, Obras Completas [Madrid: BAC, 2007], pág. 259).

[2] cf. Alberto Magno, Commentari In Epistolas B. Dionysii Areopagitae, epist. VI, A, In: Op. Om., XIV, 900.

[3] Bento XVI, Caritas in Veritate, n. 2.

[4] In: Dietrich Bonhoeffer, Ética [11ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal/EST, 2015], pág. 35. 


02/03/2025

Religião e Política - Uma reflexão teológica

Prefácio.

 

A elucubração sobre a relação entre religião e política, as mais das vezes, é controversa; pois, geralmente se tende a um desequilíbrio: ou se eleva a religião como política, ou se transmuta a política em religião; e estes erros trazem consequências terríveis, já que se desequilibra dois aspectos que concorrem conjuntamente no ser humano; pois, o ser humano é tanto um ser religioso quanto um ser político; portanto, tanto a fé quanto a política estão imbuídas no todo da vida humana.

Deste modo, a compreensão sobre a relação entre religião e política sempre deve ser evocada, tanto para abalizar esta correta relação, quanto para se evitar os erros tenebrosos que são cometidos por aqueles que são levados por estes dois erros mencionados; e, conquanto a fé, primariamente verse sobre Deus e as coisas eternas, enquanto neste mundo os cristãos são chamados a laborar pelo bem; pois, como Deus outorgara a terra aos filhos dos homens (cf. Sl 115.16b), então, é óbvio que é responsabilidade humana a correta administração política.

Por isso, a fim de abalizar o correto entendimento sobre a relação entre religião e política, bem como a fim de tornar conhecidos alguns perigos que provêm da desfiguração da relação entre religião e política, se faz necessário elucubrar sobre esta relação; e elucubrar-se-á sobre este assunto a partir da perspectiva teológica, posto que do ponto de vista da fé, a religião antecede a política, mesmo quando são elucubradas em conjunto.

Além disso, tendo em vista o crescente entusiasmo político que tem tomado conta da nação há mais de 60 anos, e que tomara formas alarmantes em nossa nação na última década, também se elucubra sobre a relação entre religião e política a fim de aclarar os perigos deste entusiasmo político, que sempre causa efeitos problemáticos e aporéticos tanto para a vida eclesial quanto para a vida pública. O entusiasmo político é inimigo da vida eclesial já que a corrói e desfigura, e a médio prazo é inimigo até mesmo daqueles que tem a vocação à vida pública.

Por isso, neste ensaio se busca explicar estes e outros aspectos, a fim de que a correta relação entre religião e política seja entendida em sua correta acepção, bem como para colocar em ordem esta relação, e ainda a fim de esclarecer em linhas gerais do que concerne a incumbência política da Igreja; etc.

Pois, a correta relação entre religião e política, infere aspectos não somente às Igrejas ou aos políticos, mas em todo o amplo escopo da vida social, isto é, permeia basicamente todos aspectos que concernem a vida humana neste mundo. Por isso, é um tópico teológico importante que tem a ver com o entendimento sobre a vida dos fiéis neste mundo, o qual tem necessariamente imbuído a elucubração sobre a relação entre fé e política.

Soli Deo Gloria!

In Nomine Iesus!

01 de março de 2025.

 

Prólogo.

 

1. A relação entre a fé e a política é por demais evidente; todavia, esta evidência inegável também demonstra que as mais das vezes esta relação é tomada sempre com excessos e desvios terríveis, os quais, desfiguram tanto a fé quanto a política; por isso, se faz necessário refletir sobre a relação entre religião e política, a partir da perspectiva teológica, e estabelecer o caminho adequado para que tanto a religião quanto a política sejam dignificadas em suas respectivas esferas da vida humana.

Pois, o ser humano é tanto um ser religioso quanto um ser político; no entanto, primeiro é um ser religioso, e, somente depois, um ser político; e que nunca se esqueça esta ordem; pois, o que concerne a fé advêm primeiro, e o que concerne a política advêm depois; e, afirme-se também que a fé não se torna em política, e a política não deve jamais se tornar em fé, embora deva ser exercida por homens de fé; e, sob estes aspectos se reflete adequadamente sobre o que concerne a religião e a política.

2. E, em se tratando disso, se deve sempre afirmar de maneira veemente o que a Declaração Teológica de Barmen diz: “rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido substituir a forma da sua mensagem e organização, a seu bel prazer ou de acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes” (§ 3); ora, esta definição firme, categórica e resoluta, demonstra alguns desvios com os quais os cristãos e as Igrejas tem de lidar quando ocorre excessos e desvios na correta inter-relação entre fé e política, e, por conseguinte, entre Igreja e Estado; pois, os excessos e desvios na correta inter-relação entre fé e política, ocasionam terríveis desvios na compreensão sobre as funções da Igreja e do Estado.

Assim, compete aos cristãos a rejeição veemente contra as Igrejas substituírem a forma de sua mensagem e organização, principalmente em se tratando de ideologias políticas ou da influência de políticos, ou em função de promoção política; pois, isto, seria o atestado de que os líderes religiosos estão “guiando” as Igrejas a seu bel prazer e dominados pelas convicções ideológicas reinantes, o que é evidência de arrogância e soberba, já que a existência eclesial deve ser mantida incólume em sua mensagem e organização, pois do contrário não se tem Igreja.

3. Deste modo, se tem uma ordem de compreensão para a correta apreensão da relação entre religião e política; e, evidentemente, se deve compreender a relação entre religião e política na vida humana, pois, como o ser humano é um ser multifacetado, ao viver e se desenvolver, tem em inter-relação os vários aspectos que o compõem; assim, se deve pontuar a relação entre religião e política de acordo com o próprio modo da vida humana, para se entender se os fiéis realmente estão ou não em conformidade com a Palavra de Deus nas coisas da vida humana que tem relação com as coisas da fé.

Além disso, diante desta compreensão, se faz necessário evocar e analisar o preceito fundamental que os fiéis, e as Igrejas, tem diante de si no que concerne as coisas humanas, tanto para preservarem a fé quanto para dignificarem a política; e este preceito é o primeiro mandamento. E, a partir disso, se consegue compreender a incumbência política dos cristãos, da Igreja, a qual está em ordem aos preceitos das Escrituras e não aos preceitos das convicções ideológicas.

E, isto, por sua vez, estabelece o preceito básico pelo qual as Igrejas devem conformar sua vida interna, de maneira correta e sóbria, em função tanto do propósito da própria Igreja quanto do bem comum, dando forma, enquanto Igreja, a decisão política de acordo com a unidade da fé e não no decair em função do prescrever a unidade da fé de acordo com a decisão política como terrivelmente tem ocorrido nos últimos decênios, o que, infelizmente, fez com que as Igrejas se perdessem de seu propósito em meio a máquina de novidades que os lixos ideológicos e os vícios inerentes a corrupção colocaram como supostos “suportes” a existência eclesial.

4. E, tendo este entendimento, se consegue realmente compreender, de acordo com a luz superior, o que concerne a compreensão cristã sobre a política; e fora neste sentido que os humanistas elaboraram o preceito concernente a “politica administratione”, ou seja, a compreensão bíblico-teológica sobre o governo civil, sobre a potestade política, sobre os aspectos e as nuances que comportam a instituição do governo civil.

Pois, para uma correta compreensão sobre a política e a função dos políticos de acordo com as Escrituras, e a relação destes com a religião, e vice-versa, há de se analisar o que concerne a administração política, já que compete aos homens viverem em relação uns com os outros e com a natureza, e isto por si demonstra a necessidade da administração política.

E, como Tomás afirma, é natural ao homem viver em sociedade[1]; ou dito em outros termos, é inescapável ao homem a sociabilidade e a civilidade; assim, é natural ao homem o ser governado, o participar no que concerne a governança pública e o viver retamente diante da lei.

Ora, isto, em suma, diz respeito a reflexão sobre a administração política, o que, em si, tem imbuído a reflexão sobre a relação entre religião e política, tanto para o bem da religião quanto para o bem da política.

 

I. Religião e Política, ou, Política e Religião.

 

5. A primeira e mais fundamental distinção ao se procurar compreender a relação entre religião e política, é saber se se deve ordenar esta reflexão a partir do dístico religião e política, ou se a partir do dístico política e religião; ora, são expressões correlatas, mas que ao serem definidas adequadamente, requerem uma explicação precisa, já que se referem a perspectivas distintas, as quais, devem ser colocadas em ordem. Por isso, se estabelecem dois preceitos: (i) primeiro, religião e política; (ii) segundo, política e religião.

