Nota Inicial
As glosas ou nótulas feitas ao conceito de
divertimento tal como disposto nos “Pensées” de Pascal seguem a
numeração da edição de Brunschvicg.
Prólogo
O conceito de divertimento (divertissement) é uma
cirúrgica definição para descrever o que os homens fazem para velar de si
mesmos o estado de miséria no qual se encontram; e esta significativa definição
provém de Pascal; e mesmo que a definição pascalina tenha ficado incompleta e
fragmentária, da mesma se extrai uma ampla gama de ensinamentos, através dos
quais se compreende as causas e as consequências dos divertimentos.
E se põe a explicação deste conceito pascalino, pois o
que a partir das proposições evagrianas se diz das manifestações da luxuria,
foi o que Pascal pelo lume da luz interior chamou de divertimento; o demônio da
luxuria é o que põe aos homens os divertimentos, para que através destes se
aposse, de modo direito ou indireto, das consciências.
Por isso, compreender esta definição pascalina é
compreender, de modo racional, alguns dos estratagemas que Satanás se utiliza
(cf. 2Ts 2.9-10), seja para gerar o impedimento da razão e/ou para
cristalizá-lo, seja para induzir a vontade.
Assim, os seguintes fragmentos (Frag.) dos “Pensées” trazem reflexão sobre o divertimento, e respectivamente se tem as glosas explicativas aos mesmos (identificadas pelo §):
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Frag. 11
(§ 1-5) |
Frag. 164
(§ 36-38) |
Frag. 170
(§ 45-46) |
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Frag. 137
(§ 6-8) |
Frag. 166
(§ 39-40) |
Frag. 171
(§ 47-49) |
|
Frag. 139
(§ 9-28) |
Frag. 167
(§ 41) |
Frag. 200
(§ 50-52) |
|
Frag. 142
(§ 29-31) |
Frag. 168
(§ 42) |
Frag. 324
(§ 53-56) |
|
Frag. 143
(§ 32-35) |
Frag. 169
(§ 43-44) |
Frag. 469
(§ 57-58) |
Eis, portanto, as glosas feitas ao conceito de
divertimento tal como desenvolvido por Pascal.
§ 1
Os divertimentos e a vida cristã são auto-excludentes;
onde há divertimento não se tem vida cristã, e onde se tem vida cristã não há
divertimento; pois, o divertimento é, em si mesmo, totalmente contrário ao
preceito fundamental da piedade cristã, a humildade.
§ 2
A comédia é o divertimento mais perigoso à fé cristã;
não tanto a comédia enquanto gênero poético, mas os efeitos da comédia além da
poética; por isso, é o divertimento que mais deve ser temido; pois, as
representações da comédia atinam de modo delicado as paixões, o que as faz
parecer corretas; a delicadeza com que se atina as paixões através das
representações da comédia, tira a filtragem crítica ou o autoexame de
consciência, a fim de não se aperceber se estas paixões são salutares ou não -
e as mais das vezes não são salutares, antes terrivelmente perigosas.
§ 3
As representações da comédia trazem desequilíbrios
quanto a falsas aparências; pois, ao se aparentar inocência, as almas são
seduzidas pela aparência de inocência, o que não somente traz engano, mas
também destrói o temor das almas, já que a aparência falsa é um engodo que
retira o temor da consciência. Por isso, como diz a Escritura: “Ter respeito
à aparência de pessoas não é bom, porque até por um bocado de pão o homem
prevaricará” (Pv 28.21); portanto, o respeito a falsas aparências retira o
coração do caminho do bem.
§ 4
Os efeitos da comédia são tão terríveis que fazem o
coração se sujeitar a própria comédia; e assim o coração se torna subserviente
as impressões da comédia, gravando no próprio coração o real propósito da
comédia não-poética, a saber, induzir aos divertimentos; isto, por sua vez,
atina o coração para os prazeres, ou seja, torna o coração sujeito aos
tentáculos das concupiscências (cf. 1Jo 2.16); pois, tais impressões gravam no
coração a necessidade voraz de receber e ter os mesmos prazeres que foi visto e
assentido inconscientemente nas representações da comédia.
§ 5
A vida cristã e a comédia são auto-excludentes, porque
a comédia atina o coração para coisas que são contrárias a piedade e que matam
o ímpeto da piedade; as representações que atinam a busca pelos prazeres corroem
o coração à verdadeira piedade, bem como torna a vida cristã não mais expressão
de temor e tremor para desenvolver a salvação, mas sim em expressão de destemor
e irreverência diante de Deus, ou seja, em expressão dos divertimentos.
§ 6
A maior parte das ocupações particulares, aquelas que
não dignas de serem ocupações, são tão diversas e se entranham tão
ferrenhamente na vida de um indivíduo, que é impossível examiná-las
adequadamente; todavia, existe um critério para compreender se uma ocupação é
errônea ou não, a saber, basta analisá-las sob o divertimento; ora, se uma
ocupação, seja ela qual for, é um divertimento, então é fruto da ociosidade.
