18/12/2023

Schleiermacher e o Estudo Teológico

Prefácio.

           

A perspectiva do estudo teológico é algo que permeia as nuances da própria reflexão teológica; pois, o estudo teológico é parte integrante da existência eclesial, e por consequência, parte integrante da existência teológica; por isso, elucubrar sobre o estudo teológico é preponderante em qualquer aspecto da ciência teológica, já que é a porta de entrada ao conhecimento científico da teologia.

As perspectivas sobre o estudo teológico ganharam conotações diversas ao longo da história; especificamente, na modernidade, o estudo teológico fora abalizado por Schleiermacher; viera do pai da teologia moderna, a estrutura e o encargo principal que tem guiado as elaborações do “curriculum” dos estudos teológicos. Embora, tenha ocorrido desenvolvimentos significativos sobre o estudo teológico, a base e o escopo continuam no que Schleiermacher desenvolvera.

Por isso, investigar o que Schleiermacher elaborou e sintetizou sobre o estudo teológico é algo assaz importante; na verdade, imprescindível, pois, as elaborações do pai da teologia moderna, continuam a imperar; não para dizer especificamente se Schleiermacher estava certo ou errado, mas para explicar e aclarar suas proposições e definições; pois, evidentemente, se se quiser ter uma compreensão mais apurada sobre o estudo teológico, é necessário entender como Schleiermacher o pensara e como o estabelecera, pois, é a influência dele, e não de outro teólogo, que paira sobre as formas e os modos que o estudo teológico é disposto na teologia moderna.

A expressão de Neander, de que a partir de Schleiermacher se iniciaria uma nova época na história da teologia, é assaz verdadeira e se cumpriu tal como uma profecia; e, em se tratando do estudo teológico, ainda mais; pois, em Schleiermacher iniciara uma nova época no desenvolvimento do estudo teológico.

Portanto, eis este ensaio explicativo e descritivo, que procura investigar o que Schleiermacher pensara e elucubrara sobre o estudo teológico.

Soli Deo Gloria!

In Nomine Iesus!

17 de dezembro de 2023.

 

I. Schleiermacher e o Estudo Teológico.

 

1. A noção do estudo teológico, fora trabalhada por muitos teólogos ao longo dos anos; Melanchthon, escrevera uma breve oração, “Brevis discendae theologiae ratio”, onde fala sobre o estudo teológico; Bullinger, escrevera um opúsculo para falar sobre o estudo teológico, “Ratio Studiorum”; Hyperius escrevera um monumental tratado para falar sobre a função do teólogo e sobre o estudo teológico, “De Theologo”; no período da escolástica luterana, muitos eminentes teólogos falaram sobre o estudo teológico, como Gerhard, em “Methodus Studii Theologici”, e Calov, em “Isagoges ad. S. S. Theologiam”; enfim, muitos foram os tratados significativos e de suma importância que foram escritos nos sécs. XVI e XVII sobre o estudo da teologia.

2. Mas, com exceção de algumas proposições de Gerhard (que atualmente ainda são amplamente utilizadas), e das noções de Calov que foram alocada por Spener através do “Pia Desideria”, estes textos ficaram esquecidos; e após o iluminismo, com a formação da neologia por parte de muitos teólogos protestantes, os principais e mais efusivos tratados sobre o estudo teológico ficaram esquecidos, quando não completamente rejeitados; e isso é uma das razões pelas quais a noção de estudo teológico adentra o final do séc. XVIII e o início do séc. XIX de maneira desfigurada; foi devido a necessidade de novamente se abalizar e fundamentar o estudo teológico, a partir de outra perspectiva da que fora utilizada no séc. XVII, que Friedrich Schleiermacher escreve um pequeno tratado, publicado em 1811 [1ª ed.; 2ª ed. em 1830], “Kurze Darstellung des theologischen Studiums” (em inglês: Brief Outline of the Study of Theology).

3. Este tratado de Schleiermacher é a obra que abalizou novamente a perspectiva do estudo teológico; o pai da teologia moderna reorientou o “programa” de estudo teológico, o qual havia ficado perdido devido a influência do iluminismo desde os anos finais da escolástica luterana (com a morte de Hollatz e Buddeus); e as proposições de Schleiermacher, ainda que não sejam seguidas totalmente, a estruturação que ele propõe é a que fundamenta e abaliza os modos e as formas do “curriculum” dos estudos teológicos desde então; esta obra, tornara-se o marco, na teologia moderna, do que é e do que se constitui o estudo da teologia. Mesmo aqueles que criticam Schleiermacher neste quesito são dele completamente dependentes.

4. E é interessante porque este breve tratado de Schleiermacher, constitui-se, conjuntamente com seus discursos sobre a religião, “Reden” (além dos monólogos), e sua dogmática, a “Glaubenslehre”, um dos textos acadêmicos mais influentes de Schleiermacher; certamente, poucos teólogos na história tiveram uma influência tão grande em certos pontos da teologia acadêmica com tão poucos escritos publicados (Schleiermacher publicou outros escritos, mas estes foram os que fizeram mais “sucesso” e pelos quais ele se tornara conhecido e respeitado); certamente, a influência de Schleiermacher viera por outros motivos; embora o tratado sobre o estudo teológico seja um texto singular, este texto só teve a influência que teve, para se tornar o marco na teologia moderna sobre o estudo teológico, porque Schleiermacher era um “scholar”, um acadêmico erudito, no sentido mais honroso do termo, em sua função como professor na Universidade.

5. Mas, principalmente, Schleiermacher obteve o êxito peculiar em sua publicação, devido a sua exemplar atividade pastoral; Schleiermacher fora um pastor exemplar, e sua invectiva sobre o estudo teológico era fruto tanto de sua experiência com o pastoreio e a proclamação do evangelho, somada a experiência acadêmica como professor universitário. Isto, perfez uma síntese grandiosa, na confluência entre o rigor acadêmico, a vivência piedosa, e a erudição que deve permear àqueles que se dedicam ao estudo da ciência sagrada. 

6. Schleiermacher indexou estes aspectos em sua perspectiva sobre o estudo teológico, de tal modo que se tornara a base e o fundamento para o desenvolvimento da perspectiva do estudo teológico; evidentemente, Schleiermacher era um erudito, um homem enciclopédico, que podia falar nestes termos que estabelecera, como um mestre por excelência, o qual elevara o estudo teológico a uma padronização acadêmica impecável.

Charles Hodge, tendo visto os labores acadêmicos de Schleiermacher, e daqueles que foram orientados a partir da perspectiva dos estudos acadêmicos na Alemanha do séc. XIX, constatou a superioridade acadêmica do ensino alemão em relação ao ensino norte-americano; Hodge descrevera sua percepção numa carta a sua esposa: “A grande superioridade do ensino alemão (e a superioridade é grande) não decorre do modo de instrução nas universidades, mas da excelência das suas escolas primárias. Um menino é tão bem versado em grego e latim que não tem problemas com essas línguas. Como estes são os grandes instrumentos de aprendizagem em todos os departamentos, nada lhes resta senão aplicá-los[1].

7. Esta superioridade deve ser levada em conta, ao se compreender as perspectivas elencadas por Schleiermacher sobre o estudo teológico; pois, a elaboração de Schleiermacher, foi feita a partir do que de melhor havia nas ciências e na filosofia de sua época; contudo, aplicadas ao estudo da teologia, amparada pela vivência da experiência das atividades pastorais.

Ao mesmo tempo em que fazia semanalmente (quase que diariamente) as preleções acadêmicas sobre filosofia e as disciplinas acadêmicas, e fazia as preleções sobre teologia, Schleiermacher também pregava e cumpria as tarefas pastorais, como ensino confirmatório, batismos, funerais, visitas pastorais, etc. Schleiermacher elabora a concepção do estudo teológico como um pastor e pregador dedicado e fervoroso, mas também como um acadêmico do mais alto nível, como um erudito que podia falar de igual para igual com Goethe, Humboldt, Hegel, Hölderlin, Schelling, entre outros, enquanto que edificava uma obra teológica monumental, tanto em relação a teologia da cultura (a teologia do testemunho cristão no mundo, na cultura, principalmente na alta-cultura), quanto em relação a teologia eclesial, numa teologia do Espírito Santo.

 

II. A Estrutura do Estudo Teológico.

 

8. A estrutura que Schleiermacher propõe para o estudo teológico é tríplice: a primeira parte, a parte filosófica; a segunda parte, a parte histórica; a terceira parte, a parte prática; ou, respectivamente, teologia filosófica, teologia histórica e teologia prática. O próprio Schleiermacher afirma: “Dentro desta trilogia, — Teologia Filosófica, Histórica e Prática — está incluído todo o curso do estudo teológico: e a ordem mais natural para o presente Esboço é, indiscutivelmente, começar com a Teologia Filosófica e concluir com a Prática”.[2] Assim sendo, a tríplice divisão estabelecida por Schleiermacher, procura açambarcar todo o estudo teológico; para o pai da teologia moderna, toda a teologia se reduz a estas três esferas, e, por isso, todo o estudo da teologia se configura ao redor destas três orbitas.

