Prefácio.
Após
o primeiro grupo de epístolas - as cinco primeiras (I-V) -, que versam sobre
temas concernentes a duas das obras do Corpus Dionysiacum (DN e MT), se
tem o segundo grupo de epístolas - as cinco últimas (VI-X) -, que versa sobre
temas gerais em consonância com o programa teológico dionísico, mas não em
ordem as obras restantes do Corpus Dionysiacum.
Deste
modo, a epístola VI, a menor das epístolas dionísicas, inicia esta segunda
parte com um tema de grande importância, a saber, sobre a verdade, sobre o modo
de ensinar a verdade; certamente, uma elocução a partir da sentença paulina de
seguir a verdade em amor (cf. Ef 4.15); logo, esta epístola demonstra o que
concerne a atitude do fiel, do teólogo, do pastor, do bispo, enfim, de todos os
cristãos, sejam imbuídos de autoridade eclesiástica ou não, de propagar a
verdade, de ensiná-la e proclamá-la.
Assim
sendo, àqueles que ensinam a verdade, devem o fazer de modo adequado, isto é,
de acordo com a própria verdade; pois, o ensino da verdade deve ser adequado a
própria verdade tanto no conteúdo quanto no modo de ensino; por isso, àqueles
que ensinam a verdade devem ensiná-la plenamente e de acordo com o método da
própria verdade, a saber, em amor; a verdade deve ser ensinada na caridade,
pois, a verdadeira caridade sempre é caridade na verdade; logo, a dignidade da
caridade está em ordem a verdade; pois, segundo Bento XVI, “a verdade é luz
que dá sentido e valor à caridade”.
Esta
epístola engendra este preceito teológico; embora, de modo ambíguo; o que fez
com que muitos estudiosos duvidassem da autenticidade desta epístola, bem como
de sua importância teológica; e, conquanto seja uma epístola ambígua (o que de
outra maneira e de outro modo será analisado posteriormente de modo mais
adequado), isto não diminui sua importância, pois esta epístola traz o
esclarecimento necessário sobre o que concerne ao ensino da verdade.
Portanto,
no programa teológico dionísico esta epístola é a porta de entrada para as
epístolas seguintes, bem como abaliza o modo como se deve ensinar os mistérios
concernentes a Deus, a Verdade Primeira; pois, a fé sempre tem por objeto a
verdade (cf. DN, VII, § 4); e esta fé, a fé que busca entendimento (cf. Prosl.,
I), sempre será uma fé que busca a compreensão e a explicação da verdade, já
que a verdade é o que engendra o entendimento da fé.
Assim
sendo, os tópicos teológicos tal como Pseudo-Dionísio os delineia em suas
obras, sempre tem imbuídos o estudo da verdade, tanto de maneira específica, no
que concerne a doutrina sagrada, quanto de maneira geral, no que concerne ao
estudo da sabedoria filosófica; isto é, tanto em relação a luz superior quanto
em relação a luz interior.
Portanto,
esta epístola, a menor epístola de Pseudo-Dionisio, é a propedêutica do Corpus
Dionysiacum; pois, o que versa esta epístola, é a base de tudo quanto vai
ser explicado e desenvolvido em todo o programa teológico dionísico. Enquanto
que o De Mystica Theologia é o método do programa teológico dionísico,
se pode afirmar que a epístola VI é o preâmbulo ao programa teológico
dionísico.
Por
isso, nesta epístola se descortina o principium da doutrina dionísica,
bem como se evidencia a pressuposição necessária para a formação da correta
hermenêutica concernente ao Corpus Dionysiacum mesmo diante das
ambiguidades inerentes ao mesmo - o “dionisianismo intelectual” -, a
qual abaliza as ambiguidades e as coloca em ordem a revelação (cf. 2Co 10.4).
Soli Deo Gloria!
In Nomine Iesus!
26 de março de 2025.
Texto de
Pseudo-Dionísio (Epist. VI)[1].
Sosípatro, não consideres uma vitória o vituperar um
culto e doutrina porque não te parecem corretos. Pois, ainda que tenha feito
corretamente, nem por isso há atuado bem. Porque é possível que tanto a ti como
a muitos outros suceda que a verdade, única e escondida, não seja vista entre
as falsas aparências. Efetivamente, se uma coisa não é vermelha, nem por isso
tem de ser branca; e se uma coisa não é cavalo, nem por isso tem de ser homem.
E, se confias em mim, agirás assim: deixa de criticar os outros e ensina
realmente a verdade, de maneira que ao ensiná-la seja totalmente irrefutável.
A. Proêmio.
1. “Os
pássaros da mesma espécie aninham-se juntos: assim a verdade volta para os que
a praticam” (Eclo. 27.10); ora, estas palavras competem à matéria e ao
assunto desta epístola; pois, a verdade, ao ser praticada, demonstra duas
coisas: primeiro, o conhecimento da verdade. “que quer que todos os homens
se salvem e venham ao conhecimento da verdade” (1Tm 2.4). Segundo, o
assentimento pleno para com a verdade; e o assentir a verdade é ser guiado por
ela. “Envia a tua luz e a tua verdade, para que me guiem e me levem ao teu
santo monte e aos teus tabernáculos” (Sl 43.3).
Com
isso, se constata que aqueles que praticam a verdade, a própria verdade se
volta a estes com sua face luminosa; pois, os efeitos da verdade permeiam todo
o indivíduo, de tal modo que este passa a semear a verdade; e a verdade uma vez
semeada sempre frutifica, e com isso, aquele que a semeia recebe dos frutos
destas sementes quando estas frutificam. “Os que semeiam em lágrimas segarão
com alegria. Aquele que leva a preciosa semente, andando e chorando, voltará,
sem dúvida, com alegria, trazendo consigo os seus molhos” (Sl 126.5-6).