6. [i] Primeiro, religião e política; isto diz respeito a compreensão sobre esta relação a partir do entendimento de que primeiro o ser humano é um ser religioso; e, assim, antes de ser um ser sócio-político, é um ser religioso; ora, esta preceituação demonstra que antes de ter o respeito pela dignidade da potestade política, tem o temor e o respeito pelo Deus Altíssimo, o que, por sua vez, deve ser um princípio da regula fidei quanto a compreensão sobre a política e sua relação com a religião; e, principalmente em se tratando da vida interna da Igreja e da existência eclesial, a qual jamais pode se tornar em expressão de vontade de poder proveniente de convicções ideológicas, por mais “atraentes” que estas possam ser, pois, a subversão da existência eclesial por convicções ideológicas, sejam de esquerda sejam de direita, desfigura a vida interna da Igreja e corrompe sua tarefa.

Além disso, se se apercebe da importância desta distinção inicial, para que nunca os cristãos decaiam nestes desvios na esfera eclesial, já que isso faz com que transmutem a ordem das coisas; pois, na Igreja, na vida interna da Igreja, em nenhuma hipótese se pode mudar esta ordem, já que a política e os políticos devem ser respeitados, mas jamais elevados para aquilo que não são vocacionados na esfera eclesial; na existência eclesial, a primazia absoluta é de Cristo, e das ordenanças bíblicas para a vida da Igreja, a qual não permite a subserviência, por menor que seja, para com as convicções ideológicas ou políticas reinantes; pois, se isto ocorrer, o que há, na verdade, é manipulação a bel prazer da Igreja do Deus Vivo por políticos e líderes religiosos para fins nefastos e hediondos.

7. [ii] Segundo, política e religião; isto diz respeito ao propósito da potestade política; ora, os políticos, mesmo aqueles que são cristãos, tem suas vocações ordenadas para a vida pública; e, por isso, não devem buscar ter voz e/ou “autoridade” na esfera eclesial; na verdade, não existe político que tenha autoridade na esfera eclesial, nem mesmo os políticos que são cristãos; portanto, ao dedicarem-se a política, devem fazer ressoar a fé na vida pública e não na vida eclesial.

Pois, infelizmente, o que costumeiramente tem acontecido é que políticos que se dizem cristãos buscam mais fazer o que compete aos religiosos, enquanto que a vida pública continua uma baderna e uma bagunça; ora, os políticos cristãos devem viabilizar-se para o bem público de acordo com a administração política e não adentrarem na manipulação religiosa, o que tem ocorrido mesmo quando dizem que apenas estão expressando a fé; e é muito necessário que os políticos sejam homens de fé, sejam cristãos, mas enquanto na vida pública, como políticos, tem a responsabilidade impreterível e preponderante na política e não na Igreja; e que isso ressoe aos quatro cantos do mundo!

8. Com isso, nesta dupla distinção, se consegue compreender o que concerne aos cristãos frente a política, e o que concerne aos políticos frente a Igreja, mesmo os políticos que se dizem cristãos; para as Igrejas, religião e política, tal como fora descrito; para a política e os políticos, política e religião, tal como fora descrito; pois, evita-se decair na falsa doutrina de que a Igreja poderia utilizar-se da Palavra e da obra do Senhor para fins ideológicos, tal como a Declaração Teológica de Barmen ensina: “rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja, possuída de arrogância humana, poderia colocar a Palavra e a obra do Senhor a serviço de quaisquer desejos, propósitos e planos escolhidos arbitrariamente” (§ 6); com isso, se observa que se as Igrejas colocam a Palavra e a obra do Senhor a serviço de desejos políticos, mesmo de políticos que são cristãos, então, o que há é corrupção da fé e desfiguração da política; este tipo de manipulação ideológica, ocasiona as mesmas consequências do que a manipulação comunista, com diferença das causas que guiam tal manipulação, mas os efeitos são os mesmos.

9. Portanto, de acordo com a reta razão e com a revelação, existe uma ordenação básica fundamental para a compreensão sobre a relação entre religião e política, que é prescrita tanto às Igrejas quanto aos políticos, especialmente aos políticos que se dizem cristãos; assim sendo, se deve perguntar qual o axioma fundamental que deve guiar a compreensão sobre esta relação.

Ora, este axioma, que é prescrito tanto pela reta razão quanto pela revelação, é o preceito aferidor de medida, através do qual, se compreende se a distinção religião-política e política-religião está em conformidade com a reta razão e a revelação, tal como prescrito pelo Deus Altíssimo.

Deste modo, este axioma abaliza o que fora dito em ordem a compreensão sobre o que deve guiar a decisão política, e de como as Igrejas devem entender as decisões políticas e de como devem exercer a incumbência política que os cristãos tem enquanto habitantes da cidade dos homens.

 

II. O Primeiro Mandamento.

 

10. O axioma preponderante, principal, fundamental, tanto à existência teológica, quanto à compreensão sobre a relação entre religião e política, é o primeiro mandamento (cf. Êx 20.2-6); e, a partir do primeiro mandamento, se extraem três princípios, que abalizam esta compreensão, os quais são: (i) primeiro, o senhorio de Deus; (ii) segundo, a singularidade de Deus; (iii) terceiro, o temor e a reverência para com Deus.

11. [i] Primeiro, o senhorio de Deus (cf. Êx 20.2); ora, Deus é o Senhor de todas as coisas; tudo a Ele pertence (cf. Sl 24.1); portanto, o senhorio de Deus sobre tudo e sobre todos, é o primeiro aspecto evocado pelo primeiro mandamento, que açambarca a responsabilidade moral e intelectual de reconhecê-Lo como o Soberano do Universo; ainda que os homens não sigam a religião, honrar e dignificar o Criador é princípio preponderante da vida pública, e isto não somente é prescrito pela revelação, mas também pela reta razão; logo, o senhorio de Deus deve abalizar qualquer reflexão sobre a religião, e qualquer reflexão sobre a relação entre religião e política, e isto a fim de que não se transmogrife a política em religião e nem se transmute a religião em política.

Pois, conquanto seja dever da administração política honrar a Deus como Soberano Senhor do Universo, a administração política não se torna em religião e não tem “autoridade” na vida interna da Igreja, pois isso é característica daqueles que buscam o Estado Total. Assim, ao se reconhecer o senhorio de Deus sobre todas as coisas, se evita que os homens caiam na soberba e na arrogância de se considerarem como “deus”, bem como isto evita que os líderes políticos esqueçam que é Deus quem coloca e quem tira os governantes (cf. Dn 2.21b).

12. [ii] Segundo, a singularidade de Deus (cf. Êx 20.3); ora, Deus também é inigualável; ninguém é como Deus (cf. Sl 77.13b); por isso, após se evocar o senhorio de Deus, se evoca a singularidade de Deus; e é dever da administração política honrá-Lo como o Deus único e verdadeiro, principalmente por parte de políticos que se dizem cristãos; pois, Ele é o Criador e o Governante de todas as coisas; ora, a singularidade de Deus impede de se criar “ídolos” políticos, ou dos próprios políticos se tornarem “ídolos”; pois, a política é serviço, e serviço prestado para a honra de Deus e para o bem do povo; e o bem do povo só é efetivado a medida que se reconhece o senhorio e singularidade de Deus, através da qual o povo vive em honra, decência, dignidade e virtude.

Assim sendo, a singularidade de Deus impede que o povo, e as Igrejas, honre políticos onde eles não devem ser honrados; o respeito pela potestade política em exercício deve ser evidente em todos os lugares, mas a honra devida a potestade política é na vida pública e não na Igreja; a singularidade de Deus, como pressuposto que é haurido do primeiro mandamento, denota isso, principalmente em se tratando da vida pública; é preceito aos cristãos respeitarem e honrarem os políticos na vida pública, mas na vida interna da Igreja em hipótese nenhuma se pode querer honrar políticos tal como os mesmos devem ser honrados na vida pública, se não ocorre uma perversão de valores e princípios; e entender a singularidade de Deus impede que isto ocorra.

13. [iii] Terceiro, o temor e a reverência para com Deus (cf. Êx 20.4-5a); ora, o Deus único e verdadeiro, é a quem todos os homens devem temor e reverência; temor, porque é o Deus vivo e verdadeiro; reverência porque é o Senhor Soberano do Universo; logo, se deve honrá-Lo como Deus e não se deve honrar homens como se fossem “deuses”; a honra devida a potestade política, tanto por parte da própria potestade política quanto por parte do povo, só é efetivada a medida que se honra ao Deus vivo e verdadeiro; o temor e a reverência para com Deus são os elementos aferidores de medida da honra que convém a potestade política e da própria honra da potestade política.

Portanto, temor e reverência a Deus por parte dos políticos tanto na vida pública quanto na Igreja; pelo menos, é isto que se espera, principalmente por parte de políticos ditos cristãos, o que se demonstra com atitudes concretas: primeiro, na vida pública, honrando a Deus e laborando para o bem do povo; segundo, na Igreja, em honra, decência e silêncio, que é o que compete aos políticos no âmbito da esfera eclesial.

