27/03/2025

Comentário a Epístola VI de Pseudo-Dionísio

Prefácio.

 

Após o primeiro grupo de epístolas - as cinco primeiras (I-V) -, que versam sobre temas concernentes a duas das obras do Corpus Dionysiacum (DN e MT), se tem o segundo grupo de epístolas - as cinco últimas (VI-X) -, que versa sobre temas gerais em consonância com o programa teológico dionísico, mas não em ordem as obras restantes do Corpus Dionysiacum.

Deste modo, a epístola VI, a menor das epístolas dionísicas, inicia esta segunda parte com um tema de grande importância, a saber, sobre a verdade, sobre o modo de ensinar a verdade; certamente, uma elocução a partir da sentença paulina de seguir a verdade em amor (cf. Ef 4.15); logo, esta epístola demonstra o que concerne a atitude do fiel, do teólogo, do pastor, do bispo, enfim, de todos os cristãos, sejam imbuídos de autoridade eclesiástica ou não, de propagar a verdade, de ensiná-la e proclamá-la.

Assim sendo, àqueles que ensinam a verdade, devem o fazer de modo adequado, isto é, de acordo com a própria verdade; pois, o ensino da verdade deve ser adequado a própria verdade tanto no conteúdo quanto no modo de ensino; por isso, àqueles que ensinam a verdade devem ensiná-la plenamente e de acordo com o método da própria verdade, a saber, em amor; a verdade deve ser ensinada na caridade, pois, a verdadeira caridade sempre é caridade na verdade; logo, a dignidade da caridade está em ordem a verdade; pois, segundo Bento XVI, “a verdade é luz que dá sentido e valor à caridade”.

Esta epístola engendra este preceito teológico; embora, de modo ambíguo; o que fez com que muitos estudiosos duvidassem da autenticidade desta epístola, bem como de sua importância teológica; e, conquanto seja uma epístola ambígua (o que de outra maneira e de outro modo será analisado posteriormente de modo mais adequado), isto não diminui sua importância, pois esta epístola traz o esclarecimento necessário sobre o que concerne ao ensino da verdade.

Portanto, no programa teológico dionísico esta epístola é a porta de entrada para as epístolas seguintes, bem como abaliza o modo como se deve ensinar os mistérios concernentes a Deus, a Verdade Primeira; pois, a fé sempre tem por objeto a verdade (cf. DN, VII, § 4); e esta fé, a fé que busca entendimento (cf. Prosl., I), sempre será uma fé que busca a compreensão e a explicação da verdade, já que a verdade é o que engendra o entendimento da fé.

Assim sendo, os tópicos teológicos tal como Pseudo-Dionísio os delineia em suas obras, sempre tem imbuídos o estudo da verdade, tanto de maneira específica, no que concerne a doutrina sagrada, quanto de maneira geral, no que concerne ao estudo da sabedoria filosófica; isto é, tanto em relação a luz superior quanto em relação a luz interior.

Portanto, esta epístola, a menor epístola de Pseudo-Dionisio, é a propedêutica do Corpus Dionysiacum; pois, o que versa esta epístola, é a base de tudo quanto vai ser explicado e desenvolvido em todo o programa teológico dionísico. Enquanto que o De Mystica Theologia é o método do programa teológico dionísico, se pode afirmar que a epístola VI é o preâmbulo ao programa teológico dionísico.

Por isso, nesta epístola se descortina o principium da doutrina dionísica, bem como se evidencia a pressuposição necessária para a formação da correta hermenêutica concernente ao Corpus Dionysiacum mesmo diante das ambiguidades inerentes ao mesmo - o “dionisianismo intelectual” -, a qual abaliza as ambiguidades e as coloca em ordem a revelação (cf. 2Co 10.4).

Soli Deo Gloria!

In Nomine Iesus!

26 de março de 2025.

 

Texto de Pseudo-Dionísio (Epist. VI)[1].

Sosípatro, não consideres uma vitória o vituperar um culto e doutrina porque não te parecem corretos. Pois, ainda que tenha feito corretamente, nem por isso há atuado bem. Porque é possível que tanto a ti como a muitos outros suceda que a verdade, única e escondida, não seja vista entre as falsas aparências. Efetivamente, se uma coisa não é vermelha, nem por isso tem de ser branca; e se uma coisa não é cavalo, nem por isso tem de ser homem. E, se confias em mim, agirás assim: deixa de criticar os outros e ensina realmente a verdade, de maneira que ao ensiná-la seja totalmente irrefutável.

 

A. Proêmio.

1. “Os pássaros da mesma espécie aninham-se juntos: assim a verdade volta para os que a praticam” (Eclo. 27.10); ora, estas palavras competem à matéria e ao assunto desta epístola; pois, a verdade, ao ser praticada, demonstra duas coisas: primeiro, o conhecimento da verdade. “que quer que todos os homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade” (1Tm 2.4). Segundo, o assentimento pleno para com a verdade; e o assentir a verdade é ser guiado por ela. “Envia a tua luz e a tua verdade, para que me guiem e me levem ao teu santo monte e aos teus tabernáculos” (Sl 43.3).

