23/02/2024

Axiomas para a Interpretação de Schleiermacher

Prefácio.

 

Este escrito reflete a respeito de temas sobre a teologia de Schleiermacher; não propriamente uma análise englobante da teologia de Schleiermacher, mas, a evocação de axiomas, ou princípios, que se estabelecem como preponderantes no estudo e na compreensão sobre Schleiermacher; e a ideia de estabelecer estes axiomas, se dá pelo fato de que a teologia e o pensamento de Schleiermacher passaram por tantas críticas invejosas e maledicentes, que, basicamente todas as críticas enviesaram e deturparam o pensamento de Schleiermacher; por isso, estabelecer estes axiomas é uma forma de se livrar destas críticas invejosas para procurar entender Schleiermacher a partir do que ele realmente disse.

Portanto, este escrito, “Os Axiomas para a Interpretação de Schleiermacher”, é formado em parte como uma releitura, em parte uma paráfrase, e na maior parte como uma ampliação de um texto de Karl Barth, “Axiome zur Schleiermacher-Interpretation” (1930); se escreve este texto, pois os axiomas elencados por Barth são fragmentários e estão inacabados, conquanto para a época tenham sido um enorme avanço para a compreensão de Schleiermacher; mas, ao estudar Schleiermacher, e aprender a compreendê-lo a partir do próprio Barth, se percebe que estes axiomas de Barth estão incompletos; por isso, se faz necessário ampliá-los e reelaborá-los de forma mais precisa para se ter axiomas mais completos para a compreensão de Schleiermacher. 

Como se pode observar, este escrito é homônimo ao escrito de Barth; e, resolvi manter o mesmo título devido a ser o caminho corretíssimo traçado pelo melhor intérprete de Schleiermacher para a compreensão e a interpretação de seu pensamento. Na verdade, antes de adentrar no estudo e na análise de Schleiermacher são necessários estes axiomas, e a medida que sua obra e pensamento forem compreendidos, certamente, serão evocados novos e mais precisos axiomas, e assim, cada vez mais se poderá avançar no estudo e na compreensão sobre Schleiermacher.

Com isso, amparado em Barth e graças aos labores de Barth em interpretar e dar a conhecer a teologia de Schleiermacher, pode-se asseverar que quase duzentos após a morte de Schleiermacher, enfim se pode apresentar uma compreensão mais adequada sobre Schleiermacher; isso se afirma com resoluta convicção, como se demonstrará neste e em muitos outros escritos sobre Schleiermacher.

Soli Deo Gloria!

In Nomine Iesus!

22 de fevereiro de 2024.

 

I. Barth e a Interpretação de Schleiermacher.

 

1. A interpretação da teologia de Schleiermacher constitui-se de um enigma; pois, poucos teólogos da história foram tão rechaçados e tão invejados como Schleiermacher; na verdade, ninguém foi tão mal interpretado e tão odiado como Schleiermacher, e ninguém procurou fazer tanto pela igreja e pela teologia quanto Schleiermacher; os “inimigos” contra os quais Schleiermacher lutou não somente eram inimigos da Igreja e da teologia, mas inimigos da humanidade; pois, poucos, tiveram um gênio tão grande como Schleiermacher, e poucos contribuíram tanto como ele; e poucos foram tão invejados e maltratados como ele, o que demonstra uma injustiça moral e intelectual de nível cósmico. Portanto, pelas críticas que se avolumaram e que desde sua época se tornaram palavras de ordem, e que continuam a imperar mesmo quase duzentos anos após sua morte, se faz necessário novamente se revisitar a teologia de Schleiermacher.

2. E, para a compreensão de Schleiermacher, não se pode deixar de falar de Barth; pois, ninguém fez mais pela compreensão da teologia de Schleiermacher do que Barth; na verdade, Barth fora quem melhor entendera Schleiermacher; e fora quem mais contribuiu para realmente se entender quem era Schleiermacher como teólogo; na verdade, se se observar a correspondência de Barth dos anos 1920-1930, se percebe que Barth procurou, a par de todas as críticas, entender Schleiermacher a partir de Schleiermacher; e por isso, Barth se tornou no mais autorizado interprete de Schleiermacher, pelo menos da teologia de Schleiermacher. E, os vários ensaios que escrevera, além de sua monumental “Die Theologie Schleiermacher’s”, uma formidável interpretação da teologia de Schleiermacher, e o posfácio a uma seleção de escritos de Schleiermacher, um dos últimos textos publicados por Barth, são textos fantásticos, que demonstram que Barth, sem dúvidas, é o mais abalizado interprete de Schleiermacher, a quem, diga-se de passagem, o próprio Barth tinha como seu arquirrival teológico.