2.
Por isso, Sirach faz uma comparação simples para designar aqueles que praticam
a verdade, a saber, com os pássaros; pois do mesmo modo como os pássaros da
mesma espécie aninham-se juntos, assim aqueles que praticam a verdade estão
aninhados com a verdade e com aqueles que praticam a verdade (cf. 1Jo 1.7); e
quem pratica a verdade vive na luz, pois quem pratica a verdade tem suas obras
feitas em Deus. “Mas quem pratica a verdade vem para a luz, a fim de que as
suas obras sejam manifestas, porque são feitas em Deus” (Jo 3.21). Além do
que, quem pratica a verdade habita onde a verdade faz sua morada, isto é, com o
próprio Deus - a Verdade (cf. Dt 32.4b).
Deste
modo, a verdade ao ser praticada traz benesses ao que a praticam; pois, os que
praticam a verdade, devem fazê-lo de acordo com a própria verdade, que
prescreve tanto o que deve ser praticado quanto o modo de praticá-la; logo, a
verdade indica tanto o caminho como a maneira de se caminhar; além disso, se
pode afirmar que aquilo de que depende a lei e os profetas (cf. Mt 7.12), está
em ordem ao mandamento do amor (cf. Jo 13.34), o qual é praticado não por
palavras, mas por obra e em verdade. “Meus filhinhos, não amemos de palavra,
nem de língua, mas por obra e em verdade. E nisto conhecemos que somos da
verdade e diante dele asseguraremos nosso coração” (1Jo 3.18-19).
3.
Assim, aqueles que estão aninhados com a verdade, devem conhecê-la e vivê-la de
modo integral e em sobriedade; pois, a vida na verdade, é uma vida em
sinceridade, retidão, temor a Deus e em se desviar do mal, tal como o
testemunho de Jó (cf. Jó 1.1); no entanto, aqueles que vivem de acordo com a
verdade, podem decair na tentação do orgulho e da vanglória, e com isso
desprezarem a verdade no coração e/ou por ações (cf. 2Pe 2.18, 3.17); logo, os
que estão aninhados com a verdade, devem vivê-la de acordo com a própria
verdade, ensinando-a e praticando-a, o que evita muito dos desvios provenientes
do orgulho e da vanglória (cf. Fp 2.3).
Com
isso, se estabelecem dois aspectos impreteríveis no ensino da verdade, a saber:
primeiro, o conteúdo a ser ensinado, a saber, a própria verdade (cf. Tt 2.1);
segundo, o modo de ensiná-la, a saber, na caridade (cf. Ef 4.15). Pois, aqueles
que falam a Palavra de Deus, devem fazê-lo com verdade. “e aquele em
quem está a minha palavra, que fale a minha
palavra, com verdade” (Jr 23.28b).
Ora,
a verdade só é ensinada sob a razão da esperança da fé (cf. 1Pe 3.15).
Portanto, se compreende que o ensino da verdade deve cumprir estes requisitos
inerentes, a fim de que “ao ensiná-la seja totalmente irrefutável”;
logo, etc.
B. Comentário.
1. Após a epístola V, direcionada a Doroteu, se tem a
epístola VI, direcionada a Sosípatro; ora, não só se muda a epístola, mas
também se muda a ordem geral dos assuntos; pois, enquanto que as epístolas I a
V, versa sobre temas concernentes a duas obras do Corpus Dionysiacum (DN
e MT), as epístolas VI a X, versam sobre temas gerais concernentes a existência
teológica e ao amplo escopo da tarefa teológica, conquanto também evoquem
aspectos de outras obras de Pseudo-Dionísio.
Por isso, do mesmo modo como se tem uma ordem de assuntos
nas primeiras cinco epístolas, nas último cinco epístolas também se tem uma
ordem, mas quanto a assuntos mais gerais e não tanto quanto uma ordem
específica engendradas nas obras do programa teológico dionísico.
No entanto, esta ordem mais específica, apresenta um
outro aspecto que complementa o programa teológico dionísico, com observações
mais particulares sobre temas evocados e/ou pouco falados nas obras, embora
mencionados; portanto, as epístolas VI a X, perfazem outros aspectos do que os
que são analisados nas obras do Corpus Dionysiacum.
2. Ora, esta epístola evoca o tema da verdade; e, segundo
Alberto, Pseudo-Dionósio nesta epístola se põe a arguir a Sosípatro quanto ao
modo correto do combate a idolatria, o que mostra seu zelo pela fé em Cristo[2]; todavia,
isto gera um problema, pois o zelo sem entendimento é tão ruim quanto a falta
de zelo, tal como o Apóstolo houvera afirmado: “Porque lhes dou testemunho
de que têm zelo de Deus, mas não com entendimento” (Rm 10.2).
E esta epístola versa justamente sobre a necessidade do
zelo com entendimento, ou do zelo em função da verdade, sempre em função da
verdade, mas da verdade em amor (cf. Ef 4.15); não do amor para a verdade, que
corrompe o zelo, mas sempre da verdade seguida pelo amor, que concerne tanto a
ordem da revelação de Deus sobre Si, quanto da ordem estabelecida pela
revelação sobre como os fiéis devem agir e se portar ante aqueles que estão
contra a verdade, tendo em vista que nada é possível contra a verdade, tal como
o Apóstolo diz: “Porque nada podemos contra a verdade, senão pela verdade”
(2Co 13.8).
