10/09/2024

Comentário a Epístola I de Pseudo-Dionísio

Prefácio.

 

O epistolário do Corpus Dionysiacum é de suma importância; epístolas que compreendem uma ampla gama de problemas teológicos, e que apresentam pressuposições teológicas que versam sobre os principais tópicos teológicos; pois, além de versarem sobre problemas concernentes as obras do Corpus Dionysiacum, estas epístolas também apresentam análises teológicas precisas e que compreendem uma excelente forma de introdução não somente as obras que compõem o Corpus Dionysiacum, mas a vários aspectos teológicos fundamentais.

As epístolas de Pseudo-Dionísio não somente são a melhor introdução as suas obras, mas também são uma excelente introdução a teologia como um todo e aos principais preceitos do labor teológico. Portanto, se vai apresentar um comentário a todo o epistolário de Pseudo-Dionísio, o qual, vai sendo apresentado aos poucos, epístola por epístola, no que concerne a cada uma e as dúbias que surgem da explicação das mesmas, seguindo o exemplo de Alberto Magno, no modo como o lendário professor de Tomás de Aquino, explicara e expusera estas epístolas.

Deste modo, se apresenta primeiramente o comentário a epístola I; assim, sucessivamente, se fará o mesmo com cada epístola; e, que estes comentários sirvam não somente para explicar e expor estas epístolas, e solucionar as principais dificuldades que emergem das mesmas, mas também para que através da exposição destas epístolas, se possa ter insights e perspectivas que sirvam de uma introdução à teologia e ao que concerne ao labor teológico.

Além disso, nesta interpretação que se inicia sobre o programa teológico dionísico, é bom que se mencione que se procurará o equilíbrio entre o chamado “dionisianismo intelectual”, representado por exemplo, por Alberto Magno e Tomás de Aquino, e entre o chamado “dionisianismo afetivo”, representado por Thomas Gallus, Boaventura e outros; se procurará o equilíbrio entre estas duas linhas de interpretação do Corpus Dionysiacum, que na verdade, se estabeleceram como as duas linhas básicas do desenvolvimento teológico tanto na teologia latina quanto na teologia grega.

E, no comentário as epístolas de Pseudo-Dionísio, este equilíbrio já começa a se mostrar evidente, sem se enveredar pela deificação da experiência nem se perder nos desvios de uma racionalidade sem afetividade; ou seja, crescer e se edificar na verdade, mas em amor (cf. Ef 4.15); ou para se utilizar da expressão petrina, com o propósito de crescer na graça e no conhecimento (cf. 2Pe 3.18).

Soli Deo Gloria!

In Nomine Iesus!

09 de setembro de 2024. 


Texto de Pseudo-Dionísio (Epist. I).

As trevas ocultam-se pela luz (cf. Jo 1.5, 3.19; At 26.18; Rm 2.19; 1Co 4.6; 1Pe 2.9; 1Jo 2.8-11), e especialmente por uma muita luz; os conhecimentos ocultam a ignorância, especialmente [quando são] muitos conhecimentos. Assumindo tais coisas excessivamente, não segundo a privação, enuncia super-verdadeiramente que a verdadeira luz esconde-se aos que [a] possuem, e a ignorância segundo Deus se esconde ao conhecimento dos entes, e as Suas trevas supereminentes são ocultas a toda luz e fogem a todo conhecimento. E se alguém que, vendo Deus, entendeu o que viu, não viu a Ele (cf. Jo 1.18; 3Jo 1.11; CH II, 3; IV, 3), mas alguma coisa daquelas que, sendo dEle, são existentes e conhecidas: Ele mesmo, porém, é super-colocado acima de toda mente e substância, à medida que é dito nem ser conhecido, nem existir, mas existe super-substancialmente e é conhecido acima da mente, e a perfeita ignorância no melhor sentido é que é o conhecimento daquele que está acima de tudo que é conhecido. 


A. Proêmio.

1. “A quem foi revelada a raiz da sabedoria? Quem pode discernir os seus artifícios? A quem foi mostrada e revelada a ciência da sabedoria? Quem pode compreender a multiplicidade de seus caminhos?” (Eclo. 1.6-7); estas palavras competem à matéria e ao assunto desta epístola; pois, a quem foi revelada a sabedoria? Quem conhece a sabedoria? Quem pode compreender todas as coisas? Quem conhecem algo a respeito da Sabedoria suprema? A resposta: somente Deus, o Altíssimo; ninguém, senão Ele conhece os caminhos da sabedoria e do conhecimento; a respeito do que o próprio Sirach responde a indagação que pusera: “Somente o Altíssimo, criador onipotente, rei poderoso e infinitamente temível, Deus dominador, sentado no seu trono” (Eclo. 1.8).

2. Portanto, todos os homens são envoltos na ignorância das coisas divinas; por isso, diz a Escritura que não há ninguém que entenda (cf. Rm 3.11); logo, entre os homens não há ninguém que consiga alcançar os mistérios da revelação e da sabedoria divina per se; portanto, todos estão envoltos nas trevas da ignorância; pois, o Senhor Altíssimo, só revela estas coisas, àqueles que em temor, reverência e obediência se aproximam dEle. “O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria” (Pv 9.10a).