9. A primeira parte, é a teologia filosófica. A primeira parte do estudo teológico, constitui-se do que Schleiermacher chama de teologia filosófica; e a teologia filosófica é subdivida em duas partes: apologética e polêmica; Schleiermacher afirma que a apologética é construída com vista aos de fora, em relação ao exterior da Igreja (mundo), enquanto que a polêmica é construída com vista aos de dentro, ao interior da Igreja (para burilar a fé)[3].

10. A proposição de Schleiermacher em relação a teologia filosófica, pode ser entendida a partir da distinção entre teologia filosófica geral (apologética) e teologia filosófica especial (polêmica); evidentemente, tal distinção se estabelece entre o propósito e a natureza da apologética e da polêmica; portanto, se se tem uma teologia filosófica geral, se tem alguma forma de apresentação puramente filosófica ou racional daquilo que se constitui a teologia e/ou o cristianismo, àqueles que não fazem parte da Igreja, como o próprio Schleiermacher faz nos “Reden”, e como estabelece na introdução do “Glaubenslehre” (do § 7 ao § 10); e, se se tem uma teologia filosófica especial, se tem alguma forma de apresentação do cristianismo, a partir da orientação racional, que tenha em vista a realidade da fé, do cristianismo enquanto comunhão religiosa e da vida cristã enquanto piedade, àqueles que são parte da Igreja.

Em relação ao procedimento da apologética, Schleiermacher assevera: “Mas a base para tal procedimento é fornecida pelas investigações que se relacionam com o caráter peculiar e essencial do Cristianismo e, da mesma maneira, com o do Protestantismo; que constituem, portanto, a porção Apologética da Teologia Filosófica – a primeira classe de investigações que sustentam esta relação com o geral, a Teologia Filosófica Cristã, e esta última, à Teologia Filosófica especial do Protestantismo[4]. Por isso, a teologia filosófica geral, é a partir do que Schleiermacher desenvolve como apologética; e a teologia filosófica especial, é a partir do que Schleiermacher desenvolve como polêmica. Estes dois aspectos, perfazem dois tipos de caminho; um na defesa da religião, tal como Schleiermacher faz nos “Reden”; e o outro na defesa do cristianismo, tal como Schleiermacher faz na “Glaubenslehre”; o primeiro, é uma defesa puramente racional no âmbito da filosofia; o segundo, é uma defesa racional no âmbito da teologia dogmática.

11. Com isso, a teologia filosófica constitui-se de uma apresentação e defesa da validação da religião, bem como de uma apresentação e defesa da validação racional da religião, do cristianismo enquanto religião e do cristianismo enquanto religião verdadeira; por isso, a teologia filosófica especial, concentra-se na apresentação particular do protestantismo (ou do catolicismo, ou da ortodoxia grega), como forma mais plausível do cristianismo.

12. Deste modo, após apresentar a apologética, a teologia filosófica geral, Schleiermacher passa a segunda parte da teologia filosófica, a polêmica, a teologia filosófica especial; pois, a teologia filosófica geral (apologética) é com vista aos de fora, e a teologia filosófica especial (polêmica) é com vista aos de dentro. E a proposição de Schleiermacher em relação a polêmica é em vista a necessidade de conscientização sobre o autoexame da vida da Igreja pelos próprios cristãos; Schleiermacher assevera: “Visto que cada indivíduo, em proporção à força e à clareza de sua convicção, deve necessariamente também sentir insatisfação em relação aos desvios mórbidos que possam ter surgido na Comunidade a que pertence; por isso, a Orientação da Igreja, em virtude do seu objetivo intensamente conservador, deve ser concebida, em primeira instância, para tornar este desvio, como tal, uma questão de consciência. Isto só pode ser efetuado por meio de uma exibição correta do caráter essencial do cristianismo – e, da mesma maneira, também do protestantismo; cujas exposições, portanto, nesta aplicação, formam a divisão polêmica da Teologia Filosófica, - a primeira, em relação à sua forma geral, - a segunda, em relação à sua forma especial, protestante[5]. Com isso, se pode entender o verdadeiro objetivo da polêmica não é simplesmente aquilo que no período da ortodoxia luterana se definia como teologia elêntica (que Schleiermacher substitui por apologética), mas do burilar a fé na consciência individual, da necessidade de análise sempre corrente da condição e do estado da Igreja. 

13. Assim sendo, a polêmica adquire um caráter específico para a própria comunhão eclesial, ao invés de o caractere de disputatione como tinha no período da ortodoxia luterana; o próprio Schleiermacher afirma que o sentido que emprega da palavra polêmica não tem a ver com estas disputas[6]; por isso, a polêmica é uma forma própria dos cristãos, no âmbito da comunidade eclesial, de pensarem sobre sua fé e sobre a condição espiritual e doutrinária da Igreja no decorrer das épocas, uma autoanálise pessoal e uma autoanálise comunitária; por isso, a polêmica, isto é, a investigação crítica e a análise crítica dos próprios cristãos de como a Igreja está se organizando e vivenciando a fé, constitui-se o verdadeiro propósito da teologia polêmica enquanto parte da teologia filosófica - esse é o propósito de Schleiermacher ao delinear a teologia polêmica. E, diga-se de passagem, é deste propósito que surge a necessidade da teologia dogmática.

14. Logo, a distinção estabelecida por Schleiermacher do propósito da teologia filosófica vai além das distinções estabelecidas pelo período da ortodoxia luterana; conquanto os termos sejam parecidos, Schleiermacher os estabelece em outra perspectiva e abaliza novamente a utilização da teologia filosófica com duplo propósito: um em relação a defesa da fé para com os que estão fora da Igreja, com a apologética; e o outro em relação a burilação da fé para com os que estão dentro da Igreja, com a polêmica.

15. E esta estrutura é o que constitui o objetivo de Schleiermacher em estabelecer a validação do cristianismo enquanto religião e na apresentação geral da fé cristã (e da teologia) como algo racional, crível, aceitável e plausível. A teologia de Schleiermacher enquanto procura ser uma defesa da fé e a demonstração da plausibilidade do cristianismo enquanto religião, é orientada no sentido de uma teologia filosófica plenamente estabelecida tanto como apologética (defesa da fé) quanto como polêmica (burilação da fé). A teologia de Schleiermacher, que em se tratando especificamente do encargo teológico, é pura pneumatologia, em se tratando da racionalidade humana, e da validação da religião e da teologia, é teologia filosófica em sua mais singular demonstração. Para Schleiermacher, a teologia como pneumatologia não se distingue da teologia enquanto filosofia, embora, a teologia como filosofia seja um preâmbulo à verdadeira teologia, seja apenas uma forma introdutória e racional de se preparar para o conhecimento das coisas celestes; neste sentido, pode-se afirmar que a teologia filosófica de Schleiermacher está posta, em relação a teologia, no mesmo sentido que a metafísica estava para Francisco Suarez, a saber, como introdução à teologia.

16. A segunda parte, é da teologia histórica. A segunda parte do estudo teológico, constitui-se do que Schleiermacher chama de teologia histórica; a teologia histórica é subdividida em três partes: teologia exegética, história da igreja e o conhecimento histórico da condição atual do cristianismo. Como o próprio Schleiermacher afirma: “A Teologia Histórica está completamente incluída nestas três divisões: - o conhecimento do Cristianismo Primitivo, o conhecimento de toda a história do Cristianismo e o conhecimento do estado do Cristianismo no momento presente[7].

17. A proposição de Schleiermacher sobre a teologia histórica evidencia um aspecto de fundamental importância, a saber, a historicidade do cristianismo; o cristianismo é uma religião histórica; por isso, Schleiermacher coloca a teologia histórica nos três aspectos essenciais da ciência histórica, a saber, o conhecimento dos fatos originários (teologia exegética), o conhecimento do decorrer da história após estes fatos originários (história da igreja) e o conhecimento da atual situação do cristianismo (que Schleiermacher designa de maneira científica como estatística eclesiástica). Por isso, Schleiermacher estabelece o conhecimento do cristianismo primitivo como a base da teologia histórica, porque é a primeira “fase” da teologia histórica; Schleiermacher assevera: “Visto que o conhecimento do Cristianismo Primitivo que deve ser obtido para o propósito especificado deve ser obtido apenas a partir de documentos escritos que se originaram no referido período da Igreja Cristã, e repousa inteiramente na compreensão correta desses escritos; a divisão da Teologia Histórica que agora temos diante de nós também leva, especificamente, o nome de Teologia Exegética[8].

