1. Ao se avolumar constantemente as
crises e tensões da contemporaneidade, somos sempre chamados a testemunhar com
vigor das nossas convicções e crenças; e diante, da dissolução do direito na
vida pública, dissolvido e desfigurado pela tirania dos direitos, não somente
políticos, magistrados, juristas, filósofos, e outros, são chamados a falar e a
contemplar tais assuntos; os teólogos também o são; e o são ainda mais, pois,
diante da desfiguração de um pilar da sociedade ocidental, a teologia, rainha
das ciências, deve ser o sustentáculo para que tal crise seja identificada e
solucionada. E, eis-me aqui, como um simples e jovem teólogo, a falar sobre
este assunto, e a testemunhar a Verdade Eterna, sob os auspícios da regina
scientiarum (rainha das ciências). Que o Espírito Santo nos conduza!
2. Uma das crises mais agudas a qual
a sociedade enfrenta é a multiplicação dos direitos; já Bento XVI alertara: “A
multiplicação dos direitos conduz por último, à destruição da ideia de direito”[1].
E não é de se assustar que as sociedades religiosas, as sociedades que são
cristãs, defrontem-se com este problema no estamento do Estado; o Estado é
laico, e todos muito bem sabem disso, mas a sociedade não é; e conquanto se
deva respeitar a liberdade de todos, dádiva outorgada por Deus aos homens, e
fundamento inalienável e imutável da vida humana e da convivência em sociedade,
também se deve reafirmar os valores pelos quais nossa sociedade é edificada.
3. A multiplicação dos direitos
conduz a destruição do próprio direito, um dos valores máximos da sociedade
ocidental; e como o direito é um dos fundamentos da sociedade, a destruição do
mesmo, ocasiona em crise na sociedade; a multiplicação dos direitos, que
destroem a dignidade humana, é a valoração do direito de alguns em detrimento
do direito natural imutável, comum a todos os homens; e uma sociedade onde o
direito de alguns é deificado, torna-se uma sociedade que não cresce e nem se
desenvolve. É princípio primeiro do desenvolvimento, que os fundamentos da
sociedade ocidental, a filosofia grega, a religião cristã e o direito romano,
estejam bem fortalecidos e edificados; e no caso do direito, quando da tirania
dos direitos, estes acabam por sufocar e asfixiar o próprio Direito.
4. Assim, antes de tudo, é
necessário investigar o que é o Direito, para então se entender a aporia em
torno da deificação dos “direitos”; o Direito é fundamento a partir da
natureza, sob a reta razão; portanto, o Direito é naturalmente e racionalmente
estabelecido; pela natureza, o que demonstra a imutabilidade da base do
Direito; pela reta razão, que testemunha a veracidade e a importância do
próprio Direito. Cícero, ao elucubrar sobre o direito presente na vida dos
seres humanos, e comum a todos, assevera com singulares palavras: “A razão
reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja
voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus
mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem
fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em
parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem
pelo senado; não há que procurar para ela outro comentador nem intérprete; não
é uma lei em Roma e outra em Atenas, – uma antes e outra depois, mas uma,
sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos; uno será
sempre o seu imperador e mestre, que é Deus, seu inventor, sancionador e
publicador, não podendo o homem desconhecê-la sem renegar-se a si mesmo, sem
despojar-se do seu caráter humano”[2].
Que singular expressão de Cícero, que demonstra a base e a razão de ser do
Direito.
5. O Direito, ao existir deste modo,
porque assim estabelecido por Deus para o bem dos homens, se torna um dos
marcos do pensamento humano, um dos cumes mais altos, ao qual a inteligência
subira, um dos monumentos mais efusivos, a qual as potências da inteligência
humana pudera construir; e, é justamente por isso, que as ideologias
carniceiras e diabólicas, tal como o comunismo, querem tanto destruir o
Direito; Marx não se contentara com o direito romano, com o direito hegeliano,
mas quisera construir um direito próprio, um direito comunista, o qual se
tornaria expressão da deificação do próprio Marx como “deus” que
estabelece a realidade legal; o próprio Marx, ao querer ser como “deus”,
afirmar em uma de suas poesias ainda jovem:
“Desde que eu encontrei o mais alto das coisas e as
profundezas delas também,
Rude sou eu como um deus, envolto
pela escuridão como um deus.
