1. Exmos. Srs. do Egrégio Tribunal
de Justiça de São Paulo, escrevo-lhes, porque por esses dias, mais precisamente
a dois dias atrás, um fato foi divulgado por um canal de notícias, que
demonstrara que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo proibiu a leitura
bíblica e a utilização da expressão “sob a proteção de Deus” nas atividades
legislativas de uma cidade do interior paulista.
2. Conquanto seja apenas em relação
a uma cidade, tal atitude muito me preocupou; principalmente porque, como
teólogo protestante, e como estudioso da filosofia e da ciência jurídica, tenho
por certo que não há, em toda a história da razão pensante algo mais
democrático e que abalizasse mais a vivência em democracia do que a Bíblia
Sagrada, uma das bases da sociedade ocidental ao lado dos livros de Platão, de
Aristóteles, e das obras dos autorizados mestres do Direito Romano. Que seria
da sociedade e da cultura ocidental sem a filosofia grega, a teologia cristã e
o direito romano.
3. A civilização, a civilidade, a
jurisprudência, o saber, a ciência, os salutíferos desenvolvimentos que a
sociedade ocidental vivenciou e experimentou nestes dois milênios, foram graças
ao diálogo entre as três bases da sociedade. Com o saber haurido dos grandes
filósofos gregos, com a ética e a doutrina haurida da religião cristã, e com a
praticidade dos jurisconsultos romanos, a sociedade ocidental fora construída e
edificada.
4. Deste modo, ao se coibir e
proibir a leitura bíblica nas atividades legislativas, não somente se atenta
contra os fundamentos da sociedade, mas se atenta contra a própria história da
Democracia; quem foram aqueles que mais lutaram pelos direitos humanos, e pela
democracia livre e estabelecida, senão os cristãos? Isso se prova pela
história: a inigualável Declaração da Independência dos EUA, fora escrita por
Thomas Jefferson, estadista cristão, totalmente embasado na ética
judaico-cristã; a defesa da liberdade, da liberdade religiosa e da justiça
contra Hitler e contra o nazismo fora feita por Karl Barth, lendário teólogo
suíço; a defesa da liberdade e da dignidade humana diante das discriminações
raciais fora feita por Martin Luther King Jr., pastor batista; etc.
5. A Bíblia Sagrada, é o pilar
primeiro da democracia; e não somente por isso a Sagrada Escritura é digna de
louvor; Leão XIII afirmara: “Entre as razões pelas quais a Sagrada Escritura
é tão digna de louvor - além de sua própria excelência e da homenagem que
devemos à Palavra de Deus - a principal de todas é, os inúmeros benefícios de
que é a fonte”[1].
Da Sagrada Escritura que provêm inúmeros benefícios, um dos quais, indistinto
para todos os homens, em todos os tempos, a saber, a democracia, a vida em
liberdade, o dom maior que Deus outorgara aos homens para a vida em sociedade.
6. A Sagrada Escritura, não somente
é a fonte de inúmeros benefícios, mas também é prova do amor paterno de Deus
para com o gênero humano; Pio XII asseverara: “Inspirados pelo Espírito
Divino, escreveram os sagrados autores aqueles livros que Deus, no seu paterno
amor para com o gênero humano, se dignou dar-nos”[2].
O Deus Todo-Poderoso, em seu insigne amor, dignou-se a dar aos homens a Sagrada
Escritura, e isso, com o singular propósito de que todas as gentes fossem
educadas. O Apóstolo afirma: “Toda Escritura divinamente inspirada é
proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em
justiça” (2Tm 3.16); estes são os singulares benefícios dos quais a Sagrada
Escritura é a fonte.
