Prefácio.
Este
escrito reflete a respeito de temas sobre a teologia de Schleiermacher; não
propriamente uma análise englobante da teologia de Schleiermacher, mas, a
evocação de axiomas, ou princípios, que se estabelecem como preponderantes no
estudo e na compreensão sobre Schleiermacher; e a ideia de estabelecer estes
axiomas, se dá pelo fato de que a teologia e o pensamento de Schleiermacher
passaram por tantas críticas invejosas e maledicentes, que, basicamente todas
as críticas enviesaram e deturparam o pensamento de Schleiermacher; por isso,
estabelecer estes axiomas é uma forma de se livrar destas críticas invejosas
para procurar entender Schleiermacher a partir do que ele realmente disse.
Portanto,
este escrito, “Os Axiomas para a Interpretação de Schleiermacher”, é
formado em parte como uma releitura, em parte uma paráfrase, e na maior parte
como uma ampliação de um texto de Karl Barth, “Axiome zur
Schleiermacher-Interpretation” (1930); se escreve este texto, pois os
axiomas elencados por Barth são fragmentários e estão inacabados, conquanto
para a época tenham sido um enorme avanço para a compreensão de Schleiermacher;
mas, ao estudar Schleiermacher, e aprender a compreendê-lo a partir do próprio
Barth, se percebe que estes axiomas de Barth estão incompletos; por isso, se
faz necessário ampliá-los e reelaborá-los de forma mais precisa para se ter
axiomas mais completos para a compreensão de Schleiermacher.
Como
se pode observar, este escrito é homônimo ao escrito de Barth; e, resolvi
manter o mesmo título devido a ser o caminho corretíssimo traçado pelo melhor
intérprete de Schleiermacher para a compreensão e a interpretação de seu
pensamento. Na verdade, antes de adentrar no estudo e na análise de
Schleiermacher são necessários estes axiomas, e a medida que sua obra e
pensamento forem compreendidos, certamente, serão evocados novos e mais
precisos axiomas, e assim, cada vez mais se poderá avançar no estudo e na
compreensão sobre Schleiermacher.
Com
isso, amparado em Barth e graças aos labores de Barth em interpretar e dar a
conhecer a teologia de Schleiermacher, pode-se asseverar que quase duzentos
após a morte de Schleiermacher, enfim se pode apresentar uma compreensão mais
adequada sobre Schleiermacher; isso se afirma com resoluta convicção, como se
demonstrará neste e em muitos outros escritos sobre Schleiermacher.
Soli Deo Gloria!
In
Nomine Iesus!
22 de fevereiro de
2024.
I. Barth
e a Interpretação de Schleiermacher.
1. A
interpretação da teologia de Schleiermacher constitui-se de um enigma; pois,
poucos teólogos da história foram tão rechaçados e tão invejados como
Schleiermacher; na verdade, ninguém foi tão mal interpretado e tão odiado como
Schleiermacher, e ninguém procurou fazer tanto pela igreja e pela teologia
quanto Schleiermacher; os “inimigos” contra os quais Schleiermacher lutou não
somente eram inimigos da Igreja e da teologia, mas inimigos da humanidade;
pois, poucos, tiveram um gênio tão grande como Schleiermacher, e poucos
contribuíram tanto como ele; e poucos foram tão invejados e maltratados como
ele, o que demonstra uma injustiça moral e intelectual de nível cósmico.
Portanto, pelas críticas que se avolumaram e que desde sua época se tornaram
palavras de ordem, e que continuam a imperar mesmo quase duzentos anos após sua
morte, se faz necessário novamente se revisitar a teologia de Schleiermacher.
2. E,
para a compreensão de Schleiermacher, não se pode deixar de falar de Barth;
pois, ninguém fez mais pela compreensão da teologia de Schleiermacher do que
Barth; na verdade, Barth fora quem melhor entendera Schleiermacher; e fora quem
mais contribuiu para realmente se entender quem era Schleiermacher como teólogo;
na verdade, se se observar a correspondência de Barth dos anos 1920-1930, se
percebe que Barth procurou, a par de todas as críticas, entender Schleiermacher
a partir de Schleiermacher; e por isso, Barth se tornou no mais autorizado
interprete de Schleiermacher, pelo menos da teologia de Schleiermacher. E, os
vários ensaios que escrevera, além de sua monumental “Die Theologie
Schleiermacher’s”, uma formidável interpretação da teologia de
Schleiermacher, e o posfácio a uma seleção de escritos de Schleiermacher, um
dos últimos textos publicados por Barth, são textos fantásticos, que demonstram
que Barth, sem dúvidas, é o mais abalizado interprete de Schleiermacher, a
quem, diga-se de passagem, o próprio Barth tinha como seu arquirrival
teológico.
