17/10/2025

Pedância e Uniteralidade no Dogma da Supremacia Papal

I

[No que concerne a verdadeira religião]

Schleiermacher houvera afirmado que a religião é inimiga jurada de toda pedância e de toda uniteralidade[1]; portanto, a religio vera, a verdadeira religião é inimiga da pedância e da uniteralidade; onde há pedância e uniteralidade não há verdadeira religião, e vice-versa.

Na verdade, a piedade, a verdadeira piedade, o caminho da verdadeira divinização é o oposto total de pedância e uniteralidade; por isso, a pedância e uniteralidade são o caminho da infernização.

Ora, desde o início do séc. XIX, o que mais tem havido na religião é justamente pedância e uniteralidade; logo, aquilo que mais tem dito ser de religião é o que menos tem de religião; além disso, se há pedância, então há arrogância e/ou charlatanismo (ou usurpação); e se há uniteralidade, então há jactância e/ou presunção.

Assim, se somatizou à religião algum princípio e/ou perspectiva inconsciente que tornou a própria religião a pior caricatura de si mesma, tornando as expressões religiosas em “concurso” de pedantes e de unilaterais. E religião com pedância e uniteralidade é pasto de demônios.

E por que? Porque a pedância e a uniteralidade são manifestações da vanglória; e, como afirmara São Máximo o Confessor: “Quer seja destruída, quer permaneça, a vanglória engendra o orgulho. Se ela é destruída, suscita a presunção; se permanece, suscita a jactância[2]; ora, como a vanglória manifesta-se em pedância e uniteralidade, então, se se destrói a vanglória, fruto do orgulho, será suscitado a presunção, e se permanece a vanglória, que gesta o orgulho, será suscitado a jactância. E, ambos os casos é manifestação de soberba.

Por isso, a pedância e uniteralidade gestam presunção e jactância, seja em relação a si seja em relação a outrem; aliás, onde há orgulho há obra demoníaca; o orgulho, seja manifesto em qual forma for, sempre é evidência da obra de Satanás; pois, a obra de Satanás é germinar, cultivar e gestar o orgulho, para que através dele possa dominar as ações humanas.

Com isso, se constata que a religião que provém de Deus e que é pura e imaculada (cf. Tg 1.26-27), é a que talhada na humildade e auto-consciência da dependência de Deus; entretanto, a religião que provém dos demônios e que é impura e maculada, é a que talhada na pedância e na uniteralidade; portanto, a religião verdadeira diverge da religião falsa dado sua proveniência e suas propriedades inerentes.

Ora, sendo esta a simples distinção entre a verdadeira religião e a falsa religião não se torna difícil constatar e averiguar onde se tem verdadeira religião e onde se tem falsa religião; os frutos demonstram, de maneira irrefutável, se se é de Deus ou de Satanás. “Por seus frutos os conhecereis” (Mt 7.16a), ensina o Senhor Jesus Cristo ao exortar cautela contra os falsos profetas; e o mesmo deve ser aplicado ao se averiguar e constatar se a religião é verdadeira ou falsa.

II

[A pedância e a uniteralidade em dogmas anti-patrísticos]

Ao se procurar averiguar esta questão, se tem um meio de buscar compreender se a verdadeira religião não fora desfigurada e/ou se tornara em falsa religião; e este meio é analisar e elucubrar sobre a proclamação dos dogmas, principalmente dos dogmas proclamados no segundo milênio da era cristã; pois, a pedância e a uniteralidade se tornam manifestos na proclamação de dogmas anti-bíblicos e anti-patrísticos.

E no segundo milênio, a cristandade latina acoplou muitos dogmas anti-bíblicos e anti-patrísticos; na verdade, por serem anti-bíblicos são anti-patrísticos e por serem anti-patrísticos são anti-bíblicos; e não só no catolicismo romano, o próprio protestantismo que arrolou o sofisma de princípio de que mantinha-se somente na Escritura, também inventou vários dogmas estranhos a fé apostólica e contradizentes ao testemunho dos Santos Padres, conquanto no protestantismo não tenham adquirido formalidade dogmática como no catolicismo, mas os erros são tão heréticos quanto.

