§ 1
A devoção aos santos consiste parte preponderante da
fé; a honra devida aos fiéis do passado, que iluminados pelo Espírito Santo
deram o testemunho da fé verdadeira, sempre é um fanal de bênçãos para os fiéis
de todas as épocas; àquilo que se comemora no primeiro domingo da Quaresma, o
Domingo da Ortodoxia ou o Triunfo da Ortodoxia, é justamente uma afirmação
eclesial da importância da vida dos santos; do mesmo modo como é costume das
pessoas de bem e das boas famílias a preservação da história pessoal e/ou
familiar através de fotos, álbuns, etc., é costume inalterável da piedade
cristã estar em concórdia com o testemunho dos santos, os quais são rememorados
e honrados através da veneração de seus ícones.
Pois, a vida dos santos é o que ensina os fiéis, sob o
testemunho da Santa Igreja e sob a autoridade da Sagrada Escritura, a como
viver de maneira santa neste mundo; por isso, São João o Teólogo afirmara:
"Bem-aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz
o Espírito, para que descansem dos seus trabalhos, e as suas obras os sigam"
(Ap 14.13); ora, as obras dos santos são seu testemunho, pois são boas obras
que glorificam ao Pai Celestial (cf. Mt 5.16); portanto, a devoção aos santos
deve ser parte preponderante da piedade cristã, não para adorá-los, decerto,
mas para com eles aprender a viver de modo a agradar a Deus e a glorificá-Lo
(cf. 1Co 11.1).
Ora, tendo isto em vista, decidi, de boa vontade e sem
a preocupação em escrever um tratado extenso, responder a indagação sobre qual é
o meu santo de devoção; evidentemente, a piedade cristã se coaduna com a vida
de todos os santos em todas as épocas; mas, existem alguns santos que se tornam
mais próximos, quase como amigos, seja por seus dons e virtudes, seja por suas
obras, ou outra razão, pois nos engendram admiração, e a partir do conhecimento
sobre suas vidas acabam por nos atinar alguma proximidade vivencial; e é
justamente sobre estes santos mais próximos, tidos por muitos como principais
santos de devoção, que escrevo neste breve escrito.
§ 2
Em suma, e de bom grado, informo que meu santo de
devoção principal é São Gennadius Scholarius (ou aportuguesado, São Genádio
Escolário); e busco seguir o exemplo de vida, tanto em relação a fé quanto em
relação a intelectualidade, deste que fora um inigualável intelectual bizantino
bem como fora um lendário patriarca, um dos maiores patriarcas da sé de
Constantinopla, verdadeiramente um pilar da ortodoxia; na verdade, o mais
importante pilar da ortodoxia após a Queda de Constantinopla.
A vida de Genádio Escolário, ou Jorge Curtésio, é um
daqueles mistérios da Divina Providência em relação a utilização de vasos
escolhidos para a edificação da Santa Igreja; formado para servir em funções
seculares ou civis, se tornou um dos mais notáveis juristas bizantinos,
chegando a ocupar o cargo de juiz-geral do Império Bizantino; além disso, ao
assomar sua fé ao conhecimento enciclopédico, combateu muitos sofismas e erros,
tornando-se um filósofo escolástico e um polemista de notável reconhecimento; por
esta razão Jorge Curtésio foi intitulado Escolário (o mesmo que Escolástico na
cultura latina).
E em meio aos grandes desafios de sua época pode
desenvolver notáveis reflexões em milhares de obras, das quais a maior parte
infelizmente foram perdidas; Jorge Curtésio permaneceu um gigante intelectual
em meio a completa sujeição do saber a propósitos desvirtuosos e
anti-intelectuais que dominavam toda a cristandade na baixa escolástica.
Pois, as últimas décadas do Império Bizantino foram
terríveis, tanto do ponto de vista intelectual quanto do ponto de vista
espiritual, o que fez com que Jorge Escolário decidisse sair da vida pública e
se dedicasse a ajudar os cristãos, a apoiar São Marcos de Éfeso e a servir como
intelectual da corte imperial.