3. Além destes textos, em vários seminários que dirigira, Barth procurou evocar aspectos sobre a teologia de Schleiermacher, como em Bonn quando forneceu um seminário sobre a introdução do “Glaubenslehre”; mas, chama a atenção um pequeno escrito de Barth, intitulado “Axiome zur Schleiermacher-Interpretation” (1930)[1]; neste escrito, Barth estabelece, a partir daquilo que houvera entendido sobre a teologia de Schleiermacher, os princípios que considerava preponderante para a interpretação de Schleiermacher; e, em se tratando de sua época, estes princípios foram um avanço continental, e fora até então a “fórmula” mais precisa para se adentrar na compreensão de Schleiermacher.

4. Evidentemente, houveram outros que procuram explicar Schleiermacher; como Biedermann, Ritschl, e mesmo contemporâneos de Barth, como Brunner, Bultmann e Tillich; com relação a Biedermann, pode-se afirmar que ele seguiu a partir do caminho que Schleiermacher abriu, e formulou excelentes princípios e burilou muitos outros a partir dos princípios de Schleiermacher, mas não forneceu uma explicação adequada da teologia de Schleiermacher, salvo os pontos comuns que ele pode burilar em se tratando da teologia dogmática; em relação a Ritschl, ele foi muito justo com Schleiermacher e procurou interpretar muitas obras de Schleiermacher de maneira correta, como fizera com uma interpretação sobre os “Reden”, em uma monumental interpretação sobre os discursos sobre a religião de Schleiermacher; mas os teólogos do séc. XIX, ainda apenas elevaram alguns princípios de Schleiermacher, mas não o explicaram de maneira adequada, salvo em um ou outro aspecto, como se observa na obra de Biedermann e de Ritschl.

5. E, em relação aos contemporâneos de Barth, há algo parecido em Bultmann, que entendeu Schleiermacher – como se demonstra em muitos de seus textos pessoais, cartas e manuscritos -, mas que não o explicou de maneira adequada. Brunner, como o próprio Barth assevera, foi o primeiro a se distanciar verdadeiramente de Schleiermacher, a construir uma teologia de maneira diversa dos princípios propugnados por Schleiermacher, mas o próprio Brunner não forneceu nenhuma interpretação adequada de Schleiermacher além de suas críticas a ele.

Tillich, provavelmente foi quem mais valorou Schleiermacher, e continuou e sublimou de maneira fenomenal o caminho de Schleiermacher, pelo menos em relação a teologia da cultura, ou mais propriamente, em relação aos princípios evocados por Schleiermacher como teólogo acadêmico.  Tillich continuou na linha de Schleiermacher em relação a teologia acadêmica; e, nisto, estabeleceu seu próprio caminho como teólogo, mas, com a exceção de suas preleções sobre as perspectivas da teologia protestante nos sécs. XIX e XX[2], e de outros escritos, o próprio Tillich também não empreendeu uma análise exaustiva sobre Schleiermacher; em Tillich, porém se tem um aspecto importante, pois, ao se conhecer o pensamento de Tillich, pode-se conhecer aspectos do pensamento de Schleiermacher, já que Tillich sublimou a perspectiva de Schleiermacher enquanto teólogo acadêmico em relação a teologia da cultura. Deste modo, Tillich é, por assim dizer, enquanto teólogo acadêmico, uma continuação do princípio estabelecido por Schleiermacher; e isso Tillich fez de forma magistral.

