02/11/2025

Meu Santo de Devoção

§ 1

A devoção aos santos consiste parte preponderante da fé; a honra devida aos fiéis do passado, que iluminados pelo Espírito Santo deram o testemunho da fé verdadeira, sempre é um fanal de bênçãos para os fiéis de todas as épocas; àquilo que se comemora no primeiro domingo da Quaresma, o Domingo da Ortodoxia ou o Triunfo da Ortodoxia, é justamente uma afirmação eclesial da importância da vida dos santos; do mesmo modo como é costume das pessoas de bem e das boas famílias a preservação da história pessoal e/ou familiar através de fotos, álbuns, etc., é costume inalterável da piedade cristã estar em concórdia com o testemunho dos santos, os quais são rememorados e honrados através da veneração de seus ícones.

Pois, a vida dos santos é o que ensina os fiéis, sob o testemunho da Santa Igreja e sob a autoridade da Sagrada Escritura, a como viver de maneira santa neste mundo; por isso, São João o Teólogo afirmara: "Bem-aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem dos seus trabalhos, e as suas obras os sigam" (Ap 14.13); ora, as obras dos santos são seu testemunho, pois são boas obras que glorificam ao Pai Celestial (cf. Mt 5.16); portanto, a devoção aos santos deve ser parte preponderante da piedade cristã, não para adorá-los, decerto, mas para com eles aprender a viver de modo a agradar a Deus e a glorificá-Lo (cf. 1Co 11.1).

Ora, tendo isto em vista, decidi, de boa vontade e sem a preocupação em escrever um tratado extenso, responder a indagação sobre qual é o meu santo de devoção; evidentemente, a piedade cristã se coaduna com a vida de todos os santos em todas as épocas; mas, existem alguns santos que se tornam mais próximos, quase como amigos, seja por seus dons e virtudes, seja por suas obras, ou outra razão, pois nos engendram admiração, e a partir do conhecimento sobre suas vidas acabam por nos atinar alguma proximidade vivencial; e é justamente sobre estes santos mais próximos, tidos por muitos como principais santos de devoção, que escrevo neste breve escrito.

§ 2

Em suma, e de bom grado, informo que meu santo de devoção principal é São Gennadius Scholarius (ou aportuguesado, São Genádio Escolário); e busco seguir o exemplo de vida, tanto em relação a fé quanto em relação a intelectualidade, deste que fora um inigualável intelectual bizantino bem como fora um lendário patriarca, um dos maiores patriarcas da sé de Constantinopla, verdadeiramente um pilar da ortodoxia; na verdade, o mais importante pilar da ortodoxia após a Queda de Constantinopla.

A vida de Genádio Escolário, ou Jorge Curtésio, é um daqueles mistérios da Divina Providência em relação a utilização de vasos escolhidos para a edificação da Santa Igreja; formado para servir em funções seculares ou civis, se tornou um dos mais notáveis juristas bizantinos, chegando a ocupar o cargo de juiz-geral do Império Bizantino; além disso, ao assomar sua fé ao conhecimento enciclopédico, combateu muitos sofismas e erros, tornando-se um filósofo escolástico e um polemista de notável reconhecimento; por esta razão Jorge Curtésio foi intitulado Escolário (o mesmo que Escolástico na cultura latina).

E em meio aos grandes desafios de sua época pode desenvolver notáveis reflexões em milhares de obras, das quais a maior parte infelizmente foram perdidas; Jorge Curtésio permaneceu um gigante intelectual em meio a completa sujeição do saber a propósitos desvirtuosos e anti-intelectuais que dominavam toda a cristandade na baixa escolástica.

Pois, as últimas décadas do Império Bizantino foram terríveis, tanto do ponto de vista intelectual quanto do ponto de vista espiritual, o que fez com que Jorge Escolário decidisse sair da vida pública e se dedicasse a ajudar os cristãos, a apoiar São Marcos de Éfeso e a servir como intelectual da corte imperial.