Pois, do contrário, não há respeito e nem obediência do primeiro mandamento, que além destes aspectos evocados também requer a aquiescência total, em todos os aspectos, para com a Sagrada Escritura na vida da Igreja.

14. Deste modo, quando não se cumpre estes breves requisitos, se tem, na verdade, uma desobediência para com um mandamento divino; e assim, as Igrejas acabam por ceder a tentação de cederem a outras exigências que não as da Palavra de Deus; e, sobre isso, já Barth alertava: “esta é a poderosa tentação deste tempo, que desponta em todas as formas possíveis: cedendo ao poder de outras tantas exigências, não compreendemos mais a intensidade e a exclusividade da exigência da palavra divina como tal[2]; ora, esta tentação destes tempos descrito por Barth, também se mostra evidente em todas as épocas, pois, sempre que a Igreja deixa de ouvir ou prestar obediência plena para com a Sagrada Escritura acabará cedendo a outras exigências, principalmente políticas, nas quais se torna movida a bel prazer por homens arrogantes e soberbos.

Por isso, qualquer tentativa, de quem quer seja, de mudar ou transmutar a vida interna da Igreja, fazendo com que a Igreja atente a outras exigências que não as que a Sagrada Escritura estabelece como imutáveis, é evidência de arrogância e soberba, já que com isso se procura, consciente ou inconscientemente, tirar a Igreja de seu propósito e torná-la subserviente a significações diabólicas. Com isso, os cristãos e as Igrejas hão de estarem com os olhos e os ouvidos mui atentos, lembrando do alerta imorredouro de Pio XI, papa de Roma, a todo o orbe: “tende um ouvido particularmente atento, quando noções religiosas são desvirtuadas de seu sentido genuíno e aplicadas a significações profanas[3].

E que isto sempre seja motivo de alerta, principalmente a partir desta simples descrição das exigências prescritas no primeiro mandamento.

 

III. A Incumbência Política.

 

15. Ora, tendo compreendido o axioma preponderante para que se acople corretamente a relação entre religião e política, se pode aclarar mais propriamente o preceito sobre a incumbência política da Igreja; pois, a Igreja, enquanto coluna e firmeza da verdade, tem uma incumbência política; no entanto, a Igreja não é trampolim para ideologia política, senão deixa de ser Igreja; mas, a Igreja diante deste mundo há de reconhecer e exercer sua incumbência política, a fim de manter-se firme em Seu propósito de anunciar o Santo Evangelho; esta firme resolução por parte dos cristãos e das Igrejas é uma tomada de decisão, que tem imbuída indiretamente uma posição política.

Assim sendo, a incumbência política da Igreja não se reduz a ideologia política ou a práxis política; a incumbência da Igreja diante da política diz respeito a Igreja continuar exercendo Sua missão, independente da ideologia política dominante, e continuar a ser coluna e firmeza da verdade, sem se deixar enveredar pela soberba humana de querer colocar os preceitos sagrados de acordo com o bel prazer da vontade de poder que permeia as ideologias políticas.

16. Deste modo, para se compreender adequadamente o que concerne a incumbência política da Igreja, isto é, a função da Igreja diante da política, é necessário, de antemão, compreender o ministério que fora outorgado por Deus a Igreja, a saber, o testemunho da reconciliação, a palavra da reconciliação, tal como afirma o Apóstolo (cf. 2Co 5.19); portanto, a função da Igreja diz respeito a este ministério, de anunciar as boas-novas de salvação, mesmo diante das mazelas tenebrosas, que as mais das vezes assola a política; por isso, evoca novamente uma sentença do símbolo de Barmen: “Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja, desviada deste ministério, poderia dar a si mesma ou permitir que se lhe dessem líderes especiais revestidos de poderes de mando” (§ 4).

Com isso, diante da política, a Igreja tem de manter sua função inalterada; pois, em hipótese nenhuma a Igreja deve aceitar “líderes especiais”, personalidades carismáticas, ou algo similar, que sejam “revestidos de poderes de mando”; nenhum homem, por mais garboso e importante que seja, tem autoridade na vida interna da Igreja, e isto é afirmado não apenas de facto mas também de jure; aqueles que são líderes civis jamais tem poderes de mando na esfera eclesial; pois, “líderes especiais revestidos de poderes de mando”, é algo que somente o Estado Total busca proporcionar; assim, a Igreja jamais deve se sujeitar a “poderes de mando”, já que isso corrompe sua função determinada por Deus.

17. Portanto, tendo compreendido este aspecto a respeito da função da Igreja, de ser portadora e porta-voz da palavra da reconciliação para este mundo, se pode prosseguir e entender a incumbência política da Igreja; pois, a Igreja só terá alguma relevância política se não se tornar instrumento ideológico, mas sim em permanecer firme em Sua função e não ultrapassando sua missão específica, já que assim mantém firme e conservada a verdade, que deve servir de base para aqueles que se dedicam a administração política. Assim sendo, se pode aclarar três aspectos sobre o que concerne a incumbência política da Igreja, os quais são: (i) primeiro, a distinção entre Igreja e Estado; (ii) segundo, a Igreja e a administração política; (iii) terceiro, a Igreja e as crises políticas.

18. [i] Primeiro, a distinção entre Igreja e Estado; ora, a primeira e mais importante pressuposição a respeito da incumbência política da Igreja, é a respeito da distinção correta e precisa entre Igreja e Estado, tanto na doutrina quanto na práxis; pois, geralmente, a corrupção da correta compreensão sobre a função da Igreja diante da política, passa pela desfiguração desta distinção, não somente de modo doutrinário, mas também de modo prático; ora, a abolição, na doutrina e na práxis, desta distinção, desfigura tanto o propósito e a missão do Estado quanto o propósito e a missão da Igreja; e, com isso, os aparatos estatais vão sendo permeados pelo religiosismo estatal, e as Igrejas vão aos poucos se rendendo ao eclesiasticismo estatal; e tanto o religiosismo estatal quanto o eclesiasticismo estatal ocasionam consequências terríveis.

19. Deste modo, se deve de antemão verificar sobre o dever do Estado de acordo com a Escritura, o qual existe para preservar a ordem, manter a justiça, velar pela paz e ordenar os bens comuns em benefício do povo (cf. Rm 13.1-7); por isso, o símbolo de Barmen diz: “A Escritura nos diz que o Estado tem o dever, conforme ordem divina, de zelar pela justiça e pela paz no mundo ainda que não redimido, no qual também vive a Igreja, segundo o padrão de julgamento e capacidade humana com emprego da intimidação e exercício da força” (§ 5); e nesta definição precisa se consegue aperceber do que concerne a existência do Estado e de seu propósito tanto de acordo com a reta razão quanto de acordo com a revelação.

Além disso, se deve também verificar sobre o dever da Igreja, o qual, deve influenciar o Estado não como aparato estatal, mas como coluna e firmeza da verdade, proclamando e anunciando o Santo Evangelho, tendo por lema a sentença do Apóstolo: “Porque nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado” (1Co 2.2). Esta é a missão da Igreja, na qual reponta sua incumbência política.

20. [ii] Segundo, a Igreja e a administração política; ora, tendo entendido brevemente a distinção entre Igreja e Estado, se pode compreender que a incumbência política da Igreja se dá a partir do entendimento das funções específicas do Estado e da própria Igreja, e o modo como a Igreja deve influenciar a administração política, não em função de benefícios eclesiásticos, mas para o bem comum; a influência que as Igrejas devem exercer é para o bem do povo, e não para “benefícios” das práticas perniciosas dos viveiros eclesiais.

Assim sendo, a influência das Igrejas na administração política é em função de um bem, e não da busca de poder e/ou de domínio; logo, se existe alguma dentre as Igrejas, ou mesmo todas as Igrejas, que busca domínio e poder, então, não são mais Igreja, mas antro de perdição, já que o domínio pertence a Deus (cf. Jó 25.2), e não compete, sob hipótese nenhuma, as Igrejas o quererem dominar a pretexto de ordenação divina, pois, Deus não ordena a Igreja o dominar no sentido de poder; Ele ordena, isso sim, que os homens administrem e cuidem da terra para o bem de todos da sociedade, já que foi para isso que Ele outorgou a terra aos filhos dos homens (cf. Sl 115.16).

Somente assim, e repita-se, somente assim, se tem uma Igreja verdadeiramente embasada no Santo Evangelho!