6. Mas, mesmo diante destas e outras contribuições, é inegável que fora Barth quem conseguira compreender Schleiermacher e fornecer os parâmetros da interpretação de sua teologia, algo que o próprio Tillich reconhece, ao afirmar, em relação a interpretação de Schleiermacher, que: “Ele [Barth] tem sido muito mais justo do que todos os seus discípulos neo-ortodoxos e seus oponentes[3]. Assim sendo, Tillich percebe e reconhece que Barth foi justo com Schleiermacher; no entanto, a problemática com a análise de Tillich, uma análise fenomenal, que somada com a análise de Barth sobre a teologia protestante desde Schleiermacher[4], constituem-se as mais importantes e justas análises sobre o pensamento protestante do séc. XIX e que adentrou ao séc. XX, é que Tillich ainda permanece muito filosófico; evidentemente, Tillich pode ser reconhecido como teólogo e filósofo, mas sua análise sobre Schleiermacher ainda é do ponto de vista filosófico, mesmo para analisar a obra teológica de Schleiermacher. Logo, a análise Tillich funciona como um adendo para a compreensão de Schleiermacher, mas, não fora uma análise contundente sobre a teologia de Schleiermacher tal como Barth fizera.

7. Deste modo, para ser justo, e, ponderando de maneira geral sobre as principais contribuições nas teologias dos sécs. XIX e XX, percebe-se que houveram sim significativas contribuições sobre a interpretação de Schleiermacher; mas, fora Barth quem mais contribuíra para a correta interpretação de Schleiermacher, sem descambar ou nas críticas dos hegelianos, ou nos liberalismos teológicos subsequentes que procuraram em Schleiermacher um “protótipo” de teólogo liberal; Barth foi justo como Schleiermacher, e graças a obra de Barth em interpretar Schleiermacher, que se pode adentrar ao estudo e a compreensão sobre Schleiermacher de maneira mais adequada; e, em seus estudos e análises sobre Schleiermacher, Barth pode fornecer alguns axiomas; estes axiomas de Barth, para sua época, foram um avanço sem precedentes, e constituíram-se de princípios indiscutíveis para a análise de Schleiermacher; todavia, ao se estudar Schleiermacher a partir das inúmeras pressuposições de Barth, a partir do que Barth contribuiu e laborou, se consegue compreender que estes axiomas estão incompletos; e por isso, é necessário se reelaborá-los, e ampliá-los da melhor maneira possível.

8. Assim sendo, a partir de Barth, e sob os ombros de Barth, se apresentará outros axiomas, alguns que são releitura e paráfrase dos axiomas de Barth, outros que são ampliação e reelaboração de outros axiomas; mas, estes axiomas evocados, são em sua maior parte, concebidos justamente para reelaborar e ampliar os axiomas propugnados por Barth, e assim estabelecer axiomas mais precisos, como princípios metodológicos para a interpretação de Schleiermacher; evidentemente, não são axiomas que contemplam de maneira específica os tópicos da teologia de Schleiermacher, mas que fornecem os princípios para se interpretar e compreender Schleiermacher de maneira adequada; na verdade, estes axiomas evocados aqui são mais específicos para a interpretação de Schleiermacher; ou dito de outro modo, aqueles princípios necessários para se adentrar no estudo e na compreensão sobre Schleiermacher, a partir dos princípios racionais para se interpretar um pensador e a partir dos princípios estabelecidos pelo próprio Schleiermacher. 

 

II. Axiomas para a Interpretação de Schleiermacher.

 

Eis, portanto, axiomas para a interpretação de Schleiermacher[5]:

1. Toda pessoa que pensa, o faz com um objetivo, com um escopo e a partir de alguma tarefa estabelecida.

2. Exige-se de uma pessoa que pensa:

a. Primeiro, que se conheça o objetivo de seu pensamento.

b. Segundo, que se compreenda os meios para que possa realizar as tarefas designadas para formular estes pensamentos.

c. Terceiro, que se verifique se tenha coerência em relação ao que fora proposto, e em relação ao que fora realizado.

3. E, aplicando estes princípios a Schleiermacher, percebe-se:

a. Primeiro, que Schleiermacher foi um grande pensador em todos os sentidos, pois

α. Estabeleceu diante de si grandes tarefas.

β. Cumpriu estas tarefas de maneira magistral.

γ. Formulou pensamentos tão densos e precisos que transcenderam seus objetivos, e assim, mesmo que de maneira inconsciente, formou e elaborou uma obra genial.