Com isso, se constata que aqueles que praticam a verdade, a própria verdade se volta a estes com sua face luminosa; pois, os efeitos da verdade permeiam todo o indivíduo, de tal modo que este passa a semear a verdade; e a verdade uma vez semeada sempre frutifica, e com isso, aquele que a semeia recebe dos frutos destas sementes quando estas frutificam. “Os que semeiam em lágrimas segarão com alegria. Aquele que leva a preciosa semente, andando e chorando, voltará, sem dúvida, com alegria, trazendo consigo os seus molhos” (Sl 126.5-6).

2. Por isso, Sirach faz uma comparação simples para designar aqueles que praticam a verdade, a saber, com os pássaros; pois do mesmo modo como os pássaros da mesma espécie aninham-se juntos, assim aqueles que praticam a verdade estão aninhados com a verdade e com aqueles que praticam a verdade (cf. 1Jo 1.7); e quem pratica a verdade vive na luz, pois quem pratica a verdade tem suas obras feitas em Deus. “Mas quem pratica a verdade vem para a luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas, porque são feitas em Deus” (Jo 3.21). Além do que, quem pratica a verdade habita onde a verdade faz sua morada, isto é, com o próprio Deus - a Verdade (cf. Dt 32.4b).

Deste modo, a verdade ao ser praticada traz benesses ao que a praticam; pois, os que praticam a verdade, devem fazê-lo de acordo com a própria verdade, que prescreve tanto o que deve ser praticado quanto o modo de praticá-la; logo, a verdade indica tanto o caminho como a maneira de se caminhar; além disso, se pode afirmar que aquilo de que depende a lei e os profetas (cf. Mt 7.12), está em ordem ao mandamento do amor (cf. Jo 13.34), o qual é praticado não por palavras, mas por obra e em verdade. “Meus filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade. E nisto conhecemos que somos da verdade e diante dele asseguraremos nosso coração” (1Jo 3.18-19).

3. Assim, aqueles que estão aninhados com a verdade, devem conhecê-la e vivê-la de modo integral e em sobriedade; pois, a vida na verdade, é uma vida em sinceridade, retidão, temor a Deus e em se desviar do mal, tal como o testemunho de Jó (cf. Jó 1.1); no entanto, aqueles que vivem de acordo com a verdade, podem decair na tentação do orgulho e da vanglória, e com isso desprezarem a verdade no coração e/ou por ações (cf. 2Pe 2.18, 3.17); logo, os que estão aninhados com a verdade, devem vivê-la de acordo com a própria verdade, ensinando-a e praticando-a, o que evita muito dos desvios provenientes do orgulho e da vanglória (cf. Fp 2.3).

Com isso, se estabelecem dois aspectos impreteríveis no ensino da verdade, a saber: primeiro, o conteúdo a ser ensinado, a saber, a própria verdade (cf. Tt 2.1); segundo, o modo de ensiná-la, a saber, na caridade (cf. Ef 4.15). Pois, aqueles que falam a Palavra de Deus, devem fazê-lo com verdade. “e aquele em quem está a minha palavra, que fale a minha palavra, com verdade” (Jr 23.28b).

Ora, a verdade só é ensinada sob a razão da esperança da fé (cf. 1Pe 3.15). Portanto, se compreende que o ensino da verdade deve cumprir estes requisitos inerentes, a fim de que “ao ensiná-la seja totalmente irrefutável”; logo, etc.

 

B. Comentário.

1. Após a epístola V, direcionada a Doroteu, se tem a epístola VI, direcionada a Sosípatro; ora, não só se muda a epístola, mas também se muda a ordem geral dos assuntos; pois, enquanto que as epístolas I a V, versa sobre temas concernentes a duas obras do Corpus Dionysiacum (DN e MT), as epístolas VI a X, versam sobre temas gerais concernentes a existência teológica e ao amplo escopo da tarefa teológica, conquanto também evoquem aspectos de outras obras de Pseudo-Dionísio.

Por isso, do mesmo modo como se tem uma ordem de assuntos nas primeiras cinco epístolas, nas último cinco epístolas também se tem uma ordem, mas quanto a assuntos mais gerais e não tanto quanto uma ordem específica engendradas nas obras do programa teológico dionísico.

No entanto, esta ordem mais específica, apresenta um outro aspecto que complementa o programa teológico dionísico, com observações mais particulares sobre temas evocados e/ou pouco falados nas obras, embora mencionados; portanto, as epístolas VI a X, perfazem outros aspectos do que os que são analisados nas obras do Corpus Dionysiacum.

2. Ora, esta epístola evoca o tema da verdade; e, segundo Alberto, Pseudo-Dionósio nesta epístola se põe a arguir a Sosípatro quanto ao modo correto do combate a idolatria, o que mostra seu zelo pela fé em Cristo[2]; todavia, isto gera um problema, pois o zelo sem entendimento é tão ruim quanto a falta de zelo, tal como o Apóstolo houvera afirmado: “Porque lhes dou testemunho de que têm zelo de Deus, mas não com entendimento” (Rm 10.2).

E esta epístola versa justamente sobre a necessidade do zelo com entendimento, ou do zelo em função da verdade, sempre em função da verdade, mas da verdade em amor (cf. Ef 4.15); não do amor para a verdade, que corrompe o zelo, mas sempre da verdade seguida pelo amor, que concerne tanto a ordem da revelação de Deus sobre Si, quanto da ordem estabelecida pela revelação sobre como os fiéis devem agir e se portar ante aqueles que estão contra a verdade, tendo em vista que nada é possível contra a verdade, tal como o Apóstolo diz: “Porque nada podemos contra a verdade, senão pela verdade” (2Co 13.8).