E, dentre as características mais notáveis de Jorge
Escolário, estão sua notória capacidade e reconhecimento como jurista, bem como
sua trajetória como filósofo escolástico e polemista; e estas duas últimas se
concatenam; pois, em meio a cristandade grega se ter um filósofo escolástico,
profundo admirador e conhecedor de Tomás de Aquino, e um apreciador do tomismo
- na verdade, um tomista bizantino! -, se demonstra que Jorge Escolário era
diferente de tudo aquilo que era comum em seu tempo e num todo na tradição
grega-bizantina; e ao ter um domínio pleno da teologia, tanto latina quanto
grega, e da filosofia, Jorge Escolário se tornou no mais importante polemista
bizantino, tendo disputado com vários intelectuais e saindo vencedor de todas
as disputas as quais travou, mesmo contra notáveis intelectuais, dando a ele o
epiteto, mais do que justo, de polemista invencível.
Por esta capacidade e conhecimento, ele foi convocado
pelo imperador bizantino para ser parte de uma comissão teológica para
acompanhar o Concílio de Florença; participou ativamente deste Concílio, e até
chegou a apoiar a causa unionista (união com Roma); no entanto, quando as
propostas florentinas foram contra a fé ortodoxa, São Marcos de Éfeso abandonou
o Concílio e rejeitou a união florentina, e Jorge Curtésio o acompanhou,
tornando-se assim discípulo mais próximo deste santo que foi último pilar da fé
ortodoxa antes da Queda de Constantinopla; em São Marcos de Éfeso, Jorge
Curtésio encontrou um verdadeiro pai espiritual.
Entretanto, mesmo que tenha vivido em toda esta
ebulição e em meio aos tumultos dos anos finais do Império Bizantino, Jorge Curtésio
decidiu seguir a vocação monástica como leigo, a fim de dedicar-se a oração e
ao estudo, tomando o nome monástico de Genádio; Jorge Curtésio Escolário foi ao
mosteiro não para virar sacerdote ou para ocupar posição na hierarquia, mas
poder continuar a desenvolver sua obra como intelectual ao mesmo tempo em que
vivia como monge, bem como para ajudar com seu conhecimento a causa
anti-unionista (contra a união com Roma); no entanto, os desígnios da Divina
Providência apenas estavam dando os preparos finais para algo totalmente
inesperado, mas que marcou para sempre a história da Santa Igreja Ortodoxa.
Nas semanas finais do Império Bizantino, com o Império
Otomano já dando a entender seu propósito inalterável de conquistar
Constantinopla, o próprio imperador árabe, o sultão Mehmed II, mandou contatar
Genádio para que caso Constantinopla caísse, e a população grega de bom grado o
obedecesse, ele deixaria incólume a liberdade religiosa para a Igreja Ortodoxa;
e após a Queda de Constantinopla, o próprio Mehmed II, tendo visto a confusão
terrível no meio da cristandade grega, decidiu nomear Genádio como Patriarca de
Constantinopla, o que foi amplamente aceito pela população grega, pelos otomanos,
e pelos hierarcas da Igreja (embora com grande relutância por parte do próprio
Genádio); e assim, ascendeu Genádio ao trono patriarcal alguns meses após a Queda de
Constantinopla, tornando-se assim em Genádio II, um leigo que ascendeu
diretamente a sé de Constantinopla, recebendo das mãos do próprio Mehmed II o
pálio patriarcal.
E é realmente um mistério da divina providência, pois
Genádio Escolário conquistara a estima e o respeito intelectual do mundo árabe
justamente por ser um aristotélico, algo pouco comum em meio a cristandade
grega, quase era que totalmente platônica e/ou neoplatônica; e ao ascender ao
trono patriarcal, procurou corrigir os excessos do neoplatonismo na Ortodoxia,
infelizmente sem muito êxito.
Mas, o primeiro patriarca após a Queda de
Constantinopla é um aristotélico, e é o instrumento utilizado por Deus para
reordenar a Ortodoxia depois da bagunça e das práticas apostasiosas que tomaram
conta dos anos finais do Império Bizantino; em meio a um dos piores momentos
para a Igreja Ortodoxa, Deus levantou um intelectual leigo para ser patriarca, e
um patriarca aristotélico-tomista.