3. Por isso, nesta epístola, Pseudo-Dionísio faz cinco
coisas: primeiro, põe a questão; segundo, evoca que fazer o que é correto está
de acordo com o laborar correto; terceiro, prescreve a necessidade do cuidado
com as falsas aparências; quarto, evoca um exemplo sobre o que permeia as
falsas aparências; quinto, evoca a tríplice estrutura através da qual a verdade
é efetivamente ensinada.
4. Primeiro, põe a questão, onde diz: “Sosípatro, não
consideres uma vitória o vituperar um culto e doutrina porque não te parecem
corretos”; ora, Pseudo-Dionísio põe a questão de modo direito a Sosípatro,
a fim de delinear que a vida em função da verdade, que também requer a defesa
da verdade, não é de aparências; as aparências enganam (cf. Pv 28.21), ainda
mais em se tratando do combate racional em prol da verdade; por isso, a
Escritura exorta a julgar conforme a reta justiça (cf. Jo 7.24), isto é, da justiça
de acordo com a verdade.
Pois, vituperar um culto ou uma doutrina não pode ser
porque não parecem corretos, mas sim porque realmente não são corretos; assim,
se distingue entre o confronto racional e a contumélia; ora, o que está contra
a verdade sempre deve ser confrontado; no entanto, o que parece estar errado
não deve ser motivo de contumélia, senão se afronta a própria verdade.
Portanto, o que Pseudo-Dionísio exorta é para que não se
faça um julgamento precipitado contra uma doutrina, senão acaba-se decaindo em
vituperar tal doutrina sem ter amparo da verdade; no entanto, tendo o amparo da
verdade, e tendo um justo julgamento de acordo com a verdade, se deve combater
veementemente o erro e aquilo que está contra a verdade.
5. Segundo, evoca que fazer o que é correto está de
acordo com o laborar correto, onde diz: “Pois, ainda que tenha feito
corretamente, nem por isso há atuado bem”; ora, diante da questão posta, se
deve compreender que, ainda que uma doutrina tenha sido confutada corretamente,
nem por isso significa que isto tenha sido de maneira adequada; o bem do
combate ao erro é a verdade transparecer límpida e cristalina, e não o vencer
um debate ou uma diatribe; a garbosidade no debate em função da verdade, acaba
por desfigurar a própria verdade; a defesa da verdade deve ser feita em função
da própria verdade e não da promoção de quem a defende.
Por isso, a atuação correta na defesa da verdade é em
função da verdade ser honrada, sublimada e demonstrada em todo seu fulgor,
transparecendo seu bem e sua beleza. Portanto, para fazer o que é correto em
prol da verdade, se deve laborar de forma correta, isto é, fazer o que é
correto está de acordo e é demonstrado no laborar correto. E, em se tratando da
verdade, este laborar é o zelo com entendimento.
6. Terceiro, prescreve a necessidade do cuidado com as
falsas aparências, onde diz: “Porque é possível que tanto a ti como a muitos
outros suceda que a verdade, única e escondida, não seja vista entre as falsas
aparências”; ora, sendo necessário a compreensão sobre o laborar correto em
função da verdade, se deve ter o cuidado
com as falsas aparências; pois, a Escritura diz que o próprio Diabo se
transfigura em anjo de luz (cf. 2Co 11.14); com isso, a própria verdade pode
estar desfigurada em meio a enganos permeados pelas falsas aparências; pois, a
verdade é sinfônica e é permeada por múltiplos aspectos.
Por isso, Pseudo-Dionísio exorta a Sosípatro que tenha
cuidado, tanto ele como a muitos outros, que no combate em prol da verdade, se
acabe que a própria verdade não seja contemplada; as falsas aparências tendem a
esconder a verdade; portanto, mesmo diante do combate em prol da verdade, pode
acontecer que na confutação ao erro, que a própria verdade não seja vista; e a
não-visão da verdade é um dos grandes males que atingem ao ser humano; e é uma
terrível miséria quando aqueles que defendem a verdade, movidos pelas falsas
aparências, acabam por não contemplar a própria verdade.
Assim, na defesa e no ensino da verdade, se deve ter
cuidado com as falsas aparências.
7. Quarto, evoca um exemplo sobre o que permeia as falsas
aparências, onde diz: “Efetivamente, se uma coisa não é vermelha, nem por
isso tem de ser branca; e se uma coisa não é cavalo, nem por isso tem de ser
homem”; ora, após ter prescrito a necessidade de ser ter cuidado com as
falsas aparências, evoca um exemplo; pois, se uma coisa efetivamente não for
vermelha, nem por isso tem de ser branca, ou se uma coisa for azul nem por isso
tem de ser vermelha; ou dito em outros termos, existem acidentes racionais que
conduzem a falsas aparências; por isso, aquele que busca conhecer a Deus
adentra na caligine divina (cf. Êx 20.21b), depois de ter passado por todas as
falsas aparências; se sobrelevar as falsas aparências é condição preponderante
para conhecer a verdade.
Além disso, se uma coisa não é cavalo, nem por isso tem
de ser homem; ou se uma coisa não é peixe nem por isso tem de ser um boi; etc.
Portanto, as falsas aparências são permeadas por simplória contradição, a qual,
na verdade não é contradição dialética, mas que expressa a própria contradição
daqueles que não vão além das falsas aparências, ou daqueles que apenas
conseguem contemplar as falsas aparências, dado a não amarem a verdade, e, por
isso, acabam por ficar sujeitos ao engano (cf. 2Ts 2.11-12), o qual se
manifesta as mais das vezes pelas contradições vis das falsas aparências.