δ. Adentrou a todas as esferas do conhecimento, as mais variadas disciplinas acadêmicas, e a todas elas se dedicou de maneira firme e sóbria, bem como em todas as disciplinas a que se dedicou, pode estabelecer pensamentos com seriedade intelectual e que são contribuições inestimáveis em quase todos os campos do saber que eram importantes em sua época. A polimatia de Schleiermacher, só é inferior em seu tempo em relação a polimatia de Goethe.

b. Segundo, que Schleiermacher foi um grande teólogo, pois, cumpriu com suas tarefas teológicas, como pastor e pregador, e como teólogo acadêmico, de maneira contundente, com piedade e erudição; e ainda, influenciou decisivamente todas as áreas das disciplinas teológicas, onde seus escritos foram divulgados e onde as maledicências de sua época não tiveram tempo para atrapalhá-lo.

c. Terceiro, que Schleiermacher foi um grande filósofo, pois, cumpriu com as tarefas e os princípios que constituem um grande filósofo; elaborou análises precisas e profundas sobre os problemas filosóficos em voga, e pode, de maneira acertada, cumprir com seus objetivos filosóficos em consonância com sua função primordial como pastor e pregador, e pode-se elaborar uma filosofia digna e importante para seu tempo e para todos os tempos.

4. E, assim, pode-se compreender que Schleiermacher, estabeleceu, para todas as suas tarefas, e as grandes atividades que pôs diante de si, alguns princípios gerais e abalizadores, que o guiaram em toda a sua obra, tais como:

a. Primeiro, servir a Palavra. E, servi-la com um espírito grato e alegre; este foi o objetivo de toda a vida de Schleiermacher.

b. Segundo, compreender que a vida neste mundo foi sublimada pela vida do Redentor, em tudo aquilo que o Redentor fizera e ensinara; é a rocha que encheu o mundo, tal como descrito no profeta (cf. Dn 2.34-35). A vida do Redentor demonstrou de maneira absoluta que a vida humana é importante e imbuída em dignidade.

c. Terceiro, entender que este mundo é santificado pelo Espírito, isto é, é preservado e conservado pela obra do Espírito Santo (cf. Sl 104.31); é o que diz o profeta quando afirma que o caminho da ciência é guiado pelo Espírito Santo (cf. Is 40.31); para Schleiermacher, tudo de bom que este mundo possui e tudo de bom que os homens fazem, é obra do Espírito Santo.

d. Quarto, apresentar a religião como elemento inegável da vida humana. O ser humano, é um ser religioso em sua essência; e todos os ditames da vida em sociedade, são abalizados por princípios religiosos; logo, a religião é elemento irrevogável da vida humana; como o próprio Schleiermacher afirma: “A religião faz com que, para um espírito piedoso, tudo seja sagrado e valioso, incluindo o profano e o comum... a religião é a única inimiga jurada de toda pedantice e de toda uniteralidade” (entende-se aqui por pedantice a soberba em querer que se colocar como “deus”, e uniteralidade como a tentativa de subjugar ou colocar sob si todo o pensamento teórico).

e. Quinto, estabelecer uma teologia da cultura. E uma teologia da cultura que valore a vida humana de maneira sóbria e racional; a teologia da cultura de Schleiermacher, pode ser descrita, em linhas gerais, como a preocupação em estabelecer e formular pensamentos que compreendem a ciência teológica no âmbito acadêmico e a influência que este tem no todo das disciplinas acadêmicas, e, por consequência, no todo da vida humana.

5. Portanto, Schleiermacher ao delinear e explicar seu objetivo, prosseguiu para alcançá-lo, e em grande medida o alcançou, e o fez da seguinte maneira:

a. Primeiro, em seus sermões; os quais,

α. No primeiro momento, foram instrumentos preparatórios, e que não alcançaram plenamente seu objetivo, mas que já demonstraram o pastor-pregador a caminho de atingir seu objetivo.

β. E, num segundo momento, somente na fase final da vida, que Schleiermacher conseguira alcançar seus objetivos através da pregação, a partir de quando fora nomeado pregador e pastor em Berlim.

b. Segundo, em suas obras acadêmicas, as quais, lhe serviram de instrumento para abalizar as disciplinas teológicas e o encargo da reflexão teológica; e, em suas obras acadêmicas, Schleiermacher,

α. Em primeiro lugar, demonstrou a validação da religião e seu lugar impreterível na vida humana. (Isto ele faz nos “Reden”).