Outrossim, é que na cristandade latina, em suas crises inerentes, as mais das vezes, sempre desemboca em alguma tentativa de acrescentar algo a mais, seja na Sagrada Escritura seja na tradição imutável da fé; sempre alguém, arrolando alguma nova forma de revelação, de maneira direta ou de maneira indireta, busca acrescentar alguma novidade demoníaca para desfigurar e corromper a fé apostólica; os chamados “ventos de doutrina” de que fala o Apóstolo (cf. Ef 4.14).

Portanto, se pode observar duas classes de dogmas anti-patrísticos na cristandade no segundo milênio, a saber: (a) em dogmas proclamados formalmente; e, (b) em práticas dogmais instauradas informalmente.

Analisemos estes dois aspectos.

a. Em dogmas proclamados formalmente.

Aqui se tem em vista principalmente o catolicismo, já que o protestantismo após os documentos confessionais dos sécs. XVI e XVII, não teve mais dogmas proclamados formalmente, pelo menos não do ponto de vista puramente dogmático.

Assim, se constata os seguintes dogmas proclamados pelo catolicismo que contradizem a tradição escriturística e a tradição patrística: (1) o filioque; (2) o dogma da imaculada conceição; (3) o dogma da supremacia papal; etc.

Estes são alguns dos dogmas proclamados formalmente, mas que são anti-patrísticos, que são contrários a fé da Igreja desde sua constituição por Cristo.

b. Em práticas dogmais instauradas informalmente.

E quanto as práticas dogmais instauradas informalmente, se tem de fazer uma distinção entre as práticas dogmais no catolicismo e no protestantismo.

[No catolicismo] Eis algumas práticas dogmais instauradas informalmente no catolicismo: (1) a devoção ao sagrado coração de Jesus, que depois se tornou em prática formal, e aqui acopla também outros tipos de devoção que são heréticas segundo a fé dos Santos Padres; (2) a perversão do senso estético na vida eclesial e, por consequência, na vida extra-eclesial, seja em qual das artes for; (3) a destruição da liturgia verdadeira em função da aceitação cada vez maior de abusos litúrgicos; etc.

[No protestantismo] Eis algumas práticas dogmais instauradas informalmente no protestantismo: (1) a vontade do pastor, sacerdote ou líder, como uma espécie de gnose revelacional; (2) a perversão da autoridade da Sagrada Escritura, mesmo que se afirme constantemente o sola Scriptura; (3) a total perversão da sagrada liturgia por cultos e/ou reuniões emocionalistas que destroem a inteligência e putrificam a vontade; (4) a discórdia e a rebeldia como características inerentes a falta da verdadeira doutrina apostólica e a falta da verdadeira disciplina apostólica; (5) a aceitação deificatória de práticas que são totalmente contra os preceitos morais; (6) a destruição do verdadeiro sacerdócio com a ordenação de mulheres como “sacerdotisas”; etc.

[...]

Deste modo, se tem a partir destas breves descrições um panorama geral de dogmas anti-patrísticos instaurados na cristandade latina, que pervertem o senso da fé verdadeira e corroem sua imutabilidade manifesta de maneira ininterrupta durante a história; os dogmas anti-patrísticos da cristandade latina são expressão inconcussa de pedância e uniteralidade.

E os que aqui foram evocados são apenas um simples escopo de toda esta corrupção doutrinária e, por conseguinte, de toda a corrupção moral que disto emana.

III

[A pedância e a uniteralidade no dogma da supremacia papal]

Ora, em específico, se estabeleceu analisar mais propriamente a pedância e a uniteralidade no dogma da supremacia papal.

A ideia da “supremacia papal” é algo estranho a fé apostólica; por exemplo, São Gregório Magno afirma que se um bispo atribuir a si a supremacia universal, então é precursor do anticristo[3]; etc.