18. Assim sendo, da teologia exegética brota a história inicial do cristianismo; dos fatos do evangelho nasce o cristianismo; os quais, por sua vez permeiam toda a existência do cristianismo na história. Portanto, a tríplice distinção da teologia histórica é fundamentada no conhecimento dos fatos da Escritura e em como estes fatos foram interpretados pelos primeiros cristãos dando início a comunidade cristã e por consequência a continuidade destes fatos e de suas interpretações em toda a história do cristianismo.

19. O segundo aspecto da teologia histórica é o que propriamente se chama de história da Igreja; o que Schleiermacher chama de o conhecimento da história posterior do cristianismo (depois da existencialidade da teologia exegética que forma a comunidade cristã). Schleiermacher afirma: “O conhecimento da carreira posterior do Cristianismo pode ser exibido como um todo ou ser dividido na História do Sistema de Doutrina e na História da Comunidade [Cristã][9].

20. Assim sendo, o conhecimento da história posterior do cristianismo, se subdivide em história da Igreja e história do dogma; em história do desenvolvimento da igreja e em história do desenvolvimento da doutrina da igreja; pois, a medida que a Igreja se desenvolve no solo da história, sua doutrina também se desenvolve; portanto, história da igreja e história do dogma estão indissoluvelmente ligados; logo, não se pode falar de história da igreja sem se falar da história do dogma, e vice-versa. 

21. O terceiro aspecto da teologia história é o que Schleiermacher chama de o conhecimento da condição atual do cristianismo; Schleiermacher afirma: “O delineamento da condição social da Igreja em qualquer momento constitui o problema da Estatística Eclesiástica[10]. Assim sendo, o primeiro aspecto do conhecimento do estado atual do cristianismo é o que Schleiermacher chama, na concepção correta do termo, de estatística eclesiástica; estatística é um modo de se conhecer o estado de coisas de algo, a partir da compreensão do estado deste algo; estatística eclesiástica se refere a algo que açambarca a compreensão do estado atual da igreja ou das comunidades eclesiásticas (denominações).

22. Mas, a compreensão do estado atual do cristianismo em determinada época se delimita ainda mais pela compreensão do sistema de doutrina desta época; é através da compreensão do sistema de doutrina que se apercebe como a situação atual da igreja está em relação a sua existência história, abalizada tanto pela teologia exegética quanto pela história anterior da igreja (pela história eclesiástica e pela história do dogma). Deste modo, a estatística eclesiástica pressupõe necessariamente a compreensão do estado atual da doutrina do cristianismo, na exibição do sistema de doutrina, ou simplesmente, da teologia dogmática. Schleiermacher diz: “A exibição conectada do Sistema de Doutrina conforme atualmente recebido em qualquer momento, - seja pela Igreja em geral (isto é, quando não existe separação), - ou, de outra forma, por qualquer Comunidade Eclesiástica distinta - designamos pelo termo Dogmática ou Teologia Dogmática[11].

23. Deste modo, a teologia histórica refere-se a algo que conflui-se como parte da existência do cristianismo; pois, foca-se na existência histórica do cristianismo (passado) e analisa a situação atual do cristianismo (presente), e isto, evidentemente, abaliza para a existência do cristianismo no decorrer da história subsequente (futuro); a compreensão do passado e a autoanálise do estado atual abalizam a existência futura; desde modo, conjuntamente com a teologia filosófica, as possibilidades da teologia histórica são inúmeras; tal como Schleiermacher afirma: “Tanto a disciplina Estatística como a Dogmática são igualmente de extensão infinita; e ocupa, portanto, a mesma posição com a segunda divisão da Teologia Histórica[12]. E, são de extensão quase que infinita, pois cada geração é novamente chamada a laborar nestas questões de forma renovada e com interesse cada vez mais intenso.

24. A terceira parte, é a da teologia prática. A terceira parte do estudo teológico constitui-se do que Schleiermacher chama de teologia prática; a teologia prática é subdivida em duas partes: os princípios do governo da igreja e os princípios do serviço na igreja; e a teologia prática não é objeto apenas daqueles que querem uma praticidade maior ou apenas uma teologia pastoral; Schleiermacher afirma: “A Teologia Prática, portanto, é apenas para aqueles em quem existe uma combinação de um interesse no bem-estar da Igreja e um espírito científico[13]. A teologia prática é somente para quem está plenamente envolvido com a teologia filosófica e a teologia histórica; isto é, para aqueles que tanto no estudo científico quanto na existência eclesial, procuram o bem-estar da Igreja, tanto na doutrina quanto na existência litúrgica.

25. Os conteúdos da teologia prática estão dispostos no modo de organização da igreja, tanto no sentido da igreja como instituição como da igreja como organismo; Schleiermacher afirma: “Os conteúdos da Teologia Prática estão incluídos exaustivamente na Teoria do Governo da Igreja (no sentido mais restrito) e na Teoria do Serviço na Igreja[14]. Portanto, a teologia prática se refere a Igreja como instituição, nos princípios do governo da Igreja, bem como se refere a Igreja como organismo, nos princípios do serviço na Igreja; e ambos estão indissoluvelmente ligados e dispostos em toda a existência da comunidade. Embora, a Igreja enquanto organismo tenha preeminência aos modos da Igreja como instituição; mas a Igreja como instituição é uma forma visível e ordenada da existência da Igreja como organismo, sob o mandamento de Cristo e sob a autoridade das Sagradas Escrituras.

26. A teoria do serviço na Igreja para Schleiermacher se estabelece como a atividade na qual aqueles que se dedicam a comunidade estão envolvidos na edificação da Igreja; Schleiermacher afirma: “A atividade orientadora no Serviço da Igreja consiste por um lado na edificação, que se exerce em conexão com o Sistema de Culto, ou na reunião da Congregação com o propósito de despertar e animar nos devotos a consciência[15]. O serviço na Igreja por parte daqueles que dedicam a servi-la é em vista a edificação dos fiéis, para despertar e animar nestes a consciência de dependência absoluta, isto é, a piedade; logo, a teoria do serviço na Igreja tem uma função catequética fundamental que visa a edificação de todos os membros da comunidade, como função daqueles que foram vocacionados ao Sagrado Ministério, e que foram devidamente preparados e separados para esta função.

27. Já a teoria do governo da Igreja para Schleiermacher se estabelece como as normativas para aqueles que servem na Igreja e pela qual a ordem eclesiástica é mantida de modo público e visível, através da autoridade eclesiástica; Schleiermacher afirma: “A Autoridade Eclesiástica deve, portanto, combinar os dois objetivos seguintes, e a Teoria [do Governo-Igreja] deve procurar descobrir a fórmula necessária: [a observância de] suas obrigações preponderantes, de manter, preservar e fortalecer o princípio que foi constituído por meio da última época anterior - e, ao mesmo tempo, também favorecer e proteger as manifestações do poder espiritual livre, o único que é capaz de iniciar [novos] desenvolvimentos reformatórios[16]. O governo da Igreja, portanto, deve ser feito pela autoridade eclesiástica instituída; e assim, este governo existe para manter as obrigações preponderantes da Igreja como instituição, e ao mesmo tempo, favorecer e proteger a vida espiritual dos cristãos através da pregação da Palavra e da correta administração dos sacramentos, a fim de favorecer as manifestações de poder espiritual, o único meio capaz de iniciar novos desenvolvimentos reformatórios. Para Schleiermacher essa é a verdadeira função daqueles que foram verdadeiros chamados para o sagrado ministério e que por isso estão imbuídos de autoridade eclesiástica.

28. Por isso, para Schleiermacher, a teoria do governo da Igreja, evidentemente, é abalizada pelas normativas institucionais e racionais que devem guiar a Igreja como instituição; mas, fundamentalmente, a teoria do governo da Igreja deve ser permeada pela existência espiritual da Igreja; pois, o governo da Igreja não pode impedir as manifestações de poder espiritual, isto é, as ações soberanas do Espírito Santo; na verdade, o governo da Igreja tem de ser guiado pelo Espírito Santo pelos caminhos que Ele traça através das Escrituras; somente assim, os desenvolvimentos reformatórios de que Schleiermacher fala são possíveis e realmente ocorrem.

 29. A teoria do governo da Igreja é apenas uma forma humana e racional para se adequar a instituição eclesiástica como normas e ordenações de organização; aqueles que exercem o governo da Igreja não são donos da Igreja, mas apenas servos de Cristo que foram vocacionados para servir a Igreja. Onde o governo da Igreja se porta como donos da Igreja, a teoria do governo da Igreja é desfigurada e todo e qualquer desenvolvimento espiritual é “abafado” pelos ares viciados dos poderes de mando humano sob a Igreja.

A teoria do governo da Igreja é tanto para ensinar e adequar as questões racionais e administrativos da Igreja como instituição, mas também para alertar dos perigos iminentes que são corriqueiros dos homens quererem ser donos da Igreja.

A Igreja pertence a Cristo, e somente a Ele; Ele é o dono da Igreja; e, a teoria do governo da Igreja é uma forma de demonstrar o senhorio de Cristo através da organização e da ordem da Igreja enquanto instituição.