β. Em segundo lugar, abalizou o encargo e a possibilidade da religião e das reflexões racionais em contato com a religião, e fez uma defesa quase que confessional sobre o maior dom que alguém pode conferir ao seu semelhante, a saber, o respeito pela liberdade, ou dito de outro modo, a vida na auto-determinação; Schleiermacher, entoa o canto em honra a liberdade do indivíduo. (Isto ele faz nos “Monologen”). 

γ. Em terceiro lugar, procurou evidenciar a necessidade da beleza literária e da forma poética-dialogal de se demonstrar os principais aspectos da fé cristã e do cristianismo, a partir do ponto fulcral da doutrina cristã, a encarnação, onde se demonstra o verdadeiro Deus e o verdadeiro homem, Jesus Cristo, Aquele que ensina a se honrar o verdadeiro Deus, e por consequência, a se valorar de maneira adequada a humanidade. (Isto ele faz no “Die Weihnachtsfeier”).

δ. Em quarto lugar, abalizou as formas e os modos do estudo teológico, e em como este estudo deve prosseguir no estudo da ciência sagrada, e nos modos de organizar o “curriculum” teológico. (Isto ele faz no “Kurze Darstellung des theologischen Studiums”). 

ε. Em quinto lugar, demonstrou a possibilidade e a sublimidade da fé cristã, a partir de uma exposição doutrinária dos princípios da Igreja Evangélica, e como uma apologia da fé de acordo com os ataques e as heresias mais comuns em sua época; isto é, Schleiermacher explicou a fé, ao defendê-la dos ataques filosóficos de seu arquirrival intelectual, a saber, Hegel, e dos ataques dos teólogos hegelianos. (Isto ele faz no “Glaubenslehre”). 

c. Terceiro, em suas preleções filosóficas; nestas preleções, Schleiermacher,

α. Em primeiro lugar, procurou resolver problemas filosóficos aporéticos e que careciam de uma solução racional; e em suas proposições, Schleiermacher resolveu estes problemas de maneira genial.

β. Em segundo lugar, procurou abalizar as disciplinas complementares ao saber, a ciência teorética, as quais, estavam enviesadas e careciam de um tratamento mais adequado para abalizar o todo do saber e da vida intelectual.

γ. Em terceiro lugar, apresentou uma solução distinta - do mesmo como fizera Schelling nas primeiras três décadas do séc. XIX -, à “obsessão” de Hegel de querer subjugar a si o pensamento teorético; logo, as proposições filosóficas de Schleiermacher, são, em grande medida, uma solução para o domínio de Hegel sob o pensamento teórico.

d. Quarto, em suas preleções teológicas; nestas preleções, Schleiermacher,

α. Em primeiro lugar, procurou solucionar os problemas teológicos agudos de sua época, e procurou demonstrar o caminho sóbrio e racional a ser seguido pelas disciplinas teológicas, e o modo de proceder na análise dos temas destas disciplinas. 

β. Em segundo lugar, procurou apresentar a teologia como ela é enquanto ciência, e apresentar a teologia como ciência livre da neologia; uma teologia influenciada pela neologia, não pode ser verdadeira teologia; e isso, Schleiermacher compreendeu de maneira correta e adequada; por isso, procurou liberar a teologia da neologia e novamente edificou a teologia enquanto ciência de acordo com os princípios e o padrão das disciplinas acadêmicas de sua época.

γ. Em terceiro lugar, procurou solucionar as problemáticas da quebra da relação entre academia e Igreja, entre estudo rigoroso e vida na Igreja; Schleiermacher, como professor universitário e como pastor, soube como lidar com cada uma destas tarefas, sem cair nem no racionalismo e nem nos ditames da neologia; isto é, Schleiermacher soube adequar e entender as tarefas distintas da teologia na academia e da teologia na Igreja, sem com isso, deixar de ser piedoso e rigoroso nestas esferas, e sem distanciá-las e/ou desfigurá-las de seu propósito básico como teologia e sem inferir a esfera de ação de cada de uma destas partes da existência teológica.