3.
Além destes textos, em vários seminários que dirigira, Barth procurou evocar
aspectos sobre a teologia de Schleiermacher, como em Bonn quando forneceu um
seminário sobre a introdução do “Glaubenslehre”; mas, chama a atenção um
pequeno escrito de Barth, intitulado “Axiome zur
Schleiermacher-Interpretation” (1930)[1]; neste escrito, Barth
estabelece, a partir daquilo que houvera entendido sobre a teologia de
Schleiermacher, os princípios que considerava preponderante para a
interpretação de Schleiermacher; e, em se tratando de sua época, estes
princípios foram um avanço continental, e fora até então a “fórmula” mais
precisa para se adentrar na compreensão de Schleiermacher.
4.
Evidentemente, houveram outros que procuram explicar Schleiermacher; como
Biedermann, Ritschl, e mesmo contemporâneos de Barth, como Brunner, Bultmann e
Tillich; com relação a Biedermann, pode-se afirmar que ele seguiu a partir do
caminho que Schleiermacher abriu, e formulou excelentes princípios e burilou
muitos outros a partir dos princípios de Schleiermacher, mas não forneceu uma
explicação adequada da teologia de Schleiermacher, salvo os pontos comuns que
ele pode burilar em se tratando da teologia dogmática; em relação a Ritschl,
ele foi muito justo com Schleiermacher e procurou interpretar muitas obras de
Schleiermacher de maneira correta, como fizera com uma interpretação sobre os “Reden”,
em uma monumental interpretação sobre os discursos sobre a religião de
Schleiermacher; mas os teólogos do séc. XIX, ainda apenas elevaram alguns
princípios de Schleiermacher, mas não o explicaram de maneira adequada, salvo
em um ou outro aspecto, como se observa na obra de Biedermann e de Ritschl.
5. E,
em relação aos contemporâneos de Barth, há algo parecido em Bultmann, que
entendeu Schleiermacher – como se demonstra em muitos de seus textos pessoais,
cartas e manuscritos -, mas que não o explicou de maneira adequada. Brunner,
como o próprio Barth assevera, foi o primeiro a se distanciar verdadeiramente
de Schleiermacher, a construir uma teologia de maneira diversa dos princípios
propugnados por Schleiermacher, mas o próprio Brunner não forneceu nenhuma
interpretação adequada de Schleiermacher além de suas críticas a ele.
Tillich,
provavelmente foi quem mais valorou Schleiermacher, e continuou e sublimou de
maneira fenomenal o caminho de Schleiermacher, pelo menos em relação a teologia
da cultura, ou mais propriamente, em relação aos princípios evocados por
Schleiermacher como teólogo acadêmico.
Tillich continuou na linha de Schleiermacher em relação a teologia
acadêmica; e, nisto, estabeleceu seu próprio caminho como teólogo, mas, com a
exceção de suas preleções sobre as perspectivas da teologia protestante nos
sécs. XIX e XX[2],
e de outros escritos, o próprio Tillich também não empreendeu uma análise
exaustiva sobre Schleiermacher; em Tillich, porém se tem um aspecto importante,
pois, ao se conhecer o pensamento de Tillich, pode-se conhecer aspectos do
pensamento de Schleiermacher, já que Tillich sublimou a perspectiva de
Schleiermacher enquanto teólogo acadêmico em relação a teologia da cultura.
Deste modo, Tillich é, por assim dizer, enquanto teólogo acadêmico, uma
continuação do princípio estabelecido por Schleiermacher; e isso Tillich fez de
forma magistral.
6.