§ 7
O divertimento é o elemento aferidor de medida para
compreender se uma ocupação, seja ela qual for, é boa ou ruim; se for ruim, são
causadas por estas coisas: primeiro, ociosidade; segundo, luxuria; terceiro,
imbecilidade e/ou jactância.
§ 8
O divertimento afere se uma ocupação é fruto ou da
personalidade bem integrada, ou então se é fruto ou da ociosidade, ou da
luxuria ou da imbecilidade/jactância, ou em alguns casos destas em concórdia.
E, as mais das vezes, as muitas ocupações, são expressão inegável de coração
que busca insaciavelmente o divertimento.
§ 9
A infelicidade advém da falta de inquietude interior;
as diversas agitações do homem são expressão apenas desta inquietude, que no
fundo é falta de paz; os perigos inerentes ao poder, donde segundo o próprio
Pascal, nascem as desavenças, paixões, etc., provém justamente da falta de
quietude, ou mais propriamente da falta de humildade diante da própria miséria,
causada pela falta de autoconsciência desta miséria. Na verdade, esta
inquietude, em grande parte, é falta do prazer de ficar em casa, ou mais propriamente
falta do prazer no próprio lar; as viagens desnecessárias, as conversações inúteis,
os divertimentos dos jogos, etc., em suma, é a falta de prazer na quietude do
lar.
§ 10
A inquietude, a causa de todos os infortúnios dos
homens, é inconsolável; pois, a condição natural dos homens é fraca e mortal,
isto é, é miserável; mesmo o mais rico dos homens não escapa a esta condição;
na verdade, quanto maior o poder, a riqueza e o prestígio, mais evidente se
torna este infortúnio ao ser realmente considerado. Portanto, em relação a
isso, os homens tomam como o único bem que lhes compete o ato de se divertir,
seja por alguma ocupação, seja por alguma paixão “agradável”, seja por alguma
paixão nova, ou o jogo, etc., enfim qualquer coisa que se enquadre no que se
chama de divertimento.
§ 11
Assim, os seres humanos procuram o jogo, a garranhice
com as mulheres, a galinhice com os homens, a guerra, as grandes posições,
etc.; não porque nestes se tenha algum tipo de felicidade, pois tais coisas são
tão fáceis e tão voláteis que por si jamais poderiam consistir na verdadeira
felicidade; se busca tais coisas porque a partir das mesmas se desvia o
pensamento da miséria pessoal através do ato de se divertir; por isso, se gosta
mais dos prazeres que estas coisas atinam do que destas próprias coisas. Pois,
nestes casos, o ato do prazer pelo prazer é tido em voga sem sequer se
aperceber do que de facto é praticado para obter este prazer.
§ 12
Por esta razão, os seres humanos passam a ser viciados
no barulho e no movimento; tudo que busca excesso de barulho e excesso de
movimento, é expressão de alma viciada no divertimento; também por isso, que a
solitude parece são incompreensível e tão anormal, não porque não exista prazer
na mesma, na verdade o verdadeiro e salutar prazer, mas pelo fato de que alma
viciada em divertimentos se tornará uma alma que necessitará cada vez mais de
doses maiores e mais abruptas de barulho e de movimento. O barulho e o
movimento são tão viciantes quanto as drogas ou as bebidas alcóolicas; enquanto
estes causam vícios físicos e atingem a alma, aqueles causam vício na parte
irascível da alma e acabam por atingir a consciência.
§ 13
Aliás, sempre que alguém põe alguma forma de
divertimento para outrem, é a fim de que esta pessoa não pense em si mesma, a
fim de que não se autoexamine; mesmo os grandes e poderosos, estão cercados de
gente para diverti-los, a fim de que não pensem em si mesmos, já que se isso
fizessem lhes traria a infelicidade; e o que não se dirá das grandes massas,
instrumentalizadas através dos divertimentos.
§ 14
Os homens inventam de tudo para os tornar felizes, mas
ao fazê-lo, demonstram que não conhecem nada da natureza humana; ou elevam o
homem demais, ou o rebaixam demais; isso se exemplifica através de uma simples
analogia: caçar uma lebre durante o dia para se alimentar gera algum desgaste,
principalmente quando se poderia ter comprado esta lebre sem dificuldade; assim
os homens o fazem, não porque precisam, mas pelo prazer do divertimento na
caça, não tanto pelo prêmio desta caça - e aqui se distingue da caça por lazer
da caça por divertimento.
Do mesmo modo é com o autoexame; pois, assim como a
lebre não garante nenhuma nada contra a consequências de nossas misérias, a
caça sim nos obnubila disso ao nos divertir; e o mesmo se diz de qualquer
espécie de divertimento. O ato de caçar, ou qualquer algo do tipo, em si mesmo
não é errado, desde que praticado como lazer; mas se é praticado como
divertimento, então é uma forma que o indivíduo arrolou para velar de si a
própria miséria.