7. A Sagrada Escritura é proveitosa
para ensinar; é a Bíblia o livro fonte para os maiores educadores da história;
que foram Alcuíno de York, Alberto Magno e Jan Comenius, senão pedagogos que
ensinavam a partir dos ensinos das Escrituras; por isso, a Sagrada Escritura é
proveitosa para ensinar, principalmente para ensinar a como viver. A Sagrada
Escritura é proveitosa para redarguir; é a Bíblia o livro moral por excelência;
todos os preceitos da Sagrada Escritura servem para redarguir, para argumentar
contra os sofismas existenciais que tomam conta do espírito de época. A Sagrada
Escritura é proveitosa para corrigir; é a Bíblia o livro que corrige a conduta
e a ação humana, para que estas sejam orientadas no caminho das virtudes, tanto
das virtudes cardeais quanto das virtudes teologais; a Sagrada Escritura
corrige dos descaminhos do erro e das veredas da injustiça. A Sagrada Escritura
é proveitosa para instruir em justiça; é a Bíblia o livro da sabedoria da
educação na justiça; da prática e da vivência na justiça; pois, a Bíblia é o
livro que fala do Deus justo e que chama os homens a viverem em retidão e
justiça perante Ele e diante dos homens.
8. Deste modo, a leitura bíblica, a
leitura da Sagrada Escritura, principalmente em relação as atividades
legislativas contribui muito para o ensino e para a instrução na justiça; além
do que, a leitura da Sagrada Escritura, honra e dignifica a constitucionalidade
do Estado brasileiro, pois, a leitura da Sagrada Escritura, educa, ensina,
instrui e ensina os virtuosos caminhos da justiça, a mãe das virtudes comuns;
por isso, revolve-se a mente as singulares palavras de Agostinho: “Possa eu
inebriar-me de ti e contemplar as maravilhas de tua lei, desde o princípio, em
que criaste o céu e a terra, até o reino eterno contigo na tua cidade santa”[3].
9. E esta expressão de Agostinho,
confirma a eticidade das Sagradas Escrituras, já que a prece “que eu possa
contemplar as maravilhas de tua lei”, é para que possa viver dignamente; a
contemplação da Lei de Deus, conduz as almas dos cristãos para a vivência até a
Cidade Santa, e no intermeio para a que a Cidade de Deus influencie a Cidade
dos Homens; e por isso, a Sagrada Escritura, confirma sua existência
singularíssima diante do desenvolvimento da cultura e da vida em sociedade; as
inesquecíveis palavras de Ulysses S. Grant, revolvem-se novamente a mente como
um precioso conselho: “Agarre-se à Bíblia como a âncora de suas liberdades;
escreva seus preceitos em seu coração e pratique-os em suas vidas. Somos gratos
por todo o progresso feito na verdadeira civilização devido a influência deste
livro, e para este livro devemos olhar como nosso guia no futuro”[4].
O verdadeiro progresso, o verdadeiro humanismo, tem sua face esculpida sob os
preceitos da Lei de Deus; por isso, é a Bíblia o guia mais seguro para o futuro
das gentes, como já bem dissera Machado de Assis na poesia “Fé”:
“No turvo mar da vida,
Onde aos parcéis do crime a alma
naufraga,
A derradeira bússola nos seja,
Senhor, tua palavra”[5].
10. Ah! O princípio machadiano da
fé, onde o joalheiro do verso talha em imorredouras palavras que a verdadeira
bússola no turvo mar da vida é a Bíblia, a palavra do Senhor; não somente é uma
poesia, é uma prece; uma prece machadiana, certamente, um dos sustentáculos da
magnífica obra de Machado, e também uma das pedras fundamentais de toda a obra
de Machado que o consagraram como o maior nome da literatura brasileira; este
que, nas palavras de Rui Barbosa, é sem rival no aticismo e na singeleza no
conceber e no dizer, ele mesmo concebera que a bússola seja a Palavra de Deus,
a Bíblia Sagrada.
11. Deste modo, nada mais importante
para a ciência jurídica do que a sabedoria imorredoura da Sagrada Escritura;
não que o direito se tornará direito religioso, pois não há nada mais contra o
cristianismo do que qualquer forma de direito religioso; os primeiros teólogos
cristãos ajudaram a abalizar a existência do direito na sociedade, apelando
para a reta razão, tal como afirmara Bento XVI: “Ao contrário doutras
grandes religiões, o cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um
direito revelado, nunca impôs um ordenamento jurídico derivado duma revelação.
Mas apelou para a natureza e a razão como verdadeiras fontes do direito; apelou
para a harmonia entre razão objetiva e subjetiva, mas uma harmonia que
pressupõe serem as duas esferas fundadas na Razão criadora de Deus”[6].