8. Quinto, evoca a tríplice estrutura através da qual a
verdade é efetivamente ensinada, onde diz: “E, se confias em mim, agirás
assim: deixa de criticar os outros e ensina realmente a verdade, de maneira que
ao ensiná-la seja totalmente irrefutável”; ora, tendo descrito alguns
perigos e atitudes erradas em relação ao ensino e a defesa da verdade, evoca
uma tríplice exortação a fim de aqueles que ensinam e defendem a verdade possam
ensiná-la de modo adequado; pois, a verdade deve ser ensinada em conformidade
com o método da própria verdade; a glória de quem ensina a verdade é ensiná-la
de tal modo, que a verdade transpareça límpida tanto no conteúdo quanto no
método de ensino.
9. E três são as exortações para que a verdade seja
corretamente ensinada: primeiro, o agir correto; ora, requer-se daquele que
ensina a verdade, que aja com confiança, sinceridade e integridade; pois, o
maior testemunho no ensino da verdade é a autoridade daquele que a ensina, e
esta autoridade é alcançada através da vida em piedade, honestidade e virtude,
tal como diz o salmista (cf. Sl 24.3-6) e tal como o exemplo do Senhor Jesus
(cf. Mt 7.28-29); etc.
Segundo, deixar de criticar os outros; ora, requer-se
daquele que ensina a verdade que não critique os outros; mas não critique os
que não estão contra a verdade; os outros que são designados nesta epístola são
aqueles que não estão contra a verdade, mas que estão em favor da verdade;
aliás, é preceito racional óbvio que não se deve criticar como errado quem não
está errado; por isso, se deve agir de modo tal que não se incorra em crítica de
estar contra a verdade contra quem não está contra a verdade; e, em
contrapartida, se deve criticar e combater aqueles que efetivamente estão
contra a verdade, pois é bem-aventurado aquele que não respeita os soberbos (cf.
Sl 40.4).
Terceiro, ensinar realmente a verdade; ora, tendo a vida
correta diante da verdade e evitando a volúpia no combate pela verdade, então,
se pode ensinar corretamente a verdade; e ensiná-la tanto no que concerne a
própria verdade quanto com o exemplo da vida na verdade; e, cumprindo estes
requisitos básicos, ao se ensinar a verdade, se a ensinará de tal forma que a
verdade brilhará em todo seu fulgor e beleza, a fim de que a imutabilidade da
verdade transpareça, e se possa efetivamente constatar que a verdade é
irrefutável; por isso, quem a ensina corretamente, ao fazê-lo também é
totalmente irrefutável, não por causa de si, mas por causa da própria verdade.
10. Assim, o ensino da verdade deve ter por parâmetros
estes breves e preciosos conselhos que Pseudo-Dionísio ensinara a Sosípatro;
pois, a verdade deve ser encontrada na caridade, mas sempre caridade na
verdade, tal como Bento XVI afirmara: “A verdade há de ser procurada,
encontrada e expressa na ‘economia’ da caridade, mas esta por sua vez há de ser
compreendida, avaliada e praticada sob a luz da verdade”[3].
Portanto, se deve ter em mente esta perspectiva, que em suma, é a perspectiva
que Pseudo-Dionísio engendra nesta epístola, de modo a não se descambar no “dionisianismo
afetivo” na defesa da verdade, o qual acaba por desfigurar a própria
verdade em função de alguma falsa forma de amor.
11. Pois, não se deve aceitar uma verdade que não tenha
caridade, mas também não se deve aceitar uma suposta caridade que não tenha a
verdade; por isso, “Lutero, com sua clara visão bíblica, chama o amor que
fere ou neutraliza a verdade de ‘amor maldito’, ainda que se apresente na mais
piedosa roupagem”[4].
Assim, se deve ter o amor que evidencia a verdade, e toda e qualquer tentativa
de afirmar uma “forma” de amor que fere ou neutraliza a verdade deve ser
rejeitada, já que possui as falsas aparências do engano, que se manifesta em
aparência de piedade, mas que nega na prática a eficácia da mesma (cf. 2Tm
3.5); também com este tipo de falsa aparência se deve ter um cuidado vigilante
no ensino e na defesa da verdade; pois, não existe verdade sem amor, mas também
não existe amor sem a verdade; etc.
C. Dúbias.
Em relação as pressuposições estabelecidas ao se explicar
esta epístola, surgiram quatro dúbias:
Primeiro, se a verdade deve ser entendida a luz da
caridade.
Segundo, se a caridade deve ter preeminência sobre a
verdade.
Terceiro, se a afetividade convém a teologia.
Quarto, se a afetividade impugna a intelectualidade.
<Dúbia I>
Acerca da primeira, procede-se assim: se a verdade deve
ser entendida a luz da caridade.
E parece que sim.
I. [Argumentos].
1. A caridade é mais importante do que a verdade, posto
que a caridade, e não a verdade, é o vínculo da perfeição (cf. Cl 3.14); e o
que conduz a perfeição deve ser o princípio aferidor para o entendimento de
outras coisas; ora, como a caridade é o vínculo da perfeição, então, todas as
outras coisas devem ser entendidas a luz da caridade.