21. [iii] Terceiro, a Igreja e as crises políticas; ora, a função da Igreja de influenciar a administração política para o bem comum é mais evidente principalmente de quando de crises políticas; pois, nestes momentos, ou se mostra a firmeza ou se mostra a decadência das Igrejas; assim, as Igrejas ou se mantém firmes em sua missão específica, de quando das crises políticas, ou sucumbe as mesmas e as torna trampolim de movimentos e agitações políticas; ora, se isto ocorrer, então a Igreja é abandonada por Deus e se torna em establishment político, e com isso, se torna mutável a medida dos ventos das agitações políticas, que vão de um lado a outro tanto em convicções ideológicas quanto em práticas sócio-políticas.

Isto, por sua vez, esquizofreniza a função eclesial na sociedade bem como corrompe a missão inalterável da Igreja de anunciar o Santo Evangelho. E, diante desta situação, ou a Igreja se torna em aparato das agitações políticas ou mantém incólume a liberdade que é preciso conservar de quando das agitações políticas, a saber, a liberdade enquanto doutrina, a liberdade como dom da graça; e, quanto a isso, Barth assevera: “a liberdade, que é preciso preservar, é a liberdade, isto é, a soberania da Palavra de Deus na proclamação e na teologia[4].

Logo, diante as crises políticas, fundamentalmente e inviolavelmente, a Igreja deve manter esta liberdade intocada, e deve continuar proclamando o Evangelho e afirmando a soberania da Palavra de Deus na proclamação, na teologia e na vida eclesial. Esta é a função impreterível da Igreja diante das crises políticas.

22. Portanto, nestes três aspectos se consegue aclarar o que concerne a incumbência política da Igreja, ou melhor, a incumbência da Igreja diante da política; assim sendo, diante da política, a Igreja deve se manter firme em sua missão ordenada por Deus e se manter incólume como coluna e firmeza da verdade (cf. 1Tm 3.15); pois, a incumbência política da Igreja deve ser orientada pela Sagrada Escritura.  

E se as Igrejas não tem conformidade plena com a Sagrada Escritura, então, jamais exercerão sua incumbência política de maneira plena; pelo contrário, sem conformidade plena com a Sagrada Escritura, as Igrejas se tornam em viveiros de hipocrisia, mentira e manipulação (cf. Os 12.1), e isto em prol das convicções ideológicas e políticas reinantes.

Ora, a chamada Igreja do Reich fora um exemplo de “igreja” sem conformidade plena com a Sagrada Escritura; mas as “denominações” evangélicas no Brasil, em sua maior parte, também são um exemplo incontestável da falta de conformidade plena com a Sagrada Escritura, e isto em grande parte como efeito de agitações políticas; etc.

23. Então, surge uma grande preocupação com a crescente e aparentemente “inofensiva” ideologização da Igreja; as consequências são por demais terríveis para não ligar o sinal vermelho e deixar todos alertas, mesmo em se tratando de supostamente um “perigo distante” ou tido como inexistente pela cegueira espiritual comum do movimento evangélico brasileiro, e em grande parte nos EUA, já que ao sujeitarem-se a ideologização acabam por se tornar tudo menos Igreja verdadeira.  

Deste modo, se pontuou o que concerne sobre a incumbência política da Igreja; além disso, ao se reafirmar este tópico, também se estabelece a necessidade de se falar sobre a influência que os cristãos hão de ter na administração política, a fim de melhor ordená-la ao bem comum e de preservar as verdades eternas; mas isso não diz respeito a descrição da incumbência política da Igreja, conquanto seja algo que advenha logo após.

Porém, quanto a incumbência política da Igreja, em relação ao que fora designado, basta o que fora dito; todavia, que se saiba que este é apenas um magro esquema a respeito deste assunto, o qual, quiçá, será melhor analisado posteriormente.

 

IV. O Perigo da Igreja Ideologizada.

 

24. E, tendo compreendido o que concerne a incumbência política da Igreja, se pode aclarar um terrível problema que a cristandade tem de enfrentar, a saber, a ideologização das Igrejas; e é um perigo hediondo quando a Igreja se torna ideologizada, pois a Igreja Ideologizada já não tem mais ouvidos para os ensinamentos do Santo Evangelho; a Igreja Ideologizada é um “ajuntamento” ou uma “assembleia” que busca se auto-reformar não de acordo com a Sagrada Escritura, mas de acordo com o entusiasmo político, o que não apenas é perigoso, mas é o atestado espiritual de que as Igrejas estão abandonadas por Deus já que estas abandonaram Sua Palavra.

E, quando as Igrejas abandonam o Evangelho, das duas uma: ou se tornam voláteis ao ímpeto da ideologia que domina a cultura, ou então se tornam em “órgão” do Estado ou em função de propósitos estatais. Por isso, se afirma em alto e bom tom o que diz o símbolo de Barmen: “Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja poderia e deveria, ultrapassando a sua missão específica, apropriar-se das características, dos deveres e das dignidades estatais, tornando-se assim ela mesma, um órgão do Estado” (§ 5).

Pois, a Igreja Ideologizada sempre ultrapassa sua missão específica em função de convicções ideológicas e políticas reinantes e se transmogrifa de acordo com o gosto do freguês, e geralmente o faz apropriando-se dos deveres e das dignidades estatais, estando em ordem, direta ou indiretamente, aos grimórios do Estado Total.

25. Ora, a compreensão sobre a Igreja Ideologizada se torna evidente através de algumas indagações, as quais são:

(1) se as decisões tomadas em relação a vida interna da Igreja têm a ver com a Palavra de Deus ou com o entusiasmo político?

(2) a mensagem proclamada tem a ver com a explicação da Sagrada Escritura ou é doutrinação ideológica?

(3) se se tem uma conscientização, direta ou indireta, de que há uma nova incumbência à Igreja?

(4) se a teologia se tornou em teologismo?

(5) se a afirmação dos valores pátrios se sobreleva as verdades eternas?

Assim, responder-se-á e explicar-se-á cada uma destas indagações, a fim de que se compreenda as nuances da Igreja Ideologizada.

26. [ad. 1] Ora, se deve compreender que a vida interna da Igreja há de ter conformidade absoluta com a Sagrada Escritura; e, isto, por sua vez, é suficiente para se entender se as decisões tomadas em relação a vida interna da Igreja tem a ver com a Palavra de Deus ou com o entusiasmo político; pois, se for em conformidade com a Palavra de Deus, então, a vida interna da Igreja não será dominada pelo lixo ideológico; no entanto, se as decisões tomadas forem a partir do entusiasmo político terá três características: primeiro, a busca por novidades; segundo, a mesma espécie de manipulação que a da classe política; terceiro, parâmetros mundanos e pecaminosos em relação as coisas sagradas (geralmente através de práticas luxuriosas).

Estas são as consequências mais gerais de quando as decisões eclesiais são permeadas pelo entusiasmo político e não pela Palavra de Deus; e, assim, as Igrejas se tornam em expressão da vontade de poder da ideologia dominante ao invés de ser coluna e firmeza da verdade; aliás, se afirma de maneira categórica que quando as Igrejas são guiadas nas decisões eclesiais pelo entusiasmo político, serão permeadas pelos ditames da ideologia dominante e assim deixará a firmeza da verdade de lado, em nome de uma falsa “tolerância”.

Por isso, o entusiasmo político é devastador quando adentra aos arraiais eclesiais, mesmo quando tido como “inofensivo” e com “bons propósitos”; e que se relembre sempre, nunca o entusiasmo político produz algo de bom para a vida interna da Igreja, na verdade sempre produz malefícios terríveis como a história da Igreja testemunha, e como mais particularmente a história da cristandade no séc. XX constatou de maneira aterradora.

27. [ad. 2] A mensagem que é ordenada à Igreja é a que está na Sagrada Escritura; por isso, a mensagem a ser proclamada pela Igreja é a que está em conformidade com a Sagrada Escritura; e, sob nenhuma hipótese a Igreja pode se render a doutrinação ideológica, que advêm não somente de modo direto, mas também de modo indireto; não somente com doutrinas e preceitos ideológicos, mas principalmente com a corrupção da ordem bíblica inerente a existência eclesial.

Pois, a não-conformidade das Igrejas com a Palavra de Deus em relação aos políticos no âmbito da existência eclesial, é uma doutrinação ideológica feita de modo indireto, e com isso, ocorre a corrupção da vida interna da Igrejas e as torna sujeitas a “poderes de mando humano”. E, em se tratando do âmbito ideológico, isso ocorre não somente em relação aos marxistas; pois, qualquer viés ideológico que queira ter “voz” na vida interna da Igreja, na verdade são dominados pela vontade de poder que quer sujeitar as Igrejas aos “poderes de mando humano”.

