Prefácio.
A
vida e a obra de Karl Barth, são um marco na história da cristandade; poucos
teólogos na história foram tão influentes em vida como Barth; mas, Barth também
é conhecido por suas controvérsias; como diz uma biografia, a vida de Barth é
uma vida em conflito; entre sua importância inegável para a cristandade, também
tem-se várias acusações sobre seu caráter e piedade, bem como aquelas críticas
cáusticas que são movidas pela inveja; mas, independentemente disso, a vida e a
obra de Karl Barth são o testemunho de uma exploração esmagadora do que é ser
um ser humano; poucos na história produziram tanto em quantidade e qualidade
como Barth.
Assim
sendo, se faz necessário conhecer a vida e a obra de Barth, mesmo em suas
controvérsias teológicas e pessoais; o que, em si, não é tarefa simples; pois,
além de uma obra extensa, a teologia de Karl Barth tem pelo menos três fases,
que se complementam, mas que também divergem entre si; o que, devido a imensa
produção teológica, e as mudanças que Barth teve em seu pensamento, tornam sua
teologia, para ser compreendida no todo, algo de grande dificuldade.
Além
disso, existe a dificuldade de se compreender as obras de Barth, primeiro, por
causa do estrito vocabulário teológico; segundo, por causa da falta de
compreensão e do conhecimento do status quaestiones com que Barth
estabelece muitos de seus escritos, principalmente os ensaios e os trabalhos
menores; terceiro, pela ampla erudição teológica de Barth, que em razão de seu
preparo e conhecimento, tornam-no teologicamente difícil de ser compreendido;
quarto, devido a sua opus magnum, a “Kirchliche Dogmatik”, ser um
livro de mais de 9.000 páginas - e que ficou incompleto, faltando o último tomo
do vol. IV e todo o vol. V -, o que, em si, torna um texto de difícil acesso e
compreensão; entre tantas outras questões.
Por
isso, para se adentrar na teologia de Karl Barth, se faz necessário uma
consideração geral, uma apresentação; e um modo de se fazer isso, é através do
instrumento do ensaio; evidentemente, não é uma análise exaustiva, até mesmo
porque não caberia num ensaio, e ainda faltam muitos escritos inéditos de Barth
para serem publicados (algumas dezenas de volumes), o que tornam uma análise
completa ainda uma tarefa impossível de ser executada. Por isso, este ensaio,
como uma introdução geral, estabelece um panorama sobre a vida e a obra de
Barth, donde ser intitulado, “Karl Barth: O Homem e Sua Obra”[1].
Portanto,
este ensaio procura demonstrar os princípios teológicos que Barth delineou e
explicou sobre o que é a sua teologia, e o modo como a mesma se desenvolveu ao
longo de toda sua vida; é um ensaio generalíssimo; uma apresentação geral sobre
a vida e os principais escritos de Barth àqueles que nunca leram nada ou nunca
ouviram falar de Barth; posteriormente, virão outros ensaios e outras obras
mais aprofundadas e específicas sobre o pensamento de Barth; mas, para iniciar,
um panorama geral sobre a vida e a obra de Barth são fundamentais; e, como fora
dito, este é o propósito deste ensaio, apresentar Karl Barth a partir de um panorama
geral de sua vida e uma breve apresentação de seus principais escritos e dos
principais aspectos de sua teologia.
Soli Deo Gloria!
In Nomine Iesus!
25 de fevereiro de
2024.
Prólogo.
1. A
vida e a obra de Karl Barth é controversa; há sérias suspeitas sobre seu
caráter que ultimamente tem assolado a pesquisa sobre Barth, principalmente
depois da publicação do livro de Christiane Tietz, “Karl Barth: A Life in
Conflict”; todavia, interpretar a vida de um pensador, de um teólogo,
requer cuidado, para que os pormenores e os detalhes truncados e as vezes
tidos como “escandalosos”, não sejam ou subtraídos, ou super-valorizados,
criando ou uma cegueira voluntária ou uma espécie de voyeurismo doentio. E em
se tratando de Barth, é uma questão sempre complexa, pois, tantos os
fundamentalistas quanto os liberais sempre o criticam: os fundamentalistas
porque Barth não foi longe de mais, os liberais porque Barth demoliu o sonho
liberal de uma teologia do “evangelho simples” (que nada tem de simples), sem
dogmas, como encarnado no professor de Barth, o lendário teólogo alemão Adolf
von Harnack.
2.
Outra questão é que, se a análise biográfica de um autor vivo, que é
contemporâneo ao biógrafo, já é algo difícil mesmo para aqueles que conhecem ou
dizem conhecer determinado autor, ainda mais em se tratando de um autor que
morreu faz mais de meio século; evidentemente, os psicologistas de plantão
dirão que é possível analisar firmemente, mas, num bom senso, deve-se saber que
é impossível conhecer tudo, principalmente se aqueles que eram íntimos do autor
ou pelo menos o conheciam pessoalmente, também já não estão vivos; o que resta
é analisar documentos pessoais; todavia, ainda que estes documentos pessoais “revelem”
coisas distintas ou até mesmo “escandalosas”, não se deve entendê-las
demasiadamente errôneas, até mesmo porque o autor não está vivo para responder
perguntas fundamentais que surgem de polêmicas e “supostos” escândalos que
tornam-se supostos motivo de ridicularização. Isto também deve ser aplicado na
análise biográfica da vida de um teólogo, no caso, de Karl Barth.
3.
Por isso, para uma compreensão sobre a teologia de Karl Barth é necessário
também elucidar a vida de Karl Barth; na verdade, é um esboço biográfico, já
que, a vida de Karl Barth através de seus muitos escritos e muitas cartas e
acontecimentos, se fosse trabalhada de modo exaustiva, requereria um
substancioso livro (talvez em mais de um volume); e ainda, se fossem analisados
os pormenores, sem dúvida, seria necessário cerca de quatro volumes
substanciosos para cobrir os grandes períodos da vida de Barth. Por isso, se
fará uma análise introdutória, com a descrição geral dos fatos pessoais ligados
a vida de Barth e um panorama das principais obras produzidas ao longo de sua
vida para dar um escopo geral de quem é Karl Barth e do que produzira enquanto
teólogo reformado.
4.
Diante desta invectiva, é necessário afirmar que se vai fazer um panorama geral
sobre a teologia de Barth; e isto, com o intuito de apresentar uma introdução
geral para que se possa compreender a teologia de Barth; pois, analisar e
elucubrar sobre a teologia de Barth é entender os caminhos da existência
teológica nas últimas décadas; Barth não somente influenciou decisivamente a
teologia de seu tempo enquanto estava vivo, ele traçou os caminhos e
pressupostos da teologia que continuam a ser seguidos mesmo uma geração após a
sua morte; e estes pressupostos, continuarão a ser parte da existência
teológica por muitas gerações. Pois, como Eberhard Jüngel, notável teólogo,
aluno de Barth e editor de muitas das suas obras, asseverou: “Karl Barth é o
mais importante teólogo protestante desde Schleiermacher, o qual, ele procurou
superar, mas de quem, ainda assim, é devedor em muitos aspectos. A influência
pessoal e literária de Barth mudou profundamente o formato da teologia cristã,
ultrapassando barreiras confessionais e alterando de modo significativo o rumo
da igreja protestante. Deixou, ainda, sua marca inconfundível na vida política
e cultural do século 20”[2].
5.
Deste modo, entender a teologia de Barth é compreender aquilo que ele mesmo
desenvolveu e delineou sob a existência teológica, e que continua a ser, mesmo
que não aceitem, o encargo fundamental da teologia da cristandade,
principalmente da Igreja Evangélica; na verdade, Barth influenciou
decisivamente toda a cristandade; poucos na história da Igreja, influenciaram
tanto a cristandade quanto Barth; e não somente a cristandade, mas a vida
social e cultural da sociedade; Barth influenciou desde a teologia até a
literatura; e isso, é sinal de sua grande contribuição à sociedade europeia e
ao mundo como um todo; por isso, Barth não somente se estabeleceu como maior
teólogo desde Schleiermacher, e como aquele que todos os teólogos posteriores
terão de lidar, mas principalmente como aquele que por suas contribuições e
suas obras, se tornou um dos maiores teólogos de todos os tempos. Portanto,
analisar a vida e a obra de Karl Barth é tarefa sempre necessária; e a melhor
maneira de adentrar no estudo de Barth é apresentar sua vida e sua obra como um
panorama geral, para depois, se adentrar nos aspectos mais específicos e
particulares de sua obra e pensamento.
I. O
Jovem Barth.
6. O
primeiro aspecto a se analisar sobre Barth, é o que diz respeito a fase inicial
de sua vida, que cobre desde a infância até o tempo na faculdade de teologia,
um período que vai de 1886 até 1909. Neste período inicial, a vida de Barth foi
marcada pelo exemplo de seu pai e de sua mãe; o pai de Barth era professor de
teologia, e isso lhe impulsionou no caminho teológico; a mãe de Barth era uma
mulher piedosa, que ensinou a Barth a simples piedade cristã através do cântico
de hinos; portanto, o caminho de Barth já estava decidido desde criança, pelo
menos com relação ao que ele iria estudar, a saber: a teologia.
7. A
infância de Barth, influenciada pelo histórico familiar de pastores e
professores de teologia, foi de extrema importância; tanto que nos últimos anos
de vida, Barth frequentemente cantava os velhos hinos de Natal, que fora
ensinado quando criança por sua mãe; os ensinamentos cristãos, e a influência e
o legado da teologia tornaram o pequeno Barth já predisposto ao estudo da
teologia. Mas, a influência decisiva para o estudo da teologia, adveio a Barth
pelo pastor Robert Aeschbacher, que era pastor em Berna; a respeito da
influência de Aeschbacher, o próprio Barth diz: “... de acordo com o estilo
da virada do século, ele estava muito inclinado a se desculpar, mas trouxe todo
o problema da religião tão perto de mim que ao final das aulas percebi
claramente a necessidade de saber mais sobre o assunto. Por esta razão rudimentar,
resolvi estudar teologia. Eu não sabia então o que estava fazendo, e agora que
conheço essa esfinge mais de perto não sei se hoje teria coragem de dar esse
passo”[3]. A expressão de Barth é
realmente peculiar; devido as questões envolvendo a religião, e os problemas
amalgamados a esta questão, ele se pôs a estudar a teologia; ele mesmo diz numa
carta a Bultmann, que não sabia o que estava fazendo, e que talvez em outro
momento não teria coragem de dar esse passo; na verdade, a dúvida de Barth é
aquela que assola em dado momento todo ministro e todo estudioso da ciência
sagrada; isto foi melhor definido por Barth como o “abalo” proveniente do
estudo e da tarefa teológica, devido ao objeto e a situação da teologia diante
de Deus.
8.
Agora, a expressão de Barth da teologia como “esfinge”, também tem algo
peculiar; não que Barth considerasse a teologia como algo egípcio ou outra
coisa similar; mas que, a teologia, sendo um estudo que também é antigo, causa
estranheza em muitos dos ouvidos coevos; é o espanto e a estranheza da teologia
ante os ouvidos coevos, que fazem da teologia tão necessária, que fazem da
teologia uma maravilha tão antiga e tão nova; e não é de se estranhar que o
próprio Barth, consciente de tal realidade, chegasse também ao ponto de se
sentir um pouco “duvidoso” de tal tarefa. Mas ao final da vida, Barth pode
dizer que gostara de ter sido pastor, professor e principalmente um teólogo, ou
seja, realmente viveu e existiu como um teólogo; isso ninguém pode negar, mesmo
seus atrozes inimigos, e mesmo diante do escárnio invejoso que tem tomado conta
da Igreja Evangélica, sem quase nenhuma exceção nos últimos decênios.
9.
Assim, a fase inicial de Barth, em sua infância, com o testemunho dos
antepassados, e na fase dos estudos nas universidades de teologia, com a
influência tanto de pastores como dos grandes teólogos da época, como Julius
Kaftan, Wilhelm Herrmann, Adolf von Harnack, tornaram o jovem Barth consciente
da importância da teologia; basta lembrar, que o Dr. Harnack na época era o
mais conhecido erudito cristão, bem como o mais premiado e elogiado teólogo
público de toda a Europa, e era o consultor do Kaiser e da alta-cultura alemã
da época para assuntos referentes a cultura e assuntos acadêmicos; não é para
menos, que os jovens se interessassem por tal ciência; mas como o próprio Barth
dissera, a situação e a admiração que a teologia demonstram, também tem suas
vicissitudes, tanto no estudo quanto no exercício das atividades eminentemente
teológicas.