E, mesmo que Genádio tenha renunciado poucos anos
depois de ser nomeado, e tenha retornado por pouco tempo cerca de mais duas
vezes a ser patriarca, não se pode menosprezar seu legado incomparável para a
cristandade grega; mesmo que tenha sido patriarca por pouco tempo, seu legado é
duradouro, e mais extenso do que qualquer outro Patriarca dos tempos modernos.
E o imenso legado de Genádio Escolário foi justamente
ser um homem com a vida em ordem, como é inerente aos santos, tanto moralmente
quanto intelectualmente, e isto em meio a uma época de desordens, confusões e
incertezas; e a vida ordenada deste homem santo, trouxe ordem e ordenação para
toda a Ortodoxia; a vida ordenada de Genádio Escolário trouxe vivacidade
espiritual, disciplina e organização para uma cristandade que vinha sendo
assolada pela decadência espiritual e pela imoralidade.
Por isso, se a Igreja Ortodoxa continuou sua missão
após o domínio otomano, deve em primeiro lugar agradecer a Deus; mas, depois
deve agradecer a Genádio Escolário, que por ser um homem virtuoso e santo, pelo
exemplo de sua vida pode assegurar a continuidade da instituição patriarcal, bem
como preservou incólume a fé ortodoxa; aliás, isso faz pensar com certo pesar
que em muito do que Genádio Escolário quis fazer não obteve auxílio e foi em
parte rejeitado, e legado ao ostracismo.
Por isso, a vida de Genádio Escolário tem muito a
ensinar; e seus escritos, dos quais a maior parte infelizmente se perdeu após o
domínio otomano, testemunham de uma mente grandiloquente e de sua notável
capacidade intelectual; no entanto, dos escritos que foram preservados, se tem
o testemunho não somente do notável intelectual, mas também testemunham de um
homem com uma fé viva e ardente; Genádio não somente é escolástico, mas também
é pai espiritual; o pai espiritual que iluminou a cristandade grega em sua pior
turbulência.
Genádio II se tornou santo, e seu legado intelectual é
imenso, conquanto tenha sido completamente esquecido; mas além disso, o legado
de São Genádio Escolário também é ter dado novamente força e ânimo para a já
cansada cristandade grega, e dos frutos de sua vida e testemunho, pode trazer novo
vigor e frescor para a Santa Igreja Ortodoxa, vigor esse proveniente de uma
espiritualidade profunda.
E aproveita-se o ensejo para mencionar um fato curioso
e pouco valorado; a autocefalia da Igreja Ortodoxa Russa, que ao longo dos
séculos se tornou numa das mais belas expressões da fé ortodoxa (embora em
tempos atuais esteja em decadência pela sujeição a preceitos ideológicos), só
se efetivou e teve os efeitos gloriosos que teve graças ao legado de São
Genádio Escolário como Patriarca de Constantinopla; e o mesmo se pode dizer de
todas as Igrejas autocéfalas que surgiram depois; a Ortodoxia como um todo tem
uma dívida muito grande com este pilar da fé ortodoxa.
Na verdade, se pode afirmar que as vicissitudes da
vida de São Genádio Escolário testemunham de maneira grandiosa que os mistérios
da Divina Providência são insondáveis e inescrutáveis. A personalidade mais
trágica de seu tempo, como São Genádio Escolário fora chamado, e os lamentos
que envolvem sua vida, foram apenas o obrar divino para que de suas vicissitudes
brotasse o bom perfume de Cristo, o qual serviu e continuar a servir para
honrar ao próprio Cristo e para a edificação da Santa Igreja.
Assim, tenho por certo que após fornecer este breve
panorama da vida e do legado de São Genádio Escolário, deve ficar mais do que
clarividente as razões do porque o tenho como meu santo de devoção; na verdade,
ao fazer este breve panorama, forneço de maneira direta e indireta as razões do
porque São Genádio Escolário deve ser digno de estima, e porque deve ser
recuperado do ostracismo e voltar a ser valorizado por toda a cristandade
grega.