2. Ademais, a fé verdadeira é a fé que opera em amor (cf.
Gl 5.6); ora, o conhecimento da fé é o que conduz o homem ao devido fim; logo,
se a fé opera em caridade, então a caridade é o devido fim do homem; portanto,
a verdade deve ser entendida a luz da caridade.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, o salmista diz: “Envia a
tua luz e a tua verdade, para que me guiem e me levem ao teu santo monte e aos
teus tabernáculos” (Sl 43.3); ora, a verdade é enviada aos homens para que
lhes sirva de guia para Deus; logo, é pela verdade que os homens se achegam a
Deus, e através da qual conhecem Seu amor.
III. [Solução].
1. Ora, segundo Tomás, a verdade é o objeto da fé
(cf. STh IIa IIae, q. 1, a. 1, co.); logo, a fé surge e é abalizada a partir da
verdade; por isso, o Apóstolo diz que a fé vem pelo ouvir a Palavra de Deus
(cf. Rm 10.17), isto é, pelo entender e compreender a Palavra de Deus;
portanto, a fé advêm através da compreensão da verdade que é Cristo; por isso,
aquele que tem fé em Deus, crê que Ele é e que é galardoador dos que o buscam
(cf. Hb 11.6); pois, a fé a medida que conhece a verdade, se assenta na verdade
e confia-se a verdade, já que Deus mesmo é a verdade (cf. Dt 32.4b).
2. Por isso, a fé em Deus, a confiança em Deus, é o que
conduz os homens a salvação, já que os homens ao confiarem nEle o invocam, e
todo aquele que o invoca é salvo (cf. Rm 10.13); além disso, no texto sapencial
se diz: “Aqueles que confiam nele compreenderão a verdade, e os que são
fiéis habitarão com ele no amor, porque a graça e a misericórdia são para os
seus escolhidos” (Sb 3.9); logo, quem tem fé em Deus compreende a verdade;
e ao compreender a verdade, passam a habitar com Deus em sinceridade e
integridade (cf. Sl 15.1-5), e nisto conhecem seu amor, posto que a graça e a
misericórdia são outorgadas a todos quantos confiam nEle para a salvação, a
qual os conduz no conhecimento da verdade; pois, a graça e a misericórdia são
outorgadas para o conhecimento da verdade, já que Aquele que é a Verdade também
desvela plenamente a graça e a misericórdia (cf. Jo 1.17).
3. Portanto, a caridade deve ser entendida a luz da
verdade, já que o conhecimento da caridade advém após o conhecimento da verdade,
e isto tanto na ordem da revelação quanto na ordem das ações humanas, ou seja,
tanto na doutrina quanto na ética.
IV. [Respostas aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro argumento se responde que sendo a
caridade o vínculo da perfeição, tal como afirma o Apóstolo, tal perfeição só é
alcançada tendo sido iluminada pela verdade; pois, a perfeição de algo é
atingir seu devido fim; ora, o fim do homem é a fruição de Deus, que é a
Verdade; então, o fim do homem é o pleno conhecimento da Verdade; por isso, a
caridade é a demonstração da perfeição do conhecimento da verdade, mas a
verdade advêm antes da caridade, pois não pode haver demonstração se antes não haver
sido feito a predicação; logo, o princípio aferidor do entendimento de todas as
outras coisas é a verdade, sendo a caridade o princípio aferidor da vida na
verdade e em prol da verdade. Portanto, a caridade é o vínculo da perfeição,
enquanto que a verdade é o metal que dá forma a este vínculo; sem este metal
não se tem a força deste vínculo; logo, sem verdade, não existe verdadeira
caridade; por isso, quanto maior o conhecimento da verdade, mais firme será o vínculo
da caridade e mais bela a demonstração da beleza da fé através da caridade.
2. Quanto ao segundo argumento se responde que a fé que
opera, que obra em amor, é a fé que tem suas operações fundamentais na verdade;
o testemunho da fé é através da caridade; mas a gestação e a formação da fé é
através da verdade; e, como primeiro se tem o gestar e o formar a fé, que
provêm da verdade, então em primeiro lugar se tem a verdade, e, somente depois,
o obrar em caridade; a verdadeira fé assente na verdade para obrar em amor;
este é o sentido do termo utilizado pelo Apóstolo no texto referido; pois, o
obrar em amor é efeito da fé, não sua causa; a causa da fé é a verdade,
enquanto que o efeito da fé é o obrar em amor; a causa da fé provêm unicamente
de Deus, enquanto que o efeito ao provir dEle também convém a participação da
ação humana em liberdade. Portanto, como o conhecimento das causas advêm antes
do conhecimento dos efeitos, convém que o entendimento das causas ilumine o
entendimento dos efeitos; portanto, a caridade deve ser entendida a luz da
verdade e deve ser praticada como demonstração da verdade.
<Dúbia II>
Acerca da segunda, procede-se assim: se a caridade deve
ter preeminência sobre a verdade.
E parece que sim.
I. [Argumentos].
1. A caridade é a maior entre as virtudes teologais (cf.
1Co 13.13b); por isso, a caridade tem preeminência sobre a verdade; portanto, etc.
2. Ademais, o Príncipe dos Apóstolos diz que o amor cobre
multidão de pecados (cf. 1Pe 4.8); logo, é mais importante amar do que conhecer
a verdade; portanto, a caridade deve ter preeminência sobre a verdade.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, Tomás diz que a verdade
diz respeito ao ser, enquanto que o bem é conseguinte ao ser (cf. STh Ia, q.
16, a. 4, co.); ora, a caridade é um bem; portanto, como a verdade diz respeito
ao ser, e a verdade é anterior ao bem, então, a verdade tem preeminência sobre
a caridade.