Palavras que eu ensino todas
misturadas em uma confusão diabólica,
Assim, qualquer um pode pensar
exatamente o que quiser”[3].
Ou, quando Marx, no prefácio ao
livro “A Diferença entre a Filosofia da Natureza de Demócrito e Epicuro”
(1841), assevera: “Em palavras simples, eu odeio todos os deuses; é sua
própria confissão, seu próprio aforismo contra todos os deuses celestiais e
terrestres que não reconhecem a autoconsciência humana como a mais alta
divindade”[4]; e
entre tantos outros exemplos, onde Marx designa o verdadeiro propósito de seu
pensamento, a saber, se tornar como um “deus” que ordena a natureza a partir de
si mesmo e que ordena a esfera jurídica a partir de si mesmo, o que fica mais
clarividente na “Crítica a filosofia do direito de Hegel” (1843), onde
Marx encontra seu objeto, sua forma de destruição do ordenamento jurídico.
6. Por isso, que se tem avolumado a
ideia de “direitos”, pela influência do marxismo-comunismo; o qual, não para o
bem, mas para a destruição que o marxismo semeia a discórdia dos direitos na
sociedade; e, é por causa disso, que nos últimos decênios tem se estabelecido
uma ditadura dos direitos, os quais são direitos esvoaçados e esclerosados;
fala-se em direitos, mas os direitos que querem são: direito a morte, direito
que não respeita a vida, direito que não respeita a dignidade humana, direito
que não se estabelece a partir do direito natural, e outros direitos infames
que disto provêm; como é o caso dos “supostos” direitos que advogam os arautos
da tirania dos direitos, os quais, eles afirmam e querem, tais como: direito a
aborto, direito a eutanásia, direito a casamento entre pessoas do mesmo sexo;
enfim, todos estes “direitos”, se forem aprovados e tornados juridicamente
aceitáveis, seja por parte dos políticos, seja por parte dos magistrados, são
direitos que corrompem e matam o Direito. E por isso, devem ser veementemente
rejeitados. Direitos que não respeitam a vida, que não respeitam a lei de Deus,
que não respeitam a própria dignidade humana, são direitos que são instrumentos
de Satanás.
7. Direitos tais como esses, não são
direitos, mas são a perversão do próprio Direito; direitos que não respeitam a
vida, que não enobrecem a sociedade e a cultura, mas que esquizofrenizam a
sociedade e matam a cultura; tudo o que não enobrece a sociedade e não respeita
a dignidade humana é infame; e, “são infames as seguintes coisas: tudo
quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio,
aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da
pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as
tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a
dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões
arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de
mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho; em que os
operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas
livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes;
ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que
assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a
honra devida ao Criador”[5].
8. Pois, esta panorama, já alertado
pelo Concílio Vaticano II, ainda está presente; por isso, João Paulo II, certa
feira afirmara: “Infelizmente, este panorama inquietante, longe de diminuir,
tem vindo a dilatar-se: com as perspectivas abertas pelo progresso científico e
tecnológico, nascem outras formas de atentados à dignidade do ser humano,
enquanto se delineia e consolida uma nova situação cultural que dá aos crimes
contra a vida um aspecto inédito e — se é possível — ainda mais iníquo,
suscitando novas e graves preocupações: amplos sectores da opinião pública
justificam alguns crimes contra a vida em nome dos direitos da liberdade
individual e, sobre tal pressuposto, pretendem não só a sua impunidade mas
ainda a própria autorização da parte do Estado para os praticar com absoluta
liberdade e, mais, com a colaboração gratuita dos Serviços de Saúde”[6].
9. E, recentemente, um destes
supostos direitos fora aprovado por vós do parlamento, a saber, aquilo que se
tem chamado “direito a eutanásia”, o chamado “direito” a morte boa (εὐθάνατος);
e é de se ensimesmar, como que um dito “direito” pode se colocar a favor da
morte. Não existe morte boa; a vida, mesmo que em dificuldade, é boa; mas a
morte não. Por isso, a eutanásia é algo infame e hórrido; não se pode existir
uma morte que seja boa, muito menos um “direito” que sirva de capacho à morte
dita boa. O bem, enquanto transcendental da vida humana, jamais serve a
ditadura da morte; mas somente como qualificativo da vida. Só existe o bem,
onde existe a vida; e onde há o respeito inviolável a vida; onde há eutanásia
não há o bem; onde há o aborto não há o bem.