3. Por isso, nesta epístola, Pseudo-Dionísio faz cinco coisas: primeiro, põe a questão; segundo, evoca que fazer o que é correto está de acordo com o laborar correto; terceiro, prescreve a necessidade do cuidado com as falsas aparências; quarto, evoca um exemplo sobre o que permeia as falsas aparências; quinto, evoca a tríplice estrutura através da qual a verdade é efetivamente ensinada.

4. Primeiro, põe a questão, onde diz: “Sosípatro, não consideres uma vitória o vituperar um culto e doutrina porque não te parecem corretos”; ora, Pseudo-Dionísio põe a questão de modo direito a Sosípatro, a fim de delinear que a vida em função da verdade, que também requer a defesa da verdade, não é de aparências; as aparências enganam (cf. Pv 28.21), ainda mais em se tratando do combate racional em prol da verdade; por isso, a Escritura exorta a julgar conforme a reta justiça (cf. Jo 7.24), isto é, da justiça de acordo com a verdade.

Pois, vituperar um culto ou uma doutrina não pode ser porque não parecem corretos, mas sim porque realmente não são corretos; assim, se distingue entre o confronto racional e a contumélia; ora, o que está contra a verdade sempre deve ser confrontado; no entanto, o que parece estar errado não deve ser motivo de contumélia, senão se afronta a própria verdade.

Portanto, o que Pseudo-Dionísio exorta é para que não se faça um julgamento precipitado contra uma doutrina, senão acaba-se decaindo em vituperar tal doutrina sem ter amparo da verdade; no entanto, tendo o amparo da verdade, e tendo um justo julgamento de acordo com a verdade, se deve combater veementemente o erro e aquilo que está contra a verdade.

5. Segundo, evoca que fazer o que é correto está de acordo com o laborar correto, onde diz: “Pois, ainda que tenha feito corretamente, nem por isso há atuado bem”; ora, diante da questão posta, se deve compreender que, ainda que uma doutrina tenha sido confutada corretamente, nem por isso significa que isto tenha sido de maneira adequada; o bem do combate ao erro é a verdade transparecer límpida e cristalina, e não o vencer um debate ou uma diatribe; a garbosidade no debate em função da verdade, acaba por desfigurar a própria verdade; a defesa da verdade deve ser feita em função da própria verdade e não da promoção de quem a defende.

Por isso, a atuação correta na defesa da verdade é em função da verdade ser honrada, sublimada e demonstrada em todo seu fulgor, transparecendo seu bem e sua beleza. Portanto, para fazer o que é correto em prol da verdade, se deve laborar de forma correta, isto é, fazer o que é correto está de acordo e é demonstrado no laborar correto. E, em se tratando da verdade, este laborar é o zelo com entendimento.

6. Terceiro, prescreve a necessidade do cuidado com as falsas aparências, onde diz: “Porque é possível que tanto a ti como a muitos outros suceda que a verdade, única e escondida, não seja vista entre as falsas aparências”; ora, sendo necessário a compreensão sobre o laborar correto em função da  verdade, se deve ter o cuidado com as falsas aparências; pois, a Escritura diz que o próprio Diabo se transfigura em anjo de luz (cf. 2Co 11.14); com isso, a própria verdade pode estar desfigurada em meio a enganos permeados pelas falsas aparências; pois, a verdade é sinfônica e é permeada por múltiplos aspectos.

Por isso, Pseudo-Dionísio exorta a Sosípatro que tenha cuidado, tanto ele como a muitos outros, que no combate em prol da verdade, se acabe que a própria verdade não seja contemplada; as falsas aparências tendem a esconder a verdade; portanto, mesmo diante do combate em prol da verdade, pode acontecer que na confutação ao erro, que a própria verdade não seja vista; e a não-visão da verdade é um dos grandes males que atingem ao ser humano; e é uma terrível miséria quando aqueles que defendem a verdade, movidos pelas falsas aparências, acabam por não contemplar a própria verdade.

Assim, na defesa e no ensino da verdade, se deve ter cuidado com as falsas aparências.

7. Quarto, evoca um exemplo sobre o que permeia as falsas aparências, onde diz: “Efetivamente, se uma coisa não é vermelha, nem por isso tem de ser branca; e se uma coisa não é cavalo, nem por isso tem de ser homem”; ora, após ter prescrito a necessidade de ser ter cuidado com as falsas aparências, evoca um exemplo; pois, se uma coisa efetivamente não for vermelha, nem por isso tem de ser branca, ou se uma coisa for azul nem por isso tem de ser vermelha; ou dito em outros termos, existem acidentes racionais que conduzem a falsas aparências; por isso, aquele que busca conhecer a Deus adentra na caligine divina (cf. Êx 20.21b), depois de ter passado por todas as falsas aparências; se sobrelevar as falsas aparências é condição preponderante para conhecer a verdade.

Além disso, se uma coisa não é cavalo, nem por isso tem de ser homem; ou se uma coisa não é peixe nem por isso tem de ser um boi; etc. Portanto, as falsas aparências são permeadas por simplória contradição, a qual, na verdade não é contradição dialética, mas que expressa a própria contradição daqueles que não vão além das falsas aparências, ou daqueles que apenas conseguem contemplar as falsas aparências, dado a não amarem a verdade, e, por isso, acabam por ficar sujeitos ao engano (cf. 2Ts 2.11-12), o qual se manifesta as mais das vezes pelas contradições vis das falsas aparências.