28. [ad. 3] A ideologização da Igreja sempre se demonstra de várias maneiras; a mais costumeira e clarividente, é a aceitação geral por parte das Igrejas de que há uma nova incumbência às Igrejas; e não há nada mais terrível e diabólico do que a rendição por parte das Igrejas a esta fétida conscientização de uma nova incumbência além daquela prescrita e ordenada na Sagrada Escritura; além disso, se observa que este tipo de nova conscientização, que está arrolada aos lixos políticos, nunca provêm de Deus; e que isso nunca seja esquecido: Deus não ordena novas incumbências a Sua Igreja por meio de políticos e muito menos ordena aquilo que já não está escrito em Sua Revelação.

Portanto, Deus não requer outra incumbência a Sua Igreja além daquela já por Ele determina em Sua Palavra (cf. Is 8.20); portanto, qualquer tentativa de tentar acoplar à Igreja uma nova incumbência além das que estão prescritas na Sagrada Escritura, é movimento do diabo para cauterizar as consciências e dominar a vontade do povo de Deus (cf. 2Co 4.4). Assim, se as Igrejas, que confessam crer na Sagrada Escritura como norma da fé reta, permitem práticas e ações, principalmente por causa de viés político, que estejam contra a Sagrada Escritura, então, o que há é a ação demoníaca para cegar a mente para a Palavra de Deus e sujeitar as consciências ao entusiasmo político.

29. [ad. 4] E, quando ocorre a ideologização da Igreja, a teologia se torna em teologismo, isto é, em teologia ideológica, em teologia que não se submete a Palavra de Deus, em teologia movida pelo entusiasmo político; e que triste estado é o da teologia quando a mesma se torna em teologismo; além disso, quando a teologia se torna em teologismo, a teologia e os que a ele se dedicam acabam adormecidos espiritualmente; e assim, a teologia se torna acomodada com autoritarismos e totalitarismos políticos, o que, por si, demonstra a completa derrocada do propósito e da natureza da teologia. Por isso, se a teologia se tornar em teologismo, então há uma grave e terrível ideologização da Igreja, que quando chega neste ponto, já é uma ideologização que se entranhou em todos os aspectos da vida eclesial.

30. [ad. 5] E a ideologização da Igreja proporciona uma série de terríveis e tenebrosos desvios quanto a compreensão sobre os valores pátrios; a própria Escritura prescreve que os fiéis hão de seguir os valores da pátria em que habitam (cf. Jr 29.4-7), desde que estes não contradigam as verdades eternas e nem as Sagradas Escrituras; se os valores pátrios estão contra a Palavra de Deus e contra as verdades eternas, então, importa mais obedecer a Deus do que aos homens (cf. At 5.29). Portanto, se houver uma valoração dos valores pátrios, no âmbito eclesial, em detrimento ou em contrariedade as verdades eternas e a Palavra de Deus, então, certamente há ideologização da Igreja. Pois, a afirmação de valores pátrios jamais deve se sobrelevar as verdades eternas.

31. Com isso, através das proposições evocadas nestas respostas a estas cinco indagações se constata algumas características da ideologização da Igreja; e, além disso, nestas cinco respostas também poder-se-iam evocar alguns exemplos históricos que evidenciam as consequências terríveis da ideologização da Igreja; assim sendo, se constata que sempre que o entusiasmo político domina uma sociedade despersonalizada, este certamente adentrará aos arraiais eclesiais, os quais, por sua vez, ao serem ideologizados, começam a aceitar, a propagar e a promover práticas anti-bíblicas.

Assim, a aceitação, a propagação e a promoção de práticas anti-bíblicas, demonstra que as Igrejas se esqueceram e rejeitaram a Palavra de Deus; e se as Igrejas se esquecerem e/ou rejeitarem da Palavra de Deus, então são abandonadas pelo próprio Deus. Pois, uma Igreja ideologizada é uma Igreja abandonada por Deus.

32. E, quanto aos exemplos que podem ser evocados a este respeito, toma-se como exemplo apenas o chamado caso Barth-Hirsch, isto é, a disputa entre Karl Barth e Emanuel Hirsch a respeito da ideologização da Igreja; como se sabe, Barth se opôs ferrenhamente a chamada Igreja do Reich, que fora formada como uma Igreja em ordem ao nacional-socialismo, e uma “Igreja” que deveria servir aos propósitos estatais; em contrapartida, Emanuel Hirsch, que era um brilhante teólogo luterano, e que se tornara membro do partido nazista e conselheiro do bispo do Reich, era totalmente favorável a esta ideia, a ponto de afirmar que era incumbência da Igreja aceitar tal tipo de ideologização.

33. E, quanto ao que Hirsch fez em relação a seu apoio a infame Igreja do Reich, uma Igreja ideologizada, se pode sumariá-la naquilo que o próprio Hirsch chamou de “vontade eclesiástica dos cristãos alemães”; ora, os verdadeiros cristãos não possuem vontade eclesiástica; isso é ferramenta ideológica; pois, a vontade que deve prevalecer na Igreja é a vontade de Deus tal como está em Sua Palavra; somente assim há verdadeiramente Igreja; mas, os propósitos de Hirsch, e de outros, servem para aclarar as consequências da aceitação da ideologização da Igreja, ao ponto de líderes eclesiásticos se acharem no poder de mudar as práticas eclesiais de acordo com o lixo ideológico.

Com isso, se constata que quando ocorre a ideologização da Igreja, o que passa a acontecer é que surge uma suposta “vontade eclesiástica”, um eclesiasticismo ideológico, que sempre se estabelece em contrariedade a vontade de Deus para a Igreja; ora, quando se fala em “vontade eclesiástica”, ou algo similar, seja de modo explícito seja de modo implícito, se tem a aceitação e propagação de práticas vis e anti-bíblicas; e, quando esta vil “vontade eclesiástica” não é inicialmente propagada pelo povo, é propagada pela liderança e assim permeia o povo; ou então, inicia pelo povo e acaba por influenciar a liderança eclesiástica. Aliás, se afirma que quando ocorrem manifestações em prol da “vontade eclesiástica”, e de quando esta está em consonância com as políticas ideológicas reinantes, então as Igrejas estão abandonadas por Deus.

34. Por isso, que Karl Barth sentenciara contra Hirsch e a suposta vitória dos “cristãos alemães” em relação a uma “vontade eclesiástica”, as seguintes palavras: “para o caso talvez já consumado de uma vitória dos ‘cristãos alemães’, parece que estaremos diante de uma espécie de época de terror eclesiástico teológico (em que os tambores tomarão conta do culto e em que E. Hirsch determinará o que é teologia)[5]; ora, esta sentença de Barth demonstra alguns aspectos do que concernia esta “vontade eclesiástica” dos cristãos alemães, a saber, a instituição de uma época em que somente aqueles que estavam ligados aos aparatos estatais é que definiriam o que é teologia e que os “tambores tomarão conta do culto”, isto é, haverá uma corrupção total do culto a Deus; ou seja, tudo aquilo que estivesse em contrariedade com os propósitos ideológicos, seria logo silenciado; e fora isso que realmente ocorrera, demonstrando que a ideologização da Igreja sempre é algo terrível.

35. Mas, esta descrição de Barth em seu imorredouro ensaio “Existência Teológica Hoje” (1933), deixou Hirsch indignado; e, em relação ao desmonte que Barth fez em relação aos “cristãos alemães” e aos propósitos totalitários do Führer, Hirsch respondeu com as seguintes palavras: “Para nós, cristãos alemães, não faz sentido falar com Karl Barth. Ele nos chama de ‘hereges abertos e selvagens’. Ele considera o pastor do distrito militar Müller eclesiasticamente impossível porque ele foi responsável por nossas novas diretrizes e, portanto, por todos os nossos erros: foi uma violação da responsabilidade eclesiástica que os três representantes da igreja estivessem preparados para trabalhar com tal homem com um espírito de confiança, eles deveriam ter fechado fundamentalmente os ouvidos para ele como teólogo. Ele fala com referência a nós, cristãos alemães, dos ‘bad boys’ cuja tentação a igreja deve resistir. Não há como conversar com Karl Barth. Consciente de sua responsabilidade eclesiástica, ele fechou os ouvidos. É difícil falar sobre Karl Barth com outras pessoas, entre as quais ele se esforça para desacreditar nosso bom nome cristão [...] O que resta fazer nessa situação? A coisa mais simples e óbvia: dar conta da própria vontade eclesiástica, dar conta da fé da qual provém o risco dessa vontade[6]. 