A existência da ciência jurídica fora dignificada por aqueles que se dedicavam
totalmente à Palavra de Deus, como se demonstra nos primeiros dois séculos da
era cristã.
12. Mas a importância da Sagrada
Escritura para a vida comum de um Estado Democrático de Direito, não somente é
demonstrada pelos escritos dos teólogos do passado, mas também fora demonstrada
por grandes estadistas; por exemplo, John Quincy Adams, o 6° presidente dos
EUA, confessara: “... tão grande é minha veneração pela Bíblia, e tão forte
minha crença de que, quando devidamente lida e meditada, é de todos os livros
do mundo o que mais contribui para tornar os homens bons, sábios e felizes, que
quanto mais cedo meus filhos começarem a lê-la, e quanto mais firmemente
praticarem sua leitura ao longo de suas vidas, mais vivas e confiantes serão
minhas esperanças de que eles serão cidadãos úteis para seu país, membros
respeitáveis da sociedade e uma verdadeira bênção para seus pais”[7].
Que bela expressão do John Quincy Adams, pois, evocara, por sua própria
experiência, que a leitura da Bíblia, produz cidadãos uteis para seu país,
membros respeitáveis da sociedade e se tornam uma verdadeira benção para seu
país.
13. O salmista afirmara: “Bem-aventurado
é o povo cujo Deus é o SENHOR!” (Sl 144.15); mas feliz também é a nação
cuja Bíblia é lida e praticada; por isso, os comunistas tanto querem destruir e
retirar a Bíblia de cena; sem a Bíblia, não há retidão moral na alma da
sociedade; sem a religião, não há o freio moral para a violência do pecado no
coração humano; portanto, qualquer forma de inferência contra a Bíblia, seja na
cultura, seja na política, seja na magistratura, sempre é sinal de comunismo
latente e patente no seio das instituições públicas e no Estado. Leão XIII já
alertara que o socialismo vicia as funções do Estado[8];
e como ninguém menos que o pai da justiça social e dos direitos dos
trabalhadores, aquele que pela sua doutrina influenciou a existência jurídica
do Estado brasileiro, constatara algo desta natureza sobre o socialismo; a CLT,
em sua existência jurídica, é fruto da doutrina social de Leão XIII; portanto,
se Leão XIII, afirmara algo desta natureza, de que o socialismo vicia as
funções do Estado, é algo para ser observado por todas as pessoas de bem. E sem
a Bíblia, sem a leitura da Bíblia, a própria dignidade da CLT, da Constituição,
do ordenamento jurídico do Estado brasileiro perde sua beleza e efusiva
concretude diante da sociedade e da própria consciência de dever que deve guiar
os magistrados.
14. O testemunho de John Adams, o 2°
presidente dos EUA, certamente também se revolve a memória como um dos mais
precisos testemunhos sobre a importância da Bíblia e da leitura da Sagrada
Escritura: “Eu examinei tudo, assim como minha esfera estreita, meus meios
limitados e minha vida ocupada me permitiam; e o resultado é que a Bíblia é o
melhor livro do mundo”[9].
O melhor livro do mundo! Que declaração, de um dos pais fundadores da maior
democracia do mundo; portanto, quanto mais leitura bíblica, quanto mais
incentivo da Bíblia entre o povo e nas entranhas do Estado brasileiro, mais
democracia, mais liberdade, mais desenvolvimento o país há de ter; a democracia
só é fortalecida sob os ditames básicos da Bíblia, o melhor livro do mundo.
15. Nisto também se relembra as
singulares e incomparáveis palavras de Abraham Lincoln, 16° presidente dos EUA,
ao asseverar que, “em relação a este Grande Livro, só tenho a dizer que é o
melhor presente que Deus deu ao homem. Todo o bem que o Salvador deu ao mundo
foi comunicado por meio desse livro. Se não fosse por ela, não poderíamos
distinguir o certo do errado. Todas as coisas mais desejáveis para o bem-estar
do homem, aqui e no além, podem ser encontradas retratadas nele”[10].
O melhor presente que Deus deu ao homem! Definição singular que açambarca todo
o múnus da importância da Bíblia para a vida humana.