Mas, mesmo diante destas e outras contribuições, é inegável que fora Barth quem
conseguira compreender Schleiermacher e fornecer os parâmetros da interpretação
de sua teologia, algo que o próprio Tillich reconhece, ao afirmar, em relação a
interpretação de Schleiermacher, que: “Ele [Barth] tem sido muito mais justo
do que todos os seus discípulos neo-ortodoxos e seus oponentes”[3]. Assim sendo, Tillich
percebe e reconhece que Barth foi justo com Schleiermacher; no entanto, a
problemática com a análise de Tillich, uma análise fenomenal, que somada com a
análise de Barth sobre a teologia protestante desde Schleiermacher[4], constituem-se as mais
importantes e justas análises sobre o pensamento protestante do séc. XIX e que
adentrou ao séc. XX, é que Tillich ainda permanece muito filosófico;
evidentemente, Tillich pode ser reconhecido como teólogo e filósofo, mas sua
análise sobre Schleiermacher ainda é do ponto de vista filosófico, mesmo para
analisar a obra teológica de Schleiermacher. Logo, a análise Tillich funciona
como um adendo para a compreensão de Schleiermacher, mas, não fora uma análise
contundente sobre a teologia de Schleiermacher tal como Barth fizera.
7.
Deste modo, para ser justo, e, ponderando de maneira geral sobre as principais
contribuições nas teologias dos sécs. XIX e XX, percebe-se que houveram sim
significativas contribuições sobre a interpretação de Schleiermacher; mas, fora
Barth quem mais contribuíra para a correta interpretação de Schleiermacher, sem
descambar ou nas críticas dos hegelianos, ou nos liberalismos teológicos
subsequentes que procuraram em Schleiermacher um “protótipo” de teólogo
liberal; Barth foi justo como Schleiermacher, e graças a obra de Barth em
interpretar Schleiermacher, que se pode adentrar ao estudo e a compreensão
sobre Schleiermacher de maneira mais adequada; e, em seus estudos e análises
sobre Schleiermacher, Barth pode fornecer alguns axiomas; estes axiomas de
Barth, para sua época, foram um avanço sem precedentes, e constituíram-se de
princípios indiscutíveis para a análise de Schleiermacher; todavia, ao se
estudar Schleiermacher a partir das inúmeras pressuposições de Barth, a partir
do que Barth contribuiu e laborou, se consegue compreender que estes axiomas
estão incompletos; e por isso, é necessário se reelaborá-los, e ampliá-los da
melhor maneira possível.
8.
Assim sendo, a partir de Barth, e sob os ombros de Barth, se apresentará outros
axiomas, alguns que são releitura e paráfrase dos axiomas de Barth, outros que
são ampliação e reelaboração de outros axiomas; mas, estes axiomas evocados,
são em sua maior parte, concebidos justamente para reelaborar e ampliar os
axiomas propugnados por Barth, e assim estabelecer axiomas mais precisos, como
princípios metodológicos para a interpretação de Schleiermacher; evidentemente,
não são axiomas que contemplam de maneira específica os tópicos da teologia de
Schleiermacher, mas que fornecem os princípios para se interpretar e
compreender Schleiermacher de maneira adequada; na verdade, estes axiomas
evocados aqui são mais específicos para a interpretação de Schleiermacher; ou
dito de outro modo, aqueles princípios necessários para se adentrar no estudo e
na compreensão sobre Schleiermacher, a partir dos princípios racionais para se
interpretar um pensador e a partir dos princípios estabelecidos pelo próprio
Schleiermacher.
II.
Axiomas para a Interpretação de Schleiermacher.
Eis,
portanto, axiomas para a interpretação de Schleiermacher[5]:
1.
Toda pessoa que pensa, o faz com um objetivo, com um escopo e a partir de
alguma tarefa estabelecida.
2.
Exige-se de uma pessoa que pensa:
a.
Primeiro, que se conheça o objetivo de seu pensamento.
b.
Segundo, que se compreenda os meios para que possa realizar as tarefas
designadas para formular estes pensamentos.
c.
Terceiro, que se verifique se tenha coerência em relação ao que fora proposto,
e em relação ao que fora realizado.
3. E,
aplicando estes princípios a Schleiermacher, percebe-se:
a.
Primeiro, que Schleiermacher foi um grande pensador em todos os sentidos, pois
α.
Estabeleceu diante de si grandes tarefas.
β. Cumpriu
estas tarefas de maneira magistral.
γ.
Formulou pensamentos tão densos e precisos que transcenderam seus objetivos, e
assim, mesmo que de maneira inconsciente, formou e elaborou uma obra genial.
δ.