§ 15
A vida feliz é encontrada através do repouso, da
ausência de movimento desnecessário; ou mais propriamente, na quietude; ora, a
consideração sobre si, o autoexame, se é feito com sinceridade, demonstrará
esta sinceridade na busca ou na falta de repouso; se se satisfaz com a
quietude, mesmo tendo feito um autoexame, então se encontrou a felicidade;
agora, se ao se fazer um autoexame, os homens evitam de maneira abrupta a
quietude, então os tais vivem na total infelicidade. O maior e mais terrível
dos obstáculos a vida feliz é a insinceridade para consigo mesmo, demonstrado
na busca excessiva por agitação.
§ 16
O sentimento da própria condição é o que demonstra se
alguém é feliz ou não; pois, ao sentir a própria condição duas coisas ocorrem:
ou a busca e valoração da quietude, pelos que são verdadeiramente felizes; ou a
busca e a valoração da agitação, pelos que tem falta da verdadeira felicidade.
§ 17
A busca por agitação em si mesma não é errada, desde
que não seja buscada como divertimento; mas, os homens buscam a agitação como
divertimento, como se o ato de possuírem algo material fosse a verdadeira
felicidade; e isso é o que os faz totalmente infelizes.
§ 18
As ocupações violentas e impetuosas são buscadas a fim
de que sejam um impedimento para os homens pensarem em si mesmos; pois, ao se
buscarem tal coisas, acabam por se enganar que assim podem continuar em erros
terríveis sem que ninguém os repreenda. Na verdade, a isso também se atina a vaidade;
pois, ao buscarem tais coisas, preocupam-se excessivamente em mostrar as tais,
como se as mesmas fossem realmente algo virtuoso. E isto vicia a alma na
agitação, atinando cada vez mais a natureza insaciável da cupidez, ou seja,
pensam estar buscando algo que os faça repousar, enquanto na verdade estão
buscando a largos passos todo tipo de agitação que engendra volúpia; na
verdade, isto é causado por um instinto secreto que se estabelece a medida que
não pensam em si mesmos.
§ 19
A natureza humana, quanto a vida diária, tem dois
instintos básicos: um que busca o divertimento para velar de si a própria
miséria; o outro que sabe que a verdadeira felicidade está no repouso; ora,
estes dois instintos acabam por entrar em confronto, dando a alma um ímpeto
dialético; e este ímpeto dialético, os fará confundir o que concerne a cada um
destes instintos, terminando por cristalizar na alma o sofisma que os faz
tender ao repouso através da agitação; a verdade seria o contrário, tender a agitação
através do correto repouso. Mas, em suma, a confusão na relação entre estes
dois instintos já demonstra a corrupção da imaginação quanto a verdadeira concepção
da vida feliz.
§ 20
A vida se escoa, se esvai sem sentido, principalmente
àqueles que tendem ao repouso através da agitação; para estes, as mais das
vezes, a vida se encontra sem sentido; pois, estes procuram o falso repouso, já
que ao encontrarem-no decaem no tédio.
§ 21
O tédio faz com que os homens busquem sair a todo
custo da quietude e se tornem mendigos existenciais buscando de maneira veroz
agitações e tumultos.
§ 22
O divertimento transmuta o autoexame de si, a
contemplação das próprias misérias, para a contemplação das misérias que o
ameaça; e nenhum miséria que possa ameaçar é vencida se primeiro não se vencer
as próprias misérias; mas os homens procuram vencer as misérias que os ameaça,
ou que supostamente os ameaça, para não pensar nas próprias misérias; uma
mudança sutil, mas que demonstra que aqueles que buscam vencer misérias que
trazem ou podem trazer alguma ameaça, na verdade são aqueles que mais possuem
misérias na vida pessoal, e o fazem para não pensam nas próprias misérias. Deste
modo, não conseguem resolver nem as próprias misérias nem as misérias que os ameaça.
§ 23
A autoridade do tédio, que assoma nos homens o horror
e o assombro para com a quietude, sai do mais profundo do coração, para
envenenar toda a alma com os tentáculos deste horror e deste assombro. O veneno
do tédio cristaliza a anti-quietude na consciência.
§ 24
O tédio é causado não somente por aquilo que
supostamente tem alguns motivos; mas a própria compleição da não-contemplação
das próprias misérias, atina a alma para o divertimento mais mínimo possível; é
como se um pavio que fumega de-repente virasse uma grande fogueira: assim se
atina o tédio na alma leviana.
§ 25
O objetivo do divertimento é mostrar-se aos outros
através do divertimento; ou seja, mostrar-se melhor do que outrem através do
divertimento praticado, mesmo em que coisas que exigem algum conhecimento; por
isso, muitos buscam o saber não para se tornar sábios, mas para mostrar-se à
outrem; o mesmo se diz de quem é viciado em jogos de azar: o divertimento não
está no jogo em si, mas em gastar dinheiro desmesuradamente para talvez ganhar
algum dinheiro; por isso, se se tirar o gasto do jogo, perde-se o interesse no
jogo; é a busca desenfreada por uma diversão animada e apaixonada; se se tirar
a agitação e a paixão da diversão, então se decairá no tédio.