§ 3
Além da devoção a São Genádio Escolário, também nutro
grande devoção por todos os Padres da Igreja, especialmente pelos Padres
Capadócios, e tenho grandíssima admiração por Orígenes apesar da desdita
inominável que caiu sobre sua obra; além disso, também evoco minha devoção e
estima pelos pilares da Ortodoxia pós-patrística, tais como São Fócio, São
Gregório Palamas e São Marcos de Éfeso.
E além destes, os quais são mais do que evidentes em
parte do que escrevo, tenho devoção e estima por São Porfírio de Kavsokalyvia,
o evangelizador de prostitutas, por São Dumitru Stăniloae, o sábio interprete da Filocalia,
e por São Gabriel Urgebadze, o louco por Cristo. Esses são
os principais santos aos quais tenho uma devoção mais atenta e específica;
embora, assim como todo cristão fiel, tenha estima, admiração e devoção por
todos os santos.
Ademais, também considero por bem evocar minha estima
por Alberto Magno e Tomás de Aquino, escolásticos latinos; embora se tenha
muitas ressalvas quanto ao escolasticismo na Ortodoxia, nutro simpatia e estima
por Alberto e Tomás por tudo de bom que fizeram em relação a intelectualidade,
sem deixar de lado a verdadeira piedade; foram gigantes intelectuais, mas
também foram mestres da espiritualidade.
Alberto reformou a filosofia e a ciência, e Tomás
elevou a filosofia; além do que, naquilo que não estão especificamente
explicando a latinidade são muito úteis a todos os cristãos, especialmente nos
comentários bíblicos que escreveram; e digo mais, os comentários bíblicos de
Alberto e de Tomás são verdadeiras pérolas de grande valor. As glosas
albertianas e tomasianas aos livros da Sagrada Escritura, num geral, são
utilíssimas.
Também nutro admiração e estima pelos intelectuais
árabes da era de ouro do islamismo, tais como Alfarábi, Avicena, Averróis,
entre outros; e em relação a filosofia na modernidade, tenho profunda estima e
admiração por Nietzsche, Husserl e Lavelle: tenho grande admiração e estima por
Nietzsche, sempre fico estupefato com a profundidade de Husserl, e sempre me
surpreendo com a vitalidade intelectual de Lavelle.
Aliás, poderia mencionar aqui Platão, Aristóteles,
Cícero, Boécio, etc., mas outros escritos já são por si suficientes para
mostrar minha estima, predileção e grandíssima admiração por estes e num geral
por todos os autores clássicos. E, como é óbvio, se tem a influência salutar
destes e de outros autores em minha obra intelectual.
Em suma, e embora não seja sincretista, posso afirmar
que procuro extrair o que de cada um destes autores tem de melhor, sem deixar
de ter a minha própria contribuição ao saber; ou dito em outros termos, ao ler
estes e outros autores alcanço muitos saberes, e a partir disso procuro
desenvolver outros saberes; deste modo, com sinceridade posso fazer minha a sentença
de C. S. Lewis: “Ao
ler bons livros, tornei-me mil homens sem deixar de ser eu
mesmo”.
***
Ora, tendo feito estas ponderações gerais, subdivididas
em três parágrafos, creio que responderá de maneira mais adequada a indagação
feita sobre meu santo de devoção; embora tenha feito apenas um panorama geral
da vida e do legado de São Genádio Escolário, o que foi dito é para o presente
propósito suficiente para aclarar quem foi este pilar da ortodoxia; no mesmo
interim, também evoquei alguns outros santos que tenho devoção, e alguns
filósofos que tenho estima; mas isso já está claro em outros escritos.
Portanto, ao declarar meu santo de devoção, que tenha
ficado bem explicado que a vida cristã se desenvolve em contato com os santos
de todas as épocas, pois a comunhão dos santos não está sujeita a épocas
temporais, é uma comunhão eterna; por isso, os cristãos verdadeiros também
veneram os ícones dos santos dos tempos de outrora, porque suas vidas e
testemunho continuam a falar em tempos atuais e continuarão a falar até a
consumação dos séculos.
Bendito seja Deus por outorgar à Santa Igreja Ortodoxa
santos dignos de testemunharem com suas vidas o Santo Evangelho.
θεῷ χάρις!
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