10. E por isso, é sempre bom
reafirmarmos, “com toda a firmeza, que nada ou ninguém pode autorizar a que
se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou embrião, criança ou
adulto, velho, doente incurável ou agonizante. E também a ninguém é permitido
requerer este gesto homicida para si ou para um outro confiado à sua
responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou implicitamente. Não há
autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir. Trata-se, com
efeito, de uma violação da lei divina, de uma ofensa à dignidade da pessoa
humana, de um crime contra a vida e de um atentado contra a humanidade”[7].
11. Aqueles que advogam os direitos,
querem a eutanásia; dizem que as pessoas agonizantes e/ou em estado de doenças
graves, ou ainda, aquelas que estão em estado terminal, ou as pessoas que são
deficientes, tem o suposto “direito” a uma morte boa, a uma morte suave; mas,
permitir que alguém invoque a morte para si, seja sob o epíteto de “morte boa”,
é o mesmo que valorar e valorizar um homicídio; e se não há justiça e nem o
direito onde há permissão de assassinato, como pode haver justiça e direito
onde há permissão da eutanásia; são a mesma coisa: um assassinato por maldade,
a outra por suposta bondade; assassinato é assassinato, e nenhum bem advêm de
um assassinato, o que é condenado na lei de Deus, pelo sexto mandamento: “Não
matarás” (Êx 20.13); aliás, o próprio Direito per se, sendo sustentáculo
da justiça, tem nesta virtude que ordena ao bem, a base de sua existência;
portanto, onde há justiça há o bem; e tudo o que valora a vida e protege a
natureza, é um bem; portanto, onde há a proteção da vida existe o Direito. E a
eutanásia não é um bem, porque é instrumento da morte; e como a eutanásia não é
bem, logo, onde há eutanásia, não existe o bem, e, portanto, onde há eutanásia
não há justiça.
Já Agostinho asseverara que toda
morte infligida sobre outrem é um homicídio, mesmo que alguém peça isso, ou
queira isso, seja por qual suplicio pessoal for, como no é proposto pelos
defensores da eutanásia; diz o doctor gratiae: “Com essas mortes
furiosas que alguns deles infligem, eles são geralmente detestáveis e
abomináveis até mesmo para muitos deles, cujas mentes não caíram tão longe na
loucura. Já vos respondi, segundo as Escrituras e os princípios cristãos, que
está escrito: Quem é mau para si mesmo, para quem será bom? (Eclo. 14.5).
Aqueles que acreditam que podem e devem se matar, acreditarão que também podem
matar o próximo se ele quiser morrer e se encontrar nas mesmas provações... Mas
o Livro dos Reis mostra bastante que, sem a autorização das leis ou do poder
legítimo, não é lícito matar outrem, mesmo que ele o peça e queira e não possa
mais viver... Quem, sem qualquer autoridade de poder legítimo, mata um homem é
um assassino. Portanto, quem se mata também é assassino, a não ser que não seja
humano”[8].
Logo, quem pratica eutanásia também é homicida, também é assassino.
12. Por isso, a permissão da
Eutanásia é a destruição da justiça, para qual todos os seres humanos nasceram,
e a destruição do direito, estabelecido pela natureza e comum a todos os
homens; já Cícero asseverara, se “nada é mais excelente do que compreender
claramente que nascemos para a justiça, e que o direito não é estabelecido pela
opinião, mas pela natureza”[9],
então, tudo aquilo que destrói a justiça e que mortifica o direito, retira a
excelência natural da vida humana e o vigor natural propício para o
desenvolvimento. Pois, quem compreende a justiça e compreende o direito, sabe
que a eutanásia é tanto contra a justiça quanto contra o direito; a eutanásia é
a violação do direito imbuído intrinsecamente pela natureza; a eutanásia é a
destruição da vida; e por isso, corrompe o tender natural do ser humano para a
justiça.
13. Além disso, a eutanásia é um dos
pecados que brandam ao céu, pois, “Deus não pode deixar impune o crime: da
terra onde foi derramado, o sangue da vítima exige que Ele faça justiça (cf. Gn
37.26; Is 26.21; Ez 24.7-8). Deste texto, a Igreja retirou a denominação de
«pecados que bradam ao Céu», incluindo em primeiro lugar o homicídio voluntário”[10].
E a eutanásia, apesar de asseverar ser uma morte boa, é um homicídio, é um
pecado que branda ao céu; pois, “sejam quais forem os motivos e os meios, a
eutanásia direta consiste em pôr fim à vida de pessoas deficientes, doentes ou
moribundas. Ela é moralmente inadmissível. Assim, uma ação ou uma omissão que,
em si ou na intenção, gera a morte, a fim de suprimir a dor constitui um
assassinato gravemente contrário à dignidade da pessoa humana e ao respeito
pelo Deus vivo, seu Criador. O erro do juízo no qual se pode ter caído de
boa-fé não muda a natureza deste ato assassino, que sempre deve ser condenado e
excluído”[11].
14. O sofrimento humano, mistério
singular da existência neste mundo, traz uma série de questionamentos; desde a
pergunta sobre a existência de Deus, até a legitimidade de tais práticas como a
eutanásia; tais questionamentos são comuns a todos os homens, sejam eles de fé
ou não; mas, tais questionamentos não outorgam o direito de se violar o bem
máximo, a vida; tais questionamentos demonstram a contingência e a finitude
humana, mas não são permissão para violar o direito mais fundamental e o
direito inconcusso de todos os seres humanos, a saber, o direito à vida; a
própria Declaração Universal dos Direitos Humanos confirma isso: “Todo
indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”[12].
E a Constituição da República Portuguesa confirma-se diante deste fato atestado
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao afirmar: “Os preceitos
constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser
interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos
do Homem”[13].
15. E o sofrimento, pode as vezes
causar desespero, e até levar alguém a pensar que pode pedir a morte ou dá-la a
si, ou incentivá-la a algum outro; já que, “pode acontecer que dores
prolongadas e insuportáveis, razões de ordem afetiva ou vários outros motivos,
levem alguém a julgar que pode legitimamente pedir a morte para si ou dá-la a
outros. Embora em tais casos a responsabilidade possa ficar atenuada ou até não
existir, o erro de juízo da consciência — mesmo de boa fé — não modifica a
natureza deste gesto homicida que, em si, permanece sempre inaceitável. As
súplicas dos doentes muito graves que, por vezes, pedem a morte, não devem ser
compreendidas como expressão duma verdadeira vontade de eutanásia; nestes casos
são quase sempre pedidos angustiados de ajuda e de afeto. Para além dos
cuidados médicos, aquilo de que o doente tem necessidade é de amor, de calor
humano e sobrenatural, que podem e devem dar-lhe todos os que o rodeiam, pais e
filhos, médicos e enfermeiros”[14].
16. Por isso, diante do sofrimento,
diante das doenças, ou das deficiências, o cuidado é sempre o caminho mais
justo, e a caridade, a virtude a ser demonstrada: “Aqueles cuja vida está
diminuída ou enfraquecida necessitam de especial respeito. As pessoas doentes
ou deficientes devem ser amparadas, para levarem uma vida tão normal quanto
possível”[15].
O cuidado, a caridade, o amor para com aqueles que estão doentes, ou são
deficientes, é o caminho correto, o único caminho, e não a eutanásia; o
respeito para com a vida, a valoração da dignidade humana, só existe no cuidado
e na caridade, principalmente para com aqueles que mais precisam, ou seja,
aqueles que estão mais doentes e as pessoas com deficiência. O valor e a
dignidade do próximo são entendidas a medida que se entende o valor e a
dignidade pessoal, como ser humano criado a imagem de Deus; se a própria pessoa
entende a dignidade que lhe é intrínseca, saberá entender a dignidade de seu
próximo, mesmo que seja uma pessoa doente, ou deficiente; pois a doença ou a
deficiência não tira a dignidade de ninguém, é apenas uma questão, entre tantas
outras, que assolam a vida humana, mas que também demonstram a dignidade
inalienável com a qual os seres humano existe, vivem e se movimentam.
17. Mas, diante do sofrimento
humano, muitos indagam, se não se pode utilizar-se dos mecanismos medicinais e
da biomedicina para tirar o sofrimento de alguém, para impor uma morte que
“parece” ser mais justa, porque é dita que é boa; pois, diante do sofrimento
humano, está posta a questão do extraordinário desenvolvimento científico, que
muitos consideram um aporte para a morte boa; na verdade, o desenvolvimento
científico e medicinal, constitui-se um benefício outorgado por Deus a
humanidade, para que a vida seja preservada e melhorada, não para que a mesma
seja destruída; a carta Samaritanus Bonus orienta a este respeito: “O
extraordinário e progressivo desenvolvimento das tecnologias biomédicas
aumentou de maneira exponencial as capacidades clínicas da medicina no
diagnóstico, na terapia e no cuidado dos pacientes. A Igreja olha com esperança
as pesquisas científicas e tecnológicas e nelas vê uma oportunidade favorável
de serviço ao bem integral da vida e da dignidade de cada ser humano. Todavia,
esses progressos da tecnologia médica, ainda que preciosos, não são por si
mesmos determinantes para qualificar o sentido próprio e o valor da vida
humana. De fato, cada progresso nas habilidades dos profissionais da saúde
requer uma crescente e sábia capacidade de discernimento moral para evitar a
utilização desproporcional e desumanizante das tecnologias, sobretudo nas fases
críticas ou terminais da vida humana”[16].
Ou seja, o progresso da tecnologia e da ciência, não é motivo para se permitir
a eutanásia; na verdade, é motivo ainda maior, para se valorizar e proclamar em
ecos cósmicos a dignidade da vida.
18. Portanto, mesmo diante do
efusivo e singular desenvolvimento científico, a vida humana, a dignidade
humana devem ser protegidas; a Constituição Portuguesa confirma isso quando
diz: “A vida humana é inviolável”[17].
Portanto, no próprio ordenamento jurídico português, bem como em vossa história
constitucional, a dignidade primeira e absoluta da vida é protegida; deste
modo, em vosso princípio constitucional a vida não pode ser violada; e assombra
que a eutanásia tenha sido permitida entre vós; não somente porque a eutanásia
viola e destrói o Direito, mas porque também a aprovação da eutanásia viola e
desfigura a vossa Constituição; quando a Constituição da República Portuguesa
assevera que a vida é inviolável, confirma e atesta a plena existência do
Direito, e o respeito para com a Religião Cristã, donde advêm o dogma do valor
incomparável da pessoa humana. As palavras de João XXIII ressoam novamente: “A
vida humana é sagrada: mesmo a partir da sua origem, ela exige a intervenção
direta da ação criadora de Deus. Quem viola as leis da vida, ofende a Divina
Majestade, degrada-se a si e ao gênero humano, e enfraquece a comunidade de que
é membro”[18].
19. E sobre o valor incomparável da
pessoa humana, já João Paulo II também asseverara: “O homem é chamado a uma
plenitude de vida que se estende muito para além das dimensões da sua
existência terrena, porque consiste na participação da própria vida de Deus. A
sublimidade desta vocação... revela a grandeza e o valor precioso da vida
humana, inclusive já na sua fase temporal. Com efeito, a vida temporal é
condição basilar, momento inicial e parte integrante do processo global e
unitário da existência humana: um processo que, para além de toda a expectativa
e merecimento, fica iluminado pela promessa e renovado pelo dom da vida divina,
que alcançará a sua plena realização na eternidade (cf. 1 Jo 3.1-2) [...] Na
verdade, esta vida não é realidade «última», mas «penúltima»; trata-se, em todo
o caso, de uma realidade sagrada que nos é confiada para a guardarmos com
sentido de responsabilidade”[19].
20. E a Constituição da República
Portuguesa conforma-se a ideia do valor incomparável da vida humana, mesmo
diante de todas as tecnologias e diante do desenvolvimento científico, pois
afirma: “A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser
humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e
na experimentação científica”[20].
A garantia que a Constituição assevera, mesmo diante dos crescentes e valorosos
desenvolvimentos científicos, está na proteção da dignidade inviolável da vida;
o que não somente vossa lei assevera, mas que o próprio direito natural, comum
a todos os homens, também assevera. Pois, vossa Constituição, também é calcada
sob a base do Direito Natural, o que tem de ser respeitado, se se quer
realmente obedecer e cumprir a vossa Constituição; e, nisto está o respeito
total e pleno para com a inviolabilidade da vida, e, por isso, contra o aborto,
contra a eutanásia ou contra qualquer outra prática infame que viola a vida e
que são pecados que brandam ao céu.
21. O direito natural, é testemunho
contra a eutanásia; pois, o direito natural, antes mesmo dos direitos advogados
pelos destruidores da cultura, existe de maneira a proteger e sublimar a
dignidade humana; e o direito natural, é a base pela qual fora construído o
direito; existe o direito positivo, nas leis criadas pelos homens; mas jamais o
direito positivo pode ser o ordenador absoluto do direito e da lei; a vontade
humana, manifesta pelos costumes, e entendida a salvaguardada através do
direito natural, pode e deve ser regulada e reguladora do direito positivo;
todavia, somente nas coisas que não repugnam ou vilipendiam o direito natural;
pois, quando a vontade humana se estabelece contra, seja por qual motivo for,
ou quando a vontade humana obrar contra a justiça natural, o direito positivo
não pode instituir leis a partir desta, pois serão leis que servirão para
instituir direitos que destroem o Direito.
22. O doctor angelicus afirma
sobre a base reguladora do direito positivo, com as seguintes palavras: “a
vontade humana, a partir de um consentimento comum, pode fazer algo justamente
naquelas que por si mesma não têm qualquer oposição à justiça natural. E a isso
se aplica o direito positivo”[21].
Portanto, o direito positivo, para ser benéfico e instituído sobre os
fundamentos pelos quais deve estar disposto e estabelecido, deve estar
orientado em função do direito natural e da justiça natural, sem as quais, o
direito positivo passa a ser positivismo deificado, sobre o qual, a história
testemunha com horrendas e destruidoras se tornam as sociedades que se deixam
enveredar pela deificação do positivismo e pelo esquecimento do jusnaturalismo.
23. Deste modo, os direitos que se
não se confirmarem à dignidade humana, são direitos destruidores; os direitos,
hão de se abalizar pelo direito natural, o que respeita e atesta os “direitos
do homem”[22];
direitos esses que constituem a ponte, os vínculos entre o temor a Deus, o
pleno respeito a ordem estabelecida por Deus, a valorização da dignidade
humana, o respeito pela inviolabilidade da vida e responsabilidade da vida em
sociedade; por isso, Cícero já falara nos “vincula iuris”[23]
(vínculos do direito); tais vínculos são para demonstrar que o Direito, como
fundamento da sociedade está em vínculo constante, mas estes vínculos existem
em função da vida e para a vida; onde os vincula iuris deixam-se
enveredar pelos caminhos da morte, o próprio Direito deixa de existir; e os
direitos que apregoam a morte, são talhados a partir dos vínculos que destroem
o próprio Direito. Por isso, é a partir do direito natural, que se estabelecem
os verdadeiros direitos, os quais, por sua vez são testemunho inalterável do
próprio direito natural: direito a vida, direito à liberdade, direito a
existência, direito a paz, direito a religião, e todos os direitos que sob o
direito natural são estabelecidos. Sobre isso, João XXIII na encíclica “Pacem
in Terris” afirmara: “Aos direitos naturais acima considerados
vinculam-se, no mesmo sujeito jurídico que é a pessoa humana, os respectivos
deveres. Direitos e deveres encontram na lei natural que os outorga ou impõe, o
seu manancial, a sua consistência, a sua força inquebrantável. Assim, por
exemplo, o direito à existência liga-se ao dever de conservar-se em vida, o
direito a um condigno teor de vida, à obrigação de viver dignamente, o direito
de investigar livremente a verdade, ao dever de buscar um conhecimento da
verdade cada vez mais vasto e profundo”[24].
24. Creio ser esta, prezados
senhores, a diretriz que deveis seguir diante da ditadura dos direitos que não
valoram os direitos naturais intrínsecos ao ser humano, para que a vida seja
preservada e orientada sob os aspectos singulares da reflexão política e
jurídica; para que não se caia novamente nas infâmias veredas da eutanásia, do
aborto, e destes direitos mortíferos que rondam a sociedade. Pois, por este
caminho, honrareis e dignificareis a vossa função pública, mas para que podeis
dizer ao fim da vida, com a consciência tranquila e sóbria, de que o grande
feito que fizeram fora preservar a vida e mantê-la inviolável.
Esta é, senhores, uma das maiores
glórias que podeis atingir enquanto exerceis a função pública; e é o testemunho
mais eficaz que podeis dar enquanto parte de um governo; pois, como já dissera
Thomas Jefferson, polímata e terceiro presidente dos EUA: “Consideramos
essas verdades auto-evidentes, que os homens são criados iguais, que são
dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão
a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade. Que para garantir esses direitos,
os governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do
consentimento dos governados. Que sempre que qualquer forma de governo se torne
destrutiva desses fins, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir um
novo governo, baseando-se em tais princípios e organizando seus poderes da
forma que lhes for mais conveniente, para realizar sua segurança e felicidade”[25].
25. Que este seja o vosso lema e o
vosso maior ideal enquanto parte de um governo, e enquanto instrumentos para
velar pelo bem da coisa pública. A nossa paz, a vivência social, o
desenvolvimento cultural, o fortalecimento perante o mundo calcados sobre a
nossa história, passa pelo respeito absoluto para com a vida. A nossa paz e a
nossa vida dependem disso: “A paz na terra, anseio profundo de todos os
homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no
pleno respeito da ordem instituída por Deus”[26].
E o pleno respeito a ordem instituída por Deus inicia-se com o respeito pela
inviolabilidade da vida. Este é, prezados senhores, o princípio fundamental
pelo qual se devem orientar vossas ações, principalmente no tocante ao respeito
pela vida.
Que o Deus da Vida possa abençoar os senhores, e conceder-lhes sabedoria no exercício de vossa função.
* Este texto fora enviado ao Parlamento Português devido a este ter aprovado a prática da eutanásia.
[1]
Bento XVI, Liberar a Liberdade: Fé e Política no Terceiro Milênio [São Paulo:
Paulus, 2019], pág. 15.
[2]
Cícero, Da República, III, 17.
[3]
Karl Marx e Friedrich Engels, Marx-Engels Collected Works Vol. 1: Marx -
1835-1843, pág. 576.
[4]
Ibidem. Pág. 30.
[5]
Gaudium et Spes, § 27.
[6]
João Paulo II, Evangelium Vitae, § 4.
[7]
Declaração sobre a Eutanásia, Documento da Congregação para a Doutrina
da Fé, § 2.
[8]
Agostinho, Epístola 204, n. 5, In: PL 33, pág. 910.
[9]
Cícero, De Legibus, I, 28.
[10]
João Paulo II, Evangelium Vitae, § 9.
[11]
Catecismo da Igreja Católica, § 2277.
[12]
Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 3.
[13]
Constituição da República Portuguesa, t. I, Art. 16, § 2.
[14]
Declaração sobre a Eutanásia, Congregação para a Doutrina da Fé, § 2.
[15]
Catecismo da Igreja Católica, § 2276.
[16]
Samaritanus Bonus, Congregação para a Doutrina da Fé, introd.
[17]
Constituição da República Portuguesa, t. II, cap. I, Art. 24, § 1.
[18]
João XXIII, Mater et Magistra, § 193.
[19]
João Paulo II, Evangelium Vitae, § 2.
[20]
Constituição da República Portuguesa, t. II, cap. I, Art. 26, § 3.
[21]
Tomás de Aquino, Summa Theologiae, IIa IIae, q. 57, a. 2, ad. 2.
[22]
João XXIII, Pacem in Terris, § 11.
[23]
Cícero, De Finibus, III, 67.
[24] João XXIII, Pacem in Terris,
§ 28-29.
[25] Paul Leicester Ford (ed.), The
Works of Thomas Jefferson Vol. 2: 1771-1779 [New York and London: G. P.
Putnam’s Sons, 1904], pág. 200ss.
[26]
João XXIII, Pacem in Terris, § 1.
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