Prefácio.
O epistolário do Corpus Dionysiacum é de suma
importância; epístolas que compreendem uma ampla gama de problemas teológicos,
e que apresentam pressuposições teológicas que versam sobre os principais
tópicos teológicos; pois, além de versarem sobre problemas concernentes as
obras do Corpus Dionysiacum, estas epístolas também apresentam análises
teológicas precisas e que compreendem uma excelente forma de introdução não
somente as obras que compõem o Corpus Dionysiacum, mas a vários aspectos
teológicos fundamentais.
As epístolas de Pseudo-Dionísio não somente são a
melhor introdução as suas obras, mas também são uma excelente introdução a
teologia como um todo e aos principais preceitos do labor teológico. Portanto,
se vai apresentar um comentário a todo o epistolário de Pseudo-Dionísio, o
qual, vai sendo apresentado aos poucos, epístola por epístola, no que concerne
a cada uma e as dúbias que surgem da explicação das mesmas, seguindo o exemplo
de Alberto Magno, no modo como o lendário professor de Tomás de Aquino, explicara
e expusera estas epístolas.
Deste modo, se apresenta primeiramente o comentário a
epístola I; assim, sucessivamente, se fará o mesmo com cada epístola; e, que
estes comentários sirvam não somente para explicar e expor estas epístolas, e
solucionar as principais dificuldades que emergem das mesmas, mas também para
que através da exposição destas epístolas, se possa ter insights e perspectivas
que sirvam de uma introdução à teologia e ao que concerne ao labor teológico.
Além disso, nesta interpretação que se inicia sobre o
programa teológico dionísico, é bom que se mencione que se procurará o equilíbrio
entre o chamado “dionisianismo intelectual”, representado por exemplo,
por Alberto Magno e Tomás de Aquino, e entre o chamado “dionisianismo
afetivo”, representado por Thomas Gallus, Boaventura e outros; se procurará
o equilíbrio entre estas duas linhas de interpretação do Corpus Dionysiacum,
que na verdade, se estabeleceram como as duas linhas básicas do desenvolvimento
teológico tanto na teologia latina quanto na teologia grega.
E, no comentário as epístolas de Pseudo-Dionísio, este
equilíbrio já começa a se mostrar evidente, sem se enveredar pela deificação da
experiência nem se perder nos desvios de uma racionalidade sem afetividade; ou
seja, crescer e se edificar na verdade, mas em amor (cf. Ef 4.15); ou para se
utilizar da expressão petrina, com o propósito de crescer na graça e no
conhecimento (cf. 2Pe 3.18).
Soli Deo Gloria!
In Nomine Iesus!
09 de setembro de 2024.
Texto de Pseudo-Dionísio (Epist. I).
As trevas ocultam-se pela luz (cf. Jo 1.5, 3.19; At 26.18; Rm 2.19; 1Co 4.6; 1Pe 2.9; 1Jo 2.8-11), e especialmente por uma muita luz; os conhecimentos ocultam a ignorância, especialmente [quando são] muitos conhecimentos. Assumindo tais coisas excessivamente, não segundo a privação, enuncia super-verdadeiramente que a verdadeira luz esconde-se aos que [a] possuem, e a ignorância segundo Deus se esconde ao conhecimento dos entes, e as Suas trevas supereminentes são ocultas a toda luz e fogem a todo conhecimento. E se alguém que, vendo Deus, entendeu o que viu, não viu a Ele (cf. Jo 1.18; 3Jo 1.11; CH II, 3; IV, 3), mas alguma coisa daquelas que, sendo dEle, são existentes e conhecidas: Ele mesmo, porém, é super-colocado acima de toda mente e substância, à medida que é dito nem ser conhecido, nem existir, mas existe super-substancialmente e é conhecido acima da mente, e a perfeita ignorância no melhor sentido é que é o conhecimento daquele que está acima de tudo que é conhecido.
A. Proêmio.
1. “A quem foi revelada a raiz da sabedoria? Quem
pode discernir os seus artifícios? A quem foi mostrada e revelada a ciência da
sabedoria? Quem pode compreender a multiplicidade de seus caminhos?” (Eclo.
1.6-7); estas palavras competem à matéria e ao assunto desta epístola; pois, a
quem foi revelada a sabedoria? Quem conhece a sabedoria? Quem pode compreender
todas as coisas? Quem conhecem algo a respeito da Sabedoria suprema? A
resposta: somente Deus, o Altíssimo; ninguém, senão Ele conhece os caminhos da
sabedoria e do conhecimento; a respeito do que o próprio Sirach responde a
indagação que pusera: “Somente o Altíssimo, criador onipotente, rei poderoso
e infinitamente temível, Deus dominador, sentado no seu trono” (Eclo. 1.8).
2. Portanto, todos os homens são envoltos na
ignorância das coisas divinas; por isso, diz a Escritura que não há ninguém que
entenda (cf. Rm 3.11); logo, entre os homens não há ninguém que consiga
alcançar os mistérios da revelação e da sabedoria divina per se;
portanto, todos estão envoltos nas trevas da ignorância; pois, o Senhor
Altíssimo, só revela estas coisas, àqueles que em temor, reverência e
obediência se aproximam dEle. “O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria”
(Pv 9.10a).
Pois, aqueles que se achegam a Ele em temor,
reverência e sinceridade, Ele não lança fora. “o que vem a mim de maneira
nenhuma o lançarei fora” (Jo 6.37b). Logo, àqueles que se aproximam de
Deus, em temor e reverência, o bondoso Deus concede o conhecimento concernente
a Si, isto é, para todos aqueles que o amam. “Ele a concede àqueles que o
amam” (Eclo. 1.10b).
Assim, no temor do Senhor, Ele se dá a conhecer; pois,
a medida que se aproximam de Deus em temor e reverência, o próprio Deus concede
o conhecimento de Si; e nisto está a verdadeira glória dos homens, como diz a
Escritura: “Mas o que se gloriar glorie-se nisto: em me conhecer e saber que
eu sou o Senhor” (Jr 9.24a).
3. Pois, o verdadeiro conhecimento de Deus, produz nos
homens dois efeitos: primeiro, o entendimento da miséria espiritual que é
inerente ao ser humano. “Então, disse eu: ai de mim, que vou perecendo!
Porque eu sou um homem de lábios impuros e habito no meio de um povo de impuros
lábios; e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos!” (Is 6.5).
Segundo, uma profunda gratidão, já que aqueles que O
conhecem, compreendem que se não fora a obra dEle em se revelar, não haveria
como conhecê-Lo. “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que
ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos”
(Mt 11.25). “Que
darei eu ao Senhor por todos os benefícios que me tem feito? Tomarei
o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor” (Sl
116.12-13).
E, isto se coaduna com as proposições desta epístola, já que estas palavras demonstram o que concerne ao “conhecimento daquele que está acima de tudo que é conhecido”. Logo, etc.
B. Comentário.
1. As quatro primeiras epístolas
são direcionadas a Gaio[1],
nas quais Pseudo-Dionísio trabalha o tema do conhecimento a respeito de Deus, a
partir de noções presentes nas obras “De Mystica Theologia” e “De
Divinis Nominibus”, muito provavelmente por dúvidas e dúbias que surgiram
de Gaio a este respeito, como consta descrito pela maior parte dos
comentaristas medievais e como em alguns aspectos as próprias epístolas
demonstram; assim, são epístolas com vista a resolver as dificuldades e
problemas na compreensão a respeito dos temas comuns a estas obras mencionadas.
2. Mas, não somente isso, pois,
estas quatro epístolas, evocam temas teológicos de suma importância; e, ao
evocar estes temas, os coloca em ordem ao preceito de que tudo na doutrina
sagrada refere-se a Deus e as coisas que a Ele estão de algum modo são ordenadas
(cf. STh Ia, q. 1, a. 7, co. e ad. 2). E, as quatro epístolas a Gaio estão
imbuídas em ordem a este preceito: as epístolas I e II, a respeito de Deus; as
epístolas III e IV, que se referem a “divindade na humanidade”[2],
ou sobre a humanidade de Deus.
3. Na epístola I, Pseudo-Dionísio
trabalha as questões referentes ao conhecimento de Deus, que surgem a partir
das proposições da obra “De Mystica Theologia” como é evidente no texto;
e, nesta epístola, Pseudo-Dionísio faz três coisas: primeiro, estabelece o
assunto; segundo, analisa a proposição concernente ao conhecimento a respeito
de Deus; terceiro, estabelece o modo correto de se buscar o conhecimento a
respeito de Deus.
4. Primeiro, estabelece o
assunto, onde diz: “As trevas ocultam-se pela luz (cf. Jo 1.5, 3.19; At
26.18; Rm 2.19; 1Co 4.6; 1Pe 2.9; 1Jo 2.8-11), e especialmente por uma muita
luz; os conhecimentos ocultam a ignorância, especialmente [quando são] muitos
conhecimentos”; e o assunto diz respeito a possibilidade se conhecer algo
sobre Deus; e, para isso, Pseudo-Dionísio utiliza-se de duas figuras naturais,
as trevas e a luz; as trevas como ausência de luz, isto é, de compreensão; a
luz como a compreensão; logo, as “trevas ocultam-se pela luz”, isto é, a
ausência de compreensão sobre algo se oculta a medida que se diz compreender
alguma coisa sobre este algo; e, quanto mais luz, isto é, mais compreensão,
mais as trevas, isto é, mais a não-compreensão se torna evidente; pois, quanto
mais se acha que se compreende algo, mas este algo se torna oculto e
incompreensível.
5. E, em se tratando de Deus isto
é evidente; pois, Deus, é um Deus abscôndito (cf. Is 45.15); além disso, a
glória de Deus é encobrir o negócio (cf. Pv 25.2). Logo, quanto mais se acha
que se compreende a Deus, mais não se o compreende; pois, muitos conhecimentos
ocultam a verdadeira ignorância a respeito do objeto dito conhecido; e, Deus
oculta-se aos que acham que o conhecem, e se revela aos humildes, tal como diz
o Senhor Jesus: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que
ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos”
(Mt 11.25).
Por isso, na obra “De Mystica
Theologia”, Pseudo-Dionísio aconselha: “despojado de conhecimento,
avança, na medida do possível, até à união com aquele que está acima de toda a
substância e de todo o conhecer” (MT I, § 1); ora, despojado de todo “falso
conhecimento”, de toda auto-justificação humana, se pode prosseguir no
conhecimento a respeito de Deus, pois, somente assim, se consegue prosseguir
para a comunhão com Deus, Aquele que está acima e além de todo o conhecer.
6. Portanto, as trevas da
ignorância se tornam ainda mais evidentes e ainda mais manifestas a medida que
se “burocratiza” e/ou se “institucionaliza” o conhecimento sobre Deus; donde,
quando isso ocorre, quanto mais se diz conhecer a Deus, mas se o desconhece; e
destes, Deus se oculta. E Pseudo-Dionísio quer justamente dizer isto ao falar
sobre este aspecto de uma dúvida de Gaio que surgiu a partir da leitura do
início da obra “De Mystica Theologia”. Mas, esta é uma verdade, pois, se
não se proceder de maneira condigna, sincera, com temor, perseverança e
piedade, naquilo que o próprio Deus exige daqueles que se aproximam dEle (cf.
Hb 11.6), então, quanto mais se diz conhecer algo a respeito de Deus, mais o
conhecimento sobre Deus se torna oculto e raro, tal como aconteceu nos tempos
dos juízes, onde as visões eram raríssimas (cf. 1Sm 3.1).
Logo, as trevas do
não-conhecimento, é o primeiro ato de reconhecimento daquele que busca conhecer
algo sobre Deus; sem este reconhecimento, e sem o conhecimento do que
significam estas trevas de que fala Pseudo-Dionísio, se torna impossível de
conhecer algo sobre Deus e a respeito de Deus.
7. Segundo, analisa a proposição
concernente ao conhecimento a respeito de Deus; pois, Pseudo-Dionísio prossegue
depois de ter estabelecido a questão e formulado um axioma a respeito do
conhecimento sobre Deus, para demonstrar no que consiste verdadeiramente o
conhecimento a respeito de Deus. E, sobre isso, faz três coisas: primeiro,
demonstra a abscondicidade da verdadeira luz; segundo, a proposição da
ignorância segundo Deus; terceiro, que a caligine divina ocultam-se de todo
conhecimento.
8. Analisemos estes três
aspectos. Quanto ao primeiro, se demonstra onde diz: “Assumindo tais coisas
excessivamente, não segundo a privação, enuncia super-verdadeiramente que a
verdadeira luz esconde-se aos que [a] possuem”; ora, a luz, existe para
iluminar; mas, em se tratando da fonte de luz e de toda iluminação (cf. Tg
1.17), quanto mais se diz tê-la, mas esta se esconde; a verdadeira luz, a fonte
de toda iluminação, é abscôndita; a abscondicidade da verdadeira luz, a fonte
de toda iluminação, é o primeiro aspecto a ser conhecido e reconhecimento para
que se possa receber algo desta iluminação; até mesmo este reconhecimento é
obra graciosa do Pai das Luzes, é dádiva imerecida; logo, ao se “assumir
tais coisas excessivamente”, isto é, de assumi-las de maneira
desequilibrada, insolente e luxuriosa, e com o qualificativo de não ser segundo
a privação, isto é, sem ser uma negação absoluta (o que em si, é impossível!),
logo, se pode enunciar um axioma apodítico da reflexão teológica e da teologia,
a saber: o enunciado de que, super-verdadeiramente, isto é, amparado na
suma-verdade, a verdadeira luz esconde-se, isto é, oculta-se aos que a possuem,
isto é, oculta-se àqueles que dizendo possui-la, não a receberam
verdadeiramente. Pois, como afirma Pseudo-Dionísio, não é lícito dar aos porcos
o esplendor das pérolas espirituais (cf. CH II, § 5).
9. Quanto ao segundo, se
demonstra onde diz: “e a ignorância segundo Deus se esconde ao conhecimento
dos entes”; e, nisto, Pseudo-Dionísio estabelece outro axioma da reflexão
teológica, a saber, o da ignorância segundo Deus; ora, existem dois tipos de
ignorância: uma em relação as coisas humanas, que pode ser descrita ou como
imbecilidade ou como falta de conhecimento; a outra em relação as coisas
divinas, que pode ser descrita de dois modos: ou como falta de conhecimento
sobre as coisas de Deus, que traz destruição (cf. Os 4.6), ou então como
ignorância segundo Deus, o verdadeiro conhecimento espiritual.
Logo, somente aqueles que são
açambarcados pela ignorância segundo Deus, é que verdadeiramente possuem algum
conhecimento a respeito de Deus; pois, Deus outorga o conhecimento de Si,
àqueles que o buscam reconhecendo suas misérias e ignorâncias ante Sua
majestosa presença; ou, como Santo Agostinho afirmara: “Zombem de nós os
fortes e poderosos: nós, miseráveis e fracos, não cessaremos de nos confessar a
ti”[3].
10. Quanto ao terceiro, se
demonstra onde diz: “e as Suas trevas super-eminentes são ocultas a toda luz
e fogem a todo conhecimento”; e, isto se dá deste modo, pois, o verdadeiro
conhecimento de Deus, envolto em Suas trevas super-eminentes, se ocultam a toda
a luz, isto é, a toda e qualquer forma de iluminação, pois, Deus habita numa
luz inacessível (cf. 1Tm 6.16); logo, esta luz inacessível, são ocultas a todas
as luzes acessíveis, e fogem a todo conhecimento, isto é, estão acima de toda
definição e de todo conhecimento, pois, segundo o próprio Pseudo-Dionísio, é
algo indizível.
Ora, o que é indizível está acima
de toda luz acessível e de todo conhecimento, pois, é luz inacessível, e, por
isso está acima de todo conhecimento e de todo ato intelectivo, isto é, de toda
intelecção possível. Por isso o próprio Pseudo-Dionísio afirma: “isto,
porque ela se encontra acima de todas as coisas, de um modo mais que
substancial, e só se manifesta sem véus, na sua verdade plena, aos que
transpõem tudo o que é impuro e o que é puro, que em cada subida se elevam além
de todos os cumes santos e deixam para trás todas as luzes divinas, todos os
sons e palavras do céu, penetrando na treva onde na realidade está - conforme
dizem as Escrituras - aquele que tudo transcende” (cf. MT I, § 3).
11. E, “aquele que tudo
transcende” (Epékeina), é um termo que Pseudo-Dionísio toma
emprestado de Platão, ao este se referir-se a transcendência do Bem[4];
logo, aquele a quem a Escritura se refere como transcendente a tudo e a todos,
só é conhecido por aquele adentra na caligine onde na realidade está, isto é,
aquilo que segundo São Gregório de Nissa, a partir do episódio de Moisés no Monte
Sinai (cf. Êx 20), evoca a entrada na “treva da incognoscibilidade”[5],
tal como diz o texto sagrado: “Moisés, porém, se chegou à escuridade, onde
Deus estava” (Êx 20.21b).
12. Portanto, o verdadeiro
conhecimento a respeito de Deus, só é outorgado por Deus, àqueles que se chegam
a esta escuridade, que está além de todo conhecimento sensível e inteligível, e
que só é outorgada àqueles que se achegam a Deus pela fé, tal como Moisés; e,
neste sentido, se pode afirmar o que o autor aos Hebreus afirmara: “Ora, sem
fé é impossível agradar-lhe, porque é necessário que aquele que se aproxima de
Deus creia que ele existe e que é galardoador dos que o buscam” (Hb 11.6).
Este é o significado teológico do que Pseudo-Dionísio evoca sobre a escuridade,
sobre as trevas super-eminentes dAquele que a tudo e a todos transcende; e é
neste sentido que se elucubra sobre a infinitude de Deus, Aquele que excede
totalmente a intelecção humana.
13. Terceiro, estabelece o modo
correto de se buscar o conhecimento a respeito de Deus; e, Pseudo-Dionísio,
após designar o que realmente significa o conhecimento a respeito de Deus,
prossegue para estabelecer os preceitos do que verdadeiramente significa
conhecer a Deus, ou dito de outro modo, estabelece o modo correto de se buscar
conhecimento a respeito de Deus. E, sobre isso, faz três coisas: primeiro,
estabelece uma pressuposição sobre aquele que diz que viu a Deus; segundo,
estabelece o modo como Deus é conhecido; terceiro, esclarece a proposição sobre
a ignorância segundo Deus.
14. Quanto ao primeiro, se
demonstra onde diz: “E se alguém que, vendo Deus, entendeu o que viu, não
viu a Ele (cf. Jo 1.18; 3Jo 1.11), mas alguma coisa daquelas que, sendo dEle,
são existentes e conhecidas”; ora, aquele que diz que viu a Deus, na
verdade, não viu a Deus, pois, a Escritura diz: “Deus nunca foi visto por
alguém” (Jo 1.18a). Pois, só se compreende algo sobre Deus, a partir das
coisas criadas, que são existentes e conhecidas, as quais, sendo existentes, o
são para serem conhecidas. Logo, por analogia, a partir das coisas criadas se
consegue conhecer algo sobre o Criador. “De fato, partindo da grandeza e
beleza das criaturas, pode-se chegar a ver, por analogia, o seu Criador”
(Sb 13.5).
15. Portanto, ninguém que diz que
conheceu a Deus, o conheceu realmente; mas viu algo sobre Ele em alguma de suas
criaturas; pois, somente Cristo desvela plenamente o conhecimento sobre Deus. “O
Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o fez conhecer” (Jo 1.18b).
Pois, quem vê a Cristo vê a Deus, como o próprio Senhor Jesus afirmara: “Quem
me vê a mim vê o pai” (Jo 14.9b). Por isso, ninguém vê a Deus senão o ver
em Cristo; pois, é Cristo quem desvela a abscondicidade de Deus. Em Cristo, o
Deus ábdito, é tornado manifesto; por isso,
o Apóstolo diz que na face de Cristo está disposto todo o conhecimento da
glória de Deus (cf. 2Co 4.6).
Donde, o próprio Pseudo-Dionísio,
após responder as dúvidas a respeito de Deus, prossegue diretamente para as
questões concernentes a Encarnação, pois, quem desvela o conhecimento de Deus é
Cristo; e, por esta razão, que Tomás, na Suma Teológica, após considerar
Deus e sua criação (Ia), e a criação do homem (IaIIae) e sua finalidade
(IIaIIae), passa a analisar o mistério da Encarnação (IIIa). E, isto não
somente é uma ordem lógica e sequencial, mas é a ordem dos mistérios da fé
conforme a própria revelação.
E, neste mesmo sentido, Barth ao
evocar a centralidade do Deus Trino na revelação (§§ 8-12), passa a elucubrar
sobre a encarnação do Verbo (§§ 13-15)[6];
etc.
Ou seja, tudo na revelação, está
em ordem a Deus, e se torna plenamente conhecível a partir da Encarnação do
Verbo, e entendível a partir da obra do Espírito (cf. Jo 14.26; 1Jo 2.27).
16. Quanto ao segundo, se
demonstra onde diz: “Ele mesmo, porém, é super-colocado acima de toda mente
e substância, à medida que é dito sem ser conhecido, nem existir, mas existe
super-substancialmente e é conhecido acima da mente”; ora, se ninguém viu a
Deus, então, ninguém o conheceu plenamente; logo, Deus é colocado acima de toda
mente, isto é, de toda compreensão racional, e de toda substância, isto é, de
todo singular elucubrável pela mente humana, pois, se se afirma algo sobre
Deus, se diz algo sobre o indizível sem verdadeiramente tê-lo conhecido; logo,
Ele existe super-substancialmente, isto é, existe de maneira que está acima de
toda substância humana elucubrável, e somente é conhecido neste quesito,
estando acima da mente, de toda compreensão racional. Pois, assim, a glória
humana, a soberba humana se esvai, já que só se compreende algo sobre a
essência de Deus a partir de Cristo.
Isto, em si, demonstra a
verdadeira glória de Deus, em se revelar para aqueles que não o conhecem, e se
ocultar daqueles que o buscam sem sinceridade e em meio a inverdades; Ele é
dito sem ser conhecido, isto é, dEle é dito coisas indizíveis; o próprio Apóstolo
tendo contemplado algo dEle em uma visão, disse que o que ouvira palavras
inefáveis (cf. 2Co 12.4); se no próprio céu existe as palavras inefáveis,
então, na imperfeita e limitada compreensão humana, tais palavras serão
indizíveis, isto é, estão além de toda compreensão e além de todo dito, pois,
Ele e as coisas que a Ele concerne, encontram-se na esfera daquilo que para ser
dito carece de palavras (cf. MT I, § 3); mas Deus, existe e é conhecido somente
acima de toda compreensão, isto é, além de toda sabedoria humana carnal e vã; e
isto, “para que nenhuma carne se glorie perante ele” (1Co 1.29). E, este
é o único modo pelo qual verdadeiramente Deus é conhecido, para que aquele que
se glorie, se glorie no Senhor (cf. Jr 9.24).
17. Quanto ao terceiro, se
demonstra onde diz: “a perfeita ignorância no melhor sentido é que é o
conhecimento daquele que está acima de tudo que é conhecido”; e, por
último, Pseudo-Dionísio esclarece a proposição sobre a ignorância segundo Deus;
ora, a ignorância segundo Deus, tal como fora afirmado anteriormente (n. 9), é
o verdadeiro sentido do conhecimento sobre Deus; somente aqueles que são
ignorantes segundo Deus, é que possuem o verdadeiro conhecimento a respeito de
Deus; pois, a estes Deus se revela. Logo, esta ignorância, a “perfeita
ignorância”, a ignorância segundo Deus, é a base do conhecimento dAquele
que está acima de tudo o que é conhecido.
18. Este é o verdadeiro
conhecimento a respeito de Deus, o conhecimento daqueles que estão nesta
“perfeita ignorância”, os quais, tal como Moisés, se chegam a escuridade onde
Deus se encontra (cf. Êx 20.21b); ou como o próprio Pseudo-Dionísio diz, na bruma
do não-conhecimento (cf. MT I, § 1). E, isto, tanto diz respeito a
impossibilidade humana de conhecer a Deus per se, quanto demonstra o
único caminho de se aproximar de Deus, a saber, através dAquele que desvela
plenamente a Deus; sobre quem o Apóstolo afirma: “Mas vós sois dele, em
Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e
santificação, e redenção; para que, como está escrito: Aquele que se gloria,
glorie-se no Senhor” (1Co 1.30-31). Em Cristo e através de Cristo, é que os
homens podem verdadeiramente se gloriar em Deus; nEle é que a razão plena da
expressão do profeta Jeremias, “aquele que se glorie, glorie-se no Senhor”,
se torna plenamente entendida.
E, o entendimento sobre estes aspectos, é o que perfaz plenamente a epístola I de Pseudo-Dionísio, a respeito da dúvida de Gaio no que concerne a leitura do primeiro capítulo da obra “De Mystica Theologia”, mas que também está em ordem a vários aspectos do programa teológico dionísico.
C. Dúbias.
Em
relação as pressuposições estabelecidas ao se explicar a epístola I, surgiram duas
dúbias:
Primeiro,
se o intelecto humano, iluminado pela luz inferior e pela luz interior, ao
defrontar-se com a luz superior, se torna envolto na caligine divina.
Segundo,
se Deus, a fonte da luz, é abscôndito.
<Dúbia I>
Acerca da primeira, procede-se
assim: se o intelecto
humano, iluminado pela luz inferior e pela luz interior, ao defrontar-se com a
luz superior, se torna envolto na caligine divina.
E parece que não.
I. [Argumentos].
1. A luz inferior, a luz do
conhecimento sensitivo, é suficiente no que tange as coisas necessárias para o
ser humano; ora, como o conhecimento sensitivo é o único meio para se obter o
conhecimento, logo, o que se pode conhecer pelos sentidos, é parte da
iluminação concernente a compreensão; pois, segundo o Filósofo, a natureza não
falha nas coisas necessárias (cf. De An. 432b21); logo, se existe a luz
inferior a mesma é suficiente nas coisas necessárias, então, também é
suficiente per se para ser iluminada pela luz superior; portanto, o
intelecto, iluminado pela luz inferior, não se torne envolto na caligine divina
ao ser envolto com a luz do conhecimento superior.
2. Ademais, a luz interior, a luz
do conhecimento filosófico, sendo superior a luz do conhecimento inferior,
alcança ainda mais luz do que este; por isso, se a luz inferior é suficiente
nas coisas necessárias, ainda mais o será a luz interior, já que conduz os
homens a sabedoria, a saber, a filosofia; e a filosofia é chamada de
conhecimento da verdade (cf. Met. 993b20); por isso, sendo a luz interior a do
conhecimento da verdade, e, sendo Deus, a suma-verdade, então, a luz interior é
suficiente para se conhecer a Deus. Portanto, o intelecto, munido da luz
interior, ao defrontar-se com a luz superior, não é envolto na caligine divina.
3. Ademais, as duas luzes da
ordem intelectual, sendo amalgamadas e subsequentes são suficientes em tudo o
que é necessário para o ser humano conhecer, principalmente para o conhecimento
da verdade; ora, a verdade é o termo para o qual tende o intelecto (cf. STh Ia,
q. 16, a. 1, co.), então, por estas luzes, o intelecto pode conhecer a suma
verdade já que existe propriamente para isso; portanto, o intelecto humano, iluminado pela
luz inferior e pela luz interior, ao defrontar-se com a luz superior, não se
torna envolto na caligine divina, pois, o conhecimento a respeito de Deus é
naturalmente inserido na luz inferior e na luz interior; na luz inferior
enquanto apreensível pelos sentidos, e na luz interior enquanto demonstrável
pela ciência demonstrativa.
II. [Em
Contrário].
1. Mas, em contrário, diz
a Escritura: “O Senhor disse que habitaria nas trevas” (1Rs 8.12); logo,
o intelecto, ao contemplá-lo é envolto nestas trevas ou caligine.
2. Além disso, Moisés ao contemplar
a Deus, o contemplara na escuridade, na caligine, tal como diz a Escritura: “Moisés,
porém, se chegou à escuridade, onde Deus estava” (Êx 20.21b); logo, foi
envolto na caligine divina.
3. Além disso, a Escritura afirma
que Deus habita numa luz inacessível (cf. 1Tm 6.16); ora, quanto mais luz, mais
trevas se dão no entendimento; e, como Deus é a Luz mais que luminosa, ou
Super-Luminosa, o intelecto ao contemplá-lo é envolto em trevas maiores do que
os olhos ao contemplarem diretamente o sol.
III. [Solução].
1. O Filósofo, no livro II da Metafísica,
afirma que do mesmo modo como os olhos do morcego estão para a luz do sol,
assim ocorre com o intelecto em relação àquelas coisas que são (cf. Met.
993b11-12); logo, a luz inferior e a luz interior, em si mesmas, são
insuficientes para o conhecimento das coisas que são; ora, o intelecto ao
contemplar as coisas que são, do mesmo modo como os olhos do morcego ao ver a
luz do sol, defronta-se com a caligine. Pois, do mesmo modo como trevas é
ausência de luz, muita luz também gera trevas ainda maiores e mais densas.
2. E, como Deus, Luz de Luz, o
Pai das luzes (cf. Tg 1.17), habita além da compreensão humana, na luz
inacessível (cf. 1Tm 6.16), tanto a luz inferior quanto a luz interior são
insuficientes para alcançar a compreensão de Sua luz; logo, estas luzes, ao
defrontarem-se com a luz do Pai das luzes, são envoltas na escuridão,
proveniente da Super-Luminosidade desta Luz; assim, o intelecto, seja pela luz
inferior seja luz interior, ao se defrontar com a luz superior, é envolto na
caligine, na escuridão que o cega para contemplar esta Luz; e isto mostra a
incapacidade tanto da luz inferior quanto da luz interior para a percepção e a
compreensão da luz superior, a qual, só se dá como efeito da graça, que tira as
trevas dos olhos para que o homem possa contemplar a Deus iluminado com a luz
superior; isto é, a graça torna os homens idôneos para serem iluminados com a
luz superior, tal como diz o Apóstolo: “dando graças ao Pai, que nos fez
idôneos para participar da herança dos santos na luz” (Cl 1.12).
3. Portanto, o intelecto ao ser
iluminado com a luz superior, torna tanto a luz inferior quanto a luz interior,
envoltas na caligine, a qual sobreleva-se infinitamente a capacidade destas
luzes de contemplar a Deus; por isso, a caligine as envolve, tanto para
demonstrar a falta de idoneidade das mesmas per se para contemplar a
Deus, quanto para demonstrar a excelência do efeito da graça, em tornar os
homens idôneos para contemplar e ver a Deus em Cristo através do Espírito.
Pois, o Espírito ilumina os
homens e os conduz em meio a caligine para que estes possam contemplar a Deus
nesta vida por hábito da graça, tal como o Apóstolo afirma: “tendo
iluminados os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual seja a
esperança da sua vocação e quais as riquezas da glória da sua herança nos
santos” (Ef 1.18). E, somente aqueles que foram envoltos na caligine, é que
compreendem, pelo efeito da graça, aquilo que o Espírito os conduz para
compreender, a saber: primeiro, a esperança da sua vocação, isto é, o fim da fé
(cf. 1Pe 1.9). Segundo, as riquezas da glória da sua herança nos santos (cf. Ef
1.3).
IV. [Respostas aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro, se
responde que a luz inferior, é o ponto de partida para a obtenção do
conhecimento a partir do contato com a realidade; por isso, pela abstração dos
sentidos, se forma aspectos concernentes a compreensão; mas, o que se conhece
pelos sentidos, é o que alcançado pela experiência sensível; todavia, existem
coisas que estão além da experiência sensível; logo, o conhecimento sensível
não é suficiente para o conhecimento destas coisas; portanto, mesmo que a
natureza não falhe nas coisas necessárias, a luz inferior não é suficiente para
o conhecimento das coisas que transcendem os sentidos; por isso, a luz inferior
não é suficiente per se, para ser iluminada pela luz superior, pois esta
transcende o conhecimento comum a ordem do conhecimento sensível; portanto, o
intelecto, iluminado pela luz inferior, se torna envolto na caligine de quando
defronta-se com a luz superior; e isto, por dois motivos: primeiro, pela
sobre-excelência da luz superior, que excede a da luz da iluminação inferior;
segundo, pela Super-Luminosidade da luz superior, que transcende infinitamente
a luz da iluminação inferior.
2. Quanto ao segundo, se responde
que a luz interior, embora tenha alcance maior de iluminação do que a luz
inferior, defronta-se com coisas que estão além do conhecimento filosófico;
pois, além das doutrinas filosóficas, é necessário outra doutrina, a saber, a
revelada (cf. STh Ia, q. 1, a. 1, co.); logo, a luz interior é suficiente nas
coisas filosóficas, mas insuficiente nas coisas reveladas; portanto, sendo a
filosofia o conhecimento da verdade, a luz interior é suficiente para este
conhecimento, mas apenas alcança a verdade racional, e não a verdade revelada;
logo, somente com a luz superior, o intelecto alcança a compreensão da verdade
revelada; pois, sendo Deus a suma-verdade, é verdade que transcende a
compreensão da verdade racional; portanto, a luz interior é insuficiente para
se conhecer a Deus, já que para o conhecimento que transcende as coisas
naturais, o intelecto, segundo o Filósofo, acha-se na mesma condição de um
homem amarrado (cf. Met. 994a32); portanto, o intelecto, mesmo munido da luz interior,
ao defrontar-se com a luz superior, é envolto na caligine divina, pela
excelência da luz superior em relação a ordem dos assuntos filosóficos.
3. Quanto ao terceiro, se
responde que, embora as duas luzes da ordem intelectual sejam suficientes nas
coisas naturais, estas são insuficientes para o conhecimento das coisas que
transcendem a verdade racional; ora, do mesmo modo como o intelecto é o termo
para o qual tende o intelecto, e isto se referir primeiramente a verdade
racional, este tender também se refere a verdade revelada, pela qual o homem
atinge o conhecimento de seu fim último; por isso, se tende para a verdade
revelada, então, somente pela luz superior, o homem alcança seu fim; pois,
pelas luzes da ordem intelectual, o homem per se não conhece a
suma-verdade; logo, somente iluminado pela luz superior, o homem conhecimento
seu fim último; pois, conquanto se tenha certo conhecimento de Deus de maneira ínsita
no intelecto, este conhecimento é parcial e fragmentário (cf. Rm 1.20-21);
logo, é necessário a luz superior para que outorgue o conhecimento de Deus de
forma cabal; portanto, o intelecto, ao ser iluminado pela luz superior, é
envolto na caligine, pois, Deus está para além do sensível e do inteligível;
logo, em relação a luz inferior Deus não é apreensível pelos sentidos já que
transcende os sentidos, e na luz interior Deus, em relação somente a verdade
racional, não é demonstrável pela ciência demonstrativa já que está além de
toda demonstração, muito embora, pela fraqueza do intelecto, possa ser
demonstrável como Ser existente como parte daquilo que o Teólogo corretamente
chamara de preambula fidei (cf. STh Ia, q. 2, a. 2, ad. 1).
<Dúbia II>
Acerca da segunda, procede-se
assim: se Deus, a
fonte da luz, é abscôndito.
E parece que não.
I. [Argumentos].
1. A Escritura afirma: “Os
céus manifestam a glória de Deus, etc.” (Sl 19.1ss); ora, o que é
manifesto, não é abscôndito; portanto, Deus, a fonte da luz, não é abscôndito.
2. Ademais, o Apóstolo assevera:
“porquanto o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus
lho manifestou” (Rm 1.19); ora, se Deus manifestou o conhecimento de si,
isto significa que não é abscôndito, pois, o que é abscôndito não é manifesto;
portanto, Deus, a fonte da luz, não é abscôndito.
3. Ademais, se Deus é a fonte da
luz, pois, é o Pai das luzes (cf. Tg 1.17), então, por ser luz, é conhecido;
pois, é característica da luz é ser manifesta; ora, se Deus é luz então é
manifesto; e se é manifesto, é conhecido; portanto, Deus, a fonte da luz, não é
abscôndito.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, diz
o Príncipe dos Profetas: “Verdadeiramente, tu és o Deus que te ocultas, o
Deus de Israel, o Salvador” (Is 45.15); ora, o Deus verdadeiro é um Deus que
se oculta, isto é, é abscôndito; portanto, Deus, a fonte da luz, é um Deus
abscôndito.
2. Além disso, diz o texto
sapencial: “A glória de Deus é encobrir o negócio” (Pv 25.2); ora, se a
glória de Deus é encobrir, então, é um Deus que se oculta; portanto, Deus, a
fonte da luz, é um Deus abscôndito.
III. [Solução].
1. A Sagrada Escritura apresenta
Deus como luz (cf. 1Jo 1.5); logo, ao descrevê-Lo deste modo, também apresenta
Ele a partir da natureza da luz; e, pela natureza da luz, se sabe que a mesma
possui três efeitos: primeiro, a luz ilumina; segundo, a luz aquece; terceiro, a
luz é simples in se. Ora, estes três efeitos se aplicam a Deus: primeiro,
Deus ilumina. “Olharam para ele, e foram iluminados” (Sl 34.5a). Segundo,
Deus aquece. “Porque o SENHOR, teu Deus, é um fogo que consome, um Deus
zeloso” (Dt 4.24). Terceiro, Deus é um ser simples per se, isto é, é
absolutamente simples (cf. STh Ia, q. 3, a. 7, co.).
2. Portanto, Deus sendo ser
simples, não pode ser composto, logo, sendo luz, não constitui-se de trevas;
portanto, isso parece impugnar a proposição de que Deus é abscôndito; no
entanto, Deus é luz em Seu ser, em si mesmo, já que é absolutamente simples;
agora, ao se afirmar que Deus é abscôndito, se refere em relação a como Deus se
oculta em relação aos homens, pois, Deus se oculta, para que os homens, em suas
sabedorias carnais e pecaminosas, não o possam conhecer, tal como diz o
Apóstolo: “para que nenhuma carne se glorie perante ele” (1Co 1.29); e,
para que aqueles que o conhecem, o conheçam através do efeito da graça, que Ele
outorga aos eleitos, e, com isso, receba toda honra e glória.
3. Deste modo, Deus é luz, e é
abscôndito; é luz inacessível, e por isso, abscôndito; pois, os homens, em suas
naturezas pecaminosas não podem por si mesmos se achegar até Deus, a não ser
por efeito da graça, que os torna capazes de se aproximar de Deus, com o
propósito de viverem diante de dEle, e para a glória dEle, para que então,
possam contemplá-lo, ainda que nesta vida em enigma por espelho (cf. 1Co 13.12);
mas, a visão embaçada, ainda é mais visão do que a não-visão do ocultamento e
da abscondicidade. E a glória de Deus é manifesta em o mesmo se esconder e em
se mostrar; em se esconder dos homens naturais, que o rejeitam e o desprezam; e
se mostrar àqueles que se achegam a Ele como efeito da graça através da
caligine, tal como Moisés; se esconde dos homens naturais, e se mostra (revela)
aos fiéis; isto, se enquadra na afirmação de Agostinho: “Poder ter fé, como
poder ter caridade, pertence à natureza dos homens, embora ter fé, como ter
caridade, pertence à graça dos fiéis” (De Praed. Sanct., cap. V). À
natureza dos homens naturais, Deus se esconde; pela graça outorgada aos fiéis,
Deus se mostra e se revela.
IV. [Respostas aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro se responde que a manifestação da
glória de Deus na criação, refere-se a demonstração de Sua existência e de seu
Eterno poder, como diz o Apóstolo em Rm 1; portanto, em relação a compreensão
natural sobre Sua existência, Deus se mostra em suas obras, para que todos os
homens fiquem inescusáveis (cf. Rm 1.20); entretanto, em relação a Seu Ser, em
Sua essência, Deus permanece abscôndito, já que a revelação pela natureza é
sobre a Criação, Seu eterno poder e Divindade, mas não sobre Seu caráter e essência;
logo, Deus, a fonte de luz, em Seu ser, permanece oculto aos homens naturais.
2. Quanto ao segundo se responde
que a manifestação do conhecimento de Deus na Criação, é para demonstrar que
todos os homens são indesculpáveis por não o conhecerem e não o adorarem como
Deus, tal como diz o Apóstolo: “porquanto, tendo conhecido a Deus, não o
glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, em seus discursos se
desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu” (Rm 1.21); logo, se
foram obscurecidos, não compreenderam verdadeiramente quem Deus é; portanto, a
estes, Deus permanece abscôndito. Logo, Deus, a fonte da luz, é abscôndito.
3. Quanto ao terceiro se responde
que, embora Deus seja o Pai das luzes e a fonte de toda iluminação, tanto na
ordem das coisas naturais, quanto na ordem das coisas espirituais, a
manifestação de sua luz se dá de modo diverso: nas coisas naturais, para todos
os homens conhecerem; nas coisas espirituais, para aqueles que foram redimidos
pela graça, como efeito da própria graça; logo, de um modo é manifesto, de
outro é abscôndito; nas coisas naturais, manifesto; nas coisas espirituais,
abscôndito; portanto, Deus, a fonte da luz, em relação as coisas espirituais, é
abscôndito.
4. Quanto ao quarto se responde que, Deus é luz, pois, é ser simples, e o ser simples não é composto; logo, enquanto luz não há nEle treva nenhuma; todavia, em relação a compreensão sobre Seu ser, em um sentido é manifesto, em outro é oculto; é manifesto na criação, enquanto todos podem conhecê-Lo como Criador; é oculto na salvação, enquanto é conhecido somente pelos eleitos pelo efeito da graça quando estes O conhecem como Salvador.
[1] A tradução latina estabelece o
nome Caius (Caio); aqui opta-se por manter uma transliteração mais perto do
texto grego, e se estabelece o nome Gaio, nas epístolas I a IV.
[2] cf. Alberto Magno, Commentari In
Epistolas B. Dionysii Areopagitae, epist. I, A, In: Op. Om., XIV,
869.
[3] Santo Agostinho, Confissões [Coleção Clássicos de Bolso. São Paulo:
Paulus, 2002], livro IV, cap. 1, n. 1, pág. 90.
[4] cf. Platão, República,
509b.
[5] cf. São Gregório de Nissa, De Vita Moysis, pars II.
[6] cf. Karl Barth, Church
Dogmatics I/2 [T. & T. Clark, 1956].
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