6. Por isso, pode-se sumariar o pensamento de Schleiermacher, o sistema schleiermachiano, em dois princípios gerais: primeiro, em sua filosofia; segundo, em sua teologia. Não é um sistema completo, como por exemplo, o tomismo; mas é um sistema que estabelece nestas duas áreas de maneira contundente e coerente; pois, tanto em sua filosofia quanto em sua teologia, Schleiermacher foi coerente com o objetivo e o propósito estabelecido, embora tenha lançado mão de princípios e métodos diversos para alcançar este objetivo, tanto em relação a filosofia quanto em relação a teologia.

7. Portanto, Schleiermacher, enquanto filósofo, procurou, de acordo com as categorias filosóficas comuns de sua época, resolver os diversos problemas filosóficos, e com isso, apresentar uma solução diversa - e, nisto, seu propósito se assemelha ao de Schelling -, para o domínio teorético que Hegel estabeleceu; a filosofia de Schleiermacher é, em grande medida, uma resposta aos grimórios de Hegel, com a diferença de que Hegel propugnara suas reflexões filosóficas em um sistema, em seu sistema da ciência, na “Fenomenologia do Espírito” e na “Ciência da Lógica”, enquanto Schleiermacher estabelecera suas reflexões filosóficas em suas diversas preleções e estudos sobre filosofia. 

8. E, Schleiermacher, enquanto teólogo, procurou, de acordo com as categorias filosóficas comuns de sua época, resolver os diversos problemas teológicos, e com isso, livrar a teologia da neologia, e retomar novamente a possibilidade e a necessidade da reflexão teológica; e ainda, retomou o princípio religioso fulcral para demonstrar a validade da religião, e por consequência, do cristianismo como religião verdadeira. Schleiermacher, fizera isso, em grande parte em sua obra acadêmica, em suas publicações e em suas preleções teológicas.

9. Deste modo, consegue-se perceber o objeto claramente formulado de Schleiermacher, e os instrumentos que ele utilizara para alcançar seu objetivo; não como obra que busca ser aceito diante de Deus, mas uma obra estabelecida em gratidão a Deus pela salvação; por isso, Schleiermacher tem seus labores como pastor e pregador, e tem seus labores como teólogo acadêmico; como teólogo acadêmico, transparece os ditames da teologia da cultura e da teologia religiosa; e como pastor e pregador, transparece a teologia do Espírito Santo; e, em tanto uma quanto a outra, estão interligadas com o objetivo central estabelecido, a saber, servir a Palavra com alegria e gratidão. E, sobre isso, estabelecem-se algumas considerações: 

a. Primeiro, em relação a função de Schleiermacher como teólogo acadêmico, pode ser apresentados dois princípios (toma-se apenas dois princípios de centenas e mais centenas), nos quais, Schleiermacher dá a entender o objetivo de seus labores:

α. Em primeiro lugar, Schleiermacher assevera: “A alegria do Senhor é o sentimento em que se baseia a representação”. Portanto, para Schleiermacher, as representações religiosas, são evidencia da valoração e da importância da religião na vida humana; e, em se tratando do cristianismo, as representações religiosas não são uma forma de se chegar até Deus, mas são fruto da alegria do Senhor, e da gratidão pela salvação; donde, a teologia religiosa de Schleiermacher, que busca valorar a religião de maneira geral, na verdade, é expressão da alegria do Senhor, é valorar e evocar para a vida humana uma das verdades eternas criadas pelo próprio Deus.

 β. E, em segundo lugar, Schleiermacher assevera: “Como sempre considero este mundo glorificado [entende-se aqui abençoado, sublimado] pela vida do Redentor e santificado [entende-se aqui preservado, guardado] pela atividade de Seu Espírito para o desenvolvimento sempre inexorável de tudo o que é bom e divino [entende-se aqui tudo o que de melhor que o ser humano produz e pode produzir]” [em colchetes: acréscimos meus]. Portanto, Schleiermacher procura ver este mundo como importante pelas lentes da obra redentora de Cristo, e como sendo obra da ação do Espírito, a qual é a fonte para o desenvolvimento de tudo o que é bom. Este é, em síntese, o objetivo de Schleiermacher como teólogo acadêmico, em suas publicações e em suas preleções.