10.
Barth prosseguiu com os estudos de 1904-1909, em Berna, Berlim, Tübingen e
Marburgo, tendo aula com os mais conhecidos teólogos liberais da época; mas a
influência decisiva entre estas tantos professores, foi a de Wilhelm Herrmann,
a quem Barth no final da vida se referira como “inesquecível professor”; o
próprio Barth pensara que tinha encontrado em Herrmann o próprio método e o
caminho teológico que deveria seguir; depois, Barth traçou seu próprio caminho;
todavia, a influência de Herrmann, principalmente no que concerne a “concentração
cristológica”, foi decisiva em Barth. O cristoncentrismo ortodoxo-liberal de
Herrmann, influenciou o cristocentrismo centrado e radical de Barth, que por
sua vez, influenciou toda a cristologia e o cristocentrismo posterior.
11. A
fase de estudos conduziu Barth no caminho da teologia liberal, na fase do
pensamento de Barth conhecida como “fase crítica” (1904-1921), onde Barth era
totalmente guiado pelo método histórico-crítico da interpretação das
Escrituras, e pelos ditames da teologia liberal clássica, particularmente, da
teologia liberal ritschliana, que era o movimento da vanguarda da teologia liberal
entre os anos 1870-1930; deste período, tanto nas atividades como aluno, como
na edição do “Der Christliche Welt”, em Marburgo de 1908-1909, bem como
nos primeiros sermões (1907-1910), tem-se vários textos escritos, de muita
importância e que refletem as preocupações do jovem Barth, que vão desde a
leitura de Dostoievski, de Nietzsche, voltando a Francisco de Assis, e indo aos
problemas do socialismo religioso, as revisões de livros teológicos, a prova
cosmológica da existência de Deus, e a preocupação com a proclamação da
mensagem bíblica; entre muitos outros assuntos, tal como demonstram os textos
recolhidos que cobrem este período.
Portanto,
se pode afirmar que o jovem Barth foi um teólogo já em fermentação, que ao
defrontar-se com os problemas existenciais e sociais prementes de sua época,
que se tornariam ainda mais incisivos nas décadas seguintes, o tornaram aguçado
para lidar com estes problemas que seriam parte da sociedade e que defrontar-se-iam
diretamente com a existência teológica.
II. O
Pároco de Aldeia.
12. O
segundo aspecto a se analisar para se compreender o pensamento de Barth, diz
respeito a segunda fase da vida de Barth, que cobre o período em que Barth fora
pastor, (i) primeiro como pastor assistente em Genebra, de 1909-1911, depois
como (ii) pastor titular em Safenwill, de 1911-1922. Após estudar na
universidade, Barth prosseguiu para o ministério pastoral, como o processo
preparatório comum em sua época a todos aqueles que seriam pastores.
a. [Pastor
auxiliar em Genebra].
13.
[i] O primeiro período de Barth como pastor, como pastor auxiliar, foi em
Genebra, no púlpito onde João Calvino pregara séculos antes; em Genebra, Barth
pode se familiarizar com a teologia de Calvino, bem como com as principais
obras de Calvino. No tempo em Genebra, Barth produziu alguns sermões, bem como
escreveu alguns ensaios; mas a estadia em Genebra foi pequena, mas suficiente
para Barth entrar em contato com a obra da mente mais brilhante da Reforma. E,
justamente, o período em Genebra foi decisivo justamente pelo contato com a
obra de Calvino, e com o legado teológico-pastoral do reformador.
14. A
estadia de Barth em Genebra tem alguns acontecimentos marcantes; desde o
impedimento de Barth de casar com uma jovem a qual era apaixonado, que viera a
falecer em 1926, e que trouxe marcas sobre Barth - o que aliás quase não é
falado -, até o contato com as obras de Calvino, através da publicação da “Opera
Omnia” de Calvino no “Corpus Reformatorum”; mas também em Genebra,
Barth vivenciou a experiência da pregação, o que demonstra os gérmens do
teólogo que está aguçado para os problemas da época em que vive; neste período,
Barth percebeu que as pessoas estavam buscando novos caminhos e novos
paradigmas; e por isso, Barth percebeu que as pessoas estavam ficando cada vez
mais agitadas e, mesmo os cristãos também ficando cada vez mais ansiosos, ao
ponto do próprio Barth afirmar que os cristãos, de todas as pessoas, são os que
devem fazer em meio a estas crises um chamado à vida, isto é, uma volta ao
ensino de Cristo; o que, em si, é algo significativo sobre a consciência
teológica de Barth já nos primeiros sermões enquanto pastor assistente em
Genebra.
15.
Mas, como se pode entender, a vida de um pastor auxiliar tem suas dificuldades;
e Barth encontrou-se nestas dificuldades; tanto que, após o período de cerca de
dois anos como pastor auxiliar, recebeu o convite para se transferir para uma
pequena aldeia, onde seria o pastor titular; evidentemente, Barth aceitou, e
foi transferido para esta aldeia; e aqui está um aspecto pouco mencionado,
pois, se Barth fez o que fez como pároco de aldeia, o que não teria feito se
não tivesse sido mantido sob o púlpito de Calvino; certamente, a influência de
Barth teria sido muito maior, ou talvez Barth tivesse apenas sido outro teólogo
liberal; mas os caminhos da providência foram outros, e o levaram para uma
aldeia, para desta aldeia lançar uma “reforma” teológica quase sem
precedentes.
b. [O
pastorado em Safenwill].
16.
[ii] O segundo período pastoral de Barth foi em Safenwill, de 1911-1922; nesta
pequena cidade suíça, Barth pode enfrentar os mais diversos acontecimentos,
desde os problemas cotidianos dos trabalhadores, as questões amargas da
Primeira Guerra, ao problema do liberalismo teológico reinante que não era
suficiente, a decepção com os antigos professores, a decepção com o socialismo
religioso, etc.; e além de tudo isso, o que Barth mesmo chamava de o problema
específico do ministro, o sermão; diante de tais dificuldades Barth teve de
abandonar o velho método crítico do liberalismo teológico, e a ideia
ritschliana de síntese entre ortodoxia e liberalismo teológico, e voltar-se
para as Escrituras; num dado momento ele mesmo descreve esta volta como a
descoberta de um estranho novo mundo dentro da Bíblia.
17.
Mas neste período também foi de importantes acontecimentos pessoais para Barth;
em 1912, o pai de Barth falece; já em 1913, Barth se casa com Nelly Hoffmann,
após Barth ter sido proibido de namorar com uma grande paixão de quando na
faculdade de teologia; o casamento com Nelly teve algumas crises, mas juntos
geraram cinco filhos; dos cinco filhos, quatro nasceram enquanto Barth era
pastor em Safenwill. E, mesmo sem perceber, e num grande período sem a
valorizar devidamente, Nelly foi a melhor esposa para Barth - isso, o
testemunhará a história posterior.
18. A
vida e a atividade de Barth como pastor em Safenwill, foi um marco na teologia
do século XX; pois, um jovem pároco de aldeia, lançou uma “reforma” na
teologia, e que o tornaria ao longo das décadas no maior teólogo do século XX,
sendo comparado, por seus contemporâneos protestantes, com Calvino e
Schleiermacher; grande parte das mudanças ocasionadas em Barth e depois por
Barth, foram frutos das intempéries que Barth vivenciou enquanto pastor em
Safenwill. As ebulições e contratempos enfrentados em Safenwill, serviram de
fermentação para aguçar a percepção para os problemas sociais e teológicos mais
importantes com os quais um pastor e um teólogo tem de lidar.
19.
Mas também em Safenwill Barth teve importantes mudanças no pensamento político
que tinha desenvolvido nos anos de estudo; em Genebra e nos primeiros anos em
Safenwill Barth se mostrou favorável ao socialismo religioso; mas com a
Primeira Guerra, toda a esperança de um socialismo religioso, baseada na utopia
do conceito de socialismo, fora dissolvida; por isso, numa preleção em 1919,
Barth fala sobre a questão do cristão na sociedade, como fonte de esperança de
mudança, e não na perspectiva de um modelo político desenvolvido por homens.
Ademais, esta mudança deve-se também ao fato da rejeição de Barth aos antigos
professores por estes apoiarem a política de Guerra do Imperador Alemão; embora
a maior parte destes professores não serem socialistas, na verdade, o apoio a
política de guerra do Kaiser, fizeram com que Barth passasse a rejeitar toda e
qualquer forma de ideologização da teologia e da Igreja, e, por consequência,
abandonar o socialismo religioso.
20.
E, nesta época de ebulições sociais, culturais, religiosas e teológicas, o
próprio Barth precisava mais uma vez de ordenar os próprios pensamentos que
estavam em crise; mas não somente crise pessoal de Barth, mas de toda uma
geração; por isso, ao adentrar no estudo da Carta aos Romanos, Barth decidira
escrever um comentário sobre a carta paulina, a fim de ajuizar as próprias
ideias, como ao fim da vida Barth segreda em uma entrevista; o comentário, que
Barth dissera no prefácio a primeira edição que poderia esperar, quando foi
publicado pela primeira vez em 1919 não chamou tanto a atenção; mas, logo, foi
revisado e foi publicada uma segunda edição em 1922, que causou a mudança de
todo o cenário teológico da modernidade, dando início a uma nova época na
teologia; o impacto desta segunda edição foi tal que um estudioso fez a
seguinte descrição: “A Carta aos Romanos de Barth, já em sua primeira
aparição [...] caiu como uma bomba na arena de jogos dos teólogos”[4].
21.
Por isso, o tempo em que Barth foi pastor em Safenwill foi tão significativo,
que pode-se com resoluta convicção afirmar que as vicissitudes e os problemas
que Barth vivenciou em Safenwill, bem como nas crises que a Europa vivia nos
primeiros anos do século XX, que desembocou em revoluções e guerras, serviu
para solidificar a mente teológica que lançaria de novo as bases para a
reflexão teológica que já viam sendo sobrecarregadas pelo liberalismo teológico
do século XIX, e pela crescente onda do secularismo. A mudança teológica
necessária no século XX, foi ocasionada por um pastor de aldeia, que movido
pela redescoberta da própria Escritura, pode de novo afirmar as verdades
fundamentais das Escrituras que estavam obnubiladas pelo espírito da época.
22.
E, após a publicação da segunda edição do comentário a Carta aos Romanos, Barth
foi reconhecido pela grande e venerável ordem dos teólogos de língua alemã;
evidentemente, isso abriu outras portas para Barth; as portas para ser
professor universitário; ao receber o título de doutor honoris causa da
Universidade de Göttingen, Barth logo foi chamado para ser professor, e
mudou-se de um simples pároco de aldeia, para um famoso professor
universitário, num dos centros da teologia luterana na Alemanha; e a partir de
então, Barth começa a laborar como teólogo e começa a desenvolver suas
contribuições que moldarão toda a cristandade no séc. XX.
III. O
Professor Universitário.
23. O
terceiro aspecto diz respeito a terceira fase da vida de Barth, que cobre a
maior parte de sua vida, do período em que ele fora professor, de 1922-1962,
período no qual surgem as grandes palestras e as grandes obras. Barth fora
professor em Göttingen, Münster, Bonn e em Basileia. E em sua atividade
magisterial na Universidade, Barth ressignificou toda a teologia desde seus
fundamentos; Barth, operara uma mudança continental na teologia, e influenciou
decisivamente tudo aquilo que veio após a ele, bem como delineou todo o encargo
e os princípios da reflexão teológica que tem sido dominantes mesmo uma geração
após sua morte.
a. [Professor
em Göttingen].
24.
Barth foi professor de teologia na Universidade de Göttingen de 1922 a 1926;
logo após a publicação da segunda edição de “Römerbrief”, Barth recebeu
o doutorado honorário em teologia, e foi chamado a ser professor em Göttingen;
neste período que vai de 1922 a 1926, Barth produziu uma série de preleções
monumentais, perpassado desde a teologia das confissões reformadas, a teologia
de Zwinglio, a teologia de Schleiermacher, a teologia de Calvino, etc.
25.
Em Göttingen, Barth lançara as bases principais das mudanças fundamentais que
aconteceria em seu pensamento; por exemplo, das preleções sobre a teologia de
Zwinglio, surgiu a necessidade sempre evidente da distinção entre Deus e a
criatura de modo a acentuar a importância da obra redentora de Cristo, algo que
já vinha em Barth desde a leitura de Kierkegaard, como se demonstra em “Römerbrief”.