8. Quinto, evoca a tríplice estrutura através da qual a verdade é efetivamente ensinada, onde diz: “E, se confias em mim, agirás assim: deixa de criticar os outros e ensina realmente a verdade, de maneira que ao ensiná-la seja totalmente irrefutável”; ora, tendo descrito alguns perigos e atitudes erradas em relação ao ensino e a defesa da verdade, evoca uma tríplice exortação a fim de aqueles que ensinam e defendem a verdade possam ensiná-la de modo adequado; pois, a verdade deve ser ensinada em conformidade com o método da própria verdade; a glória de quem ensina a verdade é ensiná-la de tal modo, que a verdade transpareça límpida tanto no conteúdo quanto no método de ensino.

9. E três são as exortações para que a verdade seja corretamente ensinada: primeiro, o agir correto; ora, requer-se daquele que ensina a verdade, que aja com confiança, sinceridade e integridade; pois, o maior testemunho no ensino da verdade é a autoridade daquele que a ensina, e esta autoridade é alcançada através da vida em piedade, honestidade e virtude, tal como diz o salmista (cf. Sl 24.3-6) e tal como o exemplo do Senhor Jesus (cf. Mt 7.28-29); etc.

Segundo, deixar de criticar os outros; ora, requer-se daquele que ensina a verdade que não critique os outros; mas não critique os que não estão contra a verdade; os outros que são designados nesta epístola são aqueles que não estão contra a verdade, mas que estão em favor da verdade; aliás, é preceito racional óbvio que não se deve criticar como errado quem não está errado; por isso, se deve agir de modo tal que não se incorra em crítica de estar contra a verdade contra quem não está contra a verdade; e, em contrapartida, se deve criticar e combater aqueles que efetivamente estão contra a verdade, pois é bem-aventurado aquele que não respeita os soberbos (cf. Sl 40.4).

Terceiro, ensinar realmente a verdade; ora, tendo a vida correta diante da verdade e evitando a volúpia no combate pela verdade, então, se pode ensinar corretamente a verdade; e ensiná-la tanto no que concerne a própria verdade quanto com o exemplo da vida na verdade; e, cumprindo estes requisitos básicos, ao se ensinar a verdade, se a ensinará de tal forma que a verdade brilhará em todo seu fulgor e beleza, a fim de que a imutabilidade da verdade transpareça, e se possa efetivamente constatar que a verdade é irrefutável; por isso, quem a ensina corretamente, ao fazê-lo também é totalmente irrefutável, não por causa de si, mas por causa da própria verdade.

10. Assim, o ensino da verdade deve ter por parâmetros estes breves e preciosos conselhos que Pseudo-Dionísio ensinara a Sosípatro; pois, a verdade deve ser encontrada na caridade, mas sempre caridade na verdade, tal como Bento XVI afirmara: “A verdade há de ser procurada, encontrada e expressa na ‘economia’ da caridade, mas esta por sua vez há de ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da verdade[3]. Portanto, se deve ter em mente esta perspectiva, que em suma, é a perspectiva que Pseudo-Dionísio engendra nesta epístola, de modo a não se descambar no “dionisianismo afetivo” na defesa da verdade, o qual acaba por desfigurar a própria verdade em função de alguma falsa forma de amor.

11. Pois, não se deve aceitar uma verdade que não tenha caridade, mas também não se deve aceitar uma suposta caridade que não tenha a verdade; por isso, “Lutero, com sua clara visão bíblica, chama o amor que fere ou neutraliza a verdade de ‘amor maldito’, ainda que se apresente na mais piedosa roupagem[4]. Assim, se deve ter o amor que evidencia a verdade, e toda e qualquer tentativa de afirmar uma “forma” de amor que fere ou neutraliza a verdade deve ser rejeitada, já que possui as falsas aparências do engano, que se manifesta em aparência de piedade, mas que nega na prática a eficácia da mesma (cf. 2Tm 3.5); também com este tipo de falsa aparência se deve ter um cuidado vigilante no ensino e na defesa da verdade; pois, não existe verdade sem amor, mas também não existe amor sem a verdade; etc.

 

C. Dúbias.

Em relação as pressuposições estabelecidas ao se explicar esta epístola, surgiram quatro dúbias:

Primeiro, se a verdade deve ser entendida a luz da caridade.

Segundo, se a caridade deve ter preeminência sobre a verdade.

Terceiro, se a afetividade convém a teologia.

Quarto, se a afetividade impugna a intelectualidade.

 

<Dúbia I>

Acerca da primeira, procede-se assim: se a verdade deve ser entendida a luz da caridade.

E parece que sim.

I. [Argumentos].

1. A caridade é mais importante do que a verdade, posto que a caridade, e não a verdade, é o vínculo da perfeição (cf. Cl 3.14); e o que conduz a perfeição deve ser o princípio aferidor para o entendimento de outras coisas; ora, como a caridade é o vínculo da perfeição, então, todas as outras coisas devem ser entendidas a luz da caridade.

2. Ademais, a fé verdadeira é a fé que opera em amor (cf. Gl 5.6); ora, o conhecimento da fé é o que conduz o homem ao devido fim; logo, se a fé opera em caridade, então a caridade é o devido fim do homem; portanto, a verdade deve ser entendida a luz da caridade.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, o salmista diz: “Envia a tua luz e a tua verdade, para que me guiem e me levem ao teu santo monte e aos teus tabernáculos” (Sl 43.3); ora, a verdade é enviada aos homens para que lhes sirva de guia para Deus; logo, é pela verdade que os homens se achegam a Deus, e através da qual conhecem Seu amor.