III. [Solução].
1. A preeminência de algo se diz de dois modos: um quanto
a anterioridade, isto é, ao modo como é anterior; o outro quanto a
superioridade na ordem do ser. Ora, se diz que a verdade é superior a caridade
destes dois modos; primeiro, quanto a anterioridade, pois, a verdade é anterior
a caridade, tanto no modo como Deus se revela: primeiro, como verdade (cf. Dt
32.4b; Jo 14.6), e depois como amor (cf. Sl 103.17; 1Jo 4.8); quanto no que é
preceituado aos fiéis, em viverem na verdade (cf. 2Jo 1.4) e em caridade (cf. Rm
13.8; Ef 4.15).
2. E, segundo, quanto a superioridade na ordem do ser;
pois, a verdade diz respeito ao ser e o bem é conseguinte ao ser, como colhe-se
da sentença de Tomás, então, a verdade é anterior a qualquer tipo de bem; e,
sendo a caridade um bem, então, é posterior a verdade, posto que a caridade só
é corretamente entendida e vivida sob a verdade; portanto, se quanto ao ser a
verdade é anterior a caridade, isto demonstra por si que a verdade tem
preeminência sobre a caridade quanto a ordem, tanto no que Deus revela de Si
quanto na própria ordem das coisas; pois, é próprio do bem o estar em ordem; e
esta ordem é abalizada e justificada no ser a partir da verdade e em
consonância com a verdade.
3. Outrossim, é que Deus, a verdade, causa a caridade nos
fiéis (cf. Ct 2.4); ora, Ele causa a caridade como fruto do conhecimento que
outorga de Si, isto é, do conhecimento da Verdade; portanto, a verdade tem
preeminência sobre a caridade quanto a salvação, já que o conhecimento da
verdade traz libertação do pecado (cf. Jo 8.32), mas também quanto a
santificação, posto que as boas obras são frutos da reconciliação (cf. Ef
2.10); logo, se compreende que a verdade tem preeminência sobre a caridade
quanto a nós e quanto ao modo de Deus se revelar bem como da ordem que convém
ao nosso conhecimento a respeito dEle pela revelação, mas não quanto ao Ser de
Deus, que tem a verdade e a caridade de forma perfeitíssima e em igualdade de infinitude.
IV. [Respostas aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro argumento se responde que a
caridade é a maior das virtudes teologais segundo o dito do Apóstolo, dado que
a participação na caridade instaura a imagem do participado no participante; mas,
só participa do amor de Deus, aquele que confia nEle e a Ele se fia em fé e
devoção (cf. Hb 11.6); ora, aquele que confia em Deus, por conseguinte, obtém o
conhecimento da verdade, para então, habitar com Deus em amor e amar (cf. Sb
3.9); logo, quanto aos fiéis a caridade advém após o conhecimento da verdade,
ao mesmo tempo em que a própria caridade é evidência do novo nascimento (cf.
1Jo 4.7); portanto, em relação as virtudes teologais, as mesmas são precedidas
pelo conhecimento da verdade como hábito da graça, para então serem efetivadas na
perfeita caridade. Pois, as virtudes teologais são efeito da graça, e não da
virtude natural; por isso, são alcançadas apenas pelos eleitos, os quais,
vivem-nas de acordo com a verdade e pelas preceituações da caridade.
2. Quanto ao segundo argumento se responde que a
preceituação à amar deve ser vivida de acordo com a verdade (cf. Ef 4.15); por
isso, é importante amar, mas para amar é necessário conhecer a verdade, pois
não se ama o que se desconhece; e só se ama de verdade quando se conhece a
verdade; ora, o amor pela verdade engendra a verdade em amor; por isso, tanto
conhecer a verdade quanto amar são da mesma importância, posto que estão
interligados e são subsequentes; assim, a verdade tem preeminência em relação a
caridade, quanto a dignidade que lhe é própria, mas a caridade demonstra seu
fulgor ao estar sobre a verdade e ser o vínculo da perfeição (cf. Cl 3.14) que
encaminha em direção a verdade primeira.
<Dúbia III>
Acerca da terceira, procede-se assim: se a afetividade
convém a teologia.
E parece que sim.
I. [Argumentos].
1. A afetividade convém a teologia dado ao objeto e ao
propósito da teologia; por isso, a via afetiva diz respeito ao que concerne a
existência teológica mais propriamente do que a via intelectual; logo, a
afetividade convém a teologia.
2. Ademais, a Escritura diz que Deus é amor (cf. 1Jo
4.8); então, convém que a elucubração teológica se oriente na reflexão sobre o
amor de Deus; ora, a reflexão sobre o amor orienta a afetividade; logo, como a
teologia lida com Deus, e Deus é amor, então a afetividade convém a teologia.
3. Ademais, o doctor ecstaticus afirma que à
teologia não convém a forma intelectual, especulativa, mas sim a forma suave,
afetiva, a qual se alcança com fervorosa caridade (cf. In MT, pref.); ora, de
acordo com esta sentença, se compreende que a via afetiva convém a teologia; na
verdade, é a que melhor convém a teologia.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, Tomás afirma que a
teologia é mais ciência especulativa do que prática (cf. STh Ia, q. 1, a. 4,
co.); ora, se é mais especulativa do que prática, então, convém mais a via
intelectual do que a via afetiva.
III. [Solução].
1. A ciência sagrada pode estar disposta em duas vias,
tendo em vista suas duas partes constitutivas, assim como em toda ciência;
embora convenha que a ciência sagrada esteja disposta de acordo com a ordenação
da via intelectual; pois, a ordem que convém a ciência sagrada, dado a ser mais
ciência especulativa do que prática, é a que demonstra a via intelectual como
ordenadora; e isto ordena o saber teológico de acordo com seu objeto e de
acordo com as operações do intelecto humano, dado que a afetividade nunca
proporciona uma melhor intelectualidade, conquanto uma salutar intelectualidade
proporcione uma mais fervorosa afetividade.