Além disso, das preleções sobre a teologia das confissões reformadas, surgiu a
necessidade da ideia e da proposição da harmonia das confissões reformadas e do
encargo destas para a reflexão teológica; etc.
26.
Deste modo, em Göttingen inicia-se o pressuposto metodológico fundamental que
guiaria Barth em toda sua vida como teólogo, a saber, ser uma teologia como
nota de rodapé as grandes teologias; em 1922, Barth foi convidado a dar uma
palestra a uma convenção de pastores em Schulpforta, a qual intitulara “Not
und Verheibung der christlichen Verkündigung” (Dificuldade e Promessa da
Proclamação Cristã), na qual apresenta uma introdução à compreensão de sua
teologia; e esta preleção é a chave hermenêutica fundamental para se entender
toda a teologia de Barth. Nesta preleção Barth afirma que sua teologia se
coloca como uma nota de rodapé, “como uma espécie de observação à margem, ou
glosa, que, a seu modo, se dá bem com todas estas, ou também não”[5].
27.
Com isso, Barth ao iniciar sua atividade como professor estabeleceu como o
propósito de sua vida teológica, edificar uma teologia da glosa, ou uma
teologia das notas de rodapé; para servir de contato e explicação as grandes
teologias, para servir de observação ao desenvolvimento teológico de Calvino,
dos dogmáticos do período da ortodoxia, de Schleiermacher, de Ritschl, de
Herrmann, etc.; Barth se estabelece como um “fazedor” de observações, de
considerações, de ponderações as reflexões fundamentais das grandes teologias;
e nisso, Barth estabelece sua própria teologia, em referência aos desvios ou
proposições aporéticas de muitas destas grandes teologias em voga e em
eminência em sua época como estudante, donde também estabelece sua teologia
como uma espécie de “corretivo” necessário a estas teologias; por isso, muitas
das proposições estabelecidas por Barth, designam-se para complementar e/ou
corrigir as grandes teologias naquilo que é necessário, para a partir disto e
com isto, estabelecer sua própria contribuição original na reflexão teológica,
como se demonstra em suas muitas obras.
28. A
primeira grande contribuição de Barth do período em Göttingen advêm de “Epheserbrief”,
a explicação na Carta aos Efésios (de 04 de novembro de 1921 a 16 de fevereiro
de 1922), na qual Barth fez uma interpretação da Carta aos Efésios. Ao mesmo
tempo em que proferia a explicação da Carta aos Efésios, Barth também
empreendia “Der Heidelberger Katechismus”, na qual Barth fez uma
interpretação do Catecismo de Heidelberg (de 08 de novembro de 1921 a 04 de
fevereiro de 1922), interpretação essa que estará presente em toda a obra que
Barth desenvolvera posteriormente.
29. A
segunda grande contribuição de Barth do período em Göttingen advêm de “Die
Theologie Calvins”, a explicação da teologia de Calvino (de 27 de abril a
28 de julho de 1922), na qual Barth faz uma magistral interpretação do
pensamento de Calvino, a qual serviu para fazer reflorescer a teologia de
Calvino no séc. XX; estas preleções de Barth sobre Calvino se tornaram um marco
na teologia moderna, particularmente um marco na teologia reformada do séc. XX.
30. A
terceira grande contribuição de Barth no período de Göttingen advêm de “Die
Theologie Zwinglis”, a explicação da teologia de Zwinglio (de 02 de
novembro de 1922 a 27 de fevereiro de 1923), na qual Barth fizera uma
interpretação da teologia de Zwinglio, o pai da teologia reformada; uma
magistral interpretação, mas que não provocara o mesmo impacto da interpretação
da teologia de Calvino; mas na interpretação da teologia de Zwinglio, como se
demonstra nos documentos pessoais de Barth deste período se observa pelo menos
uma tensão peculiar no pensamento de Barth, a afirmação em voz alta da
transcendência de Deus, o “totalmente Outro” da Carta aos Romanos, para não
incorrer no mesmo erro que os luteranos criticam em Zwinglio, de não fazer uma
distinção adequada entre Deus e a carne, entre Deus e a criatura[6].
31. A
quarta grande contribuição de Barth no período de Göttingen advêm de “Die
Theologie der Reformierten Bekenntnisschriften”, a explicação da teologia
das confissões reformadas (de 01 de maio a 27 de julho de 1923), na qual Barth
fizera uma singular interpretação da teologia das confissões reformadas, que
retornara com o pressuposto de analisar o todo das confissões reformadas a
partir de uma análise da harmonia e inter-relação entre as confissões
reformadas. Ao mesmo tempo, Barth também proferiu “Auslegung von I Cor 15”,
a interpretação de 1Co 15 (de 02 de maio a 25 de julho de 1923), na qual Barth,
retomando o exemplo de Lutero, fizera as preleções sobre este importante
capítulo do Novo Testamento, que fala sobre a ressurreição dos mortos.
32. A
quinta grande contribuição de Barth no período de Göttingen advêm de “Die
Theologie Schleiermachers”, a explicação da teologia de Schleiermacher (de
01 de novembro de 1923 a 28 de fevereiro de 1924), na qual Barth fizera a mais
importante e a mais magistral interpretação da teologia de Schleiermacher que
até então se havia feito; na verdade, foi a mais justa e correta interpretação
sobre Schleiermacher que já se houvera feito; e com isso, Barth se estabeleceu
como o grande teólogo após Schleiermacher, já que foi quem melhor entendera o
próprio Schleiermacher; esta interpretação de Barth demonstra o lugar e a
importância de Schleiermacher não somente como pai da Igreja no séc. XIX, mas
também como pai da Igreja no séc. XX.
33. A
sexta grande contribuição de Barth no período de Göttingen advêm de “Unterricht
in der christlichen Religion”, a explicação da dogmática com a orientação
de ser instruções sobre a religião cristã (de 02 de maio a 01 de agosto de
1924) que seguiu-se em três partes, dogmática I, II e III, a qual ocupou Barth
em 1925 e 1926, além de outras preleções correlatas; nestas preleções Barth
procurou fazer como Calvino no “Institutio”, a fim de entre os luteranos
apresentar as lições de dogmática como instruções sobre a religião cristã, mas,
Barth certamente nestas preleções foi mais influenciado por Ritschl do que por
Calvino, embora a designação geral seja proveniente de Calvino; esta foi a
primeira dogmática que Barth escreveu e a primeira que foi concluída, inclusive
na escatologia; e foi a base do pensamento dogmático que Barth desenvolveria
posteriormente. Nesta obra, um dos marcos da teologia dialética, Barth
apresenta suas institutas da religião cristã, uma obra notável que fora
conduzida como preleções sobre dogmática, e qual foi a última das preleções que
Barth fizera enquanto professor em Göttingen.
b. [Professor
em Münster].
34.
Após lecionar em Göttingen, Barth foi professor em Münster; de 1926 a 1930,
Barth foi professor na Universidade de Münster; e em Münster, Barth produziu
uma série de preleções fundamentais; mas principalmente em Münster começa-se
uma série de acontecimentos pessoais na vida de Barth que o marcarão
profundamente, bem como em Münster aparecem três grandes preleções
fundamentais, duas das quais também se tornarão clássicos teológicos, as quais
evidenciam a grandeza de Barth como teólogo.
35. A
primeira grande contribuição de Barth no período em Münster advêm de “Johannesevangelium”,
a exposição no evangelho de João (de 02 de novembro de 1926 a 26 de fevereiro
de 1926; depois repetida em Bonn em 1933); nestas preleções Barth conseguira
chegar até o capítulo 8 do evangelho de João; mas são um testemunho da
capacidade exegética de Barth, e que permanecem como uma interpretação séria e
profunda sobre o quarto evangelho, figurando a época como uma interpretação tão
boa quanto as obras sobre o mesmo evangelho dos exegetas especialistas, como
Bultmann e outros.
36. A
segunda grande contribuição de Barth no período em Münster advêm de “Geschichte
der protestantischen Theologie seit Schleiermacher” (de 03 de maio a 30 de
julho de 1926, e repetida em 1929-1930), na qual Barth fizera uma precisa e
cirúrgica análise da teologia protestante, desde os aspectos que antecedem a
Schleiermacher, o próprio Schleiermacher, até o pensamento teológico dominante
até época das preleções; é uma invectiva séria e extremamente necessária da
interpretação do legado teológico, dos caminhos da teologia protestante do séc.
XIX; a análise de Barth é cirúrgica e justa, e por isso, se tornara um clássico
sobre a história da teologia do séc. XIX; nenhum estudioso sério da teologia
protestante se pode dar ao luxo de negligenciar a análise de Barth sobre a
história da teologia protestante no séc. XIX.
37. A
terceira grande contribuição de Barth no período em Münster advêm de “Ethik”,
que fora analisada em duas partes, a “Ethik I”, e a “Ethik II”,
proferidas primeiro em Münster em 1928-1929, e depois em Bonn em 1930. É a
única análise da ética completa feita por Barth e também se constitui de um
precioso testemunho da análise dogmática pretendida por Barth, da ética como
parte da dogmática. É um testemunho principalmente em relação ao
desenvolvimento da ética, como resposta ao “sitte” de Schleiermacher;
deste modo, a ética de Barth, constitui-se a base e o fundamento da ética
teológica, a ser refletida e estudada, já que é uma resposta e uma contribuição
decisiva após os problemas da ética desde a época de Schleiermacher.
38.
Além destas contribuições como professor, Barth publicara o primeiro volume de
uma dogmática que teriam três partes, a “Die Christliche Dogmatik im Entwurf”
(1927), a dogmática cristã em esboço; nesta obra Barth traça o princípio
fundamental da dogmática desde Schleiermacher; apesar de Barth ter abandonado
esta obra depois, esta primeira monografia dogmática de Barth permanece de suma
importância para a elucubração sobre o pensamento dogmático da teologia do séc.
XIX e início do séc. XX; este é a obra publicada mais importante de Barth desde
a publicação da segunda edição de “Römerbrief”.
39. A partir de Münster, Barth estabelecera uma série de contribuições, isso sem mencionar os grandes ensaios deste período, que depois, se tornarão mais evidentes em outras obras; deste modo, o que Barth iniciara em Göttingen com uma série de preleções, fora continuado e sublimado em Münster, principalmente numa linha de continuidade teológica extremamente peculiar, ao mesmo tempo em que Barth produziu algumas obras importantíssimas, que se tornaram clássicos teológicos e que são leitura imprescindível para as gerações posteriores dos estudiosos da ciência sagrada.
IV. O
Relacionamento com Kirschbaum.
40.
E, sobre o período de Barth em Münster, se faz um adendo, uma digressão; pois,
embora em Münster, tenha havido um desenvolvimento significativo de Barth no
trabalho acadêmico e de publicações, também houvera algumas dificuldades na
vida pessoal; foi em Göttingen que Barth conhecera pessoalmente Charlotte von
Kirschbaum, a qual já o conhecia por suas publicações e fama desde o início dos
anos 1920; do relacionamento com Kirschbaum, chamada por Barth de “Lollo”,
nasceu um amor platônico quase que instantâneo; ao se mudar para Münster, o
relacionamento se intensificou e se tornaram ainda mais próximos, onde a
própria Kirschbaum chegou a confessar para Barth numa carta de 27 de fevereiro
de 1926: “Caro Karl, devo escrever-lhe uma palavra gentil? Não posso. Só lhe
posso dizer uma coisa, que talvez nem diga: simplesmente sei desde quarta-feira
passada que te amo, mais do que posso compreender”[7].
41. E
a resposta de Barth a Kirschbaum, no dia 28 de fevereiro, demonstra a
complexidade que o encontro entre os dois causara no próprio Barth; Barth
confessara: “Apesar de toda a gravidade e amargura que agora vem, estou até
feliz com isso. Não apenas pelo motivo que está mais próximo: porque... agora
sim, vamos com isso, não há nada a fazer sobre isso, é simplesmente assim:
porque eu também te amo, mais do que posso compreender. Mas também porque agora
sei que não estou sozinho na minha necessidade e posso falar-vos muito
abertamente sobre a forma como agora devemos ajudar-nos uns aos outros ou,
talvez mais ainda, devemos deixar-nos ajudar. Até quarta-feira passada eu
pensava (embora eu já tenha visto mais do que você, com choque, como eu me
alegrava com cada palavra confiante que você me dizia ou me escrevia), tudo
poderia se desenvolver no contexto de uma amizade adorável. Como então ficou
tão evidente em nossa conversa como inacreditavelmente bem e naturalmente nos
encaixamos, de repente a situação parecia tão insincera que eu tive que
insinuar o que vi”[8].