§ 26
A busca por um divertimento animado e apaixonado, na
verdade é a busca por criar um engodo para si mesmo; por isso, este tipo de
divertimento atina a imaginação para um caminho onde a substância de algo é
transmogrifada no seu símbolo; isto é, quer-se o jogo pelo que ele simboliza no
geral, a saber, poder, dinheiro, diversão animada e apaixonada; agora tira-se o
azar do jogo, então não se vai mais querer o jogo.
Este engodo criado, em suma, é a formação e/ou
gestação de uma paixão para excitar o desejo; e este desejo uma vez excitado,
atinará a parte irascível da alma, gerando ira, cólera, excesso de
sensualidade, etc., bem como gerando temor por um objeto gerado através da
enganação da imaginação, ou seja, gera-se um temor absoluto por um objeto
temporal; e isso é idolatria. Por esta razão na Sagrada Escritura se chama a
avareza de idolatria (cf. Cl 3.5), etc.
§ 27
A tristeza é velada através da busca pelo
divertimento; e o divertimento é o que impede o tédio de se expandir; logo, se
não tiver divertimento, se terá infelicidade; por isso, os homens buscam o
divertimento, a fim de obterem uma falsa alegria, e a fim de não terem
tristeza; é isso que em grande medida compõe o que a maioria das pessoas chama
de felicidade. Todavia, onde há divertimento não há vida feliz, porque o
divertimento impede a pessoa de pensar em si mesma, de contemplar as próprias
misérias; e sem isso não há como alcançar a verdadeira felicidade.
§ 28
A vida social, quando se torna totalmente permeada por
divertimentos, gerará uma sociedade de seres viciados nos divertimentos; isto,
por sua vez, gerará líderes subservientes ao divertimento. Os líderes civis, ou
políticos, que ascendem a funções públicas de liderança, ou porque buscam tais
posições ou porque são elevados a elas por um séquito, acabam por ter tantas
pessoas envolta de si e do que fazem, que não podem pensar em si mesmos, e se
tornam líderes cegos que conduzem uma massa cega. E assim toda sociedade acaba
por cair no buraco existencial dos divertimentos. Uma sociedade de
divertimentos terá por políticos os sofistas mestres na arte dos divertimentos,
bem como terá por líderes religiosos os sofistas mestres na arte dos
divertimentos religiosos.
§ 29
A verdadeira dignidade da consciência está em se
reconhecer tal como se é, sem diminuir-se e sem elevar-se; aliás, nisto está o
cerne da verdadeira humildade; o divertimento é buscado justamente para evitar
se reconhecer tal como se é; por isso, os homens buscam velar suas misérias
através dos divertimentos, para não serem sinceros sobre si mesmos e/ou sobre
outrem; e a insinceridade sobre si impede de que haja o reconhecimento de
outrem.
E sobre isso se tem o exemplo da arte de dançar;
embora o ato de dançar em si não seja pecado (conquanto possa conduzir ao
pecado), os homens buscam tal arte não pelo lazer, mas por divertimento; por
isso, geralmente os homens buscam a arte de dançar como forma de divertimento;
e do mesmo modo é com qualquer outra arte, pois a preocupação excessiva com
exercer uma arte bem em detrimento de se buscar o autoconhecimento, é evidência
de que esta arte é praticada como divertimento.
§ 30
A falta de pensar em si mesmo, de contemplar as
próprias misérias, põe o foco da mente nos divertimentos, como se o ato de
divertir-se fosse realmente o caminho da felicidade; se observa isso através de
um simples aspecto, e isso é observado até mesmos nos grandes e poderosos deste
mundo, a saber: ficar só, sem satisfação dos sentidos, sem preocupação no
espírito, sem companhias e sem divertimentos, a fim de que se possa pensar em
si mesmo; se se faz isso ai o indivíduo, mesmo o mais poderoso dos homens, conhecerá
sua própria miséria, e então aperceber-se-á que é um homem cheio de misérias.
§ 31
As misérias se assomam aos homens a medida que estes
não conseguem reconhecê-las em si mesmos, e ao não reconhecê-las em
sinceridade, não conseguem lidar com elas. Pois, o excesso dos cuidados desta
vida impede o indivíduo de pensar em si; e esta, por sua vez, na maior parte
dos casos, é a semente da ansiedade. A falta da quietude conduz aos tentáculos
da ansiedade existencial (ou tédio), que rapidamente se torna em ansiedade
psíquica. E uma sociedade que propaga e produz divertimentos será uma sociedade
de seres ansiosos. Pois, o divertimento ou a diversão, sem exceção, produz
ansiedade.
§ 32
A sobrecarga com os cuidados excessivos desta vida,
com muitas ocupações, ensinada aos homens desde a tenra infância os vicia numa
agitação que vela a consciência das belezas da quietude; por isso, se um homem
tem muitos cuidados e muitas ocupações, dificilmente será alguém que conhece a
si mesmo, porque não pratica o autoexame; aliás, se se retirar estes cuidados e
estas ocupações, que os vela da verdadeira felicidade, aí sim se os verá
totalmente infelizes, porque não terão o que fazer para velar de si a própria
miséria.