Estas são, de maneira geral e sintética, as partes do estudo teológico, de acordo com Schleiermacher; ou dito de outro modo, a estrutura do estudo teológico que Schleiermacher estabelecera tanto em resposta a influência do iluminismo e de Kant na teologia protestante, quanto para edificar um “curriculum” teológico racional tendo em vista três grandes áreas do estudo teológico.

 

III. Schleiermacher, Mestre do Estudo Teológico.

 

30. E é algo interessante, pois, mesmo que as definições e algumas das distinções particulares de Schleiermacher não sejam aceitas e/ou propugnadas, principalmente no modo e na ordem que Schleiermacher as estabelece, a estrutura básica que ele estabelecera permanece absoluta na teologia moderna; a estrutura geral fora modificada e ampliada por muitos teólogos de muitas formas e de diversas maneiras, mas o encargo estabelecido, as distinções básicas e as definições fundamentais talhadas pelo pai da teologia moderna permanecem e açambarcam todos aqueles que vieram após ele; isso é sinal da grandeza de Schleiermacher como teólogo; pois, dos teólogos que vieram após ele (e até os que vieram antes), ninguém dominou estas distinções e a encarnou de maneira magistral quanto o próprio Schleiermacher (tendo apenas por rival a Edwards); nem mesmo Barth, que escreveu muito mais do que Schleiermacher, conseguiu vivenciar e encarnar de maneira total estas três áreas da teologia.

31. Schleiermacher as viveu, as enobreceu e as sublimou de maneira singular, algo que poucos conseguiram fazer ao longo da história; certamente, houve apenas um que dominou as áreas da ciência teológica de maneira ainda mais magistral que Schleiermacher, a saber, Tomás de Aquino; somente o doctor angelicus fora quem dominara de maneira magistral e assombrosa toda a ciência teológica, como nenhum antes e como nenhum depois; e após Tomás, somente Schleiermacher o fizera de maneira magistral e também assombrosa. Certamente, por este fato, um velho jesuíta, que tendo convivido com Schleiermacher durante muitos anos, pode afirmar após a morte de Schleiermacher, que em genialidade e profundidade de conhecimento, o pai da teologia moderna é excedido somente por Tomás de Aquino.

32. O pai da teologia moderna dominara a teologia filosófica; fora mestre da técnica filosófica e erudito conhecedor da filosofia antiga e da filosofia cristã; fora gênio da síntese filosófica e da elaboração de proposições e formas de interpretação correta dos filósofos antigos a partir de seus textos, da hermenêutica plena na interpretação dos textos filosóficos; fora mestre da estrutura dogmática e do domínio da teologia dogmática, a qual dignificou e abalizou como poucos, mesmo que tenha escrito uma obra apologética de difícil leitura e de difícil compreensão (Glaubenslehre).

O pai da teologia moderna fora mestre da teologia histórica; fora mestre da história da teologia; fora gênio da análise histórica dos fatos concernentes ao cristianismo; fora magistral historiador eclesiástico e significativo historiador bíblico.

O pai da teologia moderna dominara a teologia prática; fora pregador erudito e fervoroso; fora pastor atencioso e cuidadoso; fora um teólogo que encarnara sua teologia na pregação de maneira plena, sob o púlpito, anos a fio, por décadas; fora um pastor-teólogo e fora um teólogo-pastor.

33. E sobre isso há um fato de suma importância, que é pouco mencionado; enquanto Schleiermacher fora pastor, nenhum membro da igreja que pastoreava se desviou ou esmoreceu no fervor evangélico; geralmente, entre os protestantes se menciona os puritanos como exemplos de pastores, e cita-se costumeiramente o exemplo de Richard Baxter, o qual como pastor não teve nenhum dos membros de sua igreja que se desviaram; então, o que dizer de Schleiermacher? O pai da teologia moderna é negligenciado e deixado de lado como pastor, mas foi tão exemplar quanto qualquer dos puritanos; na verdade, devido as dificuldades de sua época e contra as geniais invectivas filosóficas contra a religião cristã, Schleiermacher foi mais heroico que os puritanos, ao se manter no fervor moraviano no exercício do sagrado ministério, ao mesmo tempo em que fizera uma magistral apologia da religião de maneira geral (Reden) e uma incomparável apologia do cristianismo e da fé cristã (Glaubenslehre), diante de alguns dos maiores gênios da humanidade.

34. Por isso, Schleiermacher é, por honra mais do que devida, o pai da teologia moderna; não que o pensamento de Schleiermacher não tenha algumas aporias e problemas para a posteridade, pois as ínvias e obscuras categorias romântico-idealistas tornam o pensamento de Schleiermacher de difícil acesso, já que para sobrelevar-se sobre estas categorias é necessário um substancioso conhecimento filosófico e um erudito conhecimento teológico; todavia, as proposições de Schleiermacher, sua teologia, sua filosofia, sua crítica histórica, sua vivência prática, sua tarefa querigmática exemplar, o tornam um mestre por excelência do estudo teológico; somente quem viveu e experienciou o estudo teológico e o encarnara de maneira vívida e brilhante pode ser um guia seguro para se entender o que é e do que se constitui o estudo da teologia.

35. No entanto, as críticas a Schleiermacher e ao que ele desenvolvera em relação ao estudo teológico são muitas e muito pouco amigáveis; por exemplo, Barth crítica Schleiermacher justamente neste aspecto: “considero provisoriamente Schleiermacher, embora todo respeito que é devido à genialidade de sua obra de vida, não um bom mestre teológico[17]. A crítica de Barth, embora possa ter seu valor, concentra-se na problemática das categorias pelas quais é envolto o pensamento de Schleiermacher; realmente, se não se aperceber da obscuridade destas categorias e a da dificuldade de se transpô-las, a proposição de Barth se estabelece; contudo, ao se transpor estas dificuldades, se percebe a genialidade da obra de Schleiermacher, bem como sua exemplar conduta e procedimento em relação ao estudo teológico, tornando-o um exímio mestre teológico.

Portanto, as críticas feitas contra Schleiermacher, as mais das vezes, são por desconhecimento destas categorias e do que elas representam ao pensamento teórico; pois, ao se entender essas categorias, percebe-se que Schleiermacher não estava errado como muitos de seus críticos falaram.

36. Outra questão a ser salientada, é que Schleiermacher não é um teólogo dogmático na expressão precisa do termo, mas um pastor-teólogo, que como teólogo procurou, através da dogmática, da história, da teologia filosófica, etc., defender e explicar a fé cristã de maneira introdutória de acordo com seu contexto e sua época (numa dogmática-apologética).

Se se pensar em Schleiermacher apenas nos moldes da teologia dogmática, certamente, se desembocará na crítica de Barth, que Schleiermacher não é um bom mestre teológico; mas se se entender o verdadeiro propósito de Schleiermacher em fazer uma apologia da religião e uma apologia da fé, se percebe Schleiermacher como apologista (filósofo da religião) e como teólogo, respectivamente nos “Reden” e na “Glaubenslehre”, traçando estas apologias de maneira magistral e genial, a partir das quais percebe-se o mestre do estudo teológico demonstrando o caminho para a valoração da religião de maneira vívida e brilhante contra as invectivas de alguns dos maiores gênios da humanidade.

37. Entretanto, saiba-se que o encargo fundamental da teologia de Schleiermacher são os sermões, e por isso o pai da teologia moderna é um mestre no estudo teológico; pode-se até discordar de Schleiermacher, e até se “desconcertar” com alguns aspectos de seu pensamento no que tange as obras acadêmicas, mas não reconhecer sua grandeza e importância é sinal de inveja e analfabetismo teológico.

E a grandeza de Schleiermacher está principalmente em sua atividade como pastor e pregador. Portanto, a prática sermonária, na Igreja, em praça pública ou em qualquer outro local, deve ser uma das principais tarefas daqueles que se dedicam ao estudo da ciência sagrada; do mesmo como com Schleiermacher, o sermão, a proclamação do evangelho, deve ser o aspecto central no exercício do sagrado ministério, exercício esse amalgamado ao estudo teológico.

38. Certamente, uma expressão que demonstra o verdadeiro mestre teológico que Schleiermacher foi, é o emocionante discurso que ele fizera no ofício fúnebre da morte de seu filho de 9 anos; a expressão de Schleiermacher neste discurso serve para evidenciar o porquê Schleiermacher é um bom mestre teológico, quando entendido corretamente suas posições e proposições; na verdade, o que Schleiermacher afirma, deve ser também o ideal e o caminho a ser seguido por todos aqueles que se dedicam ao estudo teológico e a existência teológica, de serem nada mais do que simples e humildes “servos da Palavra”, mesmo diante das mais terríveis vicissitudes; Schleiermacher assevera: “Agora tu, Deus, que és amor, deixa-me não apenas me submeter à tua onipotência, não apenas me submeter à tua sabedoria inescrutável, mas também reconhecer o teu amor paterno! Faça deste difícil teste uma nova bênção em minha profissão! Para mim e para todos os meus, deixe a dor comum se tornar um novo vínculo de amor ainda mais sincero, se possível, e traga-o para toda a minha casa à uma nova compreensão do seu Espírito! Concedei que esta hora difícil seja também uma bênção para todos os que aqui estão presentes. Vamos todos amadurecer cada vez mais na sabedoria, que, olhando além do trivial, vê e ama apenas o eterno em tudo o que é terreno e transitório, e em todos os seus decretos também encontra sua paz e vida eterna[18].