Adentrou a todas as esferas do conhecimento, as mais variadas disciplinas
acadêmicas, e a todas elas se dedicou de maneira firme e sóbria, bem como em
todas as disciplinas a que se dedicou, pode estabelecer pensamentos com
seriedade intelectual e que são contribuições inestimáveis em quase todos os
campos do saber que eram importantes em sua época. A polimatia de
Schleiermacher, só é inferior em seu tempo em relação a polimatia de Goethe.
b.
Segundo, que Schleiermacher foi um grande teólogo, pois, cumpriu com suas
tarefas teológicas, como pastor e pregador, e como teólogo acadêmico, de
maneira contundente, com piedade e erudição; e ainda, influenciou decisivamente
todas as áreas das disciplinas teológicas, onde seus escritos foram divulgados
e onde as maledicências de sua época não tiveram tempo para atrapalhá-lo.
c.
Terceiro, que Schleiermacher foi um grande filósofo, pois, cumpriu com as
tarefas e os princípios que constituem um grande filósofo; elaborou análises
precisas e profundas sobre os problemas filosóficos em voga, e pode, de maneira
acertada, cumprir com seus objetivos filosóficos em consonância com sua função
primordial como pastor e pregador, e pode-se elaborar uma filosofia digna e
importante para seu tempo e para todos os tempos.
4. E,
assim, pode-se compreender que Schleiermacher, estabeleceu, para todas as suas
tarefas, e as grandes atividades que pôs diante de si, alguns princípios gerais
e abalizadores, que o guiaram em toda a sua obra, tais como:
a.
Primeiro, servir a Palavra. E, servi-la com um espírito grato e alegre; este
foi o objetivo de toda a vida de Schleiermacher.
b.
Segundo, compreender que a vida neste mundo foi sublimada pela vida do
Redentor, em tudo aquilo que o Redentor fizera e ensinara; é a rocha que encheu
o mundo, tal como descrito no profeta (cf. Dn 2.34-35). A vida do Redentor
demonstrou de maneira absoluta que a vida humana é importante e imbuída em
dignidade.
c.
Terceiro, entender que este mundo é santificado pelo Espírito, isto é, é
preservado e conservado pela obra do Espírito Santo (cf. Sl 104.31); é o que
diz o profeta quando afirma que o caminho da ciência é guiado pelo Espírito
Santo (cf. Is 40.31); para Schleiermacher, tudo de bom que este mundo possui e
tudo de bom que os homens fazem, é obra do Espírito Santo.
d.
Quarto, apresentar a religião como elemento inegável da vida humana. O ser
humano, é um ser religioso em sua essência; e todos os ditames da vida em
sociedade, são abalizados por princípios religiosos; logo, a religião é
elemento irrevogável da vida humana; como o próprio Schleiermacher afirma: “A
religião faz com que, para um espírito piedoso, tudo seja sagrado e valioso,
incluindo o profano e o comum... a religião é a única inimiga jurada de toda
pedantice e de toda uniteralidade” (entende-se aqui por pedantice a soberba
em querer que se colocar como “deus”, e uniteralidade como a tentativa de
subjugar ou colocar sob si todo o pensamento teórico).
e.
Quinto, estabelecer uma teologia da cultura. E uma teologia da cultura que
valore a vida humana de maneira sóbria e racional; a teologia da cultura de
Schleiermacher, pode ser descrita, em linhas gerais, como a preocupação em
estabelecer e formular pensamentos que compreendem a ciência teológica no âmbito
acadêmico e a influência que este tem no todo das disciplinas acadêmicas, e,
por consequência, no todo da vida humana.
5.
Portanto, Schleiermacher ao delinear e explicar seu objetivo, prosseguiu para
alcançá-lo, e em grande medida o alcançou, e o fez da seguinte maneira:
a.
Primeiro, em seus sermões; os quais,
α. No
primeiro momento, foram instrumentos preparatórios, e que não alcançaram
plenamente seu objetivo, mas que já demonstraram o pastor-pregador a caminho de
atingir seu objetivo.
β. E,
num segundo momento, somente na fase final da vida, que Schleiermacher
conseguira alcançar seus objetivos através da pregação, a partir de quando fora
nomeado pregador e pastor em Berlim.
b.
Segundo, em suas obras acadêmicas, as quais, lhe serviram de instrumento para
abalizar as disciplinas teológicas e o encargo da reflexão teológica; e, em
suas obras acadêmicas, Schleiermacher,
α. Em
primeiro lugar, demonstrou a validação da religião e seu lugar impreterível na
vida humana. (Isto ele faz nos “Reden”).