III. [Solução].

1. Ora, segundo Tomás, a verdade é o objeto da fé (cf. STh IIa IIae, q. 1, a. 1, co.); logo, a fé surge e é abalizada a partir da verdade; por isso, o Apóstolo diz que a fé vem pelo ouvir a Palavra de Deus (cf. Rm 10.17), isto é, pelo entender e compreender a Palavra de Deus; portanto, a fé advêm através da compreensão da verdade que é Cristo; por isso, aquele que tem fé em Deus, crê que Ele é e que é galardoador dos que o buscam (cf. Hb 11.6); pois, a fé a medida que conhece a verdade, se assenta na verdade e confia-se a verdade, já que Deus mesmo é a verdade (cf. Dt 32.4b).

2. Por isso, a fé em Deus, a confiança em Deus, é o que conduz os homens a salvação, já que os homens ao confiarem nEle o invocam, e todo aquele que o invoca é salvo (cf. Rm 10.13); além disso, no texto sapencial se diz: “Aqueles que confiam nele compreenderão a verdade, e os que são fiéis habitarão com ele no amor, porque a graça e a misericórdia são para os seus escolhidos” (Sb 3.9); logo, quem tem fé em Deus compreende a verdade; e ao compreender a verdade, passam a habitar com Deus em sinceridade e integridade (cf. Sl 15.1-5), e nisto conhecem seu amor, posto que a graça e a misericórdia são outorgadas a todos quantos confiam nEle para a salvação, a qual os conduz no conhecimento da verdade; pois, a graça e a misericórdia são outorgadas para o conhecimento da verdade, já que Aquele que é a Verdade também desvela plenamente a graça e a misericórdia (cf. Jo 1.17).

3. Portanto, a caridade deve ser entendida a luz da verdade, já que o conhecimento da caridade advém após o conhecimento da verdade, e isto tanto na ordem da revelação quanto na ordem das ações humanas, ou seja, tanto na doutrina quanto na ética.

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro argumento se responde que sendo a caridade o vínculo da perfeição, tal como afirma o Apóstolo, tal perfeição só é alcançada tendo sido iluminada pela verdade; pois, a perfeição de algo é atingir seu devido fim; ora, o fim do homem é a fruição de Deus, que é a Verdade; então, o fim do homem é o pleno conhecimento da Verdade; por isso, a caridade é a demonstração da perfeição do conhecimento da verdade, mas a verdade advêm antes da caridade, pois não pode haver demonstração se antes não haver sido feito a predicação; logo, o princípio aferidor do entendimento de todas as outras coisas é a verdade, sendo a caridade o princípio aferidor da vida na verdade e em prol da verdade. Portanto, a caridade é o vínculo da perfeição, enquanto que a verdade é o metal que dá forma a este vínculo; sem este metal não se tem a força deste vínculo; logo, sem verdade, não existe verdadeira caridade; por isso, quanto maior o conhecimento da verdade, mais firme será o vínculo da caridade e mais bela a demonstração da beleza da fé através da caridade.

2. Quanto ao segundo argumento se responde que a fé que opera, que obra em amor, é a fé que tem suas operações fundamentais na verdade; o testemunho da fé é através da caridade; mas a gestação e a formação da fé é através da verdade; e, como primeiro se tem o gestar e o formar a fé, que provêm da verdade, então em primeiro lugar se tem a verdade, e, somente depois, o obrar em caridade; a verdadeira fé assente na verdade para obrar em amor; este é o sentido do termo utilizado pelo Apóstolo no texto referido; pois, o obrar em amor é efeito da fé, não sua causa; a causa da fé é a verdade, enquanto que o efeito da fé é o obrar em amor; a causa da fé provêm unicamente de Deus, enquanto que o efeito ao provir dEle também convém a participação da ação humana em liberdade. Portanto, como o conhecimento das causas advêm antes do conhecimento dos efeitos, convém que o entendimento das causas ilumine o entendimento dos efeitos; portanto, a caridade deve ser entendida a luz da verdade e deve ser praticada como demonstração da verdade.

 

<Dúbia II>

Acerca da segunda, procede-se assim: se a caridade deve ter preeminência sobre a verdade.

E parece que sim.

I. [Argumentos].

1. A caridade é a maior entre as virtudes teologais (cf. 1Co 13.13b); por isso, a caridade tem preeminência sobre a verdade; portanto, etc.

2. Ademais, o Príncipe dos Apóstolos diz que o amor cobre multidão de pecados (cf. 1Pe 4.8); logo, é mais importante amar do que conhecer a verdade; portanto, a caridade deve ter preeminência sobre a verdade.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, Tomás diz que a verdade diz respeito ao ser, enquanto que o bem é conseguinte ao ser (cf. STh Ia, q. 16, a. 4, co.); ora, a caridade é um bem; portanto, como a verdade diz respeito ao ser, e a verdade é anterior ao bem, então, a verdade tem preeminência sobre a caridade.