Este é Schleiermacher, dando o testemunho de sua fé e do fundamento de sua teologia na conclusão de um dos seus mais belos sermões; por isso, é mais do que justo em falar de Schleiermacher como um mestre por excelência do estudo teológico.

39. E termina aqui esta explicação o sobre a invectiva de Schleiermacher sobre o estudo teológico. Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém. 



[1] cf. A. A. Hodge, The Life of Charles Hodge [New York: Charles Scribner’s Sons, 1899], pág. 117.

[2] Friedrich Schleiermacher, Brief Outline of the Study of Theology [Edimburgo: T. & T. Clark, 1850], § 31, pág. 103.

[3] Ibidem, § 41, pág. 107.

[4] Ibidem, § 39, pág. 106-107.

[5] Ibidem, § 40, pág. 107.

[6] Ibidem, § 41, pág. 107-108.

[7] Ibidem, § 85, pág. 125.

[8] Ibidem, § 88, pág. 127.

[9] Ibidem, § 90, pág. 127s.

[10] Ibidem, § 95, pág. 129.

[11] Ibidem, § 97, pág. 130.

[12] Ibidem, § 99, pág. 131.

[13] Ibidem, § 258, pág. 187.

[14] Ibidem, § 275, pág. 194.

[15] Ibidem, § 279, pág. 196.

[16] Ibidem, § 314, pág. 209.

[17] Karl Barth, Dádiva e Louvor: Ensaios Selecionados [3ª edição. São Leopoldo, RS: Sinodal/EST, 2006], pág. 73.

[18] Friedrich Schleiermacher, Sämmtliche Werke II/4 [Berlin, 1835], pág. 840. 


24/11/2023

A Inviolabilidade da Vida - Carta Aberta ao Conselho Nacional de Saúde *

1. A inviolabilidade da vida, é princípio primeiro da existência humana, pois açambarca a esfera religiosa, a esfera biótica, a esfera jurídica, a esfera social e a esfera cultural da vida humana; a inviolabilidade da vida é signo que estabelece um pressuposto fundamental para a vida humana, a saber, que a vida em seu todo é inviolável, é inalterável, é irrevogável, é intocável; mas este signo não é somente pressuposto por fundamentos religiosos e/ou culturais, mas estabelecido e talhado nas rochas inexpugnáveis do direito, e pelos luminosos caracteres da ciência.

2. As constituições dos países desenvolvidos, sem exceção, apregoam a inviolabilidade da vida; por exemplo, na Declaração da Independência dos EUA, Thomas Jefferson afirma: “Consideramos essas verdades auto-evidentes, que os homens são criados iguais, que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade. Que para garantir esses direitos, os governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados. Que sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva desses fins, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo, baseando-se em tais princípios e organizando seus poderes da forma que lhes for mais conveniente, para realizar sua segurança e felicidade[1]; ou a própria Constituição dos EUA, em que se afirma: “Ninguém será... privado da vida[2]. A maior democracia do mundo, estabelece como base de sua existência os direitos inalienáveis, os quais são a vida, a liberdade e a busca da felicidade; por isso, estes direitos são tidos como invioláveis.

3. Outro exemplo, é o que a constituição alemã afirma: “Todos têm o direito à vida e à integridade física[3]. A proposição da constituição alemã, reafirma um pressuposto da reta razão, pois, evidentemente, todos têm direito a vida, pois, a vida é um direito de todos, já que para se falar em direito ou em direitos, é necessário a própria vida; sem vida não há direito; e a defesa da vida é base para a própria existência do direito.

4. Além disso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma: “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal[4]. Na declaração dos direitos humanos, se consuma toda a base jurídica dos direitos básicos e fundamentais da vida humana; todo indivíduo tem direito a vida, pois, a vida é direito do indivíduo desde que o mesmo é concebido; logo, é princípio da própria dignidade humana o respeito pela vida, o que é atestado e confirmado por aquilo que se afirma como Direitos Humanos; a universalidade dos direitos humanos, é preservada e dignificada pelo respeito e o direito à vida, que conjuntamente com a liberdade, são direitos invioláveis e inalienáveis.

5. Deste modo, a vida é princípio jurídico fundamental, sobre o qual está estabelecido a Constituição Federal do Brasil; os direitos fundamentais precedem e se estabelecem antes de qualquer forma de “direitos” sociais e/ou individuais; os direitos sociais e/ou individuais para serem “supostamente” aceitos e/ou ab-rogados não podem ser contra os direitos fundamentais; a inviolabilidade de algum dos direitos fundamentais, como a inviolabilidade da vida, precede e antecede qualquer forma de “direitos”; por isso, qualquer atentado contra a vida, ainda que velado sob a forma de supostos “direitos individuais” não é válida pela nossa Constituição; a afirmação categórica da inviolabilidade da vida, prescreve que a vida é inalterável e intocável desde sua concepção até a morte; não há nenhum suposto “direito individual” que fira e interfira no direito fundamental estabelecido pela Constituição; o direito à vida é talhado de maneira imorredoura na Constituição Federal como direito inviolável.

6. E estas afirmações são apresentadas contra a recente atitude do Conselho Nacional de Saúde e os órgãos governamentais que tratam da Saúde em quererem colocar o aborto em pauta; o aborto é contra a inviolabilidade da vida, e por isso, o aborto é inconstitucional; logo, o aborto não é permitido pela carta magna do Estado brasileiro; a recente resolução 715 do Conselho Nacional de Saúde afirma que os senhores querem implementar o aborto, e até mesmo a ADPF 442 voltou a julgamento no Supremo Tribunal Federal; e não sei se fortuita coincidência, ou manipulação programada; como não acredito em coincidências, a manipulação programa do comunismo integrou como pauta a legalização do aborto, tanto no âmbito da saúde como no âmbito do poder judiciário. Com isso, decidi me pronunciar diante de vós, para afirmar categoricamente que o aborto é contra a estrutura constitucional do Estado brasileiro, bem como o aborto é contra os Direitos Humanos; portanto, a simples evocação da possibilidade do aborto constitui um atentado contra a democracia e um atentado contra os direitos humanos.

7. Estas afirmações podem parecer um tanto quanto dogmáticas e/ou fundamentalistas; mas não o são; conquanto seja um humilde teólogo que as escreva, tais afirmações baseiam-se nos aspectos supracitados (n. 1), e cobrem uma gama variada de núcleos de sentido que transcendem o aspecto religioso e a doutrina cristã; todavia, como a Igreja cristã é coluna e firmeza da verdade (cf. 1Tm 3.15), nós cristãos temos de nos posicionar diante da inominável abominação que é o aborto, não somente em defesa de uma doutrina religiosa, mas em defesa de um fundamento inalienável da vida humana, fundamento esse que transcende qualquer credo religioso, porque é comprovado não somente pela verdade revelada (Bíblia), mas atestado e comprovado pela reta razão, comum a todos os seres humanos, e imbuída de forma intrínseca pelo Criador em todos os seres vivos e em toda a ordem da realidade. Por isso, o aborto é contra todas as esferas da vida humana; portanto, apresento-lhes uma defesa da vida, da inviolabilidade da vida, a partir de três destas esferas; uma defesa da inviolabilidade da vida em três prismas: (i) primeiro, a inviolabilidade da vida na esfera religiosa; (ii) segundo, a inviolabilidade da vida na esfera biótica; (iii) terceiro, a inviolabilidade da vida na esfera jurídica.

8. [i] Primeiro, a inviolabilidade da vida na esfera religiosa. A vida é inviolável é dogma da religião; particularmente é dogma do cristianismo; um cristão verdadeiro afirma a verdade da inviolabilidade da vida, desde sua concepção até a morte; a defesa da vida, é doutrina e fundamento do cristianismo; e os textos confessionais e os escritos teológicos são uma confirmação deste fato, presente no cristianismo desde seus primórdios; de Tertuliano até o Concílio Vaticano II, passando por Tomás de Aquino, por Lutero, por Calvino, e outros, sejam católicos, protestantes ou ortodoxos, a afirmação da inviolabilidade da vida é pressuposto categórico de todo o cristianismo. A identidade dos cristãos, também é descrita no respeito a vida e na afirmação impoluta da inviolabilidade da vida.