42. O
relacionamento entre os dois neste período, mesmo entre as inúmeras cartas, não
sugere nada além de um amor platônico, pois houvera apenas um momento de férias
onde Barth ficara sozinho com Kirschbaum nas férias de abril a setembro 1929;
após isso, em outubro de 1929, Kirschbaum mudou-se para a casa da família
Barth, juntamente com Barth, sua esposa Nelly e seus filhos. A situação ficou
tão complicada, que a Dra. Tietz ao analisar a situação de Barth, Nelly e
Kirschbaum chamou de um conturbado “Ménage à Trois”[9]; e, realmente é quase como
que um “escândalo”, devido a situação enfrentada por Barth em relação a
vida familiar; há várias referências nos interlocutores contemporâneos que
presenciaram tais fatos que evidenciam como que a relação na família Barth se
tornara complexa a partir dos anos 1930.
43.
Barth casado com cinco filhos, na época, um dos maiores teólogos vivos –
certamente, nesta época abaixo apenas de Harnack - inicia um “suposto”
relacionamento com Kirschbaum; evidentemente, há muita especulação sobre estes
acontecimentos, do sofrimento que trouxera a Barth e sua esposa; e as
confidências nas cartas que sobreviveram também demonstram isso; todavia, não
dá para ir além disso; a situação é complexa, mas fazer um “voyeurismo” doentio
em cima de uma situação complexa que a par das confissões pessoais, onde só
existem “possibilidades”, além de errado é anti-cristão; não há dúvida que
Barth errou em colocar Kirschbaum para morar na mesma casa que sua esposa,
ainda que fosse sua secretária e datilógrafa, e companheira de reflexão
teológica; provavelmente, pelos relatos mais “incisivos” parece que houve
traição nas férias de 1929, mas também é só possibilidade; depois disso,
Kirschbaum ficou na casa da família Barth por 40 anos, e mesmo após sua doença,
Barth a visitou todos os domingos até sua morte, e após a morte de Barth, Nelly
a esposa de Barth a visitou todos os domingos até a morte de Kirschbaum em
1975; e a especulação realmente se evidencia principalmente a partir da
publicação do primeiro volume dos escritos pessoais de Barth e Kirschbaum, que
cobre os anos 1925-1935, escritos esses que ainda são centenas e centenas, que
serão aos poucos publicados (há a previsão da publicação das cartas e
documentos pessoais de Barth e de Kirschbaum de 1935ss no volume 60 da Karl
Barth Gesamtausgabe, que provavelmente virá a lume em 2026); todavia, não
se há provas concretas além das confissões de um amor platônico, e assim,
goste-se ou não, não se pode ir além destes fatos descritos e nem imaginar uma
série de situações embaraçosas.
44.
Barth errou sim; não há dúvida quanto a isso; mas, independentemente disso, sua
produção demonstra também uma profunda percepção das necessidades teológicas, e
o que Barth produziu em todo este período foi fundamento para que a teologia e
a ortodoxia não se perdessem, mais do que qualquer outro teólogo; não fora
Bavinck, embora seja um teólogo estupendo, ou Van Til, um apologeta de primeira
grandeza, ou Schaeffer, ou qualquer outro teólogo que segura as pontas da
ortodoxia cristã, mas fora Barth quem segurara as pontas e as rédeas da
ortodoxia cristã; evidentemente, isso não justifica erros e pecados; mas tal
como na Escritura, o próprio Deus não deixa de registrar os erros de seus
servos, como no caso de Davi e o adultério com Bate-Seba, do mesmo modo também
é com os teólogos; mesmo os grandes teólogos também são seres humanos; e não
nos deveria escandalizar se algum erro e/ou pecado dos grandes teólogos são
expostos; não as mentiras e calúnias que toda pessoa com grandeza humana sofre,
mas realmente os erros e defeitos, tal como se demonstra com Barth, em Calvino
e em muitos outros.
45. O
erro de Barth é injustificável, mas ao mesmo tempo sua produção e obra neste
período também demonstra um homem aguçado ao que o Espírito queria dizer as
Igrejas; e, goste-se ou não, aceite-se ou não, Barth é o maior teólogo do séc.
XX, e um dos maiores da história; certamente, Barth é superado em relação a
grandeza de análises teológicas e a solução de problemas teológicos apenas por
Agostinho, Tomás de Aquino e Schleiermacher; embora, em relação ao
protestantismo seja tido em menor estima do que Lutero e Calvino, e em relação
a genialidade esteja abaixo de Schleiermacher, Barth figura, em relação a
história da cristandade como um teólogo ao pé de igualdade com Agostinho e
Tomás de Aquino, fato esse que ninguém pode negar ou rechaçar, mesmo diante dos
erros de Barth; pois, do mesmo modo como o Rei Davi errou, e a Escritura
transcreve perfeitamente seus erros, Barth errou e seus documentos descrevem
seus erros; mas do mesmo modo como Davi é o homem segundo o coração de Deus
apesar de seus erros, Barth é um dos maiores teólogos da história apesar de
seus erros. E que isso não surpreenda e/ou cause confusões; pois, para se
criticar Barth e/ou para querer acusá-lo, ter-se-ia de ter a mesma grandeza
intelectual e acadêmica para se poder enfrentá-lo teoreticamente.
46.
Muitas pessoas ao ouvirem sobre esta situação delicada de Barth, escorraçam-no
de todas as maneiras; Barth mesmo dissera que muitos diriam coisas
desagradáveis a seu respeito no futuro; e outras ainda, ridicularizaram ao
ouvirem ainda falar que se tem alguém que estuda Barth, ou que se comenta as
obras de Barth; como fora dito, Barth errou e seu erro é injustificável, e se
as acusações sobre seu relacionamento com Kirschbaum forem verdadeiras, isso
também não pode ser negado e/ou menosprezado; todavia, a produção de Barth não
pode ser jogada no lixo, como muitos advogam; a produção não justifica o erro,
mas a imensa produção de Barth, totalmente necessária e imprescindível à sua
época, bem como para o período após a morte de Barth, e para os séculos vindouros
da história da Igreja, demonstra que, apesar da atitude errada de Barth, o
bondoso Deus agiu nele e através dele para manter e preservar a teologia e a
Igreja dos erros de época; e os erros que Barth enfrentou em sua época fora um
dos piores momentos da história da Igreja; e os problemas teológicos que Barth
solucionou, são tantos, que se pode equipará-los, na gama de problemas
resolvidos, a Aristóteles em relação a solução de problemas filosóficos. E,
isso, para se demonstrar a grandeza de Barth.
47.
Portanto, é sempre bom que se entenda isso; pois, diferentemente de outras
ciências, que conduzem o saber racional, e que se requerem um mínimo de retidão
moral para que se possa apreender a verdade, na teologia, a questão é
diferente; só existe produção teológica, sob os ditames da aprovação divina;
não que Deus aprove o pecado, mas quando alguém tem uma produção teológica
substancial e de suma importância, como com Barth, significa que Deus agiu e
iluminou com sua graça para que houvesse essa produção teológica; e esta
proposição é axioma fundamental a respeito da reflexão teológica: só produz
teologia quem é iluminado pelo Espírito. Logo, só produz teologicamente em quem
Deus age e através de quem Deus age; o próprio Barth disse de si mesmo, que tudo
o que ele fizera e produzira, foi por causa da graça de Deus, que agiu nele e
através dele; e isto não há como negar.
V. A
Luta da Igreja.
48.
Entendido o delicado relacionamento com Kirschbaum no seio da família de Barth,
pode-se prosseguir para o período em que Barth se torna professor em Bonn.
Pois, no interim, em que Kirschbaum se muda para a casa de Barth com sua esposa
e filhos, Barth saiu de Münster e foi para Bonn, onde foi professor na
Universidade de Bonn de 1930 a 1935; no período em Bonn, Barth repetiu algumas
preleções, bem como fizera uma análise da introdução do “Glaubenslehre”
de Schleiermacher, uma análise do “Enquiridion” de Agostinho, entre
outras preleções; mas neste período, sobressaem-se sobretudo as cartas, em
centenas e mais centenas, as quais, cobrem as ebulições fundamentais as quais a
sociedade alemã da época vivia, principalmente após a subida de Hitler e do
partido nazista ao poder em 1933. Além das cartas, chama a atenção neste
período, principalmente os ensaios, os quais, constituem preciosidades
fundamentais da teologia de Barth neste período, e que estabelece signos
teológicos imprescindíveis sobre as questões ético-políticas.
49.
Mas o período em Bonn também foi de algumas históricas curiosas; Helmut
Gollwitzer, que foi aluno de Barth em Bonn, certa feita contou uma história
envolvendo Barth e o filme “Der blaue Engel” (O Anjo Azul) de 1930,
estrelado pela bela e muito charmosa atriz Marlene Dietrich, uma das maiores
atrizes de todos os tempos, e figura de beleza e de atração na década de 30; e
numa manhã, Barth chega e fala: “ontem a noite sonhei com Marlene Dietrich”;
e evidentemente, os alunos olharam com “inveja”, e lhe perguntam em tom
sarcástico: “Ah, alguma coisa legal?”, e Barth, em tom de picardia,
respondeu: “Ela estava muito bem vestida e me disse: Karl Barth, me dá uma
Bíblia!”[10];
e, evidentemente todos riram muito; é um relato um pouco descontraído, mas que
tem um pano de fundo com conotações que seriam encaradas num meio mais “puritano”
como imorais.
50.
Além disso, em Bonn, ocorre a virada fundamental na teologia de Barth, a qual
advêm da interpretação do “Proslogion” de Anselmo da Cantuária, a partir
do qual Barth muda radicalmente a pressuposição básica de sua metodologia
teológica; o “fides quarens intellectum”, tal como ficara conhecida esta
interpretação, não somente foi importante para a mudança metodológica de Barth,
mas principalmente para um renascimento no interesse por Anselmo. Da
interpretação do “Proslogion”, Barth abandonou sua primeira tentativa de
uma monografia dogmática, e iniciou uma nova tentativa, a “Kirchliche
Dogmatik”, que começou a ser publicada em 1932, e se tornaria a principal
obra teológica do séc. XX, a “summae theologiae” do séc. XX, e, em
relação a extensão, a maior dogmática da história da Igreja.
51.
E, em Bonn foi que se iniciara o período da luta pela Igreja (kirchenkampf);
os ensaios produzidos nos anos 1930-1935, são fundamentais para o entendimento
dos problemas e da situação que levou a quase toda a Igreja na Alemanha, tanto
a Igreja Católica quanto a Igreja Evangélica, a se tornarem subservientes para
com o nazismo; em ensaios e em muitas preleções, Barth não somente faz uma
análise precisa da situação que estava vivenciando, ou simplesmente se faz a
documentação de tais acontecimentos, mas estabelece signos teológicos que se
tornaram fundamentais na análises de situações adversas nas quais a Igreja e os
teólogos tem de lutar pelo mantenimento da ordem e pela pureza da mensagem do
evangelho diante das revezes das ideologias totalitárias; entre os quais, vale
mencionar os seguintes ensaios, “O Primeiro Mandamento como Axioma Teológico”,
“Existência Teológica Hoje”, “Pela Liberdade do Evangelho”, “Revelação,
Igreja, Teologia”, “Evangelho e Lei”, etc.; estes ensaios do período
de Bonn são leitura obrigatória a todo aquele que quer compreender a teologia
de Barth, principalmente diante das questões ético-políticas.
52.
Neste período também ocorre uma das maiores confusões teológicas de todos os
tempos; de igual modo as brigas que no séc. XI levaram a separação entre Igreja
Oriental e Igreja Ocidental, ou as confusões do séc. XVI que geraram a Reforma
e o Protestantismo, a confusão de Barth com Brunner pela questão da teologia
natural, foi uma das maiores confusões de todos os tempos em relação a
controvérsias teológicas. A invectiva de Brunner na tentativa de uma análise da
natureza e da graça, com vista a uma teologia natural, foi respondida com o
severo “Nein!” de Barth, que ecoou em toda a história da Igreja, e ainda
hoje faz estremecer um pouco aqueles que procuram elucubrar sobre uma teologia
natural, mesmo àqueles que fazem tal análise com bases científicas e
teológicas; a rejeição de Barth para com a teologia natural, ainda que na época
com suas razões e motivos bem sensatos, ocasionou uma ruptura com Brunner que
só se reataria mais de 30 anos depois, e que em grande parte foi um dos motivos
para Brunner ter sido negligenciado e ter ficado a sombra de Barth durante toda
a vida.