Ora, a resposta de Hirsch, mesmo demonstrando um total desagrado com relação a crítica de Barth, demonstra a veracidade desta critica; pois, Hirsch ao atacar Barth em relação ao ensaio “Existência Teológica Hoje”, comprovou e atestou tudo aquilo que fora denunciado por Barth neste ensaio; na verdade, Barth, de modo cirúrgico, comprovou que a existência teológica, a vida da Igreja, está diante da Palavra de Deus e na obediência a Deus e não a homens; e contra a corrupção ideológica da Igreja, os teólogos hão de estar despertos e atentos para enfrentar tal corrupção em fidelidade a Sagrada Escritura.

36. E a atitude de Hirsch é a mesma de todos aqueles que buscam ideologizar a Igreja ou mantê-la ideologizada; pois, os falsos cristãos, nos movimentos inventados pelo diabo, buscam acoplar outras práticas e outras doutrinas, que não as que estão no Santo Evangelho; além disso, os que propagam práticas errôneas sempre tentarão desmerecer ou vituperar aqueles que os criticam ou denunciam tais práticas; e, ao fazê-lo, os “cristãos ideológicos”, sejam pastores ou não, principalmente desta nova onda de castificação feminista que tem procurado subverter a Igreja em função de ordenação feminista ao sacerdócio (ou ao pastorado), e que já dominou e fez decair muitas Igrejas, sempre buscarão reafirmar seus “convicções” através de práticas anti-bíblicas; isto é, ao serem atacados e denunciados em seus erros, tratarão de reafirmar estes erros e de condenar com hereges e errados aqueles que os criticam e denunciam.

37. E fora isso que Hirsch fizera; e é isso que os “cristãos ideológicos” continuarão a fazer; a atitude dos “cristãos ideológicos” que não são movidos pela Escritura, mas pelo entusiasmo político, será sempre a indagação de Hirsch: “o que resta fazer nessa situação?”, e a resposta sempre será a continuidade no erro e nas práticas erradas e anti-bíblicas; e não é de se assustar que da ideologização da Igreja tenham surgidos tantas teologias que são tudo, menos verdadeiramente teologia.

Ora, as teologias da libertação marxistas, as teologias feministas, as teologias raciais (teologia negra, teologia branca, ou algo similar), as teologias queer, etc., são teologias ideológicas, são teologias pútridas; e, por isso, devem ser totalmente rejeitadas; pois, na verdade, são parte do programa de um teologismo hediondo que corrompe e corrói a racionalidade e desfigura a vida eclesial, imbecilizando os “cristãos”, e tornando a noiva de Cristo em algo pior do que uma prostituta.

E este exemplo evocado fornece um simples panorama das ações dos “cristãos ideológicos”, aqueles que conscientes ou não, promovem a diabólica ideologização da Igreja.

38. E, outro aspecto, é que a ideologização da Igreja sempre torna os “cristãos ideologizados” sujeitos aos efeitos morais e intelectuais das ideologias nefastas; os “cristãos ideologizados” são permeados pela soberba; e se há soberba, então, direta ou indiretamente, haverá sujeição e subserviência ao comunismo; e onde há soberba, arrogância, principalmente em se tratando da política, logo o comunismo irromperá contra o soberbo ou o arrogante com todos seus instrumentos de domínio, tal como Vilmar houvera alertado: “quanto mais arrogância você tiver, mais certo será que a tempestade do comunismo irromperá contra você[7].

Os “cristãos ideologizados” estão calcinados nesta soberba, de tal modo que o comunismo irromperá, de maneira abrupta ou não, para dominá-los e sujeitá-los aos ditames do comunismo, através da inculturação comunista através da soberba.

Esta também é uma das consequências terríveis da ideologização da Igreja, a qual, infelizmente se tornara um caractere indiscutível da Igrejas Evangélicas ao redor do mundo, e em parte também do catolicismo e da ortodoxia, pois, nas Igrejas as práticas ideológicas dominaram e colocaram de lado as práticas bíblicas.

 

V. O Perigo do Religiosismo do Estado.

 

39. Além do perigo da Igreja Ideologizada, se tem um perigo maior e mais hediondo, a saber, o perigo do religiosismo do Estado; se sabe pela reta razão que o Estado deve ser laico, isto é, não deve se intrometer e/ou querer regular a vida interna da Igreja ou das religiões; mas, a não-compreensão sobre o Estado laico gerou o Estado laicista, que é uma forma de Estado religioso, pois, a tentativa estatal de laicizar a religião e a sociedade, em suma, também é um ato religioso só que de acordo com os propósitos de ideologias nefastas.

Deste modo, se tem o religiosismo do Estado, que é a desfiguração do propósito e da função da religião em razão de propósitos estatais, seja de maneira afirmativa, afirmando a interferência do Estado em assuntos da vida interna da Igreja ou das religiões, seja de maneira negativa, na propagação dos tentáculos do laicismo; estes dois aspectos, são os dois lados da mesma moeda do religiosismo do Estado.

Pois, a corrupção da religião, propugnada filosoficamente por Kant, e encarnada na perspectiva sócio-cultural por Marx, permeou quase que completamente a existência do Estado na contemporaneidade, e assim, gerou o religiosismo estatal (neologismo para descrever a corrupção da religião nos aparatos estatais e suas consequências).

40. Ora, para compreender este religiosismo do Estado, são apresentadas algumas indagações que tornam mais evidentes este perigo com a qual os cristãos e as Igrejas tem de ser defrontar em tempos hodiernos:

(1) se os aparatos estatais estão imbuídos com a crítica a religião?

(2) os aparatos estatais tem se coadunado para violar a liberdade religiosa?

(3) se a laicidade do Estado tem sido transmutada em laicismo do Estado?

(4) o Estado tem procurado interferir na vida interna da Igreja?

(5) o aparato jurídico do Estado tem militado em função da usurpação da vida interna da Igreja?

Assim, responder-se-á e explicar-se-á cada uma destas indagações, a fim de que se compreenda as nuances do religiosismo do Estado.

41. [ad. 1] Ora, isto geralmente tem uma resposta negativa; todavia, na prática, nas ações dos aparatos estatais, geralmente os mesmos estão imbuídos com a crítica a religião, tal como se demonstra em ações que deliberadamente inferem a liberdade religiosa e/ou a liberdade crença e de culto; e, quanto a isso, se afirma também que a crítica a religião, promovida e propagada através dos aparatos estatais é um vilipêndio contra a ordem social; pois, a sociedade é sempre religiosa, e mesmo com manifestações religiosas diversas, sempre tem um tronco religioso em comum; e o respeito a este tronco religioso comum é parte impreterível da ordem social; agora, se os aparatos estatais permitem, propagam e promovem atos e ações contra a liberdade religiosa, particularmente da religião predominante, então, há crítica a religião imbuída nos aparatos estatais, o que, por si, os corrompe de sua função e dignidade.

42. [ad. 2] A crítica a religião, imbuída nos aparatos estatais, é talhada e inculturada para que o Estado possa violar, de maneira velada e indireta, a liberdade religiosa; por isso, se se tem a crítica a religião nos aparatos estatais, então, haverá a inferência da liberdade, principalmente em se tratando da liberdade religiosa; ou dito de outro modo, haverá liberdade religiosa para quem atacar a religião predominante, mas haverá perseguição contra a religião predominante quanto esta se utilizar da liberdade religiosa. Isto, por sua vez, demonstra que os aparatos estatais foram paulatinamente coadunados e amalgamados para violar a liberdade religiosa; e isto, evidentemente, é evidência inegável do religiosismo do Estado.

43. [ad. 3] A crítica a religião imbuída nos aparatos estatais é demonstrada através da transmutação da laicidade do Estado em laicismo do Estado; pois, a laicidade do Estado é evidenciada através da não-intromissão ou não-violação da vida interna da Igreja e/ou das religiões, desde que estas estejam em acordo com a lei; no entanto, de quando da crítica a religião nos aparatos estatais, então, haverá não a laicidade do Estado, mas o laicismo do Estado, isto é, os aparatos estatais trabalhando para laicizar a religião e a liberdade religiosa; a crítica a religião, em seus diversos tipos e modos, imbuída nos aparatos estatais, é a tentativa direta e indireta de tornar o Estado laico em Estado laicista.

Portanto, com a crítica a religião, a laicidade do Estado tem sido transmutada em laicismo do Estado; e as consequências disso são terríveis, pois, quando isso ocorre haverá esquizofrenização lógico-jurídica quanto aos preceitos da liberdade religiosa, o que sempre colocará os aparatos estatais contra a religião, particularmente contra a religião cristã.

44. [ad. 4] Ora, a crítica a religião, a partir das características que foram descritas, são evidenciadas nos modos pelos quais o Estado busca interferir na vida interna da Igreja e/ou das religiões; no caso, geralmente é interferência contra Igreja; pois, a repentina acusação de “machismo”, “homofobia”, “intolerância” e similares, contra a proclamação da Igreja, que lhe é inerente dado a liberdade religiosa, e a aceitação destas acusações sem provas concretas e reais de que realmente assim ocorrera, é evidência de que o Estado tem procurado interferir a vida interna da Igreja; e esta é apenas a mais visível e perceptível das evidências; assim, se constata que o Estado, seja por qual meio for, tem procurado interferir na vida interna da Igreja, já que tem procurado retirar desta a liberdade religiosa que lhe é assegurada pela lei.