9. O Didaquê, primeiro catecismo cristão (séc. I d.C.), um resumo da doutrina dos Apóstolos, afirma: “Não mate a criança no seio de sua mãe e nem depois que ela tenha nascido[5]. Em outro documento cristão antigo, a Epístola a Diogneto (séc. II d.C.), se assevera: “Eles procriam filhos, mas não eliminam nunca os fetos[6]. Portanto, os primeiros documentos confessionais dos cristãos, asseveram e atestam a verdade de que a vida é inviolável; a ordenação do Didaquê para não se matar as crianças no ventre da mãe, isto é, para não se cometer aborto, é parte da doutrina cristã; os cristãos não cometem aborto, bem como se colocam contra o aborto; e a afirmação da Epístola a Diogneto confirma esta fato, ao afirmar que os cristãos procriam filhos, e nunca, NUNCA eliminam os fetos, isto é, os cristãos nunca cometem abortos ou apoiam a prática do aborto; quem pratica o aborto ou quem apoia o aborto não é cristão; quem pratica o aborto e apoia o aborto é pagão.

10. Tertuliano, por exemplo, afirma de maneira indiscutível: “É um homicídio antecipado impedir alguém de nascer[7]. A afirmação de Tertuliano, no séc. II. d.C., já comprova o que o aborto é homicídio; a lei moral de Deus, os Dez Mandamentos, prescreve o mandamento: “Não matarás” (Êx 20.13). E como o aborto é um homicídio, aprovar e/ou aceitar o aborto é incorrer em aprovação do homicídio ou do assassinato de uma criança inocente, e, portanto, apoiar o aborto é tornar-se participante de homicídios; pois, o aborto não somente é homicídio, mas é uma forma de holocausto; é um holocausto silencioso, onde as vidas concebidas no ventre são assassinadas como um ato infame e ignóbil. Portanto, aborto é contra a lei de Deus, e por isso, o aborto é rejeitado veementemente pelos cristãos.

11. Agostinho, constatara que o aborto é parte de uma libidinagem cruel que procura tornar as pessoas estéreis e/ou procura extinguir a vida no ventre da mãe[8]. Esta libidinagem, é expressão daquilo que Eric Voegelin chamara de “libido dominandi”, a qual é expressão da tentativa de eliminar o significado expresso na história pelo simbolismo cristão[9], onde na tentativa de dominação total, alguma ideologia se utiliza da sexualização excessiva, tanto no sentido puramente sexual, na revolução sexual, quanto no sentido da obnubilação da percepção pela sensualização da vontade. A constatação de Agostinho, em sua época, a época das ebulições do fim do império romano, demonstrara um problema que se tornara novamente levantado pelo comunismo, a saber, da libidinagem cruel que procura matar crianças no ventre de suas mães; é parte da “lidido dominandi” do comunismo incentivar a prática do aborto, para a partir disso, corromper a ordem moral da sociedade e poder implementar a cultura de morte preconizada nos escritos dos doutrinadores do comunismo. Santo Agostinho já alertara sobre os princípios oriundos desta libidinagem cruel em sua época; e seu alerta serve-nos de alerta ainda maior, devido à época de confusões em que vivemos.

12. Ainda, Tomás de Aquino afirma que o aborto, é “sempre um pecado mortal, porque a prole não pode seguir, daí a intenção da natureza ser completamente frustrada[10]. Logo, na proposição tomista, o aborto é contra a lei natural, contra a intenção da natureza; o aborto é algo não somente contra a lei revelada, mas contra a própria lei natural; e a lei natural é a mesma para todos os homens, em todas as épocas; portanto, o aborto é sempre um pecado mortal, bem como é sempre contra a lei natural; o aborto é contra a revelação e contra a razão; por isso, o aborto ser rejeitado pela doutrina religiosa e pela reta razão. Não é necessariamente necessário ser religioso para ser contra o aborto, basta apenas ter um pingo de bom senso e de juízo para poder ter a percepção de que o aborto é uma prática vil e ignominiosa. Os que apoiam o aborto incorrem na fanfarra da bazófia, incentivada e propagada pelo comunismo.

13. E mais recentemente, no séc. XX, o Concílio Vaticano II afirmara: “são infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho; em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador[11]. Deste modo, o respeito a pessoa humana, o respeito a inviolabilidade da vida, o respeito pleno para com a dignidade humana, é fundamento para que a vida humana se desenvolva; por isso, o Concílio afirma que o aborto é infame, infamante, corruptor, desonrado e ofensivo.

14. O aborto é infame porque é marcado pela infâmia do homicídio, pela baixeza do assassinato, pela vileza da morte de um ser humano; o aborto é infamante porque é marcado pelo avilte para com a dignidade humana, pela injúria do homicídio de um ser humano, pela insolência do desrespeito a vida, pelo opróbrio do holocausto silencioso; o aborto é corruptor porque é marcado pela corrupção do bem natural, pela desvirtuação da natureza, pela instituição programada de um mal que corrói; o aborto é desonrado porque é marcado pelo atentado contra a honra da vida, pela desonra para com a inviolabilidade da vida, pela destruição da dignidade humana; e o aborto é ofensivo porque é marcado pela agressão a vida, pela degradação da lei moral natural, pelo prejuízo a ordem social, pela derrocada da justiça e da paz. O aborto é a encarnação da carranca de Satanás através de um homicídio velado sob o mote de “suposto” direito individual.

15. [ii] Segundo, a inviolabilidade da vida na esfera biótica. A vida é inviolável, é algo afirmado não somente pela religião, mas pela própria esfera biótica da vida humana; a ciência comprova a vida desde sua concepção; desde o momento onde o espermatozoide fecunda o óvulo, se tem uma vida, se tem um ser humano; a Bíblia e a ciência confirmam tal asseveração; nas Sagradas Escrituras, o salmista afirma: “Tu viste quando os meus ossos estavam sendo feitos, quando eu estava sendo formado na barriga da minha mãe, crescendo ali em segredo, tu me viste antes de eu ter nascido. Os dias que me deste para viver foram todos escritos no teu livro quando ainda nenhum deles existia” (Sl 139.15-16 NTLH). Além disso, o profeta Jeremias também afirma: “Antes que eu te formasse no ventre, eu te conheci; e, antes que saísses da madre, te santifiquei e às nações te dei por profeta” (Jr 1.5). Portanto, na Bíblia a vida é confirmada desde sua concepção.

16. Mas a ciência também confirma a vida desde sua concepção; a fecundação ocorre no momento em que há a fusão do óvulo com o espermatozoide, o que forma a realidade do zigoto ou célula-ovo; e neste ato de fecundação, há a união cromossômica das células germinais masculina e feminina, o que ocorre num período de 24 horas; e assim, na formação do zigoto, se observa que este é uma vida, pois, no zigoto estão todas as informações genéticas fundamentais da pessoa que se desenvolverá, sendo gestadas a medida do desenvolvimento do feto até seu nascimento; e estas características fazem deste zigoto um ser humano, fazem deste ser vivo, um ser único e irrepetível; portanto, cientificamente desde a concepção já se tem um ser humano, um ser vivo; e qualquer atentado contra este ser humano, é homicídio e assassinato.

17. Além disso, a confirmação da ciência contra o aborto é evidenciada pelo fato de que os maiores cientistas da humanidade foram cristãos; e estes sempre foram a favor da vida, e principalmente aqueles que se dedicaram as ciências da vida, sempre foram a favor da vida e contra o aborto. Louis Pasteur, o grande cientista francês, afirmara a conhecida lei da biogênese, que vida somente provêm de vida, ao comprovar o desvario e os erros da geração espontânea. Pasteur afirma que a geração espontânea é uma quimera, pois é desmentida pela simples observação de um germe, e por isso, a geração espontânea é contrária a vida; e a vida, é a afirmação básica, o princípio primeiro, daquilo que Pasteur chama de “economia geral da criação”[12], isto é, da estrutura básica a qual toda a natureza está imbuída, naquilo que fora designado pelas leis gerais da ciência. E a evocação do exemplo de Pasteur, principalmente no que tange a geração espontânea, é justamente porque a geração espontânea é a raiz, na modernidade, donde provêm a ideia da aceitação do aborto; por isso, aceitar e propugnar o aborto é o mesmo que incorrer no erro científico da geração espontânea; se a geração espontânea é quimera, então, o aborto é a carranca da quimera; ou melhor, o aborto também é uma quimera. Deste modo, o aborto é contra a economia geral da criação, da natureza, a qual existe indelevelmente como parte da esfera biótica da vida, atestada e confirmada pelas ciências naturais.