Na verdade, isso começou mais propriamente a ser propugnado de maneira mais incisiva a partir de Gregório II, o bispo de Roma que ao invés de seguir a palavra de Cristo: “Tu és Pedro”, seguiu outro dito, a saber: “Tu és César”; e isso tomou forma final com o “Dictatus Papae” de Gregório VII, no qual se estabeleceu a supremacia papal absoluta; isso abriu o caminho para a proclamação muito depois do dogma da infalibilidade papal no Concílio Vaticano I, que em suma é um resquício nada tímido do documento de Gregório VII; etc.

Na verdade, a ideia da supremacia papal é toda ela abalizada a partir do documento de Gregório VII; e Dante afirma que Gregório VII ao chegar no céu e descobrir que estava errado, de si mesmo riu[4]; e realmente a ideia da supremacia papal como por ele fora propugnado, e depois aceito em toda a cristandade latina, se for aferida pela autoridade da Sagrada Escritura e pela autoridade da Sagrada Tradição, é algo irrisório.

A verdadeira experiência de Deus evidencia isso de maneira inconcussa; e o próprio Hildebrando, na descrição dantesca, descobriu isso ao chegar no céu.

Assim, o dogma da supremacia papal é pedância porque, (1) atribui uma autoridade que o próprio Deus nunca atribuiu aos apóstolos; (2) porque é uma busca por vanglória, pela glória deste mundo, o que contradiz o princípio bíblico da autoridade eclesiástica; (3) porque é a aceitação de uma glória mundana, de um “sucesso” mundano, que vitupera a verdadeira honra e dignidade da sucessão apostólica; (4) porque ao se evocar uma supremacia absoluta, se busca concorrer com o próprio Cristo, pois a supremacia absoluta só pertence a Cristo e não aos sucessores dos apóstolos ou a qualquer líder neste mundo; (5) porque a transmogrifação do conceito de autoridade, nas coisas espirituais, ocasiona secularização, seja em relação ao sagrado seja em relação a própria secularidade; etc.

Além disso, o dogma da supremacial papal é uniteralidade, (1) porque põe um princípio unilateral, enquanto na verdade tal princípio, no âmbito da vida eclesial, é sinfônico ou multilateral; (2) porque expressa a “vontade de poder” temporal que se encarna na sucessão apostólica desfigurando-a de seu propósito espiritual; (3) porque evidencia inconcussamente a comutação do império romano de temporal em espiritual; (4) porque transmuta a proclamação do Santo Evangelho em práticas ideológicas em vista apenas de propósitos políticos; (5) porque torna a sucessão apostólica subserviente a líderes com poderes de mando que acabam por “mandar” na esfera eclesial; etc.

Portanto, o dogma da supremacia papal é evidência de pedantismo e uniteralidade, o que torna a própria religião cristã desfigurada; além, obviamente, de contradizer plenamente o princípio bíblico e a Sagrada Tradição, estando em contrariedade a fé apostólica e em contrariedade a fé dos Santos Padres.

Por isso, se rejeita completamente este dogma, tanto do ponto de vista da exegese escriturística quanto do ponto de vista da tradição dos Padres da Igreja, bem como se rejeita o dogma da supremacia papal a partir do escrutínio da reta razão.

Assim sendo, não há como haver união com a Igreja de Roma, o catolicismo, posto este dogma, e outros, estarem completamente contrários a fé apostólica e a fé patrística; e como a fé verdadeira está em concórdia com o testemunho dos apóstolos e de seus sucessores, e como tal fé não tem em si a ideia da supremacia papal, então cumpre a fé verdadeira a rejeição do dogma da supremacia papal.

Ademais, se coloca contra este dogma a partir destas simples descrições sem muitas citações das Escrituras e dos Padres da Igreja, a fim de que se clarifique que este dogma é tão errôneo, que uma simples análise e descrição racional é suficiente para demonstrar a heresia terrível que se entranhou em tal dogma no âmbito da cristandade latina. 



[1] cf. Friedrich Schleiermacher, Sobre a Religião [São Paulo: Fonte Editorial, 2022], pág. 41-42.

[2] São Máximo o Confessor, Capítulos sobre o Amor, 3ª centúria, cap. 61.

[3] cf. São Gregório Magno, Epístola VII, n. 33.

[4] cf. Dante, A Divina Comédia, Paraiso, Canto XXX, 134-135. 


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