2. A designação, portanto, de que a via intelectual é a
que convém a teologia, é a fim do desenvolvimento adequado da inteligência na
elucubração teológica, bem como para ordenar adequadamente tanto a parte
intelectiva quanto a parte sensual da alma; pois, se se tomar a via afetiva
como pressuposto orientador acaba por se engessar as faculdades intelectuais da
alma, dando forma apenas a parte sensual, a qual, acaba por se desfigurar e
corromper a vontade, já que não existe vontade firme que não se estabeleça sob
racionalidade sólida; logo, se se corrompe a firmeza da vontade ao se
estabelecer a via afetiva como princípio orientador, então, se terá a
destruição da inteligência; mas, pelo contrário, se se estabelece a via
intelectual, então, se refletirá adequadamente o que concerne a elucubração
teológica, bem como se conseguirá ordenar a sensibilidade de acordo com a
Palavra de Deus (cf. Sl 119.103).
IV. [Respostas aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro argumento se responde que a afetividade
convém a teologia, enquanto demonstração do objeto teológico, não quanto a
definição; ou seja, quanto a expressão, não quanto a elucubração; por isso, a
via afetiva convém como expressão prática da existência teológica, não como
preceito fundante da existência teológica; portanto, a afetividade convém a
teologia de modo secundário, não de modo primário, o que por si é algo óbvio
dado o objeto da teologia ser o assunto especulativo por excelência.
2. Quanto ao segundo argumento se responde que a
Escritura apresenta que Deus é amor como parte do zênite da revelação; e, isto,
embora demonstre um aspecto concernente ao Ser de Deus, não impugna os outros
aspectos do que Deus revelou de Si; por isso, a elucubração teológica surge do
amor de Deus e do amor a Deus, mas não se orienta somente na reflexão sobre o
amor de Deus; portanto, a teologia, como lida com Deus, lida com a proposição
bíblica de que Deus é amor; todavia, não lida apenas com esta proposição, mas
com todo o conselho de Deus, o qual apresenta o que concerne ao Ser de Deus com
diversas proposições, as quais são expressas pela sentença “Deus é”; pois, a
Escritura apresenta vários designativos sobre o que Deus é, e não somente que é
amor, pois igualmente fala que Deus é verdade (cf. Jr 10.10a), é justo (cf. Sl
11.7), é terrível (cf. Sl 76.7a), é um fogo consumidor (cf. Hb 12.29), etc. Por
isso, ao se refletir sobre o amor de Deus, logicamente, se refletirá sobre o
amor humano; mas, toda elucubração racional é orientada pela razão e não pela
afetividade, mesmo em se tratando do amor; portanto, a afetividade convém a
teologia sob a regra disposta anteriormente; pois, a Escritura não só apresenta
que Deus é amor; assim, a reflexão teológica não pode ser somente orientada a
partir desta proposição, mas ser disposta a partir do todo da lógica da
revelação.
3. Quanto ao terceiro argumento se responde que a
sentença do doctor ecstaticus é uma deformação da norma concernente a
teologia; pois, convém a teologia a forma suave, afetiva, mas de modo derivado,
isto é, como expressão de uma reflexão racional sólida e argumentativa, não
como norte orientador da reflexão teológica; portanto, a fervorosa caridade é
demonstração da precisão da reflexão teológica, e não a base da mesma; logo, a
via afetiva convém a teologia deste modo, mas não como a que melhor convém a teologia;
pois, como a teologia é mais ciência especulativa do que prática, então convém
mais a forma intelectual, especulativa, do que a forma suave, afetiva. Ora, a
forma suave, afetiva, deve ser expressão da inteligência bem formada que surge
como fruto do objeto elucubrado, não como base ou fundamento de tal elucubração,
o que não somente é evidente pelos preceitos revelacionais, mas também a partir
da reta razão.
V. [Resposta ao Em Contrário].
1. Em relação a isso, se constata que a via intelectual
deve ser o princípio orientador, enquanto que a via afetiva deve ser a
demonstração da via intelectual; pois, sendo a teologia mais ciência
especulativa do que prática, isto por si evidencia qual deve ser o princípio
orientador da existência teológica, a saber, a via intelectual e não a via
afetiva. Logo, colhe-se a razão da proposição em contrário.
<Dúbia IV>
Acerca da quarta, procede-se assim: se a afetividade
impugna a intelectualidade.
E parece que não.
I. [Argumentos].
1. A afetividade deve guiar a intelectualidade, porque o
amor é mais excelente do que o conhecimento; logo, amar é melhor do que
conhecer; ora, a afetividade enobrece a intelectualidade; portanto, a
afetividade não impugna a intelectualidade.
2. Ademais, o conhecimento se inicia pela experiência
sensível; e, em se tratando das coisas de Deus, também; pois, a Sagrada
Escritura é útil para agradar a sensibilidade (cf. Sl 119.103), isto é, para
atinar a afetividade; portanto, a afetividade não impugna a intelectualidade.
3. Ademais, o cronista da criação ao receber a revelação
da lei de Deus foi conduzido à caligine (cf. Êx 20.21b); ora, ele só adentrou
na caligine depois de se purificar, isto é, depois de ordenar sua afetividade
em santidade a Deus; portanto, a afetividade não impugna a intelectualidade.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, a Escritura afirma: “a sensualidade,
o vinho e o mosto tiram a inteligência” (Os 4.11); ora, a afetividade
desordenada conduz a sensualidade, e esta obnubila a inteligência.