18. Com isso, a partir desta lei universal da ciência, a lei da biogênese, se estabelece que só pode haver vida onde há vida; e onde há vida, esta, por ser vida, é inviolável; e, evidentemente, a vida, desde sua concepção, é inviolável; Pasteur comprova isso através da lei da biogênese, pois, se somente vida pode gerar vida, então, entre o que deve ser defendido de maneira impoluta, está a vida; a vida deve ser defendida porque só pode haver vida onde há vida, e isto, tanto no sentido biótico, quanto no sentido cultural, quanto no sentido social; e, como a vida é de suma importância para o desenvolvimento da civilização, então, no processo natural da existência humana, o ponto fulcral, o aspecto fundamental e indissolúvel, é a vida; quem valora a vida valora o progresso intrínseco a existência humana, e quem apoia o aborto destrói o desenvolvimento da existência humana, que só se desenvolve com a vida e com a defesa da vida. Então, a dignidade e a valorização da vida, é pressuposto básico de uma das mais importantes leis da ciência; a própria ciência é sublimada e desenvolvida pelo respeito a inviolabilidade da vida. Logo, não há base científica para a defesa do aborto.

19. Além da proposição de Pasteur, tem-se a proposição do geneticista francês Jérôme Lejeune, pai da genética moderna, que foi um cientista anti-aborto; e sendo geneticista, e um dos maiores de todos os tempos, seu testemunho constitui uma preciosa lição a respeito desta questão; Lejeune defende de maneira veemente a dignidade da vida desde sua concepção, isto é, desde a formação do zigoto[13]. Logo, é princípio do pai da genética moderna a proposição de que a vida é iniciada no momento da concepção, e por isso, inviolável desde sua concepção até o momento da morte.

20. E o que dizer de tantos outros exemplos de geneticistas e de cientistas que compreenderam esta verdade fundamental; a própria existência da ciência demonstra a necessidade primordial do respeito a vida; por isso, João Paulo II afirmara que, “todo o homem sinceramente aberto à verdade e ao bem pode, pela luz da razão e com o secreto influxo da graça, chegar a reconhecer, na lei natural inscrita no coração (cf. Rm 2.14-15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início até ao seu termo, e afirmar o direito que todo o ser humano tem de ver plenamente respeitado este seu bem primário[14].

21. [iii] Terceiro, a inviolabilidade da vida na esfera jurídica. A vida é inviolável, e atesta isso não somente a esfera religiosa e a esfera biótica, mas também a esfera jurídica da vida humana; na verdade, a esfera jurídica apenas confirma este fato primordial que provêm da esfera religiosa e da esfera biótica, e o afirma em categóricas palavras, ao constatar que a vida é inviolável; os códigos das leis, apresentam e confirmam este fato, que todo homem aberto a verdade, e que iluminado pela luz da reta razão pode chegar a conhecer, independente de condição social, econômica e religiosa. E, sobre a reta razão, Cícero afirmara: “A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus[15]. Pela reta razão, é que se funda e se estabelece a esfera jurídica da vida humana, e é pela reta razão que se prescreve o bem, e se afasta do mal; e o direito positivo, as instituições de leis humanas, deve ser abalizada pelo direito natural, fundado na lei natural, na reta razão.

22. Por isso, a esfera jurídica apregoa a inviolabilidade da vida; a reta razão assim o prescreve, a fim de descrever o bem e afastar o mal; pois, a vida é o bem primeiro do ser humano, e conjuntamente com a liberdade, é um dos bens maiores da existência humana; a esfera jurídica da realidade, só existe e é preservada com a defesa da vida; sem vida não há direito; sem a defesa da vida não há justiça; sem a preservação da vida não há ordem constitucional; todo o aparato jurídico do Estado brasileiro depende e subscreve a defesa a vida; não somente o atestam a Constituição ao afirmar a inviolabilidade da vida[16], e o Código Penal ao condenar o aborto[17], mas porque o direito é fundado na reta razão, princípio fundamental sem o qual a existência da democracia e do Estado se tornam obsoletas e esclerosadas; sem a reta razão a democracia é enfraquecida e o Estado incorre nos descaminhos do Estado Total. É pelo reconhecimento do direito a vida, da inviolabilidade da vida, que se fundamenta a vida em sociedade e a própria política; João Paulo II assevera: “Sobre o reconhecimento de tal direito [da inviolabilidade da vida] é que se funda a convivência humana e a própria comunidade política[18] [em colchetes: acréscimos meus].

23. Mas porque a esfera jurídica da realidade atesta logicamente a inviolabilidade da vida? Esta é uma questão assaz importante que se responde de dois modos: primeiro, pela natureza da ordem jurídica da realidade; segundo, pela preservação da ordem jurídica da realidade.

Primeiro, pela natureza da ordem jurídica da realidade. A esfera jurídica da realidade, possui uma natureza; e esta natureza é o que identifica a esfera jurídica como parte integrante da ordem da realidade; e esta identidade, é o que demonstra a própria razão de ser do direito; o direito só existe em consonância com a esfera jurídica da realidade, pois, o direito nasce, se estabelece e se desenvolve a partir da realidade; portanto, a natureza da ordem jurídica da realidade é abalizada pela realidade, e a partir da realidade é que se tem o saber constitutivo do direito; por isso, os mestres do direito romano estabeleceram que as leis humanas deviam ser instituídas a partir da natureza: o direito natural deve preceder, abalizar e dignificar o direito positivo. E a vida, é parte da realidade; a vida é o que de mais precioso existe para os seres vivos, particularmente para os seres humanos; sem vida não há realidade, e a própria realidade se desintegra; logo, a inviolabilidade da vida é parte integrante e indissolúvel da própria realidade. Assim sendo, a natureza da ordem jurídica da realidade é testemunha deste apriorismo da existência humana, a saber, testemunha da inviolabilidade da vida.

24. Segundo, pela preservação da ordem jurídica da realidade. Se a natureza da ordem jurídica da realidade testemunha sobre a realidade da vida, não somente é por sua própria natureza, mas principalmente pela preservação da ordem jurídica da realidade; pois, a defesa da inviolabilidade da vida constitui-se não somente a defesa da continuidade da raça humana, mas também constitui-se do próprio ato de preservar a ordem jurídica da realidade de práticas que destroem a própria realidade; a permissividade do aborto é algo que destrói a ordem jurídica da realidade bem como mancha a existência da sociedade; pois, o aborto é homicídio e um atentado contra a vida, e tudo o que é contra a vida, evidentemente, é contra a ordem jurídica da realidade. Portanto, a inviolabilidade da vida é pressuposto indiscutível e irrevogável para que a ordem jurídica da realidade seja preservada.

25. E, somente tendo consciência disto, é que se pode preservar a ordem jurídica da realidade, a qual é imbuída como responsabilidade humana, naquilo que é essencialmente e naturalmente humano; quando esta preservação é feita de maneira sóbria e eficaz, a própria lei natural é novamente estabelecida como regra de conduta humana universal e como normativa para o direito. Pio XII, em sábias palavras, afirmara: “Assim, podemos esperar que a lei natural, gravada pelo Criador nos corações dos homens, possa em breve, como deve em última análise, prevalecer como regra universal da conduta humana sobre caprichos arbitrários e interesses sórdidos que aqui e ali usurparam o seu lugar, e que, em consequência, a nova geração possa ser salva do analfabetismo moral com que está ameaçada[19]. 

26. A esfera jurídica da ordem da realidade, é apresentada aos homens, a partir da lei natural, e cristalizada através dos códigos de leis; por isso, as leis humanas, provenientes do direito positivo, afirmam categoricamente aquilo que é proveniente do direito natural; e o direito natural afirma categoricamente a vida; na verdade, o direito natural é embasado pela vida, a própria vida é parte da dignidade inerente ao direito natural; e as leis humanas, instituídas para o bem de todos, devem respeitar os preceitos do direito natural; Tomás de Aquino afirma: “a vontade humana, a partir de um consentimento comum, pode fazer algo justamente naquelas que por si mesma não têm qualquer oposição à justiça natural[20]. E o preceito primeiro, o preceito maior do direito natural, é a vida; por isso, os códigos de leis afirmam categoricamente a proposição de que a vida é um direito fundamental, e por isso, a vida é inviolável.

27. Entendido estes três breves aspectos, pode-se prosseguir para defrontarmo-nos com a proposição advogada quase que de maneira religiosa pelos propugnadores do aborto, a saber, que o aborto é questão de saúde pública; realmente, o aborto é questão de saúde pública: não a aceitação do aborto, mas a proibição de aborto; não existe saúde pública onde há a permissividade para com o aborto; porque o aborto, sendo homicídio, é contrário a saúde; e a lógica básica da estrutura da Constituição confirma esta verdade, pois, os direitos fundamentais afirmam a vida, e a vida, evidentemente é a base para a saúde; logicamente, o que é anti-vida é anti-saúde; então, como querem propugnar o aborto com “unhas e dentes” afirmando que o mesmo é questão de saúde pública? É um dos maiores sofismas que já foi criado pela imbecilidade humana, pois, algo para ser favorável a saúde tem de ser pró-vida; e o aborto nunca é favorável a saúde, pois, aborto é homicídio, e por isso, o aborto é sempre anti-vida.