53.
Todavia, o que ressalta em relação ao período em Bonn, são os acontecimentos do
fatídico ano de 1933; pois, neste ano, os acontecimentos começaram a ficar mais
obscuros, com a subida de Hitler ao poder no cargo de Chanceler; alguns meses
antes, Niemöller conta que esteve pessoalmente com Hitler, e que o próprio
Hitler lhe havia assegurado que manteria as liberdades e a democracia;
evidentemente, Niëmoller fora enganado; e o próprio Barth também ficara
enganado de início; e sobre isso há um fato interessante, mas que é pouco
conhecido; Barth e outros teólogos de língua alemã, foram informados sobre
Hitler e suas ideias totalitárias, através de uma carta circular de Georg Merz
de outubro de 1923, a qual Thurneysen repassara uma cópia a Barth, e na qual Merz
fala sobre uma possível revolução na Baviera, e “que Adolf Hitler está
marchando para Weimar, Dresden e Berlim com suas bandeiras suásticas”[11]. Entretanto, ninguém
falara nada para conter isso em relação a Igreja nesta época; mas de dez anos
depois, em 1933, Hitler sobe ao poder para fazer tudo aquilo que já estava
preconizando que faria em 1923, quando Barth e outros teólogos tomaram conhecimento
sobre a figura controversa de Hitler, o que já os deveria ter deixado com a
orelha em pé.
54.
Quando Hitler sobe ao poder aos poucos começa-se a perseguição paulatina contra
os opositores das ideias totalitárias que propagava; Barth pensava que poderia
dialogar com Hitler e até pensou que poderia se encontrar pessoalmente com
Hitler para explicar-lhe que a Igreja Evangélica tinha a liberdade para poder
existir independentemente do Estado e da autoridade do Chanceler. Barth houvera
tentado convencer Hitler das loucuras as quais eles estavam fazendo, mandando
inclusive alguns ensaios que escrevera ao Führer, ensaios esses que
contradiziam e atacavam veementemente as invectivas da ideologia nazista com
relação ao cristianismo, entre os quais, “Existência Teológica Hoje”
(1933), e “Revelação, Igreja, Teologia” (1934). Quando enviara o ensaio “Revelação,
Igreja, Teologia” a Hitler, Barth o fizera com uma carta do dia 13 de
fevereiro de 1934, na qual afirmara: “Continuamos contando com o fato de que
você, estimado Chanceler, que conhece tão bem a integridade do estado, também
deve entender a integridade da igreja e sua missão. Com isso em mente,
permito-me apresentar meus escritos a vocês”[12]. Hitler o respondera em
24 de maio de 1934 apenas para confirmar o recebimento do ensaio “Revelação,
Igreja, Teologia”.
55.
Mas, certamente, o escrito mais peculiar que Barth enviara a Hitler, foi o
ensaio “A Igreja de Jesus Cristo” (1933), onde reafirma que a Igreja é
de Jesus Cristo, e não de Hitler, e, por isso, a Igreja deve obediência
absoluta a Jesus Cristo e não a Hitler; o Senhor da Igreja é Cristo e não o
Führer; a fonte da proclamação da Igreja é a revelação de Deus em Cristo e não
os ditames hitleristas ou de qualquer outro homem ou de qualquer poder de mando
humano. Este escrito, que na verdade, fora um sermão de Barth sobre Rm 15.5-13,
foi um dos mais importantes textos escritos neste período, pois, conquanto seja
um texto simples, seu conteúdo atacou e lutou veementemente contra o propósito
do nazismo de criar uma igreja nazista, que ficou conhecida como Igreja do
Reich.
56.
Por isso, quando iniciou a perseguição sistemática aos opositores do nazismo,
Barth foi um dos primeiros da lista a serem perseguidos, um dos primeiros a
perder o emprego e a ter o título de doutor honoris causa cassado, bem como
fora interrogado num dos escritórios da Gestapo; e, finalmente fora expulso da
Alemanha em 1935, por se recusar a prestar juramento de obediência
incondicional ao Führer; e é interessante que Barth escapou da prisão e da
morte neste período porque era de nacionalidade suíça, o que impediu que Hitler
e os nazistas o prendessem e o martirizassem nesta época. Neste período em que
fora instituído o juramento obrigatório a Hitler, Barth proferira a preleção “O
Primeiro Mandamento como Axioma Teológico”, no qual demonstrava que o
primeiro mandamento estabelecia qual era o axioma básico para a Igreja e para
os cristãos, pois, o que Hitler e seu estado procuravam fazer e estavam
instituindo ia contra o primeiro mandamento.
57. O
próprio Barth, numa carta do dia 05 de dezembro de 1934 a Hans von Soden,
descrevera no que consistia a natureza do que o Reich estava insistindo sobre o
juramento a Hitler: “O sentido e a intenção do Nacional-Socialismo, porém, é
que em Adolf Hitler temos um czar e um papa numa só pessoa, estritamente
falando em termos teológicos teríamos, sem dúvida, de dizer: estamos a lidar
com um Deus encarnado. Na interpretação nacional-socialista que é normativa
aqui, um juramento a Hitler significa que aquele que o faz se dedica totalmente
e de corpo e alma a este homem acima de quem não há constituição, nem lei e
ordem, que desde o início eu confio incondicionalmente que ele sabe, deseja e
realizará o que é melhor para toda a Alemanha e para mim em todas as circunstâncias,
e seria uma traição apenas presumir dele que poderia me levar a um conflito no
qual ele estava errado e eu estava certo”[13]. A descrição de Barth é
cirúrgica; ele compreendera qual era o verdadeiro propósito de Hitler, a saber,
se tornar um czar e um papa; é por isso, também que se observa nos documentos
do nazismo da época, o ódio que tinham para com o papa, e depois, com o plano
de sequestrar e prender Pio XII. Hitler se colocara como uma espécie de “deus
encarnado”: como czar no sentido político, o líder absoluto; e como papa no
sentido religioso, como aquele que comandaria uma nova religião revelada nele
mesmo. Portanto, quando Barth faz esta descrição do estado espiritual de Hitler
bem como de seu propósito político, descrevera tudo aquilo que significara
Hitler e o nazismo enquanto partido político e enquanto força satânica. Aliás,
Pio XI, posteriormente, em sua encíclica contra o nazismo, chega a constatar a
mesma situação.
58.
Devido a este fato, e aos ensaios que Barth enviara a Hitler para tentar
corrigir as loucuras do nazismo, conta-se uma história, que é verídica, que
Hitler considerava Barth um dos seus maiores inimigos, principalmente pelo fato
de que Barth se opôs totalmente ao culto a Hitler, afirmando que a única
palavra de Deus para a Igreja é Jesus Cristo e não a suposta “revelação da
história” que os “cristãos alemães” (católicos e evangélicos) pensavam estar
ocorrendo em Hitler; ao final da vida, Barth falou que a Igreja Confessante foi
um severo “Não” a esta suposta “revelação da história” e um apelo para que os “cristãos
alemães” e toda a sociedade alemã acordassem do estado de sonho que Hitler e o
nazismo os havia colocado.
59.
Além disso, foi neste contexto que em 1934 houvera o Sínodo das Igrejas
Confessionais Alemãs, as quais, estabeleceram qual a resposta haveriam de dar
diante das crescentes afirmações do Nacional-Socialismo; este Sínodo
estabelecera a resposta a questão dos “cristãos alemães” que haviam se acoplado
com a Igreja do Reich, que aceitava a obediência incondicional ao Führer; ao
que no Sínodo em Barmen, surgiu a Declaração Teológica de Barmen, que afirma
categoricamente: “Jesus Cristo, como nos é atestado na Sagrada Escritura, é
a única Palavra de Deus”[14]. A Declaração Teológica
de Barmen foi um desmonte aos “cristãos alemães”, principalmente no que tange a
afirmação da Igreja do Reich de ser uma igreja cristã. Os “cristãos alemães”,
que se configuram debaixo da autoridade absoluta do Führer, não poderiam ser
chamados de cristãos, e isso, a Declaração Teológica de Barmen demonstrou de
maneira irresoluta.
60.
Mas, em Bonn, Barth tivera algumas contribuições notáveis para a teologia;
algumas já foram mencionadas anteriormente; todavia, algumas contribuições
específicas tem de ser mencionadas, pois, estas contribuições são parte da
atividade teológica de Barth em Bonn; em Bonn, Barth mudara a pressuposição
central de sua teologia, na questão sobre a analogia, e iniciara uma série de
contribuições inestimáveis e indiscutivelmente necessárias, tanto para sua
época quanto para todas as épocas; pois, a partir de Bonn, Barth tanto com
obras quanto com ensaios, e até mesmo as cartas, laborara de forma quase que
assombrosa, tanto pela profundidade de análise quanto pela agudeza de
percepção.
61. A
primeira grande contribuição de Barth em Bonn, e uma das principais obras que
ele escrevera neste período, foi a interpretação do “Proslogion” de
Anselmo (1931), que mudara radicalmente o princípio metodológico central da
teologia de Barth; esta interpretação sobre o clássico texto anselmiano,
tornou-se também um clássico; ao que, o próprio Barth assevera que foi o livro
que ele escreveu com mais cuidado, e o que menos é conhecido; Balthasar
identificara acertadamente que este livro é a chave para se entender a teologia
de Barth; portanto, este livro é um dos marcos teológicos do séc. XX, e o marco
teológico principal da mudança teológica de Barth; por isso, este livro é a
chave para a compreensão da teologia de Barth.
62. A
segunda grande contribuição de Barth em Bonn, foi a publicação da “Die
Kirchliche Dogmatik I/1”, a nova dogmática de Barth; após sua interpretação
sobre o “Proslogion”, Barth mudou sua orientação teológica e abandonou a
dogmática cristã em esboço (1927), e iniciou uma outra dogmática, agora
prevista em cinco volumes; esta obra, publicada em 1932, se tornara a principal
obra de Barth, sua opus magnum, bem como se tornara a mais extensa
dogmática na história da Igreja; esta obra, é o marco teológico do séc. XX, a
obra teológica mais importante do séc. XX; além disso, esta obra é a prova
incontestável de que Barth é um dos maiores teólogos da história. E, neste
primeiro tomo do vol. I, Barth apresenta os princípios que o guiarão na análise
dogmática, bem como os pressupostos que são fundamentais para aquilo que ele
percebera a partir da análise do “Proslogion”, a impreteribilidade da
analogia da fé em se tratando da teologia protestante.
63. A
terceira grande contribuição de Barth em Bonn, foi “Nein!” (1934),
direcionado a Emil Brunner; este ensaio, que versa sobre a questão da teologia
natural, foi um polêmico e decisivo texto no debate sobre a teologia natural;
evidentemente, não do debate de disputa, mas do debate das notas de rodapé,
como resposta a um escrito de Brunner, “Natur und Gnade”; Barth rejeitou
a invectiva de Brunner em relação a teologia natural, e se vociferou contra a
teologia natural, muito devido aos problemas que a teologia natural nesta época
tinha ocasionado em relação a Igreja na Alemanha e a subserviência desta para
com o nacional-socialismo; posteriormente, após a Segunda Guerra, Barth mudará
a posição com relação a teologia natural; mas este rejeição, com o “Nein!”
a Emil Brunner, tornaram a teologia de língua alemã extremamente ponderada com
relação a teologia natural; donde, a teologia natural após este escrito de
Barth, se desenvolveu de maneira mais aberta nos países de língua inglesa. Mas,
este texto de Barth contra Brunner, constitui-se de uma das maiores
controvérsias teológicas de todos os tempos. E é um texto clássico de rejeição
a teologia natural, que embora em tempos atuais seja tido como “infeliz” (a
expressão é de Moltmann!), na época em que fora escrito tinha suas razões
razoáveis. É um texto polêmico e controverso, mas que faz parte da história da
teologia, e por isso, sua leitura é imprescindível.