§ 33
As ocupações e cuidados excessivos impedem os homens
de pensarem nas perguntas fundamentais da razão humana: de onde vim? o que sou?
para onde vou? Logo, se se tira todas as ocupações e cuidados excessivos, então
os mesmos terão de pensar nestas perguntas; pois, a quietude conduz a estas
perguntas; ao passo que a agitação vela a mente de pensar nas mesmas; portanto,
os homens caem em desespero ao terem de pensar em si mesmos e ter de contemplar
as próprias misérias.
§ 34
A falta de elucubração sobre as perguntas fundamentais
da razão humana conduz os homens a uma vida sem reflexão; e esta é a razão do
porque se cria tantos divertimentos, para manter os homens sempre ocupados, a
fim de que não tenham tempo livre para pensar em si mesmos. Os homens são
ensinados a terem muitas ocupações em detrimento de deixarem de pensar em si
mesmos; assim, as ocupações se tornam o substituto para que não pensem nas
próprias misérias.
§ 35
As ocupações que são buscadas para impedir de pensar
em si mesmo, demonstram mente vazia, personalidade mal-formada, caráter com
falta de retidão, etc.; pois, isto tudo é fruto de coração oco, isto é, coração
que não pulsa pela própria vida, coração que é guiado pelos divertimentos; por
esta razão, o coração humano se torna um lixão espiritual; se o coração é oco,
então tal coração está cheio de lixo; ou para se utilizar das descrições da
sabedoria salomônica, coração oco é coração calcinado no caminho do inferno. O
lixo espiritual que se assoma ao coração por este estar oco é tão grande, que
se manifesta numa variedade enorme de doenças existenciais. Por isso, os
divertimentos são criados com o propósito último de deixar oco o coração dos
homens.
§ 36
A visão da vaidade do mundo só se dá em quem vê a
própria vaidade; quem não conhece as próprias misérias se assusta com as
misérias do mundo ou não as entende; por isso, o caminho para solucionar as
misérias do mundo é compreender as próprias misérias e entender donde elas
provêm; e todas as misérias provêm do coração humano (cf. Mt 15.19).
§ 37
A visão da vaidade do mundo, em quem não compreende a
própria miséria, se direcionará à visão da vaidade naqueles em que elas são
mais perceptíveis, a saber, nos jovens; os que não veem a própria miséria
acusarão de maneira desmedida a miséria nos jovens, pois nestes a miséria é
mais visível posto ser na juventude que se busca mais barulho, mais diversão e
mais pensamentos de futuro; entretanto, a miséria é a mesma para todos, embora
nos jovens tenha mais incisão dado a força da juventude; quanto mais divertimento,
mais barulho e mais agitação, mais os jovens estão destruindo a própria força.
§ 38
A secura do coração se manifesta a partir de quando se
retira a diversão dos homens; se se retira a diversão dos jovens, os mesmos
secam de tédio; o mesmo se diz de todos os homens; pois, se se retira a
diversão, então contemplam a si mesmos, e acabam por ver, ainda que embaçadamente,
o próprio nada em que vivem; e isto, por sua vez, lhes traz uma invencível
infelicidade a ponto de estarem numa tristeza insuportável, pois se reduzem a
própria contemplação de si; e quem não suporta a própria tristeza não tem
caráter bem formado, pois a insuportabilidade da tristeza é propriedade
inegável da personalidade prostituída. Isso é mais perceptível nos jovens, mas
é uma característica comum a todos aqueles que não possuem o autoconhecimento,
ou seja, em todos aqueles que buscam divertimentos.
Por esta razão, os homens, ao verem as próprias
misérias, passam a se divertir disto, pensando que com isto que se livram das
próprias misérias; mas os divertimentos evocados a partir da própria miséria,
na verdade são a pior e mais abrupta forma de negação das próprias misérias
(analogamente, é o avestruz que enfia a cabeça no chão). Em sentido anamnésico,
esta é uma das sementes da recusa em se aperceber da realidade, que em suma é a
negação abrupta da própria realidade.
§ 39
O mais terrível e aterrador pensamento àqueles que não
contemplam as próprias misérias é o pensamento sobre a morte. Os homens que se
divertem têm horror a pensar e a meditar sobre a morte. Aliás, este é um
critério infalível para se conhecer quem busca diversão, a saber, quem não
suporta pensar e/ou meditar sobre a morte.
§ 40
O pensamento da morte é suportável àqueles que buscam
divertimento apenas se se pensar na morte sem seus perigos; não os perigos que
podem levar a morte, mas os chamados perigos da própria morte; estes são tidos
pelos homens como as consequências da morte; na teologia são chamadas de
últimas coisas: céu, inferno, julgamento final, etc. Aqueles que buscam
divertimentos até suportam pensar na morte se o pensamento da morte não vier
acoplado com o pensamento do destino eterno; para aqueles que se divertem não há
céu ou inferno, pois para estes não há certo ou errado. Por isso, a
não-compreensão e/ou a não-aceitação de um destino eterno (céu ou inferno) é
consequência direta de não se pensar sobre as próprias misérias.