28. E tal proposição é confirmada pela Constituição; como fora dito, existe uma lógica estrutural básica na Constituição; e sendo tal estruturação lógica, significa que cumpre as leis do pensamento correto, as leis da lógica, que são as leis gerais que guiam a racionalidade humana; uma das leis das lógica estabelecidas por Aristóteles, e confirmada por todos os grandes pensadores posteriores, é a lei do terceiro excluído, isto é, é necessário ser X ou não-X; em relação ao pensamento racional tal proposição está totalmente correta, já que ou uma coisa é aquilo que a confirma racionalmente ou então é a negação desta coisa. E ao se aplicar isso a proposição de que o aborto é questão de saúde pública, se observa quão ilógica e irracional é tal proposição; pois, o aborto é morte, é homicídio; portanto, como que a permissividade para com aborto é tida como questão de saúde pública; é pressuposto irrevogável e intocável da existência da saúde a proteção a vida, no encargo estabelecido pela Constituição a saúde, no velar pela inviolabilidade da vida. O aborto é ilógico e irracional, mas o aborto também é contra a estrutura lógico-jurídica prescrita na Constituição, o que não precisa ser um constitucionalista erudito para se compreender.

29. A propugnação de que o aborto é questão de saúde pública, além de ser contra as leis que regem o pensamento correto, contra as leis da lógica, a própria permissividade para com o aborto demonstra a esquizofrenia constitucional por parte do Estado brasileiro; pois, se a Constituição prescreve a vida como direito fundamental, e a própria saúde só é estabelecida pelo respeito a dignidade da vida, então, como é que se fala de aborto como questão de saúde pública? A aprovação do aborto, seja por parte do Conselho Nacional de Saúde, seja por parte do Poder Judiciário, demonstra certa esquizofrenização do propósito estabelecido a estes pela Constituição; pois, se a esfera jurídica da ordem da realidade é contra o aborto, então, tudo aquilo que diz respeito a existência jurídica do Estado brasileiro também tem de ser; e, se a esfera biótica da ordem da realidade é contra o aborto, então, tudo aquilo que diz respeito a valoração da saúde também tem de ser; a propugnação do aborto sobre o mote de que é questão de saúde pública é um sofisma, porque o aborto é anti-vida, e por isso, é anti-saúde; logo, o aborto é contra a saúde, e por isso, a aprovação do aborto é a derrocada da saúde. Não existem argumentos racionais e/ou científicos para se aprovar o aborto do ponto de vista jurídico e do ponto de vista da saúde.

30. Além disso, a Constituição prescreve que entre os direitos sociais está a proteção a maternidade[21]; e, entre os aspectos fundamentais da proteção a maternidade, um dos direitos sociais, está a proibição do aborto; portanto, como se protegerá a maternidade onde se há permissão para o aborto; por isso, a permissividade para com o aborto é contra os direitos sociais; então, como que o aborto, que é contrário aos direitos fundamentais e contrário aos direitos sociais, pode ser aceito como um “suposto” direito individual; aliás, entre os fundamentos que constituem o Estado brasileiro está a “dignidade da pessoa humana”[22], o que per se, evidencia que constitucionalmente a existência do Estado brasileiro é contra tudo aquilo que viola a dignidade humana. O Brasil é edificado e se desenvolve somente com o respeito pela dignidade da pessoa humana; e não há nada mais ultrajante para a dignidade humana do que a aprovação do aborto. Por isso, constitucionalmente, de acordo com os direitos fundamentais e os direitos sociais, a vida é inviolável, e inviolável desde sua concepção, pois, a concepção de vida provém da ciência, e a ciência atesta de maneira irredutível a vida desde sua concepção.

31. Portanto, em consonância com este quesito, a inviolabilidade da vida também adentra na esfera social, pois é fundamento para a própria ordem social; a respeito disso, o exemplo da Constituição alemã é contundente ao afirmar: “Todos têm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, desde que não violem os direitos de outros e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral[23]. Deste modo, no livre desenvolvimento de cada pessoa, para que haja o desenvolvimento social, há de se ter o livre direito a tal desenvolvimento pessoal, que a Constituição Federal apresenta sobre os encargos dos direitos fundamentais e inalienáveis, desde que este não atente contra a ordem constitucional ou contra a lei moral; o que a constituição alemã afirma de forma incisiva é o que permeia a Constituição brasileira e o entendimento natural sobre a ordem constitucional no Estado brasileiro; pois, o que nossa ordem constitucional prescreve é aquilo que está em consonância com os direitos fundamentais, os quais são atestados e confirmados pela lei moral natural, igual para todos os homens e que independe de doutrina religiosa; portanto, tudo aquilo que está contra estes direitos fundamentais está contra a lei moral natural, e por isso, logicamente, é anticonstitucional; o aborto é contra os direitos fundamentais, e por isso, a prática do aborto é a desfiguração da ordem social, e a inoculação de um veneno mortífero na sociedade, que atenta contra a ordem constitucional e que é uma vileza para com a lei moral natural. Onde há aborto não há ordem social, e a própria esfera social da vida humana se torna uma existência fixada em lixo moral e em perpetuação do erro e da injustiça: onde há permissão ao aborto, ao homicídio, logo, passa a haver permissividade para com qualquer tipo de crime; isto torna a sociedade em assembleia de injustiça, em quadrilha de bazófios; e onde há injustiça a ordem social torna-se vil e inócua. Portanto, a permissão do aborto destrói o húmus do encargo social intrínseco a natureza humana.

32. Com isso, o respeito pela pessoa humana, a valoração da dignidade humana, afirmada em ecos cósmicos pela proclamação altissonante da inviolabilidade da vida, é fundamento da paz; sem vida não há paz; e onde há legalização do aborto, do homicídio, os fundamentos da paz são desfigurados e corrompidos; a paz, tão necessária à vida humana, só existe e é preservada com o respeito a dignidade humana e com o respeito pleno a vida; só existe paz sob os princípios cristãos fundamentais, nos quais, está imbuído a justiça e a verdade; por isso, esta paz, preservada no respeito pela pessoa humana, na valoração da dignidade humana, na proclamação da inviolabilidade da vida, se torna uma paz duradoura e em benefícios de todas as gentes. Nas incontestáveis palavras de Pio XII, esta paz, é “uma paz na qual prevemos com confiança que esses princípios cristãos fundamentais estão incorporados, cuja aplicação pode assegurar a vitória do amor sobre o ódio, do direito sobre o poder, da justiça sobre o egoísmo, e na qual a busca de valores eternos prevalecerá sobre a busca de bens meramente temporais[24].

Que o bondoso Deus nos livre da infâmia e do vilipêndio do aborto, para prosseguirmos como nação e como sociedade nos brilhantes caminhos da vida, da justiça, da liberdade e da paz, o propósito para o qual existimos como nação e como povo brasileiro. 



Este texto é uma carta aberta enviada ao Conselho Nacional de Saúde devido as propostas de descriminalização do aborto evocadas numa resolução do referido conselho em julho de 2023 (a resolução 715).

[1] Paul Leicester Ford (ed.), The Works of Thomas Jefferson Vol. 2: 1771-1779 [New York and London: G. P. Putnam’s Sons, 1904], pág. 200ss.

[2] A Constituição dos Estados Unidos da América, e. c. V.

[3] Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, art. 2, n. 2.

[4] Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 3.

[5] Didaquê, cap. II, n. 2.

[6] Epístola a Diogneto, cap. V.

[7] Tertuliano, Apologeticum, livro IX, cap. 8.

[8] cf. Agostinho, De Nuptiis et Concupiscentiis, cap. XV, In: PL 44, pág. 423-424.

[9] cf. Eric Voegelin, Ensaios Publicados 1966-1985 [São Paulo: É Realizações, 2019], pág. 269.

[10] Tomás de Aquino, Commentaria in Librum Sententiarum, livro 4, d. 31, q. 2, a. 3, exp.

[11] Gaudium et Spes, n. 27.

[12] cf. Pasteur Vallery-Radot (ed.), Ouevres de Pasteur Vol. 2: Fermentations et Générations dites Spontanées [Paris: Masson et Cie., 1922], pág. 346.

[13] cf. Jérôme Lejeune, En el Comienzo, La Vida - Conferencias Inéditas (1968-1992) [Madrid: BAC, 2019].

[14] João Paulo II, Evangelium Vitae, n. 2.

[15] Cicero, Da República, III, 17.

[16] cf. Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5.

[17] cf. Código Penal, arts. 124-126.

[18] João Paulo II, Evangelium Vitae, n. 2.

[19] Pio XII, Letter to the President Franklin D. Roosevelt, 16 March 1940.

[20] Tomás de Aquino, Summa Theologiae, IIa IIae q. 57, a. 2, ad. 2.

[21] cf. Constituição da República Federativa do Brasil, art. 6.

[22] Constituição da República Federativa do Brasil, art. 1, inciso III.

[23] Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, art. 2, n. 1.

[24] Pio XII, Letter to the President Franklin D. Roosevelt, 20 September 1941. 


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