64. A
quarta grande contribuição de Barth em Bonn, foi “Evangelho e Lei”
(1935); este ensaio, é um dos ensaios de Barth que adentra a questões
ético-políticas, a partir da perspectiva teológica; mas, especificamente, este
ensaio chama a atenção, pelos princípios estabelecidos, sob os quais, a análise
teológica sobre questões envolvendo a lei humana e a divina, tem de ser
entendidas, a saber, a partir do Evangelho, tal como o próprio Barth afirma que
quem quiser falar de maneira adequada sobre este tema, necessariamente, tem de
primeiro falar sobre o evangelho; é o evangelho a base da análise da lei e das
questões envolvendo a compreensão cristã sobre a lei, mesmo sobre a lei humana;
deste modo, “Evangelho e Lei”, nesta ordem, e não lei e evangelho, o
princípio luterano, deve constituir-se da fonte de entendimento sobre a lei a
partir da perspectiva evangélica.
65.
Assim sendo, as contribuições de Barth em Bonn são também muitíssimas; aliás,
em Bonn ocorrem mudanças significativas no pensamento de Barth, principalmente
com relação a questões metodológicas, bem como teológicas; os ensaios de Bonn,
principalmente após a subida do nazismo ao poder em 1933, constituem-se de
textos importantíssimos; além disso, as cartas deste período documentam bem
este fatídico ano, a partir das lentes de um teólogo, e constituem-se não
somente de fonte teológica, mas também de fonte histórica; portanto, em Bonn,
que para Barth foram os anos mais felizes de sua carreira como professor, foram
também os anos mais difíceis e problemáticos, tanto no sentido pessoal, quanto
no sentido teológico, e ainda no sentido sócio-político.
VI. A
Mudança para Basileia.
66.
Após ser demitido de Bonn, e obrigado a sair da Alemanha, Barth foi convidado
para retornar a Suíça, e lecionar na Universidade da Basileia, onde foi
professor de 1935 a 1962; este foi o período de maior profundidade em todo o
pensamento de Barth; foi da Basileia que Barth desenvolveu sua teologia de
forma mais profunda, bem como estabelecera-se na continuação de sua influência
na luta da Igreja e no desenvolvimento da “Kirchliche Dogmatik”. Em
Basileia, Barth estabelece o núcleo central e mais aprofundado de sua atividade
teológica, que por ele mesmo havia sido descrito como uma espécie de glosa, de
nota de rodapé, às grandes teologias.
67.
As preleções em Basileia foram muitas, e as cartas milhares, mas principalmente
os ensaios chamam a atenção; por isso, focar-se-á apenas nos mais emblemáticos
produzidos neste período, pois, a produção de Barth, a par dos livros
publicados, foi imensa, e numa análise introdutória não se dá para mencionar e
analisar todos os escritos produzidos; por isso, se faz apenas um apanhado
geral do que é necessário compreender sobre o que de mais importante Barth
produziu no período em Basileia, período esse que lança as bases da
continuidade teológica que seguiria após ele, e para os períodos posteriores, e
que são imprescindíveis na reflexão teológica.
68. A
primeira grande contribuição de Barth no período em Basileia advêm de “A
Eleição de Deus em Graça” (1936); é um ensaio formidável; neste ensaio
Barth traça os princípios que o guiarão na análise da doutrina da eleição, bem
como aqueles pressupostos que serão ampliados em sua dogmática na análise da
doutrina de Deus; por isso, este ensaio, escrito no contexto da luta da Igreja,
após ser expulso da Alemanha, procura evidenciar a obra graciosa de Deus em
eleger os homens, e pontua a eleição como “verdade de revelação”; a
eleição de Deus em graça, para Barth, é a “verdade de revelação”, “é
intuição de fé”; é, por assim dizer, a base da analogia da fé. E por isso,
Barth, a partir da sentença de Calvino, pode afirmar que “jamais
encontraremos dentro de nós mesmos a certeza de nossa eleição”, isto é, só
se encontra esta certeza no próprio Deus, já que “o mesmo Espírito testifica
com o nosso espírito de que somos filhos de Deus” (Rm 8.16).
69. A
segunda grande contribuição de Barth no período em Basileia advém da publicação
do segundo tomo da “Kirchliche Dogmatik” em 1938 (KD I/2), na
continuação da doutrina da Palavra de Deus; o segundo grande tomo da KD I,
completa a ideia que Barth estabelecera como os prolegômenos a doutrina cristã
é a análise da Palavra de Deus, no ato revelatório do Deus Trino, nas formas da
Palavra de Deus e em como as Sagradas Escrituras inferem na reflexão teológica.
Balthasar reclamara ao próprio Barth que os prolegômenos da “Kirchliche
Dogmatik” são “protestantes demais”, justamente pelo enfoque escriturístico
como norma absoluta para a reflexão teológica.
70. A
terceira grande contribuição de Barth no período em Basileia advêm da
publicação de “Direito e Justificação” (1938), um ensaio de conotações
ético-políticas; este ensaio é uma das peças chaves da teologia de Barth,
principalmente porque versa sobre temas éticos-políticos, na contextura do
período que antecede a Segunda Guerra; além disso, este ensaio cobre a
continuação de uma série de ensaios onde Barth lida com a questão da justiça
humana (direito) e as questões envolvendo a fé cristã e a existência dos
cristãos, com a perspectiva da justiça humana, ou “politica administratione”
(Calvino), sendo defrontada com algum vocábulo chave da teologia cristã.
71. A
quarta grande contribuição de Barth no período em Basileia advêm da publicação
do segundo volume da “Kirchliche Dogmatik” (KD II), a doutrina de Deus,
em suas duas partes: a primeira em 1940, a segunda em 1942; para Barth, a
doutrina de Deus era o volume principal de sua dogmática; e realmente, a
doutrina de Deus de Barth retomara os aspectos principais e fundamentais que ficaram
esquecidos, bem como renovou o interesse pelo estudo das perfeições de Deus; a
doutrina de Deus da “Kirchliche Dogmatik” é um dos mais belos e efusivos
estudos sobre Deus, e, em relação a teologia dogmática é o mais importante
estudo sobre Deus desde o tratado “De Deo Uno” de Tomás na “Summa
Theologiae”. Este volume, consumou a influência de Barth como teólogo e o
tornaram o mais importante teólogo a elucubrar sobre a doutrina de
Deus desde Tomás de Aquino; não que não houvessem outros teólogos que o
tenham feito de maneira magistral; basta lembrar os grandes teólogos puritanos
que falaram de Deus de maneira fulgurante; todavia, nenhum outro teólogo, além
de Agostinho e Tomás de Aquino, resolvera tantos problemas teológicos ao se
analisar a doutrina de Deus quanto Barth; e ele fizera isso, de maneira tão
grandiloquente, que realmente, após Tomás de Aquino ninguém elucubrou de
maneira são singular sobre a doutrina de Deus do que Barth.
72. A
quinta grande contribuição de Barth no período em Basileia advêm da publicação
do terceiro volume da “Kirchliche Dogmatik” (KD III), que viera em
quatro partes: a primeira em 1945, a segunda em 1948, a terceira em 1950, a
quarta em 1951; a doutrina da Criação de Barth constitui-se um precioso
testemunho de uma análise da obra criadora de Deus e da própria realidade intrínseca
da criação e da criatura; sem sombra de dúvida, em relação a teologia
dogmática, a doutrina da criação de Barth, constitui-se a maior e a mais
fulgurante análise da doutrina da Criação; e isso é um dado importante, porque
o próprio Barth dissera: “Ao aceitar a doutrina da criação, entrei em uma
esfera na qual me sinto muito menos confiante e seguro”[15].
Mas,
mesmo assim, Barth proporcionou uma teologia da Criação efusiva e singular,
embora não sem os desafios para a teologia posterior, principalmente devido ao “Nein!”
a teologia natural, que impossibilitara um diálogo mais frutífero entre a
teologia e as ciências naturais; mas, como fora dito, a doutrina da Criação de
Barth constitui-se a mais bela doutrina da criação estabelecida na teologia
dogmática até então, principalmente por colocar a devida ordem e a devida
distinção entre o Criador e a Criação, entre o Criador e a criatura, e entre a
criatura e a criação.
73. A
sexta grande contribuição de Barth no período em Basileia advêm de “A
desordem do mundo e o plano de salvação de Deus”, que fora uma palestra na
assembleia do Concilio Mundial de Igrejas em 1948; esta preleção marcou o
início do movimento ecumênico pós-Guerra; mas, o interessante é que o tema de
Barth, principalmente porque versa sobre tal assunto, designou em parte qual
deve ser o encargo do verdadeiro ecumenismo, a saber, apresentar através do
diálogo entre as diversas confissões cristãs o tema da desordem do mundo e o
plano salvífico de Deus; ou dito em outros termos, em como os cristãos deveriam
testemunhar de Jesus Cristo diante da desordem social e política que tomara
conta do mundo, e isso, a par das diferenças confessionais e eclesiásticas das
diversas confissões genuinamente cristãs.
74. A
sétima grande contribuição de Barth no período em Basileia advêm de “O Dom
da Liberdade” (1953); este ensaio é uma das peças chaves para o
entendimento da teologia de Barth; pois, representa uma mudança de enfoque em
relação a posicionamentos anteriores; bem como este ensaio, conjuntamente com
outros dois ensaios, representam as mudanças que Barth estabeleceu, e continuam
a ser o encargo da reflexão teológica mais de uma geração após sua morte; neste
ensaio Barth apresenta um dos temas mais importantes de suas reflexões, a
liberdade; como o Barth pontua posteriormente, a liberdade do Deus soberano, e,
por consequência, a liberdade do homem responsável; em “O Dom da Liberdade”,
Barth estabelece a liberdade como dom e como dádiva da graça de Deus, para a
vida na fé, e, por isso, para a vida humana; pois, para Barth, a liberdade é
obra de Deus na criação, mas também é obra de Deus na reconciliação; liberdade
como mandamento de Deus, o criador, mas também a liberdade como mandamento de
Deus, o reconciliador. Outro aspecto importante sobre este ensaio é que, além
destes aspectos, também pontilha os princípios da teologia dialógica, a qual,
ele mesmo não conseguira demonstrar ao fim da vida, mas que deixou os
princípios que os teólogos posteriores seguiram de maneira adequada, como o
fizeram Moltmann e Pannenberg. Este ensaio, portanto, é uma peça chave para
compreender a teologia de Barth no período após a Segunda Guerra e após os
períodos turbulentos da Luta da Igreja.
75. A
oitava grande contribuição de Barth no período em Basileia advêm da publicação
do primeiro tomo do quarto volume da “Kirchliche Dogmatik” (KD IV/1) em
1953; no volume IV da dogmática, Barth inicia aquilo que ele mesmo chama de a
tarefa principal da dogmática; e este volume, em si mesmo, é uma obra
magistral; poderia ser chamado de uma dogmática dentro da dogmática; e, o
primeiro tomo do volume IV, é também uma obra magistral; neste tomo, Barth
amplia aspectos de seu pensamento que já viam sendo sinalizados em ensaios e
outras obras; bem como neste tomo, Barth apresenta a proposição teológica de “Jesus
Cristo, o Senhor como Servo”, onde se analisa o ofício sacerdotal de
Cristo; neste tomo, literalmente, Barth apresenta a tarefa principal da
dogmática de maneira magistral e teologicamente centrada, perfazendo a doutrina
da reconciliação a partir do tríplice ofício de Cristo, encadeado, nos tomos
subsequentes, de maneira límpida, cristalina e numa lógica da fé impecável.
76. A
nona grande contribuição de Barth no período em Basileia advêm da publicação do
segundo tomo do quarto volume da “Kirchliche Dogmatik” (KD IV/2) em
1955; este volume, é um dos mais majestosos volumes da dogmática de Barth; é a
continuação de sua análise sobre a doutrina reconciliação; neste tomo, Barth
apresenta a proposição de “Jesus Cristo, o Servo como Senhor”, onde se
analisa o ofício real de Cristo; é a análise de Barth sobre a consumação da
obra da reconciliação e os benefícios que Cristo conquistou com sua morte e
ressurreição; a ressurreição de Cristo é a base da justificação, logo, é a base
das bênçãos que Deus outorga aos seus pelo Seu Espírito; neste tomo são analisados
a exaltação do Filho de Deus e a miséria humana, bem como a demonstração de
como o Espírito Santo age para conformar aqueles que creem a imagem de Cristo,
e que através destes estabelece a Igreja, a comunidade dos remidos. É um tomo
cristalino e efusivo.