16. Mas não somente fora proibida a
leitura bíblica, como também fora vetado o uso da expressão “sob a proteção de
Deus”; a Bíblia é o melhor livro do mundo, e prece “sob a proteção de Deus” é a
base da Constituição. A proibição de se utilizar nas atividades legislativas
esta expressão, é um atentado contra a própria Constituição; pois, uma
proibição que informe ser um Ato Direito de Inconstitucionalidade, é algo que
tem de estar desveladamente e comprovadamente contrário a Constituição; mas a
utilização da expressão “sob a proteção de Deus”, é a aureola da existência
legislativa e da concreção plena da Constituição; logo, utilizar-se da
expressão “sob a proteção de Deus” é estar sendo constitucional plenamente.
17. O preâmbulo da Constituição
afirma: “Nós, representantes do povo brasileiro, [...], promulgamos, sob a
proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.
A Constituição fora promulgada sob esta base, “sob a proteção de Deus”; e
interessante é o termo “sob”, que indica base, fundamento, a estrutura sob a
qual se edifica e/ou promulga algo; se a Constituição fora promulgada “sob a
proteção de Deus”, então, toda a Constituição só é válida, “sob a proteção de
Deus”; na verdade, este sob, evoca a base singular pela qual o Estado
brasileiro existe e se desenvolve, a saber, “sob a proteção de Deus”;
evidentemente, o Estado é laico, mas a sociedade não; a sociedade é cristã; a
base da história brasileira é totalmente cristã, desde a educação até os
maiores nomes de nossa literatura.
18. Portanto, quando a Constituição
de 1988 evoca o “sob a proteção de Deus”, apenas está confirmando nossa
história pátria, bem como a própria história constitucional de nosso país,
desde a época do Império até os dias atuais; a evocação do “sob a proteção de
Deus”, delineia a estrutura da influência do cristianismo sobre a nossa
Constituição, bem como como coluna imovível de nossa sociedade; pois, desde os
primórdios de nossa história, o cristianismo tem-se feito presente e tem atuado
para o bem da sociedade.
19. E um exemplo tirado da própria
Constituição comprova este fato. A pedra angular da Constituição, em seu
primeiro artigo afirma: “Todo o poder emana do povo”[11].
E que é a doutrina da soberania popular, senão o princípio da existência do
Estado Democrático de Direito; e donde provêm a doutrina da soberania popular:
será de algum filósofo? Será de algum político? Será de algum magistrado? Será
de algum pensador? A doutrina da soberania popular provêm de Francisco Suárez,
teólogo jesuíta; muitos pensam que a doutrina da soberania popular provêm dos
filósofos iluministas ou da revolução francesa; mas a doutrina da soberania
popular provêm de Suárez; os filósofos iluministas e a revolução francesa
procuraram lutar contra a monarquia absolutista, e em muitos aspectos estavam
certos; mas a existência da monarquia constitucional, na qual também existe a
doutrina da soberania popular, somente de modo diverso do que numa República,
contradiz os filósofos iluministas e a própria revolução francesa neste
quesito.
20. Mas, falemos sobre Francisco
Suárez. O teólogo granadino, um dos maiores nomes da escolástica espanhola,
elaborara a doutrina da soberania popular nos seguintes termos: “Por outro
lado, a democracia poderia ocorrer sem uma instituição positiva - por
instituição ou resultado natural apenas - se faltasse uma instituição nova ou
positiva; porque a mesma razão natural dita que a soberania política é uma
consequência natural de toda comunidade humana perfeita, e que, por força da
própria razão, pertence a toda a comunidade, a menos que, por uma nova
instituição, seja transferido para outra, uma vez que, por exigência da razão,
nem outra determinação ocorre, nem outra é exigida”[12].
A assertiva da soberania política que Suárez apresenta, é fundamentada na
própria natureza, pois, a comunidade humana perfeita, tem ela mesma, toda a
soberania, que não pertence especificamente a ninguém, mas a toda a comunidade
conjuntamente, que elege representantes, para que possam exercer a autoridade
derivada do poder, a saber, a partir da vontade do povo (o verdadeiro detentor
do poder).
21. E a soberania política da
comunidade só é exercida com a liberdade, e a partir da liberdade; sem
liberdade não há soberania do povo; por isso, sem liberdade, a própria
Constituição é denegrida e rebaixada; pois, a liberdade é pressuposto
indissolúvel da dignidade humana; tal como Leão XIII dissera: “A liberdade,
excelente bem da natureza e exclusivo apanágio dos seres dotados de
inteligência ou de razão, confere ao homem uma dignidade em virtude da qual ele
é posto entre as mãos do seu conselho e se torna senhor de seus atos”[13].
A liberdade é a prova de que os seres humanos são criados por Deus, a imagem de
Deus, e assim, foram criados para viver em liberdade, diante de Deus e diante
de seus semelhantes; Karl Barth asseverara: “Que o homem é livre não pode
ser dito em nenhum outro sentido senão pelo fato de que Deus lhe outorgara o
ser livre”[14].
E este outorgar divino ao ser humano, é pelo fato de que Deus criara o ser
humano para ser livre e para viver em liberdade.
22. O próprio Suárez também evoca a
liberdade para dar testemunho da existência da democracia; na verdade, onde a
liberdade não existe de forma plena e abundante não existe democracia; e onde
há o perigo da não-liberdade, sempre há prejuízo indizível para a própria
democracia; liberdade antecede e protege a democracia; sem liberdade, sem
democracia; pois, uma democracia forte e salutar, só é efetiva com a liberdade
existindo de maneira plena e total. Suárez assevera: “Que sirva de exemplo a
liberdade do homem, que se opõe à servidão porque é de direito natural, pois só
em virtude do direito natural o homem nasce livre e não pode ser reduzido à
servidão sem algum título legítimo, não ordena que o homem permaneça sempre
livre, ou - o que dá no mesmo - não proíbe simplesmente que um homem seja
reduzido à servidão, mas apenas que isso não seja feito sem seu livre
consentimento ou sem um título e poder justos. Da mesma forma, a comunidade
civil perfeita, por direito natural, é livre e não está sujeita a nenhum homem
fora dela; e toda ela tem poder dentro de si e, se não mudasse, seria
democrática; no entanto, ou porque ela quer, ou pelo trabalho de outro que
tenha poder e apenas título para fazê-lo, esse poder pode ser retirado e
transferido para uma pessoa ou grupo”[15].
23. A liberdade garante e protege a
democracia; a liberdade, por assim dizer, é o “poder moderador” da democracia;
pois, a única dádiva indissolvível da democracia é a liberdade, sem a qual não
existe o respeito, a tolerância e nem a própria dignidade humana; e a pedra
angular da nossa Constituição confirma isso ao asseverar a soberania do povo:
“todo poder emana do povo”; que é a doutrina da soberania popular senão a
asseveração da dádiva máxima da democracia; portanto, quando a Constituição
evoca a doutrina da soberania do povo como base do Estado brasileiro, está
retomando o princípio estabelecido por Suárez, o qual demonstra a forma como se
edifica verdadeiramente uma democracia, a saber, a partir da liberdade.
24. E a doutrina da soberania é
antevista na Constituição já no preâmbulo; quando os representantes do povo
brasileiro se reuniram em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, o fazem para assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, entre os quais, paira primeiro, a liberdade; etc. E o fazem,
instituem um Estado Democrático “sob a proteção de Deus”; quando no preâmbulo
da Constituição se afirma que é objetivo fundar um Estado Democrático sob “os
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social”, e, então a evocação da proteção de Deus para a
promulgação da Constituição deste Estado, logo, se observa que só se pode
existir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, “sob a proteção
de Deus”; é este o ideal que guiara a construção das grandes nações e das
grandes democracias.
25. Rui Barbosa constatara isso, e
asseverara com precisas e preciosas palavras: “Até hoje, os celeiros do
gênero humano, as terras onde loirejam as messes, onde florescem os linhos,
onde se tecem as lãs, onde os rebanhos se renovam como a erva dos prados, são
os que se fertilizam com o suor dos povos crentes. Esbulhá-los do seu ideal era
mais difícil que bani-los das suas pradarias, dos seus armentos, das suas
searas, dos seus linhares, das suas manufaturas. Porque, nesses povos, a
consciência domina todas as instituições e todos os interesses. A religião os
fez livres, fortes e poderosos. Pela religião fizeram as suas maiores
revoluções. À sombra da religião fundaram os seus direitos. Tirassem a esses
Estados o seu ideal, que restaria? Grandes construções morais, sem o cimento
que as soldava. Tremendas forças sociais, sem o freio que as continha. Massas
enormes, sem coesão que as detivesse, como os rochedos erráticos nas eras
diluvianas, ou as aludes soltas pelos despenhadeiros dos Alpes. Quando o fratricídio
separatista, nos Estados Unidos, abalou com uma guerra sem exemplo os eixos do
mundo, lutava um interesse com um ideal. O ideal, que era a liberdade, esmagou
para sempre o interesse, que era o cativeiro”[16].
Que expressão! O ideal, a liberdade, é o que guia os celeiros do gênero humano,
amparados pela força da religião e da crença: é da religião que provêm a força
para o caminho do ideal, para fazer os homens fortes, e em consequência, fazer
uma nação forte.
26. E a evocação do “sob a proteção
de Deus”, é ainda mais confirmada pelo Art. 1 da Constituição quando fala sobre
a soberania do povo; somente sob a doutrina da soberania do povo é que se pode
constituir uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”; e o elo
fundamental para que esta sociedade não seja apenas um grande rochedo da era
diluviana, é a evocação da prece “sob a proteção de Deus”, pois, é a religião o
elo fundamental para os ditames do direito sejam respeitados, principalmente em
relação as diferenças; no respeito as diferenças, não na falta de crítica e/ou
debates sobre as diferenças; por isso, quando se estabelece a Constituição “sob
a proteção de Deus”, é porque toda a edificação racional do Estado brasileiro,
é feita somente a partir deste pressuposto básico; e tudo o que é
constitucional necessariamente é instituído, mantido e preservado somente “sob
a proteção de Deus”.
27. E nisto reponta a sublimidade de
nossa Constituição; na história do direito constitucional do séc. XX, a
Constituição da República Federativa do Brasil, é um das maiores perolas
jurídicas; verdadeiramente o que a Constituição do Estado brasileiro vela sob
princípios e doutrinas em seu preâmbulo e em seu Art. 1, é o que está, por
exemplo, desveladamente descrito no preâmbulo da Constituição Alemã, quando os
constituintes da República Federativa Alemã após a Segunda Guerra e os horrores
do nazismo, decidiram reconstruir a Alemanha sob princípios inalienáveis, e por
isso, ao promulgarem sua carta magna, afirmaram: “Consciente da sua
responsabilidade perante Deus e os homens, movido pela vontade de servir à paz
do mundo, como membro com igualdade de direitos de uma Europa unida, o povo
alemão, em virtude do seu poder constituinte, outorgou-se a presente Lei
Fundamental”[17].
Os constituintes alemães estavam “conscientes de sua responsabilidade perante
Deus e os homens”.
28. Mas será que os constituintes
brasileiros não estavam? De igual modo aos constituintes alemães, os
constituintes brasileiros também estavam conscientes de sua responsabilidade
perante Deus e os homens; tanto que, no preâmbulo da Constituição brasileira,
tem-se uma “prece”; que outra Constituição no mundo contém uma prece que
solidifica e abaliza a existência e a promulgação da própria Constituição; a
nossa Constituição é promulgada “sob a proteção de Deus”, e, por isso, os
constituintes estavam conscientes de suas responsabilidades perante Deus e os
homens; na verdade, os representantes do povo, em todos os três poderes, só
podem estar verdadeiramente conscientes de suas responsabilidade diante do
povo, se estiverem conscientes de suas responsabilidades diante de Deus; e os
nossos constituintes estavam conscientes disso, que puderam em nome do povo,
afirmar o que realmente é a vontade do povo, a saber, a soberania do povo, o
fundamento da atividade política, legislativa e jurisdicional do Estado
brasileiro.
29. Por isso, Exmos. Srs., peço-lhes
encarecidamente que os senhores mantenham isso em vossas consciências, do
respeito pleno para com a Constituição, bem como para com os ditames básicos
que influíram em nossa história constitucional, a saber, os ditames da
influência da religião cristã; a Bíblia, e a expressão “sob a expressão de
Deus”, são mais do que apenas dois signos que representam algo religioso, mas
são sinais basilares da alma da sociedade, que representam os valores supremos
da sociedade brasileira, uma sociedade majoritariamente cristã; a Bíblia e a
prece “sob a proteção de Deus” não somente abalizam nosso direito
constitucional, mas dá a este o humus necessário na aplicação da Constituição
ao mesmo tempo em que estimula a sobriedade da consciência no dever dos
magistrados, bem como no dever dos políticos, isto é, de todos aqueles que
representam o povo nas atividades estatais e governamentais.
30. Concluo por aqui esta breve
missiva, escrita não com o intuito de repreender ou ensinar, mas de aclarar os
fatos e as proposições necessárias, para que uma decisão como a que foi tomada
pelo TJ-SP, não seja de novo efetivada; pois, a proibição da leitura bíblica e
da utilização da expressão “sob a proteção de Deus”, nada mais é do que uma
violação da Constituição e uma vileza para com a história do Brasil; deste
modo, creio que a nossa Constituição, por evocar em sua promulgação o “sob a
proteção de Deus”, na verdade, incentiva, dir-se-ia quase que ordena, a
utilização do “sob a proteção de Deus” em todas as atividades jurisdicionais e
jurisconsultivas do Estado brasileiro, bem como em todas as atividades
legislativas e para a própria harmonia necessária aos três poderes.
Certo de vossa compreensão,
escrevo-lhe com aequitas e com simplicidade de coração e sinceridade de
propósito, lembrando sempre da máxima do Doutor Angélico: “a vontade humana,
a partir de um consentimento comum, pode fazer algo justamente naquelas que por
si mesma não têm qualquer oposição à justiça natural”[18].
“Mas o Senhor está assentado perpetuamente; já preparou o seu tribunal para julgar. Ele mesmo julgará o mundo com justiça; julgará os povos com retidão” (Sl 9.7-8).
* Este texto é uma carta que fora enviada ao presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.
[1]
Leão XIII, Providentissimus Deus, n. 3.
[2]
Pio XII, Divino Afflante Spiritu, n. 1.
[3]
Agostinho, Confissões [Coleção Clássicos de Bolso. São Paulo: Paulus,
2002], livro XI.2.3, pág. 331.
[4] In: The New York Times, June 15,
1876.
[5]
Machado de Assis, Chrysalidas [1° edição. Rio de Janeiro: B. L. Garnier,
1864], pág. 39.
[6]
Bento XVI, Liberar a Liberdade: Fé e Política no Terceiro Milênio [São
Paulo: Paulus, 2019], pág. 134.
[7] Worthington Chauncey Ford (ed.), Writings
of John Quincy Adams Vol. 4 [New York: The Macmillan Co., 1914], pág. 212.
[8] cf. Leão
XIII, Rerum Novarum, n. 3.
[9] Charles Francis Adams (ed.), The
Works of John Adams Vol. 10 [Boston: Little, Brown and Co., 1856], pág. 85.
[10] Roy P. Basler (ed.), Collected
Works of Abraham Lincoln Vol. 7 [New Brunswick/New Jersey: Rutgers
University Press, 1953], pág. 542.
[11]
Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 1, § un.
[12]
Francisco Suárez, Defensio Fidei, livro III, cap. 2, n. 8.
[13]
Leão XIII, Libertas Praestantissimum, n. 1.
[14] Karl Barth, Das Geschenk der
Freiheit, In: Theologische Studien Heft 39 [Zollikon-Zürich: EVZ,
1953], pág. 8.
[15]
Suárez, Op. Cit., livro III, cap. 2, n. 9.
[16]
Rui Barbosa, Obras Completas de Rui Barbosa Vol. XXX: 1903 Tomo 1 -
Discursos Parlamentares [Rio de Janeiro: Ministério da Educação e da
Cultura, 1956], pág. 366-367.
[17] Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, preâmbulo.
[18] Tomás de Aquino, Summa
Theologiae, IIa IIae, q. 57, a. 2, ad. 2.
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