III. [Solução].

1. A preeminência de algo se diz de dois modos: um quanto a anterioridade, isto é, ao modo como é anterior; o outro quanto a superioridade na ordem do ser. Ora, se diz que a verdade é superior a caridade destes dois modos; primeiro, quanto a anterioridade, pois, a verdade é anterior a caridade, tanto no modo como Deus se revela: primeiro, como verdade (cf. Dt 32.4b; Jo 14.6), e depois como amor (cf. Sl 103.17; 1Jo 4.8); quanto no que é preceituado aos fiéis, em viverem na verdade (cf. 2Jo 1.4) e em caridade (cf. Rm 13.8; Ef 4.15).

2. E, segundo, quanto a superioridade na ordem do ser; pois, a verdade diz respeito ao ser e o bem é conseguinte ao ser, como colhe-se da sentença de Tomás, então, a verdade é anterior a qualquer tipo de bem; e, sendo a caridade um bem, então, é posterior a verdade, posto que a caridade só é corretamente entendida e vivida sob a verdade; portanto, se quanto ao ser a verdade é anterior a caridade, isto demonstra por si que a verdade tem preeminência sobre a caridade quanto a ordem, tanto no que Deus revela de Si quanto na própria ordem das coisas; pois, é próprio do bem o estar em ordem; e esta ordem é abalizada e justificada no ser a partir da verdade e em consonância com a verdade.

3. Outrossim, é que Deus, a verdade, causa a caridade nos fiéis (cf. Ct 2.4); ora, Ele causa a caridade como fruto do conhecimento que outorga de Si, isto é, do conhecimento da Verdade; portanto, a verdade tem preeminência sobre a caridade quanto a salvação, já que o conhecimento da verdade traz libertação do pecado (cf. Jo 8.32), mas também quanto a santificação, posto que as boas obras são frutos da reconciliação (cf. Ef 2.10); logo, se compreende que a verdade tem preeminência sobre a caridade quanto a nós e quanto ao modo de Deus se revelar bem como da ordem que convém ao nosso conhecimento a respeito dEle pela revelação, mas não quanto ao Ser de Deus, que tem a verdade e a caridade de forma perfeitíssima e em igualdade de infinitude.

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro argumento se responde que a caridade é a maior das virtudes teologais segundo o dito do Apóstolo, dado que a participação na caridade instaura a imagem do participado no participante; mas, só participa do amor de Deus, aquele que confia nEle e a Ele se fia em fé e devoção (cf. Hb 11.6); ora, aquele que confia em Deus, por conseguinte, obtém o conhecimento da verdade, para então, habitar com Deus em amor e amar (cf. Sb 3.9); logo, quanto aos fiéis a caridade advém após o conhecimento da verdade, ao mesmo tempo em que a própria caridade é evidência do novo nascimento (cf. 1Jo 4.7); portanto, em relação as virtudes teologais, as mesmas são precedidas pelo conhecimento da verdade como hábito da graça, para então serem efetivadas na perfeita caridade. Pois, as virtudes teologais são efeito da graça, e não da virtude natural; por isso, são alcançadas apenas pelos eleitos, os quais, vivem-nas de acordo com a verdade e pelas preceituações da caridade.

2. Quanto ao segundo argumento se responde que a preceituação à amar deve ser vivida de acordo com a verdade (cf. Ef 4.15); por isso, é importante amar, mas para amar é necessário conhecer a verdade, pois não se ama o que se desconhece; e só se ama de verdade quando se conhece a verdade; ora, o amor pela verdade engendra a verdade em amor; por isso, tanto conhecer a verdade quanto amar são da mesma importância, posto que estão interligados e são subsequentes; assim, a verdade tem preeminência em relação a caridade, quanto a dignidade que lhe é própria, mas a caridade demonstra seu fulgor ao estar sobre a verdade e ser o vínculo da perfeição (cf. Cl 3.14) que encaminha em direção a verdade primeira.

 

<Dúbia III>

Acerca da terceira, procede-se assim: se a afetividade convém a teologia.

E parece que sim.

I. [Argumentos].

1. A afetividade convém a teologia dado ao objeto e ao propósito da teologia; por isso, a via afetiva diz respeito ao que concerne a existência teológica mais propriamente do que a via intelectual; logo, a afetividade convém a teologia.

2. Ademais, a Escritura diz que Deus é amor (cf. 1Jo 4.8); então, convém que a elucubração teológica se oriente na reflexão sobre o amor de Deus; ora, a reflexão sobre o amor orienta a afetividade; logo, como a teologia lida com Deus, e Deus é amor, então a afetividade convém a teologia.

3. Ademais, o doctor ecstaticus afirma que à teologia não convém a forma intelectual, especulativa, mas sim a forma suave, afetiva, a qual se alcança com fervorosa caridade (cf. In MT, pref.); ora, de acordo com esta sentença, se compreende que a via afetiva convém a teologia; na verdade, é a que melhor convém a teologia.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, Tomás afirma que a teologia é mais ciência especulativa do que prática (cf. STh Ia, q. 1, a. 4, co.); ora, se é mais especulativa do que prática, então, convém mais a via intelectual do que a via afetiva.

III. [Solução].

1. A ciência sagrada pode estar disposta em duas vias, tendo em vista suas duas partes constitutivas, assim como em toda ciência; embora convenha que a ciência sagrada esteja disposta de acordo com a ordenação da via intelectual; pois, a ordem que convém a ciência sagrada, dado a ser mais ciência especulativa do que prática, é a que demonstra a via intelectual como ordenadora; e isto ordena o saber teológico de acordo com seu objeto e de acordo com as operações do intelecto humano, dado que a afetividade nunca proporciona uma melhor intelectualidade, conquanto uma salutar intelectualidade proporcione uma mais fervorosa afetividade.