45. [ad. 5] E, de quando da crítica a religião nos aparatos estatais, se observa o grau da mesma; pois, se o aparato jurídico do Estado busca militar em função da usurpação da vida interna da Igreja, então, não somente há crítica a religião, mas desfiguração e corrupção do próprio propósito do Estado e de seus aparatos; e, lembrando que a Igreja e a teologia, tal como afirmara Barth, são a fronteira natural do Estado Total[8]; logo, se os aparatos estatais estiverem militando em função da usurpação da vida interna da Igreja, então, o que há por detrás são os tentáculos do Estado Total, pois, naturalmente a última fronteira antes de se procurar implementar um Estado Total é a Igreja e a teologia; portanto, quando se tem a crítica a religião imbuída nos aparatos estatais, ou então mesmo no eclesiasticismo estatal ou na busca por tal eclesiasticismo, se busca usurpar a vida interna da Igreja em função de propósitos estatais ou propósitos ideológicos, então, obviamente se tem uma “mão invisível” que aos poucos está procurando corromper a última fronteira natural do Estado Total. E, quando isso ocorre, ou começa a ocorrer, é um sinal de alerta de que algo está sendo feito algo para implementar alguma forma de Estado Total ou de seu preâmbulo, o Estado Autoritário.

46. Com isso, através das proposições evocadas nestas respostas a estas cinco indagações se constata algumas características do religiosismo do Estado; e, poder-se-iam evocar alguns exemplos a respeito disso; mas o que fora dito, e o exemplo evocado anteriormente a respeito da ideologização da Igreja, são suficientes também para aclarar o desequilíbrio e as consequências do religiosismo do Estado; assim sendo, se constata que ao entusiasmo político dominar uma sociedade despersonalizada, além de corroer os arraiais eclesiais, também açambarcará os aparatos estatais, os quais, quando dominados culturalmente por alguma ideologia nefasta, vão aceitar, propagar e promover a crítica a religião, gestando e formando o religiosismo do Estado; e a medida que se castifica este religiosismo do Estado, o aparato estatal vai aos poucos se estabilizando em ordem a formação do Estado Total.

47. No entanto, engana-se quem pensa que o religiosismo do Estado é somente para implementar o Estado Total cruel e hediondo; pois, desde a morte de Stálin e o fim do stalinismo como norte doutrinário do comunismo após Khrushchov, o comunismo não busca deliberadamente, salvo em alguns resquícios do stalinismo ao redor do mundo, o domínio com o Estado Total cruento; mas, a partir do comunismo chinês, o norte orientador do comunismo é a busca do Estado Total sob a fachada de uma “democracia popular”, tal como ocorre na China; ora, para isso eles se utilizam da dialética da contradição, a fim de velarem que estão implementando um Estado Total, sem as práticas cruentas diretas, mas com alguns benefícios para o povo, dando a ideia de uma “democracia popular”.

Em se tratando da ciência política, se sabe em si não existe “democracia popular”, embora seja o sonho de muitos ativistas políticos, mesmo aqueles que não são do viés político de esquerda; portanto, o grimório do Estado Total em tempos hodiernos não somente advém com a crueldade, mas com a contradição de querer implementar algo utópico em função do povo, mas que mantém o Estado com controle absoluto sob o que o povo deve ter ou deve buscar. Em suma, isto é o comunismo chinês.

48. Deste modo, o religiosismo do Estado se estabelece em função do Estado Total, em tempos hodiernos, não sob formas cruentas, mas velado sob os grimórios da “democracia popular”, o que faz com que os comunistas dominem não mais diretamente tirando a liberdade, mas aos poucos dopam a consciência pessoal e social para a percepção da violação da liberdade que aos poucos vão implementando; e isto, fazem não de maneira abrupta, mas de maneira velada e paulatina, ao ponto de conseguirem a longo prazo retirarem da sociedade qualquer percepção e valoração da inviolabilidade da liberdade. Isto, ao se coadunar com o religiosismo do Estado, proporciona aos comunistas o instrumento ideal de domínio a longo prazo, sem precisarem se utilizar da luta armada e sanguinária.

49. Assim, o religiosismo do Estado com o qual os cristãos e as pessoas de bem hão de se defrontar é justamente este; o qual, é tão terrível quanto o da práxis sanguinária; todavia, é muito mais difícil de ser combatido e em muitos casos é quase que imperceptível; as consequências finais são as mesmas, mas os meios e os instrumentos para a implementação são totalmente diferentes; e, se observa que, através da correta implementação da contradição no seio do povo, se corrompe aos poucos qualquer possibilidade de resistência e percepção para os propósitos sempre nefastos do comunismo.

E, consequentemente, isto também atinge os arraiais eclesiais, ao ponto de haverem muitas Igrejas e muitos cristãos, que são dominados por esta contradição, a qual, de modo geral, se demonstra da seguinte maneira: a aceitação de doutrinas e práticas anti-bíblicas, que vão desde perspectivas sociais e políticas as músicas utilizadas nas Igrejas, ao mesmo tempo em que lutam veementemente para o mantenimento, de modo obstinado, destas práticas como se fossem parte de uma nova incumbência à Igreja ou como se diz num adágio que se tornou corriqueiro no meio evangélico, como se fosse parte do “novo de Deus” ou da necessidade de não se lembrar das coisas antigas, e coisas similares.

50. Esta perspectiva é parte da implementação deste tipo de religiosismo do Estado ora descrito, o qual não se dá de maneira imediata com o controle comunista abrupto, mas institui a busca por novidade e a mesma se instaura em muitas Igrejas, e, com isso, o comunismo domina indiretamente estas Igrejas, já que a busca por novidades faz com que as Igrejas percam a identidade de Igreja, o que as torna sujeitas ao ímpeto ideológico que domina a cultura – no caso do Brasil, o comunismo.

Portanto, a maior parte das Igrejas tem de tudo menos a correta existência eclesial, pois foram dominadas pelo religiosismo do Estado e se tornaram, mesmo que de maneira indireta, parte de uma forma pouco elucubrada de eclesiasticismo estatal já que promovem a vontade de domínio comunista, muitas das vezes sem sequer apoiarem o comunismo; mas, como são açambarcadas pelo entusiasmo político, então, mesmo que inconscientemente, acabam por ceder ao princípio comunista da mudança dos bons costumes, que vem recheado de práticas marxistas que se infiltram de maneira sorrateira e desfiguram totalmente a vida eclesial.

 

VI. A Unidade da Fé e a Decisão Política.

 

51. Assim, tendo visto brevemente dois problemas terríveis quanto a desfiguração das funções da Igreja e do Estado, cumpre indagar se a incumbência política da Igreja tem a ver com a unidade da fé? Ou se a unidade da fé se dá em ordem a incumbência política? Ora, esta indagação, que parece simplória, é uma das grandes brechas que as Igrejas tem deixado para as grandes raposas ideológicas adentrarem e destruírem a vinha do Senhor. Pois, se tem tomado a decisão política como algo preponderante para a unidade da fé; grandíssimo engano; a unidade da fé não depende de decisão política, embora a decisão política possa ser tomada a partir da unidade da fé, em função do bem comum.

52. E, no que tange a incumbência política da Igreja, se compreende que no âmbito desta incumbência jamais é permitido que os cristãos definam a unidade da fé a partir de categorias ideológicas; quem assim o faz é açambarcado na descrição dos “cristãos ideológicos”; ora, a fé não permite assenhoramento ideológico; se alguém que se diz cristão é assenhorado por uma ideologia, então, a fé é deixada de lado, é relegada a não-importância; pois, o assenhoramento ideológico semeia o entusiasmo político, que sempre produz efeitos negativos, já que o entusiasmo político acaba por se sujeitar aquilo que Nietzsche chamara de “vontade de poder”.

53. Portanto, se deve aclarar a descrição da relação entre a unidade da fé e a decisão política a partir do princípio da sobriedade; sobriedade na relação entre fé e política; e, principalmente sobriedade na compreensão entre o que concerne a unidade da fé, na vida eclesial e na vida extra-eclesial, e o que concerne a administração política, na vida pública; pois, a administração política não deve buscar a unidade da fé, embora deva respeitar a integridade da fé na sociedade e mesmo na vida pública; no entanto, a administração política, se for feita por homens de fé, deve ser em função do bem comum.