§ 41
As misérias dos homens são o fundamento das misérias
do mundo; além disso, as misérias dos homens são o que os impede de pensar na
morte; e sem o pensamento da morte, não há desenvolvimento da personalidade, não
há desenvolvimento do saber, etc. Pois, é da consciência da morte, e da
imortalidade, que provém a seiva da vida virtuosa; e em contrapartida, é da
falta do pensamento sobre a morte que advém aos homens a necessidade insaciável
de assumir para si divertimentos. Quia pulvis es, é o terror daqueles
que buscam divertimentos; memento moris, é o mais terrível insulto a
quem não contempla as próprias misérias.
§ 42
Apesar das misérias, os homens anseiam por ser
felizes; pois, o anseio pela vida feliz emana do mais profundo recôndito do
coração humano; na verdade, este anseio é inescapável: os homens não conseguem
não querer a felicidade; no entanto, o caminho da vida feliz se estabelece a
partir da contemplação das próprias misérias; e como os homens não querem contemplar
as próprias misérias, se cauteriza na consciência a falsa percepção de que a
felicidade está nos divertimentos. E o atinar da percepção de que a felicidade
está nos divertimentos é uma manifestação da recusa em se aperceber da
realidade.
§ 43
O coração humano, em relação a vida feliz, tem dois
anseios: um é curar as misérias, o outro, a partir disso viver feliz; e como os
homens não pensam nas próprias misérias, não podem entender como curá-las;
assim, não podendo curar as próprias misérias, atinam a resolução sofística de
não pensar mais nas mesmas; e como o pensamento das misérias é inescapável,
criam os divertimentos; assim, o anseio de curar as misérias é velado pelo
não-pensamento das próprias misérias, e o meio pelo qual evocaram para
não-pensar nas misérias se torna a expressão do que tomam do como felicidade, a
saber, os divertimentos.
§ 44
O ato de não-pensar, por si, é impossível, pois onde
há vida há pensamento; todavia, ao decidirem não-pensar, os homens na verdade
não deixaram de pensar, mas passaram a se recusar em se aperceber da realidade.
Portanto, o não-pensamento nas próprias misérias é recusa em se aperceber da
realidade, e a recusa em se aperceber da realidade tem inserida em si o
não-pensamento nas próprias misérias.
§ 45
O critério para se averiguar a felicidade é o
divertimento: se alguém realmente é feliz, menos se divertirá; entretanto,
quanto mais alguém é infeliz tanto mais se divertirá. Pois, o divertimento não
provém do coração, antes é algo externo que busca se tornar uma realidade
interna; todavia, o que vem de fora não alegra o coração, antes o contamina. O
divertimento acutila o coração, pois não provém do coração; e tudo que não
provém do coração não pode trazer a verdadeira alegria.
§ 46
A vida interior é assolada pelos divertimentos, tal
qual cidade sitiada a ponto de ser conquistada; pois, os divertimentos tornam o
coração dependente dos vícios exteriores, dos vícios inerentes aos próprios
divertimentos; além do que, os divertimentos trazem tantas perturbações, que
fazem o coração ser acutilado por milhares de acidentes que trazem consigo
muitas aflições desnecessárias; não acidentes físicos, mas acidentes psíquicos
e espirituais, que trazem perturbações muito mais densas do que os acidentes
físicos. A substância da alma não mantém sua sobriedade quando é assolada pelos
acidentes que provêm dos divertimentos.
§ 47
O divertimento é o substituto da verdadeira consolação
das misérias; enquanto que os homens que contemplam as próprias misérias, e se
entristecem profundamente por elas, chegam ao caminho das consolações, aqueles
que não contemplam as próprias misérias evocam para si divertimentos; a
diversão é o consolo infernoso de quem não contempla as próprias misérias.
§ 48
A diversão é a maior e a mais abrupta das misérias que
atingem aqueles que não contemplam as próprias misérias; na verdade, a diversão
é uma muralha que se ergue na consciência para impedir o “eu” de olhar para si
verdadeiramente, para que não contemple as próprias misérias; a diversão faz
com que o indivíduo se perca de si mesmo de maneira insensível, sem sequer se
aperceber das reais consequências de se perder de si (a despersonalização e a
despessoalização).
§ 49
A diversão vicia tanto a alma, que os homens ao
ficarem sem os divertimentos, acabam por desembocar em tédio; a diversão é o
entretenimento da alma que a conduz à perdição, e que coloca a própria alma em
estado de total insensibilidade para o pensamento sobre a morte; e esta
insensibilidade se torna mais evidente a medida que se rejeita as virtudes e as
virtuoses como se fossem algo ruim e depreciativo, e se aceita de bom grado e
de modo elogioso os vícios e os pecados como se fossem algo bom e apreciativo;
portanto, os divertimentos cristalizam na mente o modo dialético de pensar.
§ 50
As consequências dos divertimentos são como sentenças
condenatórias; se um homem soubesse que foi sentenciado, e não tivesse muito
tempo para averiguar isso, uma hora no máximo, ao passo que se soubesse da
sentença ele poderia revogá-la.