2. A designação, portanto, de que a via intelectual é a que convém a teologia, é a fim do desenvolvimento adequado da inteligência na elucubração teológica, bem como para ordenar adequadamente tanto a parte intelectiva quanto a parte sensual da alma; pois, se se tomar a via afetiva como pressuposto orientador acaba por se engessar as faculdades intelectuais da alma, dando forma apenas a parte sensual, a qual, acaba por se desfigurar e corromper a vontade, já que não existe vontade firme que não se estabeleça sob racionalidade sólida; logo, se se corrompe a firmeza da vontade ao se estabelecer a via afetiva como princípio orientador, então, se terá a destruição da inteligência; mas, pelo contrário, se se estabelece a via intelectual, então, se refletirá adequadamente o que concerne a elucubração teológica, bem como se conseguirá ordenar a sensibilidade de acordo com a Palavra de Deus (cf. Sl 119.103).

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro argumento se responde que a afetividade convém a teologia, enquanto demonstração do objeto teológico, não quanto a definição; ou seja, quanto a expressão, não quanto a elucubração; por isso, a via afetiva convém como expressão prática da existência teológica, não como preceito fundante da existência teológica; portanto, a afetividade convém a teologia de modo secundário, não de modo primário, o que por si é algo óbvio dado o objeto da teologia ser o assunto especulativo por excelência.

2. Quanto ao segundo argumento se responde que a Escritura apresenta que Deus é amor como parte do zênite da revelação; e, isto, embora demonstre um aspecto concernente ao Ser de Deus, não impugna os outros aspectos do que Deus revelou de Si; por isso, a elucubração teológica surge do amor de Deus e do amor a Deus, mas não se orienta somente na reflexão sobre o amor de Deus; portanto, a teologia, como lida com Deus, lida com a proposição bíblica de que Deus é amor; todavia, não lida apenas com esta proposição, mas com todo o conselho de Deus, o qual apresenta o que concerne ao Ser de Deus com diversas proposições, as quais são expressas pela sentença “Deus é”; pois, a Escritura apresenta vários designativos sobre o que Deus é, e não somente que é amor, pois igualmente fala que Deus é verdade (cf. Jr 10.10a), é justo (cf. Sl 11.7), é terrível (cf. Sl 76.7a), é um fogo consumidor (cf. Hb 12.29), etc. Por isso, ao se refletir sobre o amor de Deus, logicamente, se refletirá sobre o amor humano; mas, toda elucubração racional é orientada pela razão e não pela afetividade, mesmo em se tratando do amor; portanto, a afetividade convém a teologia sob a regra disposta anteriormente; pois, a Escritura não só apresenta que Deus é amor; assim, a reflexão teológica não pode ser somente orientada a partir desta proposição, mas ser disposta a partir do todo da lógica da revelação.

3. Quanto ao terceiro argumento se responde que a sentença do doctor ecstaticus é uma deformação da norma concernente a teologia; pois, convém a teologia a forma suave, afetiva, mas de modo derivado, isto é, como expressão de uma reflexão racional sólida e argumentativa, não como norte orientador da reflexão teológica; portanto, a fervorosa caridade é demonstração da precisão da reflexão teológica, e não a base da mesma; logo, a via afetiva convém a teologia deste modo, mas não como a que melhor convém a teologia; pois, como a teologia é mais ciência especulativa do que prática, então convém mais a forma intelectual, especulativa, do que a forma suave, afetiva. Ora, a forma suave, afetiva, deve ser expressão da inteligência bem formada que surge como fruto do objeto elucubrado, não como base ou fundamento de tal elucubração, o que não somente é evidente pelos preceitos revelacionais, mas também a partir da reta razão.

V. [Resposta ao Em Contrário].

1. Em relação a isso, se constata que a via intelectual deve ser o princípio orientador, enquanto que a via afetiva deve ser a demonstração da via intelectual; pois, sendo a teologia mais ciência especulativa do que prática, isto por si evidencia qual deve ser o princípio orientador da existência teológica, a saber, a via intelectual e não a via afetiva. Logo, colhe-se a razão da proposição em contrário.

 

<Dúbia IV>

Acerca da quarta, procede-se assim: se a afetividade impugna a intelectualidade.

E parece que não.

I. [Argumentos].

1. A afetividade deve guiar a intelectualidade, porque o amor é mais excelente do que o conhecimento; logo, amar é melhor do que conhecer; ora, a afetividade enobrece a intelectualidade; portanto, a afetividade não impugna a intelectualidade.

2. Ademais, o conhecimento se inicia pela experiência sensível; e, em se tratando das coisas de Deus, também; pois, a Sagrada Escritura é útil para agradar a sensibilidade (cf. Sl 119.103), isto é, para atinar a afetividade; portanto, a afetividade não impugna a intelectualidade.

3. Ademais, o cronista da criação ao receber a revelação da lei de Deus foi conduzido à caligine (cf. Êx 20.21b); ora, ele só adentrou na caligine depois de se purificar, isto é, depois de ordenar sua afetividade em santidade a Deus; portanto, a afetividade não impugna a intelectualidade.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, a Escritura afirma: “a sensualidade, o vinho e o mosto tiram a inteligência” (Os 4.11); ora, a afetividade desordenada conduz a sensualidade, e esta obnubila a inteligência.