Pois, aqueles que se achegam a Ele em temor, reverência e sinceridade, Ele não lança fora. “o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora” (Jo 6.37b). Logo, àqueles que se aproximam de Deus, em temor e reverência, o bondoso Deus concede o conhecimento concernente a Si, isto é, para todos aqueles que o amam. “Ele a concede àqueles que o amam” (Eclo. 1.10b).

Assim, no temor do Senhor, Ele se dá a conhecer; pois, a medida que se aproximam de Deus em temor e reverência, o próprio Deus concede o conhecimento de Si; e nisto está a verdadeira glória dos homens, como diz a Escritura: “Mas o que se gloriar glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor” (Jr 9.24a).

3. Pois, o verdadeiro conhecimento de Deus, produz nos homens dois efeitos: primeiro, o entendimento da miséria espiritual que é inerente ao ser humano. “Então, disse eu: ai de mim, que vou perecendo! Porque eu sou um homem de lábios impuros e habito no meio de um povo de impuros lábios; e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos!” (Is 6.5).

Segundo, uma profunda gratidão, já que aqueles que O conhecem, compreendem que se não fora a obra dEle em se revelar, não haveria como conhecê-Lo. “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11.25). “Que darei eu ao Senhor por todos os benefícios que me tem feito? Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor(Sl 116.12-13).

E, isto se coaduna com as proposições desta epístola, já que estas palavras demonstram o que concerne ao “conhecimento daquele que está acima de tudo que é conhecido”. Logo, etc.


B. Comentário.

1. As quatro primeiras epístolas são direcionadas a Gaio[1], nas quais Pseudo-Dionísio trabalha o tema do conhecimento a respeito de Deus, a partir de noções presentes nas obras “De Mystica Theologia” e “De Divinis Nominibus”, muito provavelmente por dúvidas e dúbias que surgiram de Gaio a este respeito, como consta descrito pela maior parte dos comentaristas medievais e como em alguns aspectos as próprias epístolas demonstram; assim, são epístolas com vista a resolver as dificuldades e problemas na compreensão a respeito dos temas comuns a estas obras mencionadas.

2. Mas, não somente isso, pois, estas quatro epístolas, evocam temas teológicos de suma importância; e, ao evocar estes temas, os coloca em ordem ao preceito de que tudo na doutrina sagrada refere-se a Deus e as coisas que a Ele estão de algum modo são ordenadas (cf. STh Ia, q. 1, a. 7, co. e ad. 2). E, as quatro epístolas a Gaio estão imbuídas em ordem a este preceito: as epístolas I e II, a respeito de Deus; as epístolas III e IV, que se referem a “divindade na humanidade[2], ou sobre a humanidade de Deus.

3. Na epístola I, Pseudo-Dionísio trabalha as questões referentes ao conhecimento de Deus, que surgem a partir das proposições da obra “De Mystica Theologia” como é evidente no texto; e, nesta epístola, Pseudo-Dionísio faz três coisas: primeiro, estabelece o assunto; segundo, analisa a proposição concernente ao conhecimento a respeito de Deus; terceiro, estabelece o modo correto de se buscar o conhecimento a respeito de Deus.

4. Primeiro, estabelece o assunto, onde diz: “As trevas ocultam-se pela luz (cf. Jo 1.5, 3.19; At 26.18; Rm 2.19; 1Co 4.6; 1Pe 2.9; 1Jo 2.8-11), e especialmente por uma muita luz; os conhecimentos ocultam a ignorância, especialmente [quando são] muitos conhecimentos”; e o assunto diz respeito a possibilidade se conhecer algo sobre Deus; e, para isso, Pseudo-Dionísio utiliza-se de duas figuras naturais, as trevas e a luz; as trevas como ausência de luz, isto é, de compreensão; a luz como a compreensão; logo, as “trevas ocultam-se pela luz”, isto é, a ausência de compreensão sobre algo se oculta a medida que se diz compreender alguma coisa sobre este algo; e, quanto mais luz, isto é, mais compreensão, mais as trevas, isto é, mais a não-compreensão se torna evidente; pois, quanto mais se acha que se compreende algo, mas este algo se torna oculto e incompreensível.

5. E, em se tratando de Deus isto é evidente; pois, Deus, é um Deus abscôndito (cf. Is 45.15); além disso, a glória de Deus é encobrir o negócio (cf. Pv 25.2). Logo, quanto mais se acha que se compreende a Deus, mais não se o compreende; pois, muitos conhecimentos ocultam a verdadeira ignorância a respeito do objeto dito conhecido; e, Deus oculta-se aos que acham que o conhecem, e se revela aos humildes, tal como diz o Senhor Jesus: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11.25).

Por isso, na obra “De Mystica Theologia”, Pseudo-Dionísio aconselha: “despojado de conhecimento, avança, na medida do possível, até à união com aquele que está acima de toda a substância e de todo o conhecer” (MT I, § 1); ora, despojado de todo “falso conhecimento”, de toda auto-justificação humana, se pode prosseguir no conhecimento a respeito de Deus, pois, somente assim, se consegue prosseguir para a comunhão com Deus, Aquele que está acima e além de todo o conhecer.

6. Portanto, as trevas da ignorância se tornam ainda mais evidentes e ainda mais manifestas a medida que se “burocratiza” e/ou se “institucionaliza” o conhecimento sobre Deus; donde, quando isso ocorre, quanto mais se diz conhecer a Deus, mas se o desconhece; e destes, Deus se oculta. E Pseudo-Dionísio quer justamente dizer isto ao falar sobre este aspecto de uma dúvida de Gaio que surgiu a partir da leitura do início da obra “De Mystica Theologia”. Mas, esta é uma verdade, pois, se não se proceder de maneira condigna, sincera, com temor, perseverança e piedade, naquilo que o próprio Deus exige daqueles que se aproximam dEle (cf. Hb 11.6), então, quanto mais se diz conhecer algo a respeito de Deus, mais o conhecimento sobre Deus se torna oculto e raro, tal como aconteceu nos tempos dos juízes, onde as visões eram raríssimas (cf. 1Sm 3.1).

Logo, as trevas do não-conhecimento, é o primeiro ato de reconhecimento daquele que busca conhecer algo sobre Deus; sem este reconhecimento, e sem o conhecimento do que significam estas trevas de que fala Pseudo-Dionísio, se torna impossível de conhecer algo sobre Deus e a respeito de Deus.

7. Segundo, analisa a proposição concernente ao conhecimento a respeito de Deus; pois, Pseudo-Dionísio prossegue depois de ter estabelecido a questão e formulado um axioma a respeito do conhecimento sobre Deus, para demonstrar no que consiste verdadeiramente o conhecimento a respeito de Deus. E, sobre isso, faz três coisas: primeiro, demonstra a abscondicidade da verdadeira luz; segundo, a proposição da ignorância segundo Deus; terceiro, que a caligine divina ocultam-se de todo conhecimento.

8. Analisemos estes três aspectos. Quanto ao primeiro, se demonstra onde diz: “Assumindo tais coisas excessivamente, não segundo a privação, enuncia super-verdadeiramente que a verdadeira luz esconde-se aos que [a] possuem”; ora, a luz, existe para iluminar; mas, em se tratando da fonte de luz e de toda iluminação (cf. Tg 1.17), quanto mais se diz tê-la, mas esta se esconde; a verdadeira luz, a fonte de toda iluminação, é abscôndita; a abscondicidade da verdadeira luz, a fonte de toda iluminação, é o primeiro aspecto a ser conhecido e reconhecimento para que se possa receber algo desta iluminação; até mesmo este reconhecimento é obra graciosa do Pai das Luzes, é dádiva imerecida; logo, ao se “assumir tais coisas excessivamente”, isto é, de assumi-las de maneira desequilibrada, insolente e luxuriosa, e com o qualificativo de não ser segundo a privação, isto é, sem ser uma negação absoluta (o que em si, é impossível!), logo, se pode enunciar um axioma apodítico da reflexão teológica e da teologia, a saber: o enunciado de que, super-verdadeiramente, isto é, amparado na suma-verdade, a verdadeira luz esconde-se, isto é, oculta-se aos que a possuem, isto é, oculta-se àqueles que dizendo possui-la, não a receberam verdadeiramente. Pois, como afirma Pseudo-Dionísio, não é lícito dar aos porcos o esplendor das pérolas espirituais (cf. CH II, § 5).

9. Quanto ao segundo, se demonstra onde diz: “e a ignorância segundo Deus se esconde ao conhecimento dos entes”; e, nisto, Pseudo-Dionísio estabelece outro axioma da reflexão teológica, a saber, o da ignorância segundo Deus; ora, existem dois tipos de ignorância: uma em relação as coisas humanas, que pode ser descrita ou como imbecilidade ou como falta de conhecimento; a outra em relação as coisas divinas, que pode ser descrita de dois modos: ou como falta de conhecimento sobre as coisas de Deus, que traz destruição (cf. Os 4.6), ou então como ignorância segundo Deus, o verdadeiro conhecimento espiritual.

Logo, somente aqueles que são açambarcados pela ignorância segundo Deus, é que verdadeiramente possuem algum conhecimento a respeito de Deus; pois, Deus outorga o conhecimento de Si, àqueles que o buscam reconhecendo suas misérias e ignorâncias ante Sua majestosa presença; ou, como Santo Agostinho afirmara: “Zombem de nós os fortes e poderosos: nós, miseráveis e fracos, não cessaremos de nos confessar a ti[3]. 

10. Quanto ao terceiro, se demonstra onde diz: “e as Suas trevas super-eminentes são ocultas a toda luz e fogem a todo conhecimento”; e, isto se dá deste modo, pois, o verdadeiro conhecimento de Deus, envolto em Suas trevas super-eminentes, se ocultam a toda a luz, isto é, a toda e qualquer forma de iluminação, pois, Deus habita numa luz inacessível (cf. 1Tm 6.16); logo, esta luz inacessível, são ocultas a todas as luzes acessíveis, e fogem a todo conhecimento, isto é, estão acima de toda definição e de todo conhecimento, pois, segundo o próprio Pseudo-Dionísio, é algo indizível.

Ora, o que é indizível está acima de toda luz acessível e de todo conhecimento, pois, é luz inacessível, e, por isso está acima de todo conhecimento e de todo ato intelectivo, isto é, de toda intelecção possível. Por isso o próprio Pseudo-Dionísio afirma: “isto, porque ela se encontra acima de todas as coisas, de um modo mais que substancial, e só se manifesta sem véus, na sua verdade plena, aos que transpõem tudo o que é impuro e o que é puro, que em cada subida se elevam além de todos os cumes santos e deixam para trás todas as luzes divinas, todos os sons e palavras do céu, penetrando na treva onde na realidade está - conforme dizem as Escrituras - aquele que tudo transcende” (cf. MT I, § 3).

11. E, “aquele que tudo transcende” (Epékeina), é um termo que Pseudo-Dionísio toma emprestado de Platão, ao este se referir-se a transcendência do Bem[4]; logo, aquele a quem a Escritura se refere como transcendente a tudo e a todos, só é conhecido por aquele adentra na caligine onde na realidade está, isto é, aquilo que segundo São Gregório de Nissa, a partir do episódio de Moisés no Monte Sinai (cf. Êx 20), evoca a entrada na “treva da incognoscibilidade[5], tal como diz o texto sagrado: “Moisés, porém, se chegou à escuridade, onde Deus estava” (Êx 20.21b).

12. Portanto, o verdadeiro conhecimento a respeito de Deus, só é outorgado por Deus, àqueles que se chegam a esta escuridade, que está além de todo conhecimento sensível e inteligível, e que só é outorgada àqueles que se achegam a Deus pela fé, tal como Moisés; e, neste sentido, se pode afirmar o que o autor aos Hebreus afirmara: “Ora, sem fé é impossível agradar-lhe, porque é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que é galardoador dos que o buscam” (Hb 11.6). Este é o significado teológico do que Pseudo-Dionísio evoca sobre a escuridade, sobre as trevas super-eminentes dAquele que a tudo e a todos transcende; e é neste sentido que se elucubra sobre a infinitude de Deus, Aquele que excede totalmente a intelecção humana.

13. Terceiro, estabelece o modo correto de se buscar o conhecimento a respeito de Deus; e, Pseudo-Dionísio, após designar o que realmente significa o conhecimento a respeito de Deus, prossegue para estabelecer os preceitos do que verdadeiramente significa conhecer a Deus, ou dito de outro modo, estabelece o modo correto de se buscar conhecimento a respeito de Deus. E, sobre isso, faz três coisas: primeiro, estabelece uma pressuposição sobre aquele que diz que viu a Deus; segundo, estabelece o modo como Deus é conhecido; terceiro, esclarece a proposição sobre a ignorância segundo Deus.

14. Quanto ao primeiro, se demonstra onde diz: “E se alguém que, vendo Deus, entendeu o que viu, não viu a Ele (cf. Jo 1.18; 3Jo 1.11), mas alguma coisa daquelas que, sendo dEle, são existentes e conhecidas”; ora, aquele que diz que viu a Deus, na verdade, não viu a Deus, pois, a Escritura diz: “Deus nunca foi visto por alguém” (Jo 1.18a). Pois, só se compreende algo sobre Deus, a partir das coisas criadas, que são existentes e conhecidas, as quais, sendo existentes, o são para serem conhecidas. Logo, por analogia, a partir das coisas criadas se consegue conhecer algo sobre o Criador. “De fato, partindo da grandeza e beleza das criaturas, pode-se chegar a ver, por analogia, o seu Criador” (Sb 13.5).

15. Portanto, ninguém que diz que conheceu a Deus, o conheceu realmente; mas viu algo sobre Ele em alguma de suas criaturas; pois, somente Cristo desvela plenamente o conhecimento sobre Deus. “O Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o fez conhecer” (Jo 1.18b). Pois, quem vê a Cristo vê a Deus, como o próprio Senhor Jesus afirmara: “Quem me vê a mim vê o pai” (Jo 14.9b). Por isso, ninguém vê a Deus senão o ver em Cristo; pois, é Cristo quem desvela a abscondicidade de Deus. Em Cristo, o Deus ábdito, é tornado manifesto; por isso, o Apóstolo diz que na face de Cristo está disposto todo o conhecimento da glória de Deus (cf. 2Co 4.6).

Donde, o próprio Pseudo-Dionísio, após responder as dúvidas a respeito de Deus, prossegue diretamente para as questões concernentes a Encarnação, pois, quem desvela o conhecimento de Deus é Cristo; e, por esta razão, que Tomás, na Suma Teológica, após considerar Deus e sua criação (Ia), e a criação do homem (IaIIae) e sua finalidade (IIaIIae), passa a analisar o mistério da Encarnação (IIIa). E, isto não somente é uma ordem lógica e sequencial, mas é a ordem dos mistérios da fé conforme a própria revelação.

E, neste mesmo sentido, Barth ao evocar a centralidade do Deus Trino na revelação (§§ 8-12), passa a elucubrar sobre a encarnação do Verbo (§§ 13-15)[6]; etc.

Ou seja, tudo na revelação, está em ordem a Deus, e se torna plenamente conhecível a partir da Encarnação do Verbo, e entendível a partir da obra do Espírito (cf. Jo 14.26; 1Jo 2.27).

16. Quanto ao segundo, se demonstra onde diz: “Ele mesmo, porém, é super-colocado acima de toda mente e substância, à medida que é dito sem ser conhecido, nem existir, mas existe super-substancialmente e é conhecido acima da mente”; ora, se ninguém viu a Deus, então, ninguém o conheceu plenamente; logo, Deus é colocado acima de toda mente, isto é, de toda compreensão racional, e de toda substância, isto é, de todo singular elucubrável pela mente humana, pois, se se afirma algo sobre Deus, se diz algo sobre o indizível sem verdadeiramente tê-lo conhecido; logo, Ele existe super-substancialmente, isto é, existe de maneira que está acima de toda substância humana elucubrável, e somente é conhecido neste quesito, estando acima da mente, de toda compreensão racional. Pois, assim, a glória humana, a soberba humana se esvai, já que só se compreende algo sobre a essência de Deus a partir de Cristo.

Isto, em si, demonstra a verdadeira glória de Deus, em se revelar para aqueles que não o conhecem, e se ocultar daqueles que o buscam sem sinceridade e em meio a inverdades; Ele é dito sem ser conhecido, isto é, dEle é dito coisas indizíveis; o próprio Apóstolo tendo contemplado algo dEle em uma visão, disse que o que ouvira palavras inefáveis (cf. 2Co 12.4); se no próprio céu existe as palavras inefáveis, então, na imperfeita e limitada compreensão humana, tais palavras serão indizíveis, isto é, estão além de toda compreensão e além de todo dito, pois, Ele e as coisas que a Ele concerne, encontram-se na esfera daquilo que para ser dito carece de palavras (cf. MT I, § 3); mas Deus, existe e é conhecido somente acima de toda compreensão, isto é, além de toda sabedoria humana carnal e vã; e isto, “para que nenhuma carne se glorie perante ele” (1Co 1.29). E, este é o único modo pelo qual verdadeiramente Deus é conhecido, para que aquele que se glorie, se glorie no Senhor (cf. Jr 9.24).

17. Quanto ao terceiro, se demonstra onde diz: “a perfeita ignorância no melhor sentido é que é o conhecimento daquele que está acima de tudo que é conhecido”; e, por último, Pseudo-Dionísio esclarece a proposição sobre a ignorância segundo Deus; ora, a ignorância segundo Deus, tal como fora afirmado anteriormente (n. 9), é o verdadeiro sentido do conhecimento sobre Deus; somente aqueles que são ignorantes segundo Deus, é que possuem o verdadeiro conhecimento a respeito de Deus; pois, a estes Deus se revela. Logo, esta ignorância, a “perfeita ignorância”, a ignorância segundo Deus, é a base do conhecimento dAquele que está acima de tudo o que é conhecido.

18. Este é o verdadeiro conhecimento a respeito de Deus, o conhecimento daqueles que estão nesta “perfeita ignorância”, os quais, tal como Moisés, se chegam a escuridade onde Deus se encontra (cf. Êx 20.21b); ou como o próprio Pseudo-Dionísio diz, na bruma do não-conhecimento (cf. MT I, § 1). E, isto, tanto diz respeito a impossibilidade humana de conhecer a Deus per se, quanto demonstra o único caminho de se aproximar de Deus, a saber, através dAquele que desvela plenamente a Deus; sobre quem o Apóstolo afirma: “Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção; para que, como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (1Co 1.30-31). Em Cristo e através de Cristo, é que os homens podem verdadeiramente se gloriar em Deus; nEle é que a razão plena da expressão do profeta Jeremias, “aquele que se glorie, glorie-se no Senhor”, se torna plenamente entendida.

E, o entendimento sobre estes aspectos, é o que perfaz plenamente a epístola I de Pseudo-Dionísio, a respeito da dúvida de Gaio no que concerne a leitura do primeiro capítulo da obra “De Mystica Theologia”, mas que também está em ordem a vários aspectos do programa teológico dionísico.


C. Dúbias.

Em relação as pressuposições estabelecidas ao se explicar a epístola I, surgiram duas dúbias:

Primeiro, se o intelecto humano, iluminado pela luz inferior e pela luz interior, ao defrontar-se com a luz superior, se torna envolto na caligine divina.

Segundo, se Deus, a fonte da luz, é abscôndito.

 

<Dúbia I>

Acerca da primeira, procede-se assim: se o intelecto humano, iluminado pela luz inferior e pela luz interior, ao defrontar-se com a luz superior, se torna envolto na caligine divina.

E parece que não.

I. [Argumentos].

1. A luz inferior, a luz do conhecimento sensitivo, é suficiente no que tange as coisas necessárias para o ser humano; ora, como o conhecimento sensitivo é o único meio para se obter o conhecimento, logo, o que se pode conhecer pelos sentidos, é parte da iluminação concernente a compreensão; pois, segundo o Filósofo, a natureza não falha nas coisas necessárias (cf. De An. 432b21); logo, se existe a luz inferior a mesma é suficiente nas coisas necessárias, então, também é suficiente per se para ser iluminada pela luz superior; portanto, o intelecto, iluminado pela luz inferior, não se torne envolto na caligine divina ao ser envolto com a luz do conhecimento superior.

2. Ademais, a luz interior, a luz do conhecimento filosófico, sendo superior a luz do conhecimento inferior, alcança ainda mais luz do que este; por isso, se a luz inferior é suficiente nas coisas necessárias, ainda mais o será a luz interior, já que conduz os homens a sabedoria, a saber, a filosofia; e a filosofia é chamada de conhecimento da verdade (cf. Met. 993b20); por isso, sendo a luz interior a do conhecimento da verdade, e, sendo Deus, a suma-verdade, então, a luz interior é suficiente para se conhecer a Deus. Portanto, o intelecto, munido da luz interior, ao defrontar-se com a luz superior, não é envolto na caligine divina.

3. Ademais, as duas luzes da ordem intelectual, sendo amalgamadas e subsequentes são suficientes em tudo o que é necessário para o ser humano conhecer, principalmente para o conhecimento da verdade; ora, a verdade é o termo para o qual tende o intelecto (cf. STh Ia, q. 16, a. 1, co.), então, por estas luzes, o intelecto pode conhecer a suma verdade já que existe propriamente para isso; portanto, o intelecto humano, iluminado pela luz inferior e pela luz interior, ao defrontar-se com a luz superior, não se torna envolto na caligine divina, pois, o conhecimento a respeito de Deus é naturalmente inserido na luz inferior e na luz interior; na luz inferior enquanto apreensível pelos sentidos, e na luz interior enquanto demonstrável pela ciência demonstrativa.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, diz a Escritura: “O Senhor disse que habitaria nas trevas” (1Rs 8.12); logo, o intelecto, ao contemplá-lo é envolto nestas trevas ou caligine.

2. Além disso, Moisés ao contemplar a Deus, o contemplara na escuridade, na caligine, tal como diz a Escritura: “Moisés, porém, se chegou à escuridade, onde Deus estava” (Êx 20.21b); logo, foi envolto na caligine divina.

3. Além disso, a Escritura afirma que Deus habita numa luz inacessível (cf. 1Tm 6.16); ora, quanto mais luz, mais trevas se dão no entendimento; e, como Deus é a Luz mais que luminosa, ou Super-Luminosa, o intelecto ao contemplá-lo é envolto em trevas maiores do que os olhos ao contemplarem diretamente o sol.

III. [Solução].

1. O Filósofo, no livro II da Metafísica, afirma que do mesmo modo como os olhos do morcego estão para a luz do sol, assim ocorre com o intelecto em relação àquelas coisas que são (cf. Met. 993b11-12); logo, a luz inferior e a luz interior, em si mesmas, são insuficientes para o conhecimento das coisas que são; ora, o intelecto ao contemplar as coisas que são, do mesmo modo como os olhos do morcego ao ver a luz do sol, defronta-se com a caligine. Pois, do mesmo modo como trevas é ausência de luz, muita luz também gera trevas ainda maiores e mais densas.

2. E, como Deus, Luz de Luz, o Pai das luzes (cf. Tg 1.17), habita além da compreensão humana, na luz inacessível (cf. 1Tm 6.16), tanto a luz inferior quanto a luz interior são insuficientes para alcançar a compreensão de Sua luz; logo, estas luzes, ao defrontarem-se com a luz do Pai das luzes, são envoltas na escuridão, proveniente da Super-Luminosidade desta Luz; assim, o intelecto, seja pela luz inferior seja luz interior, ao se defrontar com a luz superior, é envolto na caligine, na escuridão que o cega para contemplar esta Luz; e isto mostra a incapacidade tanto da luz inferior quanto da luz interior para a percepção e a compreensão da luz superior, a qual, só se dá como efeito da graça, que tira as trevas dos olhos para que o homem possa contemplar a Deus iluminado com a luz superior; isto é, a graça torna os homens idôneos para serem iluminados com a luz superior, tal como diz o Apóstolo: “dando graças ao Pai, que nos fez idôneos para participar da herança dos santos na luz” (Cl 1.12).

3. Portanto, o intelecto ao ser iluminado com a luz superior, torna tanto a luz inferior quanto a luz interior, envoltas na caligine, a qual sobreleva-se infinitamente a capacidade destas luzes de contemplar a Deus; por isso, a caligine as envolve, tanto para demonstrar a falta de idoneidade das mesmas per se para contemplar a Deus, quanto para demonstrar a excelência do efeito da graça, em tornar os homens idôneos para contemplar e ver a Deus em Cristo através do Espírito.

Pois, o Espírito ilumina os homens e os conduz em meio a caligine para que estes possam contemplar a Deus nesta vida por hábito da graça, tal como o Apóstolo afirma: “tendo iluminados os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual seja a esperança da sua vocação e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos” (Ef 1.18). E, somente aqueles que foram envoltos na caligine, é que compreendem, pelo efeito da graça, aquilo que o Espírito os conduz para compreender, a saber: primeiro, a esperança da sua vocação, isto é, o fim da fé (cf. 1Pe 1.9). Segundo, as riquezas da glória da sua herança nos santos (cf. Ef 1.3).

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro, se responde que a luz inferior, é o ponto de partida para a obtenção do conhecimento a partir do contato com a realidade; por isso, pela abstração dos sentidos, se forma aspectos concernentes a compreensão; mas, o que se conhece pelos sentidos, é o que alcançado pela experiência sensível; todavia, existem coisas que estão além da experiência sensível; logo, o conhecimento sensível não é suficiente para o conhecimento destas coisas; portanto, mesmo que a natureza não falhe nas coisas necessárias, a luz inferior não é suficiente para o conhecimento das coisas que transcendem os sentidos; por isso, a luz inferior não é suficiente per se, para ser iluminada pela luz superior, pois esta transcende o conhecimento comum a ordem do conhecimento sensível; portanto, o intelecto, iluminado pela luz inferior, se torna envolto na caligine de quando defronta-se com a luz superior; e isto, por dois motivos: primeiro, pela sobre-excelência da luz superior, que excede a da luz da iluminação inferior; segundo, pela Super-Luminosidade da luz superior, que transcende infinitamente a luz da iluminação inferior.

2. Quanto ao segundo, se responde que a luz interior, embora tenha alcance maior de iluminação do que a luz inferior, defronta-se com coisas que estão além do conhecimento filosófico; pois, além das doutrinas filosóficas, é necessário outra doutrina, a saber, a revelada (cf. STh Ia, q. 1, a. 1, co.); logo, a luz interior é suficiente nas coisas filosóficas, mas insuficiente nas coisas reveladas; portanto, sendo a filosofia o conhecimento da verdade, a luz interior é suficiente para este conhecimento, mas apenas alcança a verdade racional, e não a verdade revelada; logo, somente com a luz superior, o intelecto alcança a compreensão da verdade revelada; pois, sendo Deus a suma-verdade, é verdade que transcende a compreensão da verdade racional; portanto, a luz interior é insuficiente para se conhecer a Deus, já que para o conhecimento que transcende as coisas naturais, o intelecto, segundo o Filósofo, acha-se na mesma condição de um homem amarrado (cf. Met. 994a32); portanto, o intelecto, mesmo munido da luz interior, ao defrontar-se com a luz superior, é envolto na caligine divina, pela excelência da luz superior em relação a ordem dos assuntos filosóficos.

3. Quanto ao terceiro, se responde que, embora as duas luzes da ordem intelectual sejam suficientes nas coisas naturais, estas são insuficientes para o conhecimento das coisas que transcendem a verdade racional; ora, do mesmo modo como o intelecto é o termo para o qual tende o intelecto, e isto se referir primeiramente a verdade racional, este tender também se refere a verdade revelada, pela qual o homem atinge o conhecimento de seu fim último; por isso, se tende para a verdade revelada, então, somente pela luz superior, o homem alcança seu fim; pois, pelas luzes da ordem intelectual, o homem per se não conhece a suma-verdade; logo, somente iluminado pela luz superior, o homem conhecimento seu fim último; pois, conquanto se tenha certo conhecimento de Deus de maneira ínsita no intelecto, este conhecimento é parcial e fragmentário (cf. Rm 1.20-21); logo, é necessário a luz superior para que outorgue o conhecimento de Deus de forma cabal; portanto, o intelecto, ao ser iluminado pela luz superior, é envolto na caligine, pois, Deus está para além do sensível e do inteligível; logo, em relação a luz inferior Deus não é apreensível pelos sentidos já que transcende os sentidos, e na luz interior Deus, em relação somente a verdade racional, não é demonstrável pela ciência demonstrativa já que está além de toda demonstração, muito embora, pela fraqueza do intelecto, possa ser demonstrável como Ser existente como parte daquilo que o Teólogo corretamente chamara de preambula fidei (cf. STh Ia, q. 2, a. 2, ad. 1).

 

<Dúbia II>

Acerca da segunda, procede-se assim: se Deus, a fonte da luz, é abscôndito.

E parece que não.

I. [Argumentos].

1. A Escritura afirma: “Os céus manifestam a glória de Deus, etc.” (Sl 19.1ss); ora, o que é manifesto, não é abscôndito; portanto, Deus, a fonte da luz, não é abscôndito.

2. Ademais, o Apóstolo assevera: “porquanto o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou” (Rm 1.19); ora, se Deus manifestou o conhecimento de si, isto significa que não é abscôndito, pois, o que é abscôndito não é manifesto; portanto, Deus, a fonte da luz, não é abscôndito.

3. Ademais, se Deus é a fonte da luz, pois, é o Pai das luzes (cf. Tg 1.17), então, por ser luz, é conhecido; pois, é característica da luz é ser manifesta; ora, se Deus é luz então é manifesto; e se é manifesto, é conhecido; portanto, Deus, a fonte da luz, não é abscôndito.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, diz o Príncipe dos Profetas: “Verdadeiramente, tu és o Deus que te ocultas, o Deus de Israel, o Salvador” (Is 45.15); ora, o Deus verdadeiro é um Deus que se oculta, isto é, é abscôndito; portanto, Deus, a fonte da luz, é um Deus abscôndito.

2. Além disso, diz o texto sapencial: “A glória de Deus é encobrir o negócio” (Pv 25.2); ora, se a glória de Deus é encobrir, então, é um Deus que se oculta; portanto, Deus, a fonte da luz, é um Deus abscôndito.

III. [Solução].

1. A Sagrada Escritura apresenta Deus como luz (cf. 1Jo 1.5); logo, ao descrevê-Lo deste modo, também apresenta Ele a partir da natureza da luz; e, pela natureza da luz, se sabe que a mesma possui três efeitos: primeiro, a luz ilumina; segundo, a luz aquece; terceiro, a luz é simples in se. Ora, estes três efeitos se aplicam a Deus: primeiro, Deus ilumina. “Olharam para ele, e foram iluminados” (Sl 34.5a). Segundo, Deus aquece. “Porque o SENHOR, teu Deus, é um fogo que consome, um Deus zeloso” (Dt 4.24). Terceiro, Deus é um ser simples per se, isto é, é absolutamente simples (cf. STh Ia, q. 3, a. 7, co.).

2. Portanto, Deus sendo ser simples, não pode ser composto, logo, sendo luz, não constitui-se de trevas; portanto, isso parece impugnar a proposição de que Deus é abscôndito; no entanto, Deus é luz em Seu ser, em si mesmo, já que é absolutamente simples; agora, ao se afirmar que Deus é abscôndito, se refere em relação a como Deus se oculta em relação aos homens, pois, Deus se oculta, para que os homens, em suas sabedorias carnais e pecaminosas, não o possam conhecer, tal como diz o Apóstolo: “para que nenhuma carne se glorie perante ele” (1Co 1.29); e, para que aqueles que o conhecem, o conheçam através do efeito da graça, que Ele outorga aos eleitos, e, com isso, receba toda honra e glória.

3. Deste modo, Deus é luz, e é abscôndito; é luz inacessível, e por isso, abscôndito; pois, os homens, em suas naturezas pecaminosas não podem por si mesmos se achegar até Deus, a não ser por efeito da graça, que os torna capazes de se aproximar de Deus, com o propósito de viverem diante de dEle, e para a glória dEle, para que então, possam contemplá-lo, ainda que nesta vida em enigma por espelho (cf. 1Co 13.12); mas, a visão embaçada, ainda é mais visão do que a não-visão do ocultamento e da abscondicidade. E a glória de Deus é manifesta em o mesmo se esconder e em se mostrar; em se esconder dos homens naturais, que o rejeitam e o desprezam; e se mostrar àqueles que se achegam a Ele como efeito da graça através da caligine, tal como Moisés; se esconde dos homens naturais, e se mostra (revela) aos fiéis; isto, se enquadra na afirmação de Agostinho: “Poder ter fé, como poder ter caridade, pertence à natureza dos homens, embora ter fé, como ter caridade, pertence à graça dos fiéis” (De Praed. Sanct., cap. V). À natureza dos homens naturais, Deus se esconde; pela graça outorgada aos fiéis, Deus se mostra e se revela.

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro se responde que a manifestação da glória de Deus na criação, refere-se a demonstração de Sua existência e de seu Eterno poder, como diz o Apóstolo em Rm 1; portanto, em relação a compreensão natural sobre Sua existência, Deus se mostra em suas obras, para que todos os homens fiquem inescusáveis (cf. Rm 1.20); entretanto, em relação a Seu Ser, em Sua essência, Deus permanece abscôndito, já que a revelação pela natureza é sobre a Criação, Seu eterno poder e Divindade, mas não sobre Seu caráter e essência; logo, Deus, a fonte de luz, em Seu ser, permanece oculto aos homens naturais.

2. Quanto ao segundo se responde que a manifestação do conhecimento de Deus na Criação, é para demonstrar que todos os homens são indesculpáveis por não o conhecerem e não o adorarem como Deus, tal como diz o Apóstolo: “porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu” (Rm 1.21); logo, se foram obscurecidos, não compreenderam verdadeiramente quem Deus é; portanto, a estes, Deus permanece abscôndito. Logo, Deus, a fonte da luz, é abscôndito.

3. Quanto ao terceiro se responde que, embora Deus seja o Pai das luzes e a fonte de toda iluminação, tanto na ordem das coisas naturais, quanto na ordem das coisas espirituais, a manifestação de sua luz se dá de modo diverso: nas coisas naturais, para todos os homens conhecerem; nas coisas espirituais, para aqueles que foram redimidos pela graça, como efeito da própria graça; logo, de um modo é manifesto, de outro é abscôndito; nas coisas naturais, manifesto; nas coisas espirituais, abscôndito; portanto, Deus, a fonte da luz, em relação as coisas espirituais, é abscôndito.

4. Quanto ao quarto se responde que, Deus é luz, pois, é ser simples, e o ser simples não é composto; logo, enquanto luz não há nEle treva nenhuma; todavia, em relação a compreensão sobre Seu ser, em um sentido é manifesto, em outro é oculto; é manifesto na criação, enquanto todos podem conhecê-Lo como Criador; é oculto na salvação, enquanto é conhecido somente pelos eleitos pelo efeito da graça quando estes O conhecem como Salvador. 



[1] A tradução latina estabelece o nome Caius (Caio); aqui opta-se por manter uma transliteração mais perto do texto grego, e se estabelece o nome Gaio, nas epístolas I a IV.

[2] cf. Alberto Magno, Commentari In Epistolas B. Dionysii Areopagitae, epist. I, A, In: Op. Om., XIV, 869.

[3] Santo Agostinho, Confissões [Coleção Clássicos de Bolso. São Paulo: Paulus, 2002], livro IV, cap. 1, n. 1, pág. 90.

[4] cf. Platão, República, 509b.

[5] cf. São Gregório de Nissa, De Vita Moysis, pars II.

[6] cf. Karl Barth, Church Dogmatics I/2 [T. & T. Clark, 1956].


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