β. Em
segundo lugar, abalizou o encargo e a possibilidade da religião e das reflexões
racionais em contato com a religião, e fez uma defesa quase que confessional
sobre o maior dom que alguém pode conferir ao seu semelhante, a saber, o
respeito pela liberdade, ou dito de outro modo, a vida na auto-determinação;
Schleiermacher, entoa o canto em honra a liberdade do indivíduo. (Isto ele faz
nos “Monologen”).
γ. Em
terceiro lugar, procurou evidenciar a necessidade da beleza literária e da
forma poética-dialogal de se demonstrar os principais aspectos da fé cristã e
do cristianismo, a partir do ponto fulcral da doutrina cristã, a encarnação,
onde se demonstra o verdadeiro Deus e o verdadeiro homem, Jesus Cristo, Aquele
que ensina a se honrar o verdadeiro Deus, e por consequência, a se valorar de
maneira adequada a humanidade. (Isto ele faz no “Die Weihnachtsfeier”).
δ. Em
quarto lugar, abalizou as formas e os modos do estudo teológico, e em como este
estudo deve prosseguir no estudo da ciência sagrada, e nos modos de organizar o
“curriculum” teológico. (Isto ele faz no “Kurze Darstellung des
theologischen Studiums”).
ε. Em
quinto lugar, demonstrou a possibilidade e a sublimidade da fé cristã, a partir
de uma exposição doutrinária dos princípios da Igreja Evangélica, e como uma
apologia da fé de acordo com os ataques e as heresias mais comuns em sua época;
isto é, Schleiermacher explicou a fé, ao defendê-la dos ataques filosóficos de
seu arquirrival intelectual, a saber, Hegel, e dos ataques dos teólogos
hegelianos. (Isto ele faz no “Glaubenslehre”).
c.
Terceiro, em suas preleções filosóficas; nestas preleções, Schleiermacher,
α. Em
primeiro lugar, procurou resolver problemas filosóficos aporéticos e que
careciam de uma solução racional; e em suas proposições, Schleiermacher
resolveu estes problemas de maneira genial.
β. Em
segundo lugar, procurou abalizar as disciplinas complementares ao saber, a
ciência teorética, as quais, estavam enviesadas e careciam de um tratamento
mais adequado para abalizar o todo do saber e da vida intelectual.
γ. Em
terceiro lugar, apresentou uma solução distinta - do mesmo como fizera
Schelling nas primeiras três décadas do séc. XIX -, à “obsessão” de Hegel de
querer subjugar a si o pensamento teorético; logo, as proposições filosóficas
de Schleiermacher, são, em grande medida, uma solução para o domínio de Hegel
sob o pensamento teórico.
d.
Quarto, em suas preleções teológicas; nestas preleções, Schleiermacher,
α. Em
primeiro lugar, procurou solucionar os problemas teológicos agudos de sua
época, e procurou demonstrar o caminho sóbrio e racional a ser seguido pelas
disciplinas teológicas, e o modo de proceder na análise dos temas destas
disciplinas.
β. Em
segundo lugar, procurou apresentar a teologia como ela é enquanto ciência, e
apresentar a teologia como ciência livre da neologia; uma teologia influenciada
pela neologia, não pode ser verdadeira teologia; e isso, Schleiermacher
compreendeu de maneira correta e adequada; por isso, procurou liberar a
teologia da neologia e novamente edificou a teologia enquanto ciência de acordo
com os princípios e o padrão das disciplinas acadêmicas de sua época.
γ. Em
terceiro lugar, procurou solucionar as problemáticas da quebra da relação entre
academia e Igreja, entre estudo rigoroso e vida na Igreja; Schleiermacher, como
professor universitário e como pastor, soube como lidar com cada uma destas
tarefas, sem cair nem no racionalismo e nem nos ditames da neologia; isto é,
Schleiermacher soube adequar e entender as tarefas distintas da teologia na
academia e da teologia na Igreja, sem com isso, deixar de ser piedoso e
rigoroso nestas esferas, e sem distanciá-las e/ou desfigurá-las de seu
propósito básico como teologia e sem inferir a esfera de ação de cada de uma
destas partes da existência teológica.
6.