Analogamente, isto é o que ocorre com quem busca
divertimentos; ao buscar os divertimentos não consegue vencer as sentenças
condenatórias das próprias misérias, ao passo que se buscasse compreendê-las,
poderia pelo menos revogar as consequências das mesmas sobre si.
Ora, o que é o mais adequado: o homem procurar saber
se foi sentenciado ou não, sabendo que pode revogar a sentença, ou não buscar
se informar da sentença. O que convém a natureza, é o homem procurar saber se
foi sentenciado ou não, ao passo que aquele que não busca saber a sentenças,
mas antes procura algum divertimento, está totalmente contrário a natureza.
§ 51
A vida nos divertimentos é algo contra a natureza; por
isso, se diz que os homens não procurarem revogar as consequências das próprias
misérias de si mesmos, é algo “sobrenatural”[1];
ora, tudo o que está contra a natureza é obra de demônios; portanto, aqueles
que não buscam compreender as próprias misérias, podendo revogar as
consequências das mesmas em relação a si mesmos, são induzidos a buscarem
divertimentos pela ação dos demônios. Por isso, os demônios agindo de modo “além
da natureza”, buscam colocar os homens em práticas contra a natureza.
Portanto, em sentido espiritual, os divertimentos são práticas contra a
natureza.
§ 52
As ações contra a natureza reclamam o juízo de Deus, e
tornam o juízo de Deus mais pesado; e não somente contra aqueles que tornam
suas misérias mais visíveis em pecados e mais pecados, até mesmo naqueles que
vivem a religião com zelo sem entendimento; portanto, o juízo de Deus contra as
ações contra a natureza, contra os divertimentos, se estabelece não somente
contra os homens miseráveis, mas também contra os “fiéis” que tem zelo sem
entendimento, já que zelo sem entendimento também é divertimento.
Com isso, tanto o zelo sem entendimento daqueles que
buscam provar Deus, acabando por tentar a Deus, já que inoculam divertimentos
nas coisas espirituais, quanto a cegueira dos que não buscam a Deus, são
expressão direta que reclamam o juízo de Deus.
Ou seja, não somente o divertimento dos cegos
espirituais, mas também o divertimento daqueles que se dizem “cristãos”; e quão
grande juízo será manifesto contra aqueles que dizendo buscar a Deus evocam
para si divertimentos como se fossem coisas espirituais (cf. 1Pe 4.17).
Pois, a total cegueira espiritual é o que conduz
aqueles que se dizem “cristãos” a evocarem para si divertimentos como se fossem
manifestações genuínas de piedade, quanto na verdade são práticas apostasiosas.
E, diga-se de passagem, este é o retratado da cristandade hodierna.
§ 53
A sanidade de uma sociedade é manifesta através da
verdade das opiniões do povo em geral; se estas opiniões se coadunam com a
verdade, ainda que sejam simplórias, então a sociedade é sóbria; todavia, se
estas opiniões não se coadunam com a verdade, então a sociedade é doente.
Ora, as opiniões do povo em favor dos divertimentos é
o atestado de sociedade doente; são o atestado de óbito da inteligência de um
povo, de uma nação. A eleição do divertimento é prova incontestável que uma
sociedade teve sua inteligência destruída paulatinamente.
E uma sociedade que age em função dos divertimentos
sempre será permeada por três classes de indivíduos: os tolos e imbecis, que
serão a maior parte; as fraudes, que buscarão estar sobre os imbecis (políticos
e lideranças públicas num geral); e os meio-sábios, ou demagogos, aqueles que
dizem se aperceber destas loucuras, mas tanto não se apercebem das próprias
misérias quanto não conseguem compreender as causas destas loucuras.
Os tolos e imbecis são as massas de manobra; as
fraudes são aqueles que buscam utilizar-se das massas para algum fim nefasto; e
os meio-sábios ou demagogos são aqueles que receitam remédios sem conhecerem as
causas das doenças. Em suma, este é o retrato de uma sociedade que é dominada
pelos divertimentos.
§ 54
A propriedade mais visível de uma sociedade que é
dominada pelos divertimentos, é que nesta sociedade se estabelece a regra
indissolvível do respeito absoluto pelas aparências (vd. § 3); então, passa a
se distinguir os homens pela cor da pele, pelas vestimentas, pela quantidade de
dinheiro, pelos bens materiais, pelo sucesso momentâneo, etc.
O respeito pelas aparências é uma característica
implacável de uma sociedade dominada pelos divertimentos, o que conduz a
transmutação dos princípios e a supressão dos valores, ou seja, o certo passa a
ser errado e o errado passa a ser certo, a virtude passa a ser vício e o vício
passa a ser virtude, o sorriso para a ser errado e o riso passa a ser certo;
etc.
Além disso, uma sociedade calcinada no respeito pelas
aparências terá o canibalismo moral; os homens que se divertem através do
respeito pelas aparências são canibais morais e canibais espirituais, isto é,
devoram sem misericórdia o que há de moralidade e buscam a todo custo destruir
o que há de piedoso e o desfigurar o que convém a piedade.