III. [Solução].

1. A afetividade deve ser orientada a partir da perfeição da reta razão; pois, do contrário, a afetividade se torna desordenada; e afetividade desordenada engendra vícios na parte sensual da alma, tornando a alma viciada e viciosa; portanto, se a afetividade não for fruto da reta razão, se torna em instrumento de sensualização; e este tipo de sensualização, por sua vez, corrói e destrói a inteligência; com isso, a afetividade desordenada, isto é, toda sensualidade que não está em conformidade com a reta razão, acaba por destruir a própria racionalidade; logo, a afetividade, se tomada como norte orientador do ser, não só impugna como também destrói a intelectualidade. Pois, o conhecimento intelectual da verdade é que ordena a afetividade, isto é, o amor; e como amar é aborrecer tudo aquilo que concerne ao falso caminho (cf. 1Co 13.4-6), e isto é alcançado com entendimento, então, somente com o conhecimento da verdade se ordena corretamente e utilmente a afetividade, tal como diz a Escritura: “Pelos teus mandamentos alcancei entendimento; pelo que aborreço todo falso caminho” (Sl 119.104).

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro argumento se responde que o amor é o caminho mais excelente, tal como diz o Apóstolo (cf. 1Co 12.31b), mas, este amor só é alcançado e entendido a luz da verdade; por isso, o conhecimento da verdade ensina a via do amor, isto é, a via intelectual ensina o caminho da via afetiva; logo, conhecer a verdade é o único caminho para amar corretamente; e, como não há amor sem conhecimento da verdade, então, colhe-se a razão de que a afetividade enobrece a intelectualidade; por isso, amar não é melhor do que conhecer, pois não se ama o que não se conhece; portanto, o conhecimento da verdade é o que abaliza, ensina e dignifica a via do amor.

2. Quanto ao segundo argumento se responde que, conquanto o conhecimento se inicie pela experiência sensível, não é a experiência sensível que ordena o saber, e isto tanto em relação as coisas naturais quanto em relação as coisas reveladas; assim, o conhecimento que se inicia pela experiência é abalizado pelo raciocínio e não pela afetividade; e, em se tratando das coisas de Deus, se inicia com a experiência da fé (cf. Is 7.9b), e depois se prossegue para o entendimento da razão da fé (cf. 1Pe 3.15); e, mesmo que a Sagrada Escritura seja útil para agradar a sensibilidade, só o é para os fiéis, após ter sido útil para gerar nestes a fé (cf. Jo 20.31); logo, a utilidade da Sagrada Escritura está em primeiro gerar a fé nos eleitos (cf. Rm 10.17); depois, ensinar o caminho da salvação (cf. 2Tm 3.15); depois, atinar a afetividade, e os aspectos conseguintes (cf. 2Tm 3.16-17).

3. Quanto ao terceiro argumento se responde que a experiência do cronista da criação diz respeito ao efeito que a super-luminosidade de Deus causa nos homens; por isso, os homens para contemplá-lo verdadeiramente nesta vida, como hábito da graça, adentram a caligine; e isto não só significa a atitude que devem ter ante o esplendor da glória de Deus, mas o próprio efeito desta glória nos fiéis; por isso, o cronista da criação só adentrou na caligine depois que fora purificado, ao se ordenar em santidade a Deus, de acordo com a vontade de Deus (cf. Êx 19-20); mas, só ordenou sua santidade a Deus depois de ter recebido a revelação de Deus de como deveria se portar ao adentrar na caligine; por isso, compreendeu primeiro a revelação de Deus, depois, se purificou com os meios de graça que lhe foram outorgados pelo próprio Deus; assim, não foi pela afetividade que adentrou na caligine, mas pelo conhecimento de Deus, o qual, depois, o ensinou o que concerne a afetividade, a saber, a como viver retamente diante de Deus a partir do conhecimento que Deus revelou de Si.

V. [Resposta ao Em Contrário].

1. Em relação a isso, se constata que a afetividade aqui se trata de se tomar a afetividade como norte orientador; embora a verdadeira afetividade seja assaz importante, ao se tomá-la como norte orientador, se sabe que ocasiona desordem na alma, gestando assim a incontinência ou a sensualidade; todavia, estando a alma em ordem, a afetividade é conduzida pela intelectualidade, gerando bons frutos. Por isso, mesmo que pareça ser algo bom, ou algo benéfico, se a afetividade se tornar o norte orientador do ser, se descamba em excesso de afetividade, o qual engendra a sensualidade, que acaba por ocasionar a destruição da inteligência. Logo, colhe-se a proposição em contrário, no entanto, com a observação a respeito de que se trata da sensualidade desordenada, aquela que não tem está imbuída no âmbito do relacionamento matrimonial entre homem e mulher.



[1] O texto da epíst. VI, provêm da edição espanhola das obras de Pseudo-Dionísio (In: Pseudo Dionísio Areopagita, Obras Completas [Madrid: BAC, 2007], pág. 259).

[2] cf. Alberto Magno, Commentari In Epistolas B. Dionysii Areopagitae, epist. VI, A, In: Op. Om., XIV, 900.

[3] Bento XVI, Caritas in Veritate, n. 2.

[4] In: Dietrich Bonhoeffer, Ética [11ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal/EST, 2015], pág. 35. 


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