54. E, conquanto no âmbito doutrinário exista apenas uma fé verdadeira, a fé em Jesus Cristo (cf. Ef 4.5), a administração política não é feita apenas para as pessoas desta fé ou de qualquer outra fé, ou mesmo às pessoas que dizem não acreditar em nada; a administração política, mesmo sendo feita por pessoas de fé, deve visar o bem comum e o benefício do povo; por isso, não é uma decisão em função disto ou daquilo quanto a crença religiosa, mas em função do bem da coisa pública, que pertence ao povo, o qual tem uma religião comum.

Ora, isto demonstra que a unidade da fé há de ser evidente na Igreja e não na política; no entanto, na vida pública há de ser evidente a decência, a honra e o senso de dever, pois quando isso ocorre então a sobriedade da decisão política é demonstrada e sublimada através dos políticos que se dizem cristãos. Logo, em princípio não é questão de fé, mas sim de correta administração e de um plano adequado para o desenvolvimento integral.

Por isso, um homem ou uma mulher de fé, isto é, que seja da confissão cristã, que exerça a política pode e deve demonstrar sua fé, mas na vida pública não em termos religiosos, mas sim em suas decisões sóbrias na administração política e para o bem do povo e não em querer formar um eclesiasticismo estatal ou em propagar o religiosismo do Estado.

55. Deste modo, o princípio da sobriedade estabelece três pressuposições[9]: (i) primeiro, a decisão política deve envolver coragem e humildade; (ii) segundo, a decisão política deve envolver boa disposição; (iii) terceiro, a decisão política deve envolver responsabilidade diante de Deus e senso de dever diante do povo.

56. [i] Primeiro, a decisão política deve envolver coragem e humildade; ora, coragem e humildade, já que dever e responsabilidade estão amalgamados na decisão política; por isso, coragem, determinação, resolução, a fim de se ter a virtude necessária para a decisão política sóbria; e humildade, modéstia, simplicidade, a fim de se suportar com dedicação as ambiguidades da decisão política; coragem para poder exercer corretamente a administração política diante dos desafios da mesma; humildade para enfrentar estes desafios sem decair em desequilíbrios.

Portanto, a decisão política, principalmente por parte de políticos que se dizem cristãos, deve envolver coragem e humildade: coragem para desenvolverem uma boa administração política, humildade para não decaírem nos erros do eclesiasticismo estatal; além do que, humildade para não serem açambarcados no “jogo da soberba” engendrado pelo comunismo.

Por isso, estas são as características fundamentais que devem permear a decisão política, posto que, coragem e humildade são duas características fundamentais para quem tem a vocação para a administração política.

57. [ii] Segundo, a decisão política deve envolver boa disposição; além de coragem e humildade, a decisão política deve envolver boa disposição, bom ânimo; ora, ter boa disposição independe de adversidades, já que é a decisão de uma personalidade integrada; a boa disposição é ainda mais evidente em tempos de adversidades; por isso, àqueles que tem vocação à administração política, devem ser homens e mulheres de personalidade integrada, para que diante dos momentos de adversidades permaneçam com boa disposição, a qual ajuda a preservar a coragem e a humildade no exercício da administração política; portanto, a boa disposição deve ser o “remédio” e a “nutrição” para aqueles que se dedicam a administração política; o “remédio” de quando as vicissitudes da vida política acutilam de modo agudo; e a “nutrição” de quando precisam de mais vigor e incentivo para continuarem em meios aos erros e desacertos. Por isso, só há decisão política sóbria quando há boa disposição.

58. [iii] Terceiro, a decisão política deve envolver responsabilidade diante de Deus e senso de dever diante do povo; ora, além de envolver coragem e humildade, e de envolver boa disposição, a decisão política deve envolver responsabilidade diante de Deus e senso de dever diante do povo; responsabilidade diante de Deus, ao saberem para o que foram vocacionados e diante de quem hão de prestar contas, já que os políticos que se dizem cristãos devem ter o temor a Deus para evitar que deifiquem o Estado ou estatizem as Igrejas; e senso de dever diante do povo, posto que, ao saberem da responsabilidade que tem diante de Deus, hão de trabalhar e laborar para o bem do povo; por isso, responsabilidade diante de Deus, a fim de não se sobrelevarem além do que são, e senso de dever diante do povo para lhes servir e lhes proporcionar bens e melhorias a fim de usufruírem do bem-estar social, a fim de que Deus seja honrado e louvado através de uma boa administração política.

Portanto, a decisão política envolve a dialógica da responsabilidade diante de Deus e senso de dever diante do povo, que são subsequentes, mas também são uma aferidora de medida da outra: se há responsabilidade diante de Deus, então há de haver senso de dever diante do povo; e pelo senso de dever diante do povo há de se constatar se há responsabilidade diante de Deus, e vice-versa.

59. E, diante do tríplice encargo do princípio da sobriedade que permeia a decisão política, se compreende adequadamente a dialética que é inerente a relação entre a decisão política e a unidade da fé, pois jamais a unidade da fé pode se basear em decisão política, e a decisão política jamais deve beneficiar apenas uma fé ou crença. Mas, também se compreende adequadamente a dialógica que é inerente a relação entre a decisão política e a unidade da fé, pois a unidade da fé deve influenciar da melhor maneira a decisão política, como fora dito, em função do bem comum e a fim de se ter uma virtuosa administração política, que tem por parâmetros a defesa da liberdade, a dignidade do indivíduo, a busca da felicidade, o bem-estar social, uma boa administração pública e o crescimento econômico equilibrado.

60. Além do que, se deve compreender esta dialógica para que se saiba integrar de maneira correta na vida pública a relação entre política e religião, posto que tem havido inúmeros desequilíbrios nesta relação na vida pública, principalmente por parte das Igrejas e dos políticos que se dizem cristãos, e isto, por sua vez, tem gerado um terrível desequilíbrio que tem inoculado nas Igrejas o lixo ideológico da ideologia dominante (comunismo), bem como tem enfraquecido os políticos para o correto exercício de suas funções.

Ora, esta dialógica evocada é justamente para evitar que tanto as Igrejas se tornem em curral ideológico, quanto para evitar que os políticos que se dizem cristãos sejam imbecilizados e enfraquecidos para enfrentarem os desafios da administração política. Pois, se houver esse desequilíbrio, então, haverá a corrupção da missão específica tanto da Igreja quanto do Estado, e, com isso, ambos procurarão, de maneira direta ou indireta, ocupar as funções que competem ao outro, isto é, ocasionará aquilo que anteriormente fora dito: ou a Igreja ideologizada ou o religiosismo do Estado; e, novamente se afirma, as consequências de ambos são terríveis.

61. E que o Deus Altíssimo ajude aqueles que são da fé e testemunham dEle na vida pública, a ter sobriedade, bom senso, boa disposição e senso de dever diante do povo, para demonstrarem que são íntegros e sinceros diante da responsabilidade que assumiram diante de Deus de servi-lo na administração política e de honrar a lei; e que também as Igrejas estejam despertas para evitar que o entusiasmo político as domine e as façam ser abandonadas por Deus (cf. Is 59.2), já o entusiasmo político-ideológico na esfera eclesial leva os fiéis a cometerem iniquidades.

Além disso, que os cristãos, e, neste quesito, principalmente os teólogos, estejam atentos e despertos e não indolentes e adormecidos, lembrando sempre que vez ou outra os perigos do Estado Total começam a ser novamente ventilados, não somente com roupagem sanguinária (comunismo leninista e stalinista), mas nos últimos decênios com a roupagem da “dialética da contradição” (comunismo chinês, maoísmo), e que por estas razões nunca se devem esquecer que a última fronteira natural do Estado Total é a Igreja e a teologia[10]. Deo Gratias.

62. E termina aqui esta análise sobre religião e política a partir da perspectiva teológica. Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém. 



[1] cf. Tomás de Aquino, De Regno Ad Regem Cypri, I, cap. 1.

[2] Karl Barth, Dádiva e Louvor: Ensaios de Teologia [3ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal/EST, 2006], pág. 143.

[3] Pio XI, Mit Brennender Sorge, n. 31.

[4] Barth, Op. Cit., pág. 163.

[5] Ibidem. Pág. 162.

[6] Emanuel Hirsch, Das kirchliche Wollen der Deutschen Christen [Berlin, 1933], pág. 5-6.

[7] August C. F. Vilmar, Schulreden über Fragen der Zeit [Marburg: Elw. Univers. Buchhandlung, 1846], pág. 144.

[8] cf. Barth, Op. Cit., pág. 166.

[9] Estas pressuposições são talhadas a partir dos aspectos delineados por Barth em seu ensaio “Decisão Política na Unidade da Fé” (Barth, Op. Cit., pág. 384-388).

[10] Vd. nota 8. 


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