Por isso, pode-se sumariar o pensamento de Schleiermacher, o sistema
schleiermachiano, em dois princípios gerais: primeiro, em sua filosofia;
segundo, em sua teologia. Não é um sistema completo, como por exemplo, o
tomismo; mas é um sistema que estabelece nestas duas áreas de maneira
contundente e coerente; pois, tanto em sua filosofia quanto em sua teologia,
Schleiermacher foi coerente com o objetivo e o propósito estabelecido, embora
tenha lançado mão de princípios e métodos diversos para alcançar este objetivo,
tanto em relação a filosofia quanto em relação a teologia.
7.
Portanto, Schleiermacher, enquanto filósofo, procurou, de acordo com as
categorias filosóficas comuns de sua época, resolver os diversos problemas
filosóficos, e com isso, apresentar uma solução diversa - e, nisto, seu
propósito se assemelha ao de Schelling -, para o domínio teorético que Hegel
estabeleceu; a filosofia de Schleiermacher é, em grande medida, uma resposta
aos grimórios de Hegel, com a diferença de que Hegel propugnara suas reflexões
filosóficas em um sistema, em seu sistema da ciência, na “Fenomenologia do
Espírito” e na “Ciência da Lógica”, enquanto Schleiermacher
estabelecera suas reflexões filosóficas em suas diversas preleções e estudos
sobre filosofia.
8. E,
Schleiermacher, enquanto teólogo, procurou, de acordo com as categorias
filosóficas comuns de sua época, resolver os diversos problemas teológicos, e
com isso, livrar a teologia da neologia, e retomar novamente a possibilidade e
a necessidade da reflexão teológica; e ainda, retomou o princípio religioso
fulcral para demonstrar a validade da religião, e por consequência, do
cristianismo como religião verdadeira. Schleiermacher, fizera isso, em grande
parte em sua obra acadêmica, em suas publicações e em suas preleções
teológicas.
9.
Deste modo, consegue-se perceber o objeto claramente formulado de
Schleiermacher, e os instrumentos que ele utilizara para alcançar seu objetivo;
não como obra que busca ser aceito diante de Deus, mas uma obra estabelecida em
gratidão a Deus pela salvação; por isso, Schleiermacher tem seus labores como
pastor e pregador, e tem seus labores como teólogo acadêmico; como teólogo
acadêmico, transparece os ditames da teologia da cultura e da teologia
religiosa; e como pastor e pregador, transparece a teologia do Espírito Santo;
e, em tanto uma quanto a outra, estão interligadas com o objetivo central
estabelecido, a saber, servir a Palavra com alegria e gratidão. E, sobre isso,
estabelecem-se algumas considerações:
a.
Primeiro, em relação a função de Schleiermacher como teólogo acadêmico, pode
ser apresentados dois princípios (toma-se apenas dois princípios de centenas e
mais centenas), nos quais, Schleiermacher dá a entender o objetivo de seus
labores:
α. Em
primeiro lugar, Schleiermacher assevera: “A alegria do Senhor é o sentimento
em que se baseia a representação”. Portanto, para Schleiermacher, as
representações religiosas, são evidencia da valoração e da importância da
religião na vida humana; e, em se tratando do cristianismo, as representações
religiosas não são uma forma de se chegar até Deus, mas são fruto da alegria do
Senhor, e da gratidão pela salvação; donde, a teologia religiosa de
Schleiermacher, que busca valorar a religião de maneira geral, na verdade, é
expressão da alegria do Senhor, é valorar e evocar para a vida humana uma das
verdades eternas criadas pelo próprio Deus.
β. E, em segundo lugar, Schleiermacher
assevera: “Como sempre considero este mundo glorificado [entende-se aqui
abençoado, sublimado] pela vida do Redentor e santificado [entende-se aqui
preservado, guardado] pela atividade de Seu Espírito para o desenvolvimento
sempre inexorável de tudo o que é bom e divino [entende-se aqui tudo o que de
melhor que o ser humano produz e pode produzir]” [em colchetes: acréscimos
meus]. Portanto, Schleiermacher procura ver este mundo como importante pelas
lentes da obra redentora de Cristo, e como sendo obra da ação do Espírito, a
qual é a fonte para o desenvolvimento de tudo o que é bom. Este é, em síntese,
o objetivo de Schleiermacher como teólogo acadêmico, em suas publicações e em
suas preleções.
b.