77. A
décima grande contribuição de Barth no período em Basileia advêm de “A
Humanidade de Deus” (1956); este ensaio, juntamente com o ensaio “O Dom
da Liberdade”, constitui-se um dos testemunhos da mudança da teologia de
Barth; e, conjuntamente com “O Dom da Liberdade”, e com outros ensaios,
uma das peças teológicas principais, para se entender a teologia de Barth,
pois, justamente neste ensaio Barth trabalha uma questão teológica fundamental;
na verdade, o grande problema teológico que Barth traz o enfoque é a cristalização
da perspectiva sobre o verdadeiro humanismo; pois, se se fala da divindade de
Deus, então, como Barth afirma, se há de falar sobre a humanidade de Deus;
pois, quem reconhece a divindade de Deus, também há de reconhecer sua humanidade.
E, Jesus Cristo, é quem nos permite compreender tanto a divindade quanto a
humanidade de Deus; como Barth afirma: “Jesus Cristo é parceiro fiel, tanto
do ser humano como verdadeiro Deus, quanto de Deus como verdadeiro ser humano”;
por isso, desta maneira, “Jesus Cristo testemunha e garante ao ser humano a
livre graça de Deus, mas também testemunha e garante a livre gratidão do ser
humano”[16].
78. A
décima-primeira grande contribuição de Barth no período em Basileia advêm da
publicação do terceiro tomo do quarto volume da “Kirchliche Dogmatik”
(KD IV/3), em 1959; é o tomo onde Barth termina a análise do tríplice ofício de
Cristo; neste tomo, Barth apresenta a proposição de “Jesus Cristo, a
verdadeira testemunha”, onde se analisa o ofício profético de Cristo;
antes, Barth analisara o ofício sacerdotal e o ofício real, neste tomo, Barth
passa a analisar o ofício profético; e a ordem proposta por Barth não é uma
mera coincidência; é uma estrutura estabelecida para enfocar a obra redentora
de Cristo; pois, se Cristo é o sumo-sacerdote perfeito, então, ele também é o
rei eterno, e, por isso, é quem fala as palavras de Deus, sendo Ele mesmo a
Palavra de Deus; como o próprio Barth, amparado no Catecismo de Heidelberg,
assevera: “Jesus Cristo, conforme atestado para nós nas Sagradas Escrituras,
é a única Palavra de Deus a quem devemos ouvir e em quem devemos confiar e
obedecer na vida e na morte”[17]; e, como Barth assevera,
esta é a glória do Mediador.
79.
Estas são apenas as principais contribuições teológicas de Barth no período em
que fora professor na Universidade da Basileia, mas existem inúmeras outras,
além de livros, ensaios, cartas, palestras, que constituem o tesouro teológico
que foi o período de Barth em Basileia; neste período Barth consolidou-se como
o maior teólogo desde Schleiermacher; e vale ainda lembrar do elogio de Pio
XII, que Barth é o maior teólogo desde Tomás de Aquino; aliás, vale lembrar que
o Papa Pacelli, na época em que fora nuncio apostólico na Alemanha, pode
conhecer o trabalho de Barth e a importância da obra de Barth nos contextos difíceis
daqueles tempos; portanto, a atividade de Barth na Basileia, da qual apenas um
pequeno trecho fora elencado aqui, demonstra de maneira vívida e eloquente a
obra e a atividade teológica incansável do teólogo da Basileia, desde os anos
sombrios do nacional-socialismo ao estertores da Segunda Guerra, bem como aos
anos finais, da última preleção como professor titular.
80. Na Basileia, Barth se efetivou como um dos maiores teólogos de todos os tempos, e, como fora dito, em relação a solução de problemas teológicos fundamentais, ficando, neste quesito, abaixo apenas de Agostinho, de Tomás de Aquino e de Schleiermacher; evidentemente, de maneira mais específica, em relação ao protestantismo, Barth está abaixo dos reformadores, pois, estes são os “precursores” do protestantismo; todavia, em se tratando de um panorama geral, olhando as contribuições teológicas em toda a história da cristandade, da ciência teológica, verdadeiramente, Barth só é excedido em contribuições por Agostinho, por Tomás de Aquino e por Schleiermacher (e em se tratando de Tomás de Aquino e Schleiermacher, Barth também é superado principalmente pela genialidade dos dois).
VII. Os
Anos Finais.
81.
Após o período como professor em Basileia, Barth se aposentara em 1962, aos 75
anos; é o período final da vida de Barth que cobre os anos de 1962 até sua
morte em 1968, mas do mesmo modo, igual em grandeza e profundidade dos outros
anos, ainda que com um número menor de publicações, devido a uma série de
internações e complicações com a saúde, que levaram Barth a ficar internado por
várias vezes durante no período de três anos; mas, este período foi onde Barth
reviu algumas coisas e auto-analisou alguns aspectos de sua obra teológica, a
qual, segundo ele mesmo, ele fizera uma espécie de prestação de contas para
aquilo que houvera feito. E realmente, ao se observar os anos finais de Barth,
pode-se compreender que aquilo que ele houvera designado para si como sua
tarefa teológica em 1922 como ser uma teologia de glosa, de nota de rodapé as
grandes teologias, ele cumprira definitivamente e com maestria, ao mesmo tempo
em que edificava uma obra singular e o maior pico teológico do séc. XX.
82.
E, este período final inicia-se com sua última preleção, intitulada “Introdução
à Teologia Evangélica”, feita em 1962; é o “canto de cisne”
teológico, como o próprio Barth assevera; é a prestação de contas teológica que
Barth faz a si mesmo e ao mundo teológico sobre sua obra e sua teologia; mas
também é um texto singularíssimo, pois, açambarca um aspecto sintético com
agudas observações e percepções sobre a existência teológica e sobre o labor
teológico, que o tornaram um texto clássico; do mesmo modo como Barth mudou
radicalmente a teologia com a publicação da Carta aos Romanos em 1922, ele
também mudou radicalmente a teologia ao publicar sua “Introdução à Teologia
Evangélica”; diferentemente das reações de 1922, as reações de 1962 não
foram tão dramáticas e polêmicas, mas a influência em 1962 se estendeu de tal
forma, que criou-se a época do movimento evangelical como se o conhece hoje em
dia, cristalizado pelas proposições teológicas delineadas por Barth, que
somadas a alguns outros ensaios, estabeleceu o encargo teológico desde então;
e, com algumas exceções, não se saiu ainda da gama de princípios e
possibilidades evocadas por Barth a partir destes textos, consumados plenamente
em sua última preleção.
83.
Ainda, em 1962, após de aposentar, Barth viajou a América, onde repetiu as
preleções sobre a teologia evangélica, bem como encontrou-se com personalidades
importantes do meio político e do meio eclesiástico; encontrou-se com Martin
Luther King Jr., com Billy Graham, com membros do gabinete de John F. Kennedy,
etc. O encontro com Martin Luther King Jr. foi emblemático, devido a liderança
que Luther King exercia no movimento pelos direitos dos negros, bem como porque
a tese teológica de Luther King na Universidade foi sobre a teologia de Barth;
embora fosse uma tese com crítica a Barth, não deixa de ser importante o
encontro entre Barth que lutara contra o nacional-socialismo e Luther King que
lutava contra o racismo.
84.
Em relação ao encontro com Billy Graham, também há algo a chamar a atenção;
Billy Graham havia se encontrado com Barth em 1960 quando fizera uma cruzada
evangelística na Basileia; e depois, em 1962, encontrara-se novamente com Barth
em Chicago; no encontro, ambos discutiram as ideias sobre o evangelismo e a
proclamação do evangelho, e Barth reclamara sobre o modo como Billy Graham
fazia apelos; Barth reclamara dizendo que o evangelho deveria ser pronunciado
com mensagem da livre graça de Deus e não como um homem apontando uma arma para
alguém, tal como sugerira que Billy Graham fizera em sua cruzada na Basileia em
1960; nesta cruzada Barth ouvira Billy Graham pregar debaixo de uma chuva
torrencial, e não ficara satisfeito com a forma com que Billy Graham
transmitira a mensagem; depois, Billy Graham falara em sua autobiografia que
apesar das diferenças teológicas, continuaram a ser bons amigos.
85.
Após a viagem à América, Barth voltou a Basileia, para desfrutar da
aposentadoria; estes anos finais seguiram com várias internações, e após um
derrame no natal de 1964, Barth interpretou esse derrame com um sinal divino
que o impedira de continuar seu trabalho depois de uma longa atividade
teológica; e, mesmo tendo conseguido voltar a escrever no outono de 1965,
Kirschbaum foi internada devido a doença de Alzheimer, a qual já dava sinais
desde o ano de 1961, o que impediu decisivamente Barth de continuar seu
trabalho teológico; pois, Kirschbaum jamais voltaria a se recuperar, e ficaria
internada até sua morte; a importância de Kirschbaum para Barth é indiscutível,
pois, Barth ditava e ela datilografava estes ditados; sem Kirschbaum, Barth não
conseguiu levar adiante seu projeto da dogmática, devido ao grande e laborioso
processo de escrita de suas obras.
86.
Ainda, neste período ocorrera o Concílio Vaticano II (1962-1965), do qual não
pode participar, mas que contribuiu de maneira incisiva; Barth ficou sabendo do
desenvolvimento do Concílio através do contato com Cullmann, Küng e outros, mas
devido aos problemas de saúde não pode comparecer; entretanto, em 1966, após
longo período de doenças e internações, Barth foi a Roma, e se encontrara com
Rahner, Ratzinger, com o Papa Paulo VI, e com outros líderes da Igreja
Católica, e participou de uma das reuniões da Comissão Internacional de
Teologia, sendo colocado em lugar de honra por Paulo VI, no mesmo patamar dos
cardeais.
87. E
também em 1966, Barth completara 80 anos; não faltaram elogios e presentes e
centenas de cartas de todo o mundo para celebrar o octogésimo aniversário do
mais importante teólogo do século; e, em comemoração aos seus 80 anos, as
palavras de Barth também são extremamente interessantes; na carta circular em
agradecimento pelas comemorações de seus 80 anos, Barth dissera: “O que fiz
e realizei - primeiro como pastor e depois como professor de teologia e
escritor - mas simplesmente, como muitos outros, o que (entre diversões de
muitos tipos) parecia ser precisamente o que era exigido, dado e possível em
diferentes períodos, arredores e situações. E agora, mal escapado do hospital,
foi surpreendentemente trazido à minha atenção no meu octogésimo aniversário
que, ao longo das décadas, meus pequenos pedaços de pensamento, fala e ação
tiveram para muitos na igreja, e até certo ponto no mundo, um significado que
eu mesmo, tendo o conhecimento mais próximo do que posso e não posso fazer,
nunca teria realmente atribuído a eles. O raio conhecido deles era maior do que
eu imaginava. Isso é para mim uma coisa muito surpreendente. Alguma coisa deve
ter acontecido que não dependesse de minhas próprias qualidades e realizações,
de modo que eu mesmo, como fui e como sou, estive presente apenas como auxiliar
ou um enfermeiro está presente com suas qualidades e capacidades em uma
operação, e tem que ser assim, enquanto alguém outro e superior faz o trabalho
real. Aqui, novamente, a graça inesperada, imerecida e de forma alguma auto-evidente
de Deus deve ter estado em ação. E todo o louvor que você me concedeu tão
gentil e generosamente deveria ser realmente o louvor desta graça”[18]. A expressão de Barth é
contundente; ele expressa e confirma que tudo aquilo que fez, pelo impacto que
teve, realmente o surpreendeu; na verdade, o impacto foi muito maior do que ele
esperava; e, de maneira firme, atribui todo este impacto e influência a graça
de Deus; é tudo obra da graça de Deus, e como Barth afirma, ele fora apenas um
instrumento de auxílio, tal como um enfermeiro que auxilia um cirurgião em seu
trabalho real; ele auxilia, mas outro superior é que faz o trabalho real. Deus
usa os homens por sua graça, mas quem faz realmente todo o trabalho é o próprio
Deus através dos instrumentos que Ele utiliza.
88.
E, estes anos finais, também foram cheios de surpresas e desafios para Barth;
além das várias doenças, como o derrame, o câncer, as longas internações, o
teólogo da Basileia ainda teve de se defrontar com a hospitalização de
Kirschbaum, e outras sérias questões; mas, neste período final, chama a
atenção, entre tantos relatos, alguns relatos comoventes, principalmente devido
a ocorrência dos fatos que guiaram e estiveram presente na vida de Barth desde
os anos 1920; e ao se conhecer estes fatos, se sabe o porquê Barth tomou certas
decisões nestes anos finais, bem como se compreende alguns momentos marcantes
neste anos finais, com relatos extremamente importantes.