§ 55
A sociedade dos divertimentos será uma sociedade
dominada pela desonra; os homens que buscam o divertimento ao buscarem-nos
acabam por renunciar a própria honra; na verdade, uma sociedade de
divertimentos, aceitará passar por todo tipo de situação contrária a natureza
apenas para receber a glória do sucesso; além do que, na sociedade dos
divertimentos aqueles que são colocados nos pedestais da glória do sucesso
sempre são seres sem virtudes e sem moralidade para estarem em posição de
expressão social e cultural.
Outrossim, é que as exigências da sociedade dos
divertimentos sempre serão altas demais; pois, para colocar indivíduos nos
pedestais da glória dos sucessos, a sociedade dos divertimentos os fará passar
pelo “calvário” moral-espiritual, isto é, retirará dos mesmos a moral e a
piedade, cumulando-os de injúrias e de necessidades, e ao consumar isso
cabalmente, então os coloca nos pedestais da glória do sucesso.
Por isso, somente aqueles que passam por este
“calvário” inserido nos divertimentos, ou pelo “calvário” de algum divertimento
de categoria superior, é que obtém posições altas nos pedestais da glória do
sucesso.
§ 56
Os três fados (anankés) que pesam sobre os
homens dos divertimentos são: trabalhar pelas incertezas, ir pelo mar e
caminhar sobre uma prancha (estes dois últimos em sentido análogo); trabalhar
pelas incertezas a fim de tornar o certo em errado, a virtude em vício, a
verdade em inverdade, o fato em mentira; ir pelo mar a fim de passar pelas vicissitudes
das navegações e considerar que ao ver o mar se conhece cada gota do oceano; e
caminhar sobre uma prancha, a fim de servir de “espetáculo” para aqueles que
estão mais experimentados nos divertimentos.
Portanto, trabalhar pelas incertezas, ir pelo mar e
caminhar sobre uma prancha, são as ações inerentes a quem é subjugado pelas
castas da sociedade dos divertimentos; ou seja, quem se deixar dominar pelos
divertimentos será alguém que trabalha pelas incertezas, será alguém que vai
perambulando pelo mar sem ter destino certo, e será alguém que caminha sobre a
prancha; etc.
§ 57
A contemplação das próprias misérias conduz ao
entendimento de que o ser humano é finito, contingente e imperfeito; ou dito em
outros termos, a contingência humana é tão grande que o próprio ato de um ente
finito existir é algo contingente, já que o mesmo poderia não ter existido.
Assim, os homens decaem em pensamentos depressivos já que ao contemplar com
sinceridade as próprias misérias, acabam por chegar ao entendimento de que não
são necessários.
Além disso, é também por esta razão que os homens não
gostam de contemplar as próprias misérias, antes preferem se divertir, já que
pela miséria inerente ao ser humano se constata uma verdade aterradora, a
saber, o homem não é um ser necessário. E só não compreende isso quem busca os
divertimentos, para através dos mesmos tentar se sobrelevar a esta verdade
inescapável.
Aliás, também é por esta razão que os homens amam as
risadas; as risadas atestam de maneira inconfundível que o indivíduo vive uma
vida em tantas misérias que o tornam alguém sem importância.
§ 58
A contemplação das próprias misérias, ao condizerem o
entendimento de que o ser humano é finito, contingente e imperfeito, conduz o
entendimento para a compreensão de que há na natureza um ser que não partilha
nenhuma destas características; pois, não se poderia compreender estas misérias
se não existisse um ser acima de todas as misérias; portanto, a contemplação
das misérias humanas, por sua vez, demonstra a existência de um ser necessário,
eterno e infinito; e isto é um axioma impreterível da vida humana.
Portanto, a compreensão das misérias, a falta de bem, conduz ao entendimento de que há alguém que não tem falta de bem; ou seja, ao se contemplar as misérias humanas se compreende que é um ser inescapável, pois só enxerga a própria finitude quem compreende que existe um ser infinito, só enxerga a própria contingência quem compreende que existe um ser eterno, etc.; e este ser necessário é, em sentido axiológico, o Sumo Bem; em sentido axiomático, o Primeiro Princípio; em sentido metafísico, o ser vivo, eterno, maximamente bom (cf. Met. 1072b30).
***
Ora, foi explicado brevemente e de maneira sintética
tudo quanto concerne ao conceito de divertimento de acordo com as
pressuposições pascalinas.
E termina aqui as glosas sobre o conceito de divertimento em Pascal. Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém.
[1] O termo “sobrenatural”
é um termo errado do ponto de vista físico quanto do ponto de vista espiritual
(isto é, tanto filosoficamente quanto teologicamente); mas como Pascal se
utiliza do mesmo, preferir mantê-lo deste modo; o mais adequado é utilizar-se
do termo “além da natureza”, pois de fato nada existe sobre a natureza
ou de “sobrenatural”: ou aquém/além da natureza ou na própria natureza.
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