b. Segundo, em relação a função de Schleiermacher como pastor e pregador, que pode ser apresentada a partir de dois princípios básicos (toma-se apenas dois princípios de centenas e mais centenas), nos quais, Schleiermacher dá a entender o objetivo de seus labores:

α. Em primeiro lugar, Schleiermacher assevera: “queremos regozijar-nos na convicção de que o Espírito de Deus também governa agora na igreja”. Portanto, a teologia querigmática de Schleiermacher, como se mostra em muitos de seus sermões, é talhada a partir deste axioma, de que o Espírito Santo age e governa a Igreja também em tempos atuais, e não somente como no Pentecostes, no derramar abundante e copioso do Espírito (cf. At 2); logo, para Schleiermacher, a existência eclesial é uma existência pneumática, na convicção de que o Espírito de Deus age e governa a Igreja no tempo presente de maneira tão gloriosa quanto no passado em seus feitos e prodígios magníficos. 

β. E, em segundo lugar, Schleiermacher, em uma oração, assevera: “Santo Deus e Pai! [...] Deixe-os sempre se esforçar por mais iluminação vinda do alto e sempre encontrá-la em sua palavra sagrada!”. Portanto, a teologia querigmática de Schleiermacher, é uma teologia da iluminação, uma teologia que depende da iluminação do Espírito; por isso, Schleiermacher, em suas muitas orações após os momentos de pregação, sempre rogava a Deus pedindo e rogando a iluminação do alto, e para que sempre pudesse encontrar esta iluminação nas Sagradas Escrituras, a Palavra de Deus de forma escrita. A teologia de Schleiermacher, neste quesito, é uma teologia pneumática-escriturística.

10. Deste modo, afirma-se de maneira contundente que Schleiermacher, enquanto pastor e pregador, estabelece uma teologia do terceiro artigo, uma teologia do Espírito Santo; e, enquanto teólogo acadêmico, estabelece uma teologia da cultura e uma teologia religiosa; e, ambos aspectos estão interligados, todavia, com sua atividade como pastor e pregador, sendo a diretiva fundamental para sua atividade como teólogo acadêmico; donde, transparecer, de diversas maneiras e por diversos modos, em toda a teologia de Schleiermacher, os ditames da iluminação pneumatológica, da teologia como pneumatologia, o que, transparece de forma límpida, cristalina e clarividente em seus labores como pastor e pregador, e que transparece, de maneira derivada e sob o rigor das disciplinas acadêmicas, em seus labores como teólogo acadêmico.

11. E termina aqui a breve exposição sobre os axiomas para a interpretação de Schleiermacher. Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém.



[1] Karl Barth, Karl Barth Gesamtausgabe Bd. 24: Vorträge und kleinere Arbeiten 1925–1930 [Zurique: TVZ Verlag, 1994], pág. 538.

[2] A obra de Tillich, “Perspectivas da Teologia Protestante nos Sécs. XIX e XX” (4ª ed. São Paulo: ASTE, 2010), é um excelente texto introdutório para se entender o contexto que antecede Schleiermacher, e o contexto intelectual para as reações de Schleiermacher e outros ao iluminismo (leia-se, para este fim, principalmente as págs. 36-112); portanto, as informações e explicações que Tillich fornece, são em muitos aspectos precisas e contundentes sobre o contexto onde Schleiermacher emerge com sua obra  em resposta ao iluminismo.

[3] Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Sécs. XIX e XX [4ª ed. São Paulo: ASTE, 2010], pág. 114.

[4] cf. Karl Barth, Die Protestantische Theologie im 19. Jahrhundert - Ihre Vorgeschichte und ihre Geschichte [Zollikon/Zürich: Evangelischer Verlag, 1947]; e em edição inglesa, como: Protestant Thought: From Rousseau to Ritschl [New York: Harper & Brothers Publishers, 1959], que é cerca de metade da edição original em alemão.

[5] Os axiomas evocados, possuem citações diretas e indiretas de Schleiermacher; não se menciona estas citações; mas, noutro escrito, se fará uma explicação e comentário mais detalhado a estes axiomas, onde se vai apresentar as citações de maneira mais adequada. Oculta-se as citações aqui por motivos de serem apenas a evocação de axiomas, e não tanto da explicação e a demonstração dos mesmos, que, como fora dito, será feito em outro escrito. 


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