E, dentre as características mais notáveis de Jorge Escolário, estão sua notória capacidade e reconhecimento como jurista, bem como sua trajetória como filósofo escolástico e polemista; e estas duas últimas se concatenam; pois, em meio a cristandade grega se ter um filósofo escolástico, profundo admirador e conhecedor de Tomás de Aquino, e um apreciador do tomismo - na verdade, um tomista bizantino! -, se demonstra que Jorge Escolário era diferente de tudo aquilo que era comum em seu tempo e num todo na tradição grega-bizantina; e ao ter um domínio pleno da teologia, tanto latina quanto grega, e da filosofia, Jorge Escolário se tornou no mais importante polemista bizantino, tendo disputado com vários intelectuais e saindo vencedor de todas as disputas as quais travou, mesmo contra notáveis intelectuais, dando a ele o epiteto, mais do que justo, de polemista invencível.

Por esta capacidade e conhecimento, ele foi convocado pelo imperador bizantino para ser parte de uma comissão teológica para acompanhar o Concílio de Florença; participou ativamente deste Concílio, e até chegou a apoiar a causa unionista (união com Roma); no entanto, quando as propostas florentinas foram contra a fé ortodoxa, São Marcos de Éfeso abandonou o Concílio e rejeitou a união florentina, e Jorge Curtésio o acompanhou, tornando-se assim discípulo mais próximo deste santo que foi último pilar da fé ortodoxa antes da Queda de Constantinopla; em São Marcos de Éfeso, Jorge Curtésio encontrou um verdadeiro pai espiritual.

Entretanto, mesmo que tenha vivido em toda esta ebulição e em meio aos tumultos dos anos finais do Império Bizantino, Jorge Curtésio decidiu seguir a vocação monástica como leigo, a fim de dedicar-se a oração e ao estudo, tomando o nome monástico de Genádio; Jorge Curtésio Escolário foi ao mosteiro não para virar sacerdote ou para ocupar posição na hierarquia, mas poder continuar a desenvolver sua obra como intelectual ao mesmo tempo em que vivia como monge, bem como para ajudar com seu conhecimento a causa anti-unionista (contra a união com Roma); no entanto, os desígnios da Divina Providência apenas estavam dando os preparos finais para algo totalmente inesperado, mas que marcou para sempre a história da Santa Igreja Ortodoxa.

Nas semanas finais do Império Bizantino, com o Império Otomano já dando a entender seu propósito inalterável de conquistar Constantinopla, o próprio imperador árabe, o sultão Mehmed II, mandou contatar Genádio para que caso Constantinopla caísse, e a população grega de bom grado o obedecesse, ele deixaria incólume a liberdade religiosa para a Igreja Ortodoxa; e após a Queda de Constantinopla, o próprio Mehmed II, tendo visto a confusão terrível no meio da cristandade grega, decidiu nomear Genádio como Patriarca de Constantinopla, o que foi amplamente aceito pela população grega, pelos otomanos, e pelos hierarcas da Igreja (embora com grande relutância por parte do próprio Genádio); e assim, ascendeu Genádio ao trono patriarcal alguns meses após a Queda de Constantinopla, tornando-se assim em Genádio II, um leigo que ascendeu diretamente a sé de Constantinopla, recebendo das mãos do próprio Mehmed II o pálio patriarcal.

E é realmente um mistério da divina providência, pois Genádio Escolário conquistara a estima e o respeito intelectual do mundo árabe justamente por ser um aristotélico, algo pouco comum em meio a cristandade grega, quase era que totalmente platônica e/ou neoplatônica; e ao ascender ao trono patriarcal, procurou corrigir os excessos do neoplatonismo na Ortodoxia, infelizmente sem muito êxito.

Mas, o primeiro patriarca após a Queda de Constantinopla é um aristotélico, e é o instrumento utilizado por Deus para reordenar a Ortodoxia depois da bagunça e das práticas apostasiosas que tomaram conta dos anos finais do Império Bizantino; em meio a um dos piores momentos para a Igreja Ortodoxa, Deus levantou um intelectual leigo para ser patriarca, e um patriarca aristotélico-tomista.

E, mesmo que Genádio tenha renunciado poucos anos depois de ser nomeado, e tenha retornado por pouco tempo cerca de mais duas vezes a ser patriarca, não se pode menosprezar seu legado incomparável para a cristandade grega; mesmo que tenha sido patriarca por pouco tempo, seu legado é duradouro, e mais extenso do que qualquer outro Patriarca dos tempos modernos.

E o imenso legado de Genádio Escolário foi justamente ser um homem com a vida em ordem, como é inerente aos santos, tanto moralmente quanto intelectualmente, e isto em meio a uma época de desordens, confusões e incertezas; e a vida ordenada deste homem santo, trouxe ordem e ordenação para toda a Ortodoxia; a vida ordenada de Genádio Escolário trouxe vivacidade espiritual, disciplina e organização para uma cristandade que vinha sendo assolada pela decadência espiritual e pela imoralidade.  