89. O
mais interessante desses relatos, sem dúvida, é a carta a Emil Brunner em 1966;
depois, de uma longa separação e controvérsias por causa do “Nein!” de
1934, Barth e Brunner nunca mais foram amigos; isso mudou, quando Brunner foi
hospitalizado em 1966, no mesmo período em que Barth também estava
hospitalizado; quando Barth soube que Brunner havia sido hospitalizado e estava
em estado grave, logo lhe mandou uma breve mensagem numa carta do dia 04 de
abril de 1966, através do pastor Peter Vogelsanger, dizendo-lhe: “Se eu
estivesse mais ativo depois da minha doença de dois anos, pegaria o próximo
trem para apertar novamente a mão de Emil Brunner. Se ele ainda estiver vivo e
for possível, diga-lhe que o recomendo ao nosso Deus. E diga-lhe que
o momento em que pensei que deveria dizer Não a ele já passou há muito tempo, e
todos nós vivemos apenas pelo fato de que um Deus grande e misericordioso fala
um sim gracioso a todos nós”[19].
O
pastor Vogelsanger recebera a carta de Barth na manhã do dia 05 de abril, e foi
logo para o hospital para falar com Brunner, que se estava bem doente, já em
estado terminal, mas ainda estava vivo e consciente, e pode ler para Brunner a
mensagem de Barth; o pastor Vogelsanger contara que Brunner ao ouvir as
palavras de Barth deu um leve sorriso, com a feição alegre e bonita, e pode
apertar sua mão silenciosamente; alguns minutos depois, Brunner entrou em coma,
e viera a morrer por volta das 12:00h do dia 6 de abril[20]. Certamente, como dissera
o próprio Vogelsanger, a saudação de Barth foi a última saudação terrena que
Brunner recebeu. E, isto, é um relato importante, pois, demonstra uma
reconciliação entre dois amigos que ficaram distantes três décadas por causa de
controvérsias teológicas.
90.
Outro relato importante, é o de uma carta a sra. Helene Heim; a Sra. Heim
mandara uma carta a Barth em 5 de julho de 1967 dizendo: “Eu, que tenho
oitenta e um anos, li para minha amiga de noventa e oito anos... seus sermões ‘Libertação
aos Cativos’ e algumas peças do ‘Barth Brevier’ (Breviário de Barth). É para
nós duas um grande benefício que eu possa ler para ela através de um tubo
auditivo especial. Sermões que tinham muito a nos dizer e aqueles que achamos
difícil de entender na primeira vez, lemos duas ou três vezes e sempre com
atenção. Isso dá a minha amiga o que pensar em suas muitas horas solitárias
quando ela não pode fazer nada. Depois, ele pode me explicar algo que não
entendemos corretamente no dia anterior. Você vê que nós, que somos ‘cativos’
em tantas maneiras temos todos os motivos para se alegrar em nossa liberdade
apesar de tudo. Agradeço a Deus por seu trabalho e seu ministério. Com sinceras
lembranças, Helene Heim”[21].
Ao
passo que, Barth, ao receber a carta da Sra. Heim, a respondeu com as seguintes
palavras: “Tenho nada menos que onze doutorados honorários, mas considere
isto: nenhum me deu mais prazer do que sua cartinha na qual a senhora me disse
na semana passada que meus livros afetam tanto você e sua amiga ainda mais
velho e são tão compreensíveis e úteis em suas vidas. Eu mesmo preciso
constantemente de conforto e encorajamento e estou verdadeiramente grato a você
pelas amáveis palavras que me dirigiu. Deus guarde você e sua amiga e conceda
a ambas muito de sua incomparável luz”[22].
Estes dois relatos, a reconciliação com
Brunner, bem como a da carta a sra. Heim, dão o testemunho mais eficaz a
respeito da vida e da obra do teólogo da Basileia; pois, ao fim da vida, tendo
produzido mais do que todos os grandes teólogos do séc. XX, Barth se
estabelecera como um dos maiores teólogos da história da Igreja; e não somente
por isso, mas pelo fato de que Barth estudara 5 anos para ser pastor, e por 12
anos o foi, e exercera a função pastoral, nas pregações, ensinos confirmatórios
e cuidados com as almas de maneira exemplar; depois disso, em mais de 40 anos
como professor, os quais, Barth vivenciou de maneira intensa, com vários
conflitos e lutas pessoais, além das controvérsias teológicas, com políticos,
com autoridades, etc. A vida de Barth, diferentemente de como se esperaria de
um suíço, foi agitada e com inúmeras lutas e controvérsias quase que diárias. E
a afirmação de Barth à Sra. Heim, demonstra verdadeiramente aquilo que marcou e
foi o objetivo dos labores teológicos de Barth. Sem dúvida, é o testemunho mais
grandiloquente do próprio Barth sobre sua imensa obra teológica.
91. E
o último dia de vida de Barth também marcou sua existência teológica; no dia 09
de dezembro, telefonou para Thurneysen, seu amigo de longa data, onde
conversaram sobre o estado do mundo atual, em que ambos chegaram a conclusão de
que o mundo se encontrava num estado obscuro; mas, ao encerrar o telefonema,
Barth dissera a Thurneysen: “Sim, o mundo está escuro. Mas não fique
desanimado! Nunca! Porque o mundo está a ser governado, não apenas em Moscovo,
em Washington ou em Pequim, mas de cima, do céu. Deus está sentado no governo.
É por isso que não tenho medo. Continuemos confiantes, mesmo nos momentos mais
sombrios! Não deixemos que a nossa esperança afunde, esperança para todos os
seres humanos, para todo o mundo das nações! Deus não nos deixará cair, nem um
de nós e nem todos juntos! O mundo está sendo governado!”[23]. Este foi o testemunho
final de Barth, a confiança na soberania de Deus mesmo nos momentos mais
sombrios; testemunho excelente, exclamado por quem vivera de perto alguns dos
momentos mais difíceis da história da humanidade, e que testemunhara de Cristo
diante dos desafios epocais.
92.
Barth viera a falecer no dia seguinte, na madrugada do dia 10 de dezembro de
1968, enquanto dormia; sua esposa, de manhã, o encontrara morto; o teólogo da
Basileia morrera tranquilamente, enquanto dormia, e foi levado ao encontro do
Senhor no céu; a morte viera a Barth como uma amiga, cumprindo aquela descrição
mozartiana da morte (da última carta de Mozart a seu pai!); e que melhor
maneira para um mozartiano morrer, do que pacificamente, dormindo? Sim, Barth
morreu como um mozartiano para ir ao encontro do Senhor no céu, onde poderia se
encontrar com Cristo, e depois, como ele mesmo dissera, saudar a
Schleiermacher, a Tomás, a Lutero, a Calvino, a Zwinglio, e principalmente a
Mozart.
93.
E, sua morte causou comoção no mundo teológico; num dos elogios fúnebres
finais, Hans Küng descrevera uma das últimas conversas que tivera com Barth, na
qual Barth afirmara: “Quando chegar o dia em que devo comparecer diante de
meu Senhor, então não irei com minhas obras, com meus volumes de Dogmática nas
costas, num ‘carrinho’. Todos os anjos ririam disso. Então também não direi:
sempre tive boas intenções, tive a crença certa. Não, então direi apenas uma
coisa: Senhor, recebe-me, pobre pecador, com misericórdia!”[24]. O relato de Küng, é
assaz significativo; pois, aquele que mais produziu, aquele que mais enfrentou
problemas teológicos, e produziu uma obra imensa, não esperava ser justificado
por Deus por causa de seu trabalho, mas única e simplesmente pela misericórdia
graciosa de Deus; Barth, tinha a consciência de que o tornava aceitável diante
de Deus não era o que houvera produzido, mas sim a graça soberana de Deus
outorgada por meio de Cristo.
94.
E, o elogio final de Hans Urs von Balthasar também revolve a mente, nas
celebres e singulares palavras do grande teólogo católico do século em relação
ao grande teólogo protestante do século; Balthasar dissera que o nome de Karl
Barth iniciara uma época. E realmente Balthasar está correto, Karl Barth
iniciara uma outra época na história da teologia; neste quesito, Barth
influenciara de maneira decisiva e inconfundível toda a teologia cristã do séc.
XX, e se tornara o ponto de inflexão no desenvolvimento teológico a partir de
então. Do mesmo modo como Anselmo fora o ponto de inflexão para a escolástica,
Barth é o ponto de inflexão para a teologia moderna e para a época que virá
após essa na história da teologia.
95.
Alguns dizem que Barth está ultrapassado; realmente o séc. XX no que tange a
teologia foi o século de Barth; mas, no mesmo sentido o séc. XXI também é o
século onde Barth ainda vai influenciar todo o desenvolvimento teológico sóbrio
e significativo, pois todo o desenvolvimento teológico que se desenvolvera até
então, de Moltmann a Ratzinger, a influência de Barth é significativa e
grandiloquente. Aliás, os dois maiores teólogos que adentraram ao séc. XXI, são
decididamente influenciados por Barth; em Moltmann essa influência é mais
clarividente; e em Ratzinger, ainda que não tão clarividente, é incisiva tanto
quanto em Moltmann, mas tanto o pai da teologia da esperança quanto o
papa-teólogo são “post-barthian”, isto é, são teólogos que se
estabelecem no período pós-Barth, em grande parte influenciados por aquilo que
Barth delineou em escritos como “O Dom da Liberdade” e a “A
Humanidade de Deus”; na verdade, toda a cristandade deve muito ao velho
Barth. Portanto, é mais do que evidente o porquê Barth é o maior teólogo do
séc. XX, e o porquê pode, sem sombra de dúvida, ser chamado de pai da Igreja no
séc. XX.
96. Termina aqui esta exposição geral sobre a vida e a obra de Karl Barth. Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém.
[1] Este título, é a retomada de um
princípio estabelecido por Torrance em uma de suas obras sobre a teologia de
Karl Barth; e evocado o mesmo princípio a título de apresentação geral, tal
como o próprio Torrance fizera em seu escrito.
[2] In: Stanley J. Grenz, Roger E.
Olson, A Teologia do Século XX: Deus e o Mundo numa era de transição [1°
edição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003], pág. 76.
[3] In: Christiane Tietz, Karl Barth: A Life in Conflict [Oxford:
Oxford University Press, 2021], pág. 23.
[4] In: Karl Barth, A Carta aos
Romanos [São Leopoldo, RS: Sinodal/EST, 2016], pág. 9.
[5] Karl Barth, Dádiva e Louvor:
Ensaios de Teologia [3ª edição. São Leopoldo, RS: Sinodal/EST, 2006], pág.
47.
[6] cf. Karl Barth, Karl Barth
Gesamtausgabe Bd. 40 [Zurique: TVZ Verlag, 2004], pág. 19ss.
[7] Karl Barth-Archiv 9372.1. [As
referências ao “Karl Barth-Archiv” são devido a citação dos textos
manuscritos destas cartas e outros documentos que foram ou estão sendo
paulatinamente editados para a publicação].
[8] Karl Barth-Archiv 9272.17.
[9] cf. Tietz, Op. Cit.,
pág. 177ss.
[10] Ibidem. Pág. 201-202.
[11] Karl Barth-Archiv 9323.366.
[12] Karl Barth-Archiv 33155.
[13] Karl Barth-Archiv 9234.351.
[14] Declaração Teológica de Barmen,
§ 1.
[15] Karl
Barth, Church Dogmatics III/1 [T. & T. Clark, 1958], pág. ix.
[16] Barth, Op. Cit., 2006, pág. 394s.
[17] Karl Barth, Church Dogmatics IV/3.1 [T. & T. Clark,
1961], § 69, pág. 3.
[18] Karl Barth, Letters 1961-1968 [Grand Rapids: Eerdmans, 1981],
pág. 213.
[19] Ibidem. Pág. 202.
[20] Ibidem. Pág. 203.
[21] Ibidem. Pág. 259.
[22] Ibidem.
[23] Karl Barth, Karl Barth
Gesamtausgabe Bd. 28 [Zurique: TVZ Verlag, 1997], pág. 562.
[24] In: Tietz, Op. Cit., pág. 403.
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