26/05/2023

O Respeito pela Vida, o Direito e a Política - Carta Atenagórica*

1. Ao se avolumar constantemente as crises e tensões da contemporaneidade, somos sempre chamados a testemunhar com vigor das nossas convicções e crenças; e diante, da dissolução do direito na vida pública, dissolvido e desfigurado pela tirania dos direitos, não somente políticos, magistrados, juristas, filósofos, e outros, são chamados a falar e a contemplar tais assuntos; os teólogos também o são; e o são ainda mais, pois, diante da desfiguração de um pilar da sociedade ocidental, a teologia, rainha das ciências, deve ser o sustentáculo para que tal crise seja identificada e solucionada. E, eis-me aqui, como um simples e jovem teólogo, a falar sobre este assunto, e a testemunhar a Verdade Eterna, sob os auspícios da regina scientiarum (rainha das ciências). Que o Espírito Santo nos conduza!

2. Uma das crises mais agudas a qual a sociedade enfrenta é a multiplicação dos direitos; já Bento XVI alertara: “A multiplicação dos direitos conduz por último, à destruição da ideia de direito[1]. E não é de se assustar que as sociedades religiosas, as sociedades que são cristãs, defrontem-se com este problema no estamento do Estado; o Estado é laico, e todos muito bem sabem disso, mas a sociedade não é; e conquanto se deva respeitar a liberdade de todos, dádiva outorgada por Deus aos homens, e fundamento inalienável e imutável da vida humana e da convivência em sociedade, também se deve reafirmar os valores pelos quais nossa sociedade é edificada.

3. A multiplicação dos direitos conduz a destruição do próprio direito, um dos valores máximos da sociedade ocidental; e como o direito é um dos fundamentos da sociedade, a destruição do mesmo, ocasiona em crise na sociedade; a multiplicação dos direitos, que destroem a dignidade humana, é a valoração do direito de alguns em detrimento do direito natural imutável, comum a todos os homens; e uma sociedade onde o direito de alguns é deificado, torna-se uma sociedade que não cresce e nem se desenvolve. É princípio primeiro do desenvolvimento, que os fundamentos da sociedade ocidental, a filosofia grega, a religião cristã e o direito romano, estejam bem fortalecidos e edificados; e no caso do direito, quando da tirania dos direitos, estes acabam por sufocar e asfixiar o próprio Direito.

4. Assim, antes de tudo, é necessário investigar o que é o Direito, para então se entender a aporia em torno da deificação dos “direitos”; o Direito é fundamento a partir da natureza, sob a reta razão; portanto, o Direito é naturalmente e racionalmente estabelecido; pela natureza, o que demonstra a imutabilidade da base do Direito; pela reta razão, que testemunha a veracidade e a importância do próprio Direito. Cícero, ao elucubrar sobre o direito presente na vida dos seres humanos, e comum a todos, assevera com singulares palavras: “A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado; não há que procurar para ela outro comentador nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, – uma antes e outra depois, mas uma, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos; uno será sempre o seu imperador e mestre, que é Deus, seu inventor, sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-la sem renegar-se a si mesmo, sem despojar-se do seu caráter humano[2]. Que singular expressão de Cícero, que demonstra a base e a razão de ser do Direito.

5. O Direito, ao existir deste modo, porque assim estabelecido por Deus para o bem dos homens, se torna um dos marcos do pensamento humano, um dos cumes mais altos, ao qual a inteligência subira, um dos monumentos mais efusivos, a qual as potências da inteligência humana pudera construir; e, é justamente por isso, que as ideologias carniceiras e diabólicas, tal como o comunismo, querem tanto destruir o Direito; Marx não se contentara com o direito romano, com o direito hegeliano, mas quisera construir um direito próprio, um direito comunista, o qual se tornaria expressão da deificação do próprio Marx como “deus” que estabelece a realidade legal; o próprio Marx, ao querer ser como “deus”, afirmar em uma de suas poesias ainda jovem:

Desde que eu encontrei o mais alto das coisas e as profundezas delas também,

Rude sou eu como um deus, envolto pela escuridão como um deus.

Palavras que eu ensino todas misturadas em uma confusão diabólica,

Assim, qualquer um pode pensar exatamente o que quiser[3].

Ou, quando Marx, no prefácio ao livro “A Diferença entre a Filosofia da Natureza de Demócrito e Epicuro” (1841), assevera: “Em palavras simples, eu odeio todos os deuses; é sua própria confissão, seu próprio aforismo contra todos os deuses celestiais e terrestres que não reconhecem a autoconsciência humana como a mais alta divindade[4]; e entre tantos outros exemplos, onde Marx designa o verdadeiro propósito de seu pensamento, a saber, se tornar como um “deus” que ordena a natureza a partir de si mesmo e que ordena a esfera jurídica a partir de si mesmo, o que fica mais clarividente na “Crítica a filosofia do direito de Hegel” (1843), onde Marx encontra seu objeto, sua forma de destruição do ordenamento jurídico.

6. Por isso, que se tem avolumado a ideia de “direitos”, pela influência do marxismo-comunismo; o qual, não para o bem, mas para a destruição que o marxismo semeia a discórdia dos direitos na sociedade; e, é por causa disso, que nos últimos decênios tem se estabelecido uma ditadura dos direitos, os quais são direitos esvoaçados e esclerosados; fala-se em direitos, mas os direitos que querem são: direito a morte, direito que não respeita a vida, direito que não respeita a dignidade humana, direito que não se estabelece a partir do direito natural, e outros direitos infames que disto provêm; como é o caso dos “supostos” direitos que advogam os arautos da tirania dos direitos, os quais, eles afirmam e querem, tais como: direito a aborto, direito a eutanásia, direito a casamento entre pessoas do mesmo sexo; enfim, todos estes “direitos”, se forem aprovados e tornados juridicamente aceitáveis, seja por parte dos políticos, seja por parte dos magistrados, são direitos que corrompem e matam o Direito. E por isso, devem ser veementemente rejeitados. Direitos que não respeitam a vida, que não respeitam a lei de Deus, que não respeitam a própria dignidade humana, são direitos que são instrumentos de Satanás.

7. Direitos tais como esses, não são direitos, mas são a perversão do próprio Direito; direitos que não respeitam a vida, que não enobrecem a sociedade e a cultura, mas que esquizofrenizam a sociedade e matam a cultura; tudo o que não enobrece a sociedade e não respeita a dignidade humana é infame; e, “são infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho; em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador[5].

8. Pois, esta panorama, já alertado pelo Concílio Vaticano II, ainda está presente; por isso, João Paulo II, certa feira afirmara: “Infelizmente, este panorama inquietante, longe de diminuir, tem vindo a dilatar-se: com as perspectivas abertas pelo progresso científico e tecnológico, nascem outras formas de atentados à dignidade do ser humano, enquanto se delineia e consolida uma nova situação cultural que dá aos crimes contra a vida um aspecto inédito e — se é possível — ainda mais iníquo, suscitando novas e graves preocupações: amplos sectores da opinião pública justificam alguns crimes contra a vida em nome dos direitos da liberdade individual e, sobre tal pressuposto, pretendem não só a sua impunidade mas ainda a própria autorização da parte do Estado para os praticar com absoluta liberdade e, mais, com a colaboração gratuita dos Serviços de Saúde[6].

9. E, recentemente, um destes supostos direitos fora aprovado por vós do parlamento, a saber, aquilo que se tem chamado “direito a eutanásia”, o chamado “direito” a morte boa (εὐθάνατος); e é de se ensimesmar, como que um dito “direito” pode se colocar a favor da morte. Não existe morte boa; a vida, mesmo que em dificuldade, é boa; mas a morte não. Por isso, a eutanásia é algo infame e hórrido; não se pode existir uma morte que seja boa, muito menos um “direito” que sirva de capacho à morte dita boa. O bem, enquanto transcendental da vida humana, jamais serve a ditadura da morte; mas somente como qualificativo da vida. Só existe o bem, onde existe a vida; e onde há o respeito inviolável a vida; onde há eutanásia não há o bem; onde há o aborto não há o bem.

10. E por isso, é sempre bom reafirmarmos, “com toda a firmeza, que nada ou ninguém pode autorizar a que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante. E também a ninguém é permitido requerer este gesto homicida para si ou para um outro confiado à sua responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou implicitamente. Não há autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir. Trata-se, com efeito, de uma violação da lei divina, de uma ofensa à dignidade da pessoa humana, de um crime contra a vida e de um atentado contra a humanidade[7].

11. Aqueles que advogam os direitos, querem a eutanásia; dizem que as pessoas agonizantes e/ou em estado de doenças graves, ou ainda, aquelas que estão em estado terminal, ou as pessoas que são deficientes, tem o suposto “direito” a uma morte boa, a uma morte suave; mas, permitir que alguém invoque a morte para si, seja sob o epíteto de “morte boa”, é o mesmo que valorar e valorizar um homicídio; e se não há justiça e nem o direito onde há permissão de assassinato, como pode haver justiça e direito onde há permissão da eutanásia; são a mesma coisa: um assassinato por maldade, a outra por suposta bondade; assassinato é assassinato, e nenhum bem advêm de um assassinato, o que é condenado na lei de Deus, pelo sexto mandamento: “Não matarás” (Êx 20.13); aliás, o próprio Direito per se, sendo sustentáculo da justiça, tem nesta virtude que ordena ao bem, a base de sua existência; portanto, onde há justiça há o bem; e tudo o que valora a vida e protege a natureza, é um bem; portanto, onde há a proteção da vida existe o Direito. E a eutanásia não é um bem, porque é instrumento da morte; e como a eutanásia não é bem, logo, onde há eutanásia, não existe o bem, e, portanto, onde há eutanásia não há justiça.

Já Agostinho asseverara que toda morte infligida sobre outrem é um homicídio, mesmo que alguém peça isso, ou queira isso, seja por qual suplicio pessoal for, como no é proposto pelos defensores da eutanásia; diz o doctor gratiae: “Com essas mortes furiosas que alguns deles infligem, eles são geralmente detestáveis e abomináveis até mesmo para muitos deles, cujas mentes não caíram tão longe na loucura. Já vos respondi, segundo as Escrituras e os princípios cristãos, que está escrito: Quem é mau para si mesmo, para quem será bom? (Eclo. 14.5). Aqueles que acreditam que podem e devem se matar, acreditarão que também podem matar o próximo se ele quiser morrer e se encontrar nas mesmas provações... Mas o Livro dos Reis mostra bastante que, sem a autorização das leis ou do poder legítimo, não é lícito matar outrem, mesmo que ele o peça e queira e não possa mais viver... Quem, sem qualquer autoridade de poder legítimo, mata um homem é um assassino. Portanto, quem se mata também é assassino, a não ser que não seja humano[8]. Logo, quem pratica eutanásia também é homicida, também é assassino.

12. Por isso, a permissão da Eutanásia é a destruição da justiça, para qual todos os seres humanos nasceram, e a destruição do direito, estabelecido pela natureza e comum a todos os homens; já Cícero asseverara, se “nada é mais excelente do que compreender claramente que nascemos para a justiça, e que o direito não é estabelecido pela opinião, mas pela natureza[9], então, tudo aquilo que destrói a justiça e que mortifica o direito, retira a excelência natural da vida humana e o vigor natural propício para o desenvolvimento. Pois, quem compreende a justiça e compreende o direito, sabe que a eutanásia é tanto contra a justiça quanto contra o direito; a eutanásia é a violação do direito imbuído intrinsecamente pela natureza; a eutanásia é a destruição da vida; e por isso, corrompe o tender natural do ser humano para a justiça.

13. Além disso, a eutanásia é um dos pecados que brandam ao céu, pois, “Deus não pode deixar impune o crime: da terra onde foi derramado, o sangue da vítima exige que Ele faça justiça (cf. Gn 37.26; Is 26.21; Ez 24.7-8). Deste texto, a Igreja retirou a denominação de «pecados que bradam ao Céu», incluindo em primeiro lugar o homicídio voluntário[10]. E a eutanásia, apesar de asseverar ser uma morte boa, é um homicídio, é um pecado que branda ao céu; pois, “sejam quais forem os motivos e os meios, a eutanásia direta consiste em pôr fim à vida de pessoas deficientes, doentes ou moribundas. Ela é moralmente inadmissível. Assim, uma ação ou uma omissão que, em si ou na intenção, gera a morte, a fim de suprimir a dor constitui um assassinato gravemente contrário à dignidade da pessoa humana e ao respeito pelo Deus vivo, seu Criador. O erro do juízo no qual se pode ter caído de boa-fé não muda a natureza deste ato assassino, que sempre deve ser condenado e excluído[11].

14. O sofrimento humano, mistério singular da existência neste mundo, traz uma série de questionamentos; desde a pergunta sobre a existência de Deus, até a legitimidade de tais práticas como a eutanásia; tais questionamentos são comuns a todos os homens, sejam eles de fé ou não; mas, tais questionamentos não outorgam o direito de se violar o bem máximo, a vida; tais questionamentos demonstram a contingência e a finitude humana, mas não são permissão para violar o direito mais fundamental e o direito inconcusso de todos os seres humanos, a saber, o direito à vida; a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos confirma isso: “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal[12]. E a Constituição da República Portuguesa confirma-se diante deste fato atestado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao afirmar: “Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem[13].

15. E o sofrimento, pode as vezes causar desespero, e até levar alguém a pensar que pode pedir a morte ou dá-la a si, ou incentivá-la a algum outro; já que, “pode acontecer que dores prolongadas e insuportáveis, razões de ordem afetiva ou vários outros motivos, levem alguém a julgar que pode legitimamente pedir a morte para si ou dá-la a outros. Embora em tais casos a responsabilidade possa ficar atenuada ou até não existir, o erro de juízo da consciência — mesmo de boa fé — não modifica a natureza deste gesto homicida que, em si, permanece sempre inaceitável. As súplicas dos doentes muito graves que, por vezes, pedem a morte, não devem ser compreendidas como expressão duma verdadeira vontade de eutanásia; nestes casos são quase sempre pedidos angustiados de ajuda e de afeto. Para além dos cuidados médicos, aquilo de que o doente tem necessidade é de amor, de calor humano e sobrenatural, que podem e devem dar-lhe todos os que o rodeiam, pais e filhos, médicos e enfermeiros[14].

16. Por isso, diante do sofrimento, diante das doenças, ou das deficiências, o cuidado é sempre o caminho mais justo, e a caridade, a virtude a ser demonstrada: “Aqueles cuja vida está diminuída ou enfraquecida necessitam de especial respeito. As pessoas doentes ou deficientes devem ser amparadas, para levarem uma vida tão normal quanto possível[15]. O cuidado, a caridade, o amor para com aqueles que estão doentes, ou são deficientes, é o caminho correto, o único caminho, e não a eutanásia; o respeito para com a vida, a valoração da dignidade humana, só existe no cuidado e na caridade, principalmente para com aqueles que mais precisam, ou seja, aqueles que estão mais doentes e as pessoas com deficiência. O valor e a dignidade do próximo são entendidas a medida que se entende o valor e a dignidade pessoal, como ser humano criado a imagem de Deus; se a própria pessoa entende a dignidade que lhe é intrínseca, saberá entender a dignidade de seu próximo, mesmo que seja uma pessoa doente, ou deficiente; pois a doença ou a deficiência não tira a dignidade de ninguém, é apenas uma questão, entre tantas outras, que assolam a vida humana, mas que também demonstram a dignidade inalienável com a qual os seres humano existe, vivem e se movimentam.

17. Mas, diante do sofrimento humano, muitos indagam, se não se pode utilizar-se dos mecanismos medicinais e da biomedicina para tirar o sofrimento de alguém, para impor uma morte que “parece” ser mais justa, porque é dita que é boa; pois, diante do sofrimento humano, está posta a questão do extraordinário desenvolvimento científico, que muitos consideram um aporte para a morte boa; na verdade, o desenvolvimento científico e medicinal, constitui-se um benefício outorgado por Deus a humanidade, para que a vida seja preservada e melhorada, não para que a mesma seja destruída; a carta Samaritanus Bonus orienta a este respeito: “O extraordinário e progressivo desenvolvimento das tecnologias biomédicas aumentou de maneira exponencial as capacidades clínicas da medicina no diagnóstico, na terapia e no cuidado dos pacientes. A Igreja olha com esperança as pesquisas científicas e tecnológicas e nelas vê uma oportunidade favorável de serviço ao bem integral da vida e da dignidade de cada ser humano. Todavia, esses progressos da tecnologia médica, ainda que preciosos, não são por si mesmos determinantes para qualificar o sentido próprio e o valor da vida humana. De fato, cada progresso nas habilidades dos profissionais da saúde requer uma crescente e sábia capacidade de discernimento moral para evitar a utilização desproporcional e desumanizante das tecnologias, sobretudo nas fases críticas ou terminais da vida humana[16]. Ou seja, o progresso da tecnologia e da ciência, não é motivo para se permitir a eutanásia; na verdade, é motivo ainda maior, para se valorizar e proclamar em ecos cósmicos a dignidade da vida.

18. Portanto, mesmo diante do efusivo e singular desenvolvimento científico, a vida humana, a dignidade humana devem ser protegidas; a Constituição Portuguesa confirma isso quando diz: “A vida humana é inviolável[17]. Portanto, no próprio ordenamento jurídico português, bem como em vossa história constitucional, a dignidade primeira e absoluta da vida é protegida; deste modo, em vosso princípio constitucional a vida não pode ser violada; e assombra que a eutanásia tenha sido permitida entre vós; não somente porque a eutanásia viola e destrói o Direito, mas porque também a aprovação da eutanásia viola e desfigura a vossa Constituição; quando a Constituição da República Portuguesa assevera que a vida é inviolável, confirma e atesta a plena existência do Direito, e o respeito para com a Religião Cristã, donde advêm o dogma do valor incomparável da pessoa humana. As palavras de João XXIII ressoam novamente: “A vida humana é sagrada: mesmo a partir da sua origem, ela exige a intervenção direta da ação criadora de Deus. Quem viola as leis da vida, ofende a Divina Majestade, degrada-se a si e ao gênero humano, e enfraquece a comunidade de que é membro[18].

19. E sobre o valor incomparável da pessoa humana, já João Paulo II também asseverara: “O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para além das dimensões da sua existência terrena, porque consiste na participação da própria vida de Deus. A sublimidade desta vocação... revela a grandeza e o valor precioso da vida humana, inclusive já na sua fase temporal. Com efeito, a vida temporal é condição basilar, momento inicial e parte integrante do processo global e unitário da existência humana: um processo que, para além de toda a expectativa e merecimento, fica iluminado pela promessa e renovado pelo dom da vida divina, que alcançará a sua plena realização na eternidade (cf. 1 Jo 3.1-2) [...] Na verdade, esta vida não é realidade «última», mas «penúltima»; trata-se, em todo o caso, de uma realidade sagrada que nos é confiada para a guardarmos com sentido de responsabilidade[19].

20. E a Constituição da República Portuguesa conforma-se a ideia do valor incomparável da vida humana, mesmo diante de todas as tecnologias e diante do desenvolvimento científico, pois afirma: “A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica[20]. A garantia que a Constituição assevera, mesmo diante dos crescentes e valorosos desenvolvimentos científicos, está na proteção da dignidade inviolável da vida; o que não somente vossa lei assevera, mas que o próprio direito natural, comum a todos os homens, também assevera. Pois, vossa Constituição, também é calcada sob a base do Direito Natural, o que tem de ser respeitado, se se quer realmente obedecer e cumprir a vossa Constituição; e, nisto está o respeito total e pleno para com a inviolabilidade da vida, e, por isso, contra o aborto, contra a eutanásia ou contra qualquer outra prática infame que viola a vida e que são pecados que brandam ao céu.

21. O direito natural, é testemunho contra a eutanásia; pois, o direito natural, antes mesmo dos direitos advogados pelos destruidores da cultura, existe de maneira a proteger e sublimar a dignidade humana; e o direito natural, é a base pela qual fora construído o direito; existe o direito positivo, nas leis criadas pelos homens; mas jamais o direito positivo pode ser o ordenador absoluto do direito e da lei; a vontade humana, manifesta pelos costumes, e entendida a salvaguardada através do direito natural, pode e deve ser regulada e reguladora do direito positivo; todavia, somente nas coisas que não repugnam ou vilipendiam o direito natural; pois, quando a vontade humana se estabelece contra, seja por qual motivo for, ou quando a vontade humana obrar contra a justiça natural, o direito positivo não pode instituir leis a partir desta, pois serão leis que servirão para instituir direitos que destroem o Direito.

22. O doctor angelicus afirma sobre a base reguladora do direito positivo, com as seguintes palavras: “a vontade humana, a partir de um consentimento comum, pode fazer algo justamente naquelas que por si mesma não têm qualquer oposição à justiça natural. E a isso se aplica o direito positivo[21]. Portanto, o direito positivo, para ser benéfico e instituído sobre os fundamentos pelos quais deve estar disposto e estabelecido, deve estar orientado em função do direito natural e da justiça natural, sem as quais, o direito positivo passa a ser positivismo deificado, sobre o qual, a história testemunha com horrendas e destruidoras se tornam as sociedades que se deixam enveredar pela deificação do positivismo e pelo esquecimento do jusnaturalismo.

23. Deste modo, os direitos que se não se confirmarem à dignidade humana, são direitos destruidores; os direitos, hão de se abalizar pelo direito natural, o que respeita e atesta os “direitos do homem[22]; direitos esses que constituem a ponte, os vínculos entre o temor a Deus, o pleno respeito a ordem estabelecida por Deus, a valorização da dignidade humana, o respeito pela inviolabilidade da vida e responsabilidade da vida em sociedade; por isso, Cícero já falara nos “vincula iuris[23] (vínculos do direito); tais vínculos são para demonstrar que o Direito, como fundamento da sociedade está em vínculo constante, mas estes vínculos existem em função da vida e para a vida; onde os vincula iuris deixam-se enveredar pelos caminhos da morte, o próprio Direito deixa de existir; e os direitos que apregoam a morte, são talhados a partir dos vínculos que destroem o próprio Direito. Por isso, é a partir do direito natural, que se estabelecem os verdadeiros direitos, os quais, por sua vez são testemunho inalterável do próprio direito natural: direito a vida, direito à liberdade, direito a existência, direito a paz, direito a religião, e todos os direitos que sob o direito natural são estabelecidos. Sobre isso, João XXIII na encíclica “Pacem in Terris” afirmara: “Aos direitos naturais acima considerados vinculam-se, no mesmo sujeito jurídico que é a pessoa humana, os respectivos deveres. Direitos e deveres encontram na lei natural que os outorga ou impõe, o seu manancial, a sua consistência, a sua força inquebrantável. Assim, por exemplo, o direito à existência liga-se ao dever de conservar-se em vida, o direito a um condigno teor de vida, à obrigação de viver dignamente, o direito de investigar livremente a verdade, ao dever de buscar um conhecimento da verdade cada vez mais vasto e profundo[24]. 

24. Creio ser esta, prezados senhores, a diretriz que deveis seguir diante da ditadura dos direitos que não valoram os direitos naturais intrínsecos ao ser humano, para que a vida seja preservada e orientada sob os aspectos singulares da reflexão política e jurídica; para que não se caia novamente nas infâmias veredas da eutanásia, do aborto, e destes direitos mortíferos que rondam a sociedade. Pois, por este caminho, honrareis e dignificareis a vossa função pública, mas para que podeis dizer ao fim da vida, com a consciência tranquila e sóbria, de que o grande feito que fizeram fora preservar a vida e mantê-la inviolável.

Esta é, senhores, uma das maiores glórias que podeis atingir enquanto exerceis a função pública; e é o testemunho mais eficaz que podeis dar enquanto parte de um governo; pois, como já dissera Thomas Jefferson, polímata e terceiro presidente dos EUA: “Consideramos essas verdades auto-evidentes, que os homens são criados iguais, que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade. Que para garantir esses direitos, os governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados. Que sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva desses fins, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo, baseando-se em tais princípios e organizando seus poderes da forma que lhes for mais conveniente, para realizar sua segurança e felicidade[25].

25. Que este seja o vosso lema e o vosso maior ideal enquanto parte de um governo, e enquanto instrumentos para velar pelo bem da coisa pública. A nossa paz, a vivência social, o desenvolvimento cultural, o fortalecimento perante o mundo calcados sobre a nossa história, passa pelo respeito absoluto para com a vida. A nossa paz e a nossa vida dependem disso: “A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus[26]. E o pleno respeito a ordem instituída por Deus inicia-se com o respeito pela inviolabilidade da vida. Este é, prezados senhores, o princípio fundamental pelo qual se devem orientar vossas ações, principalmente no tocante ao respeito pela vida.

Que o Deus da Vida possa abençoar os senhores, e conceder-lhes sabedoria no exercício de vossa função.



Este texto fora enviado ao Parlamento Português devido a este ter aprovado a prática da eutanásia.

[1] Bento XVI, Liberar a Liberdade: Fé e Política no Terceiro Milênio [São Paulo: Paulus, 2019], pág. 15.

[2] Cícero, Da República, III, 17.

[3] Karl Marx e Friedrich Engels, Marx-Engels Collected Works Vol. 1: Marx - 1835-1843, pág. 576.

[4] Ibidem. Pág. 30.

[5] Gaudium et Spes, § 27.

[6] João Paulo II, Evangelium Vitae, § 4.

[7] Declaração sobre a Eutanásia, Documento da Congregação para a Doutrina da Fé, § 2.

[8] Agostinho, Epístola 204, n. 5, In: PL 33, pág. 910.

[9] Cícero, De Legibus, I, 28.

[10] João Paulo II, Evangelium Vitae, § 9.

[11] Catecismo da Igreja Católica, § 2277.

[12] Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 3.

[13] Constituição da República Portuguesa, t. I, Art. 16, § 2.

[14] Declaração sobre a Eutanásia, Congregação para a Doutrina da Fé, § 2.

[15] Catecismo da Igreja Católica, § 2276.

[16] Samaritanus Bonus, Congregação para a Doutrina da Fé, introd.

[17] Constituição da República Portuguesa, t. II, cap. I, Art. 24, § 1.

[18] João XXIII, Mater et Magistra, § 193.

[19] João Paulo II, Evangelium Vitae, § 2.

[20] Constituição da República Portuguesa, t. II, cap. I, Art. 26, § 3.

[21] Tomás de Aquino, Summa Theologiae, IIa IIae, q. 57, a. 2, ad. 2.

[22] João XXIII, Pacem in Terris, § 11.

[23] Cícero, De Finibus, III, 67.

[24] João XXIII, Pacem in Terris, § 28-29.

[25] Paul Leicester Ford (ed.), The Works of Thomas Jefferson Vol. 2: 1771-1779 [New York and London: G. P. Putnam’s Sons, 1904], pág. 200ss.

[26] João XXIII, Pacem in Terris, § 1. 


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