Por isso, se a Igreja Ortodoxa continuou sua missão após o domínio otomano, deve em primeiro lugar agradecer a Deus; mas, depois deve agradecer a Genádio Escolário, que por ser um homem virtuoso e santo, pelo exemplo de sua vida pode assegurar a continuidade da instituição patriarcal, bem como preservou incólume a fé ortodoxa; aliás, isso faz pensar com certo pesar que em muito do que Genádio Escolário quis fazer não obteve auxílio e foi em parte rejeitado, e legado ao ostracismo.

Por isso, a vida de Genádio Escolário tem muito a ensinar; e seus escritos, dos quais a maior parte infelizmente se perdeu após o domínio otomano, testemunham de uma mente grandiloquente e de sua notável capacidade intelectual; no entanto, dos escritos que foram preservados, se tem o testemunho não somente do notável intelectual, mas também testemunham de um homem com uma fé viva e ardente; Genádio não somente é escolástico, mas também é pai espiritual; o pai espiritual que iluminou a cristandade grega em sua pior turbulência.

Genádio II se tornou santo, e seu legado intelectual é imenso, conquanto tenha sido completamente esquecido; mas além disso, o legado de São Genádio Escolário também é ter dado novamente força e ânimo para a já cansada cristandade grega, e dos frutos de sua vida e testemunho, pode trazer novo vigor e frescor para a Santa Igreja Ortodoxa, vigor esse proveniente de uma espiritualidade profunda.

E aproveita-se o ensejo para mencionar um fato curioso e pouco valorado; a autocefalia da Igreja Ortodoxa Russa, que ao longo dos séculos se tornou numa das mais belas expressões da fé ortodoxa (embora em tempos atuais esteja em decadência pela sujeição a preceitos ideológicos), só se efetivou e teve os efeitos gloriosos que teve graças ao legado de São Genádio Escolário como Patriarca de Constantinopla; e o mesmo se pode dizer de todas as Igrejas autocéfalas que surgiram depois; a Ortodoxia como um todo tem uma dívida muito grande com este pilar da fé ortodoxa.

Na verdade, se pode afirmar que as vicissitudes da vida de São Genádio Escolário testemunham de maneira grandiosa que os mistérios da Divina Providência são insondáveis e inescrutáveis. A personalidade mais trágica de seu tempo, como São Genádio Escolário fora chamado, e os lamentos que envolvem sua vida, foram apenas o obrar divino para que de suas vicissitudes brotasse o bom perfume de Cristo, o qual serviu e continuar a servir para honrar ao próprio Cristo e para a edificação da Santa Igreja.

Assim, tenho por certo que após fornecer este breve panorama da vida e do legado de São Genádio Escolário, deve ficar mais do que clarividente as razões do porque o tenho como meu santo de devoção; na verdade, ao fazer este breve panorama, forneço de maneira direta e indireta as razões do porque São Genádio Escolário deve ser digno de estima, e porque deve ser recuperado do ostracismo e voltar a ser valorizado por toda a cristandade grega.

§ 3

Além da devoção a São Genádio Escolário, também nutro grande devoção por todos os Padres da Igreja, especialmente pelos Padres Capadócios, e tenho grandíssima admiração por Orígenes apesar da desdita inominável que caiu sobre sua obra; além disso, também evoco minha devoção e estima pelos pilares da Ortodoxia pós-patrística, tais como São Fócio, São Gregório Palamas e São Marcos de Éfeso.

E além destes, os quais são mais do que evidentes em parte do que escrevo, tenho devoção e estima por São Porfírio de Kavsokalyvia, o evangelizador de prostitutas, por São Dumitru Stăniloae, o sábio interprete da Filocalia, e por São Gabriel Urgebadze, o louco por Cristo. Esses são os principais santos aos quais tenho uma devoção mais atenta e específica; embora, assim como todo cristão fiel, tenha estima, admiração e devoção por todos os santos.

Ademais, também considero por bem evocar minha estima por Alberto Magno e Tomás de Aquino, escolásticos latinos; embora se tenha muitas ressalvas quanto ao escolasticismo na Ortodoxia, nutro simpatia e estima por Alberto e Tