1. A compreensão sobre o dogma da imaculada conceição
é um tema controverso; pois, é um dogma; todavia, a forma como se apresenta
este dogma não está em conformidade com o que a Palavra de Deus afirma e nem
com o que os Concílios Ecumênicos afirmaram sobre a regra de fé e prática da
cristandade com respeito a este assunto.
2. E, para melhor compreender o que é a imaculada
conceição, se volta as pressuposições de Tomás de Aquino; evidentemente, se
sabe que Tomás não elaborou uma análise aprofundada, ordenada e específica
sobre este assunto; todavia, deixou pressuposições e ponderações, as quais são
suficientes para se compreender alguns aspectos do que concerne a imaculada
conceição enquanto dogma em relação a cristandade latina; pois, todos os dogmas
da fé estão em ordem a Santíssima Trindade, ou do contrário não são dogmas.
3. E, em relação a compreensão de Tomás sobre a
imaculada conceição, se tem três textos, de momentos distintos da obra do
aquinate, mas que mesmo que tenham sido de períodos diferentes de sua vida, se se
compreender no contexto em que foram afirmadas tais pressuposições e a razão
das mesmas, se observa que Tomás deixou vários aspectos importantes para a
elucubração sobre a imaculada conceição. E diferentemente do que propugna
Garrigou-Lagrange, Tomás não teve três diferentes posições sobre a imaculada
conceição, mas três distintas ponderações, dado o contexto e o propósito de
seus escritos que versam sobre este assunto.
I. A preservação da Virgem quanto a concepção de
Cristo.
4. O primeiro texto de Tomás sobre este assunto é o do
comentário as Sentenças de Pedro Lombardo, no qual o aquinate assevera: “Entendemos
que se alcança a pureza mediante uma separação do contrário. Por isso, entre as
realidades criadas pode haver algo criado em que nada pode ser mais puro nas
coisas criadas, se não tem nenhuma contaminação do pecado. Tal foi a pureza da
bem-aventurada Virgem, que foi imune ao pecado original e ao atual. No entanto,
ela esteve debaixo da proteção de Deus, enquanto que nela existia a potência
para pecar. Mas a bondade se dirige ascendendo ao fim que está infinitamente
distante, isto é, ao sumo-bem. Entretanto, pode haver algo melhor do que um bem
finito”[1].
5. Ora, a sentença de Tomás é clara e precisa: a
Virgem foi imune ao pecado original e ao atual; mas, em que sentido Tomás se
utiliza desta expressão? Ora, o aquinate faz tal comentário na distinção 44, a
qual versa sobre a questão se Deus tem limitada qualitativamente sua
onipotência; e, especificamente, o artigo 3 versa sobre a questão se Deus
poderia fazer a humanidade de Cristo melhor do que é.
Ora, o artigo 3, está em ordem a Cristo, então a
pressuposição sobre a Virgem também está em ordem a Ele, e não a si mesma (e
isso é óbvio!); portanto, quando se refere a que a Virgem foi imune ao pecado
original e ao atual, se refere a sua concepção de Cristo, isto é, em razão da
humanidade de Deus.
6. Pois, ao se compreender o contexto de afirmação do
aquinate se compreende a razão de sua afirmação; portanto, a imaculada
conceição neste sentido, se refere a preservação da Virgem quanto a concepção
de Cristo, sua gestação e nascimento, já que a santidade da Virgem se refere a
Sua tarefa maternal quanto ao Filho de Deus.
E, mesmo que haja muitos que apliquem tal proposição a
Virgem, mesmo alguns dos Padres, ou foi porque foram movidos pela excessiva “afetividade”
teológica, ou então porque tiveram alguma desatenção quanto ao assunto.
II. O modo da preservação da Virgem quanto a concepção
de Cristo.
7. O segundo texto de Tomás é da terceira parte (IIIa)
da Suma Teológica, o qual evoca a questão de quando a Virgem fora santificada
para ser a mãe do Filho de Deus; Tomás afirma: “Portanto, acredita-se
razoavelmente que a virgem abençoada foi santificada antes de nascer do ventre”
(STh IIIa, q. 27, a. 1, co.); e, noutro artigo afirma: “a santificação da
bem-aventurada Virgem ocorreu após sua animação” (STh IIIa, q. 27, a. 2,
co.).
8. Ora, estes dois aspectos parecem se contradizer, no
que concerne a santificação da Virgem Maria; no entanto, não se contradizem,
mas se referem a dois aspectos distintos na compreensão sobre a bem-aventurada
Virgem Maria; pois, o primeiro aspecto, diz respeito a escolha da Virgem, isto
é, a sua separação antes de nascer no ventre materno, o que toma o nome de
eleição, mas que também pode ser chamado de santificação; neste sentido, a
Virgem foi santificada antes de nascer do ventre, isto é, foi eleita para ser a
mãe do Filho de Deus antes de nascer no ventre materno; quanto a isso, não há o
que discutir, pois, a própria Escritura afirma que Deus assim procede, tal como
afirma ao profeta Jeremias (cf. Jr 1.5); etc.
9. E o segundo aspecto, diz respeito a sua humanidade;
ora, a santificação, isto é, a separação, se dá na alma; por isso, a Virgem
fora santificada após sua animação, isto é, em Sua concepção; mas, foi
santificada, quanto ao propósito de Sua eleição, assim como os patriarcas e os
santos profetas da Velha Aliança, e como, por exemplo, ocorrera com João
Batista; logo, neste sentido, a santificação da Virgem, isto é, sua separação
para um propósito específico dado por Deus, em conformidade com Sua eleição, se
dá após a animação, isto é, após Sua concepção, já que todo ser humano é
concebido em pecado, tal como diz o salmista (cf. Sl 51.5, 58.3); e quanto a
isso há somente uma exceção, o próprio Cristo (cf. Hb 4.15).
Ora, quanto a isso, também não há muito o que
discutir, bastando apenas compreender o que concerne a santificação enquanto
escolha soberana de Deus, isto é, a eleição, e a santificação quanto a
separação do pecado; pois, tanto um quanto o outro, são efeito da graça de
Deus. Por isso, a Virgem santa foi cheia da graça (cf. Lc 1.28); etc.
10. Assim sendo, a Virgem foi preservada do Pecado,
não porque deixou de ser humana, mas devido a eleição e a graça de Deus em
escolhê-la para ser a mãe do Filho de Deus; donde, Tomás afirmar: “A
bem-aventurada Virgem foi santificada no ventre do pecado original no que diz
respeito a uma mancha pessoal, mas ela não foi libertada da culpa pela qual
toda a natureza era responsável, a saber, que ela não poderia entrar no
Paraíso, exceto através do sacrifício de Cristo; como também é dito dos santos
padres que existiram antes de Cristo” (STh IIIa, q. 27, a. 1, ad. 3); ora,
a Virgem foi preservada do Pecado original, quanto a transmissão, isto é, Ela
foi preservada do Pecado original na concepção de Cristo porque fora a Virtude
do Altíssimo que a fizera conceber (cf. Lc 1.35), para não transmitir o Pecado
ao fruto de seu ventre já que era pecadora como todos os seres humanos.
11. Por isso, Tomás afirma que ela foi santificada no
ventre do pecado original no que diz respeito a mancha pessoal, isto é, do
efeito do Pecado original quanto a Sua concepção, pelo fato de que fora gerado
pelo Espírito de Deus. Mas, não foi libertada da culpa pela qual todos os
homens são pecadores (cf. Rm 5.12), pela qual somente foi liberta pelo sacrifício
de Cristo, donde a própria Virgem afirmar que Deus é o Seu salvador (cf. Lc
1.47), etc. E isto também é dito dos patriarcas e santos profetas da Velha
Aliança, no que concerne a salvação e a eleição dos mesmos para serem
mensageiros da revelação de Deus.
12. Portanto, a Virgem foi preservada do Pecado quanto
a concepção de Cristo; mas, em relação a Sua eleição, Ela foi santificada
(eleita) antes de nascer; e em relação a Sua tarefa como mãe do Filho de Deus,
Ela foi santificada (eleita) para que o fruto de seu ventre não recebesse o
efeito do pecado original que a mesma contraiu assim como todo ser humano
contrai ao ser concebido. Logo, a afirmação de Tomás na questão 27 da terceira
parte da Suma Teológica apresenta o modo e a maneira da imaculada conceição de
Maria quanto a concepção de Cristo.
13. E aqui se faz uma breve digressão, pois que muitas
das questões concernentes a Suma Teológica, já que é teologia dogmática, versa
a partir das autoridades; e, em algumas questões mariológicas, Tomás procurou embasar-se
na autoridade que era atribuída a Agostinho, mas que verdadeiramente não eram
de Agostinho; por isso, em questões onde Tomás evoca a autoridade de Agostinho,
mas que não pertencem a Agostinho, deve-se ponderar que se na época houvesse a
compreensão apurada sobre estes assuntos, certamente Tomás tomaria outra
diretiva nestas questões; e, em se tratando da mariologia, certamente negaria
alguns aspectos que afirmou embasado na autoridade atribuída a Agostinho.
III. A preservação da Virgem quanto a culpa do Pecado
Original.
14. O terceiro texto de Tomás de Aquino sobre a
imaculada conceição, é feito em sua exposição da saudação angelical, no qual
Tomás afirma: “Ela é, pois, puríssima também quanto à culpa, pois nunca
incorreu em nenhum pecado, nem original, nem mortal ou venial”[2]; ora,
esta afirmação está em consonância com a afirmação anterior; embora, seja no
âmbito específico da saudação angelical; pois, a anunciação fora feita para
demonstrar duas coisas: primeiro, a demonstração da eleição de Maria para ser a
mãe do Filho de Deus (cf. Lc 1.28-31); segundo, o modo da concepção do Filho de
Deus (cf. Lc 1.34-35).
15. Deste modo, a Virgem santa é pura, isto é, é
eleita e santificada para conceber e dar a luz ao Filho de Deus; pois, em
relação a Sua eleição e a Sua santificação para esta tarefa, a Virgem não
incorreu em Pecado, pois, fora preservada da culpa do Pecado Original quanto a
transmissão para o fruto de seu ventre, e das práticas dos pecados mortais e
veniais também em relação a isso, já que a fonte da graça estava em seu ventre;
por isso, Isabel ao vê-la afirmara: “Bendita és tu entre as mulheres, e é
bendito o fruto do teu ventre!” (Lc 1.42); a Virgem Maria é bendita entre
as mulheres por causa do fruto de seu ventre.
Portanto, a Virgem fora preservada quanto a culpa do
Pecado Original ao conceber o Filho de Deus, tanto porque a concepção fora obra
divina, quanto para o fruto do ventre não recebesse os efeitos do Pecado
original; pois, como diz o autor aos Hebreus em tudo Cristo foi sem pecado (cf.
Hb 4.15); logo, também em Sua concepção, Cristo foi sem pecado.
16. No entanto, parece que tal afirmação apoia a
proposição de que a Virgem santa foi sem pecado quanto a sua vida como um todo;
todavia, a teologia da saudação angelical, a mariologia concernente a este
aspecto, diz respeito a este aspecto demonstrado e não em relação a vida da
Virgem antes ou após a concepção de Cristo; mas, a imaculada conceição está em
ordem a Cristo; ou pelo menos, biblicamente e dogmaticamente, assim deveria
ser, e não a desordem doutrinária que se mantém velada neste assunto tão
maltratado pela má compreensão do assunto, o que, infelizmente, alguns dos
santos católicos também contribuíram para tal má compreensão.
17. E que a compreensão adequada sobre este assunto seja
novamente reestabelecida, tanto para livrar a cristandade latina da aporia da
ambiguidade em um dogma proclamado, quanto para que esta aporia não gere mais
crises no âmbito da vida interna do catolicismo; pois, todo dogma que é proclamado
com ambiguidade gera crises internas terríveis no catolicismo; e com o dogma da
imaculada conceição não foi diferente.
E que as perspectivas ora evocadas sejam observadas
com atenção, tanto para evitar criticas passionais quanto para que o assunto
seja corretamente entendido.
θεῷ χάρις!
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