Segundo, em relação a função de Schleiermacher como pastor e pregador, que pode
ser apresentada a partir de dois princípios básicos (toma-se apenas dois
princípios de centenas e mais centenas), nos quais, Schleiermacher dá a
entender o objetivo de seus labores:
α. Em
primeiro lugar, Schleiermacher assevera: “queremos regozijar-nos na
convicção de que o Espírito de Deus também governa agora na igreja”.
Portanto, a teologia querigmática de Schleiermacher, como se mostra em muitos
de seus sermões, é talhada a partir deste axioma, de que o Espírito Santo age e
governa a Igreja também em tempos atuais, e não somente como no Pentecostes, no
derramar abundante e copioso do Espírito (cf. At 2); logo, para Schleiermacher,
a existência eclesial é uma existência pneumática, na convicção de que o
Espírito de Deus age e governa a Igreja no tempo presente de maneira tão
gloriosa quanto no passado em seus feitos e prodígios magníficos.
β. E,
em segundo lugar, Schleiermacher, em uma oração, assevera: “Santo Deus e
Pai! [...] Deixe-os sempre se esforçar por mais iluminação vinda do alto e
sempre encontrá-la em sua palavra sagrada!”. Portanto, a teologia
querigmática de Schleiermacher, é uma teologia da iluminação, uma teologia que
depende da iluminação do Espírito; por isso, Schleiermacher, em suas muitas
orações após os momentos de pregação, sempre rogava a Deus pedindo e rogando a
iluminação do alto, e para que sempre pudesse encontrar esta iluminação nas
Sagradas Escrituras, a Palavra de Deus de forma escrita. A teologia de Schleiermacher, neste
quesito, é uma teologia pneumática-escriturística.
10.
Deste modo, afirma-se de maneira contundente que Schleiermacher, enquanto
pastor e pregador, estabelece uma teologia do terceiro artigo, uma teologia do
Espírito Santo; e, enquanto teólogo acadêmico, estabelece uma teologia da
cultura e uma teologia religiosa; e, ambos aspectos estão interligados,
todavia, com sua atividade como pastor e pregador, sendo a diretiva fundamental
para sua atividade como teólogo acadêmico; donde, transparecer, de diversas
maneiras e por diversos modos, em toda a teologia de Schleiermacher, os ditames
da iluminação pneumatológica, da teologia como pneumatologia, o que,
transparece de forma límpida, cristalina e clarividente em seus labores como
pastor e pregador, e que transparece, de maneira derivada e sob o rigor das
disciplinas acadêmicas, em seus labores como teólogo acadêmico.
11. E termina aqui a breve exposição sobre os axiomas para a interpretação de Schleiermacher. Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém.
[1] Karl Barth, Karl Barth
Gesamtausgabe Bd. 24: Vorträge und kleinere Arbeiten 1925–1930 [Zurique:
TVZ Verlag, 1994], pág. 538.
[2] A obra de Tillich, “Perspectivas
da Teologia Protestante nos Sécs. XIX e XX” (4ª ed. São Paulo: ASTE, 2010),
é um excelente texto introdutório para se entender o contexto que antecede
Schleiermacher, e o contexto intelectual para as reações de Schleiermacher e
outros ao iluminismo (leia-se, para este fim, principalmente as págs. 36-112);
portanto, as informações e explicações que Tillich fornece, são em muitos
aspectos precisas e contundentes sobre o contexto onde Schleiermacher emerge
com sua obra em resposta ao iluminismo.
[3] Paul Tillich, Perspectivas da
Teologia Protestante nos Sécs. XIX e XX [4ª ed. São Paulo: ASTE, 2010],
pág. 114.
[4] cf. Karl Barth, Die Protestantische Theologie im 19. Jahrhundert
- Ihre Vorgeschichte und ihre Geschichte [Zollikon/Zürich: Evangelischer
Verlag, 1947]; e em edição inglesa, como: Protestant Thought: From Rousseau
to Ritschl [New York: Harper & Brothers Publishers, 1959], que é cerca
de metade da edição original em alemão.
[5] Os axiomas evocados, possuem
citações diretas e indiretas de Schleiermacher; não se menciona estas citações;
mas, noutro escrito, se fará uma explicação e comentário mais detalhado a estes
axiomas, onde se vai apresentar as citações de maneira mais adequada. Oculta-se
as citações aqui por motivos de serem apenas a evocação de axiomas, e não tanto
da explicação e a demonstração dos mesmos, que, como fora dito, será feito em
outro escrito.
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