III. [Solução].
1. A afetividade deve ser orientada a partir da perfeição
da reta razão; pois, do contrário, a afetividade se torna desordenada; e
afetividade desordenada engendra vícios na parte sensual da alma, tornando a
alma viciada e viciosa; portanto, se a afetividade não for fruto da reta razão,
se torna em instrumento de sensualização; e este tipo de sensualização, por sua
vez, corrói e destrói a inteligência; com isso, a afetividade desordenada, isto
é, toda sensualidade que não está em conformidade com a reta razão, acaba por
destruir a própria racionalidade; logo, a afetividade, se tomada como norte
orientador do ser, não só impugna como também destrói a intelectualidade. Pois,
o conhecimento intelectual da verdade é que ordena a afetividade, isto é, o
amor; e como amar é aborrecer tudo aquilo que concerne ao falso caminho (cf.
1Co 13.4-6), e isto é alcançado com entendimento, então, somente com o
conhecimento da verdade se ordena corretamente e utilmente a afetividade, tal
como diz a Escritura: “Pelos teus mandamentos alcancei entendimento; pelo
que aborreço todo falso caminho” (Sl 119.104).
IV. [Respostas aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro argumento se responde que o amor é
o caminho mais excelente, tal como diz o Apóstolo (cf. 1Co 12.31b), mas, este
amor só é alcançado e entendido a luz da verdade; por isso, o conhecimento da
verdade ensina a via do amor, isto é, a via intelectual ensina o caminho da via
afetiva; logo, conhecer a verdade é o único caminho para amar corretamente; e,
como não há amor sem conhecimento da verdade, então, colhe-se a razão de que a
afetividade enobrece a intelectualidade; por isso, amar não é melhor do que
conhecer, pois não se ama o que não se conhece; portanto, o conhecimento da
verdade é o que abaliza, ensina e dignifica a via do amor.
2. Quanto ao segundo argumento se responde que, conquanto
o conhecimento se inicie pela experiência sensível, não é a experiência
sensível que ordena o saber, e isto tanto em relação as coisas naturais quanto
em relação as coisas reveladas; assim, o conhecimento que se inicia pela
experiência é abalizado pelo raciocínio e não pela afetividade; e, em se
tratando das coisas de Deus, se inicia com a experiência da fé (cf. Is 7.9b), e
depois se prossegue para o entendimento da razão da fé (cf. 1Pe 3.15); e, mesmo
que a Sagrada Escritura seja útil para agradar a sensibilidade, só o é para os
fiéis, após ter sido útil para gerar nestes a fé (cf. Jo 20.31); logo, a
utilidade da Sagrada Escritura está em primeiro gerar a fé nos eleitos (cf. Rm
10.17); depois, ensinar o caminho da salvação (cf. 2Tm 3.15); depois, atinar a
afetividade, e os aspectos conseguintes (cf. 2Tm 3.16-17).
3. Quanto ao terceiro argumento se responde que a
experiência do cronista da criação diz respeito ao efeito que a
super-luminosidade de Deus causa nos homens; por isso, os homens para
contemplá-lo verdadeiramente nesta vida, como hábito da graça, adentram a
caligine; e isto não só significa a atitude que devem ter ante o esplendor da
glória de Deus, mas o próprio efeito desta glória nos fiéis; por isso, o
cronista da criação só adentrou na caligine depois que fora purificado, ao se
ordenar em santidade a Deus, de acordo com a vontade de Deus (cf. Êx 19-20);
mas, só ordenou sua santidade a Deus depois de ter recebido a revelação de Deus
de como deveria se portar ao adentrar na caligine; por isso, compreendeu
primeiro a revelação de Deus, depois, se purificou com os meios de graça que
lhe foram outorgados pelo próprio Deus; assim, não foi pela afetividade que
adentrou na caligine, mas pelo conhecimento de Deus, o qual, depois, o ensinou
o que concerne a afetividade, a saber, a como viver retamente diante de Deus a
partir do conhecimento que Deus revelou de Si.
V. [Resposta ao Em Contrário].
1. Em relação a isso, se constata que a afetividade aqui se trata de se tomar a afetividade como norte orientador; embora a verdadeira afetividade seja assaz importante, ao se tomá-la como norte orientador, se sabe que ocasiona desordem na alma, gestando assim a incontinência ou a sensualidade; todavia, estando a alma em ordem, a afetividade é conduzida pela intelectualidade, gerando bons frutos. Por isso, mesmo que pareça ser algo bom, ou algo benéfico, se a afetividade se tornar o norte orientador do ser, se descamba em excesso de afetividade, o qual engendra a sensualidade, que acaba por ocasionar a destruição da inteligência. Logo, colhe-se a proposição em contrário, no entanto, com a observação a respeito de que se trata da sensualidade desordenada, aquela que não tem está imbuída no âmbito do relacionamento matrimonial entre homem e mulher.
[1] O texto da epíst. VI, provêm da
edição espanhola das obras de Pseudo-Dionísio (In: Pseudo Dionísio Areopagita, Obras
Completas [Madrid: BAC, 2007], pág. 259).
[2] cf. Alberto Magno, Commentari In
Epistolas B. Dionysii Areopagitae, epist. VI, A, In: Op. Om., XIV,
900.
[3] Bento XVI, Caritas in Veritate,
n. 2.
[4] In: Dietrich Bonhoeffer, Ética
[11ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal/EST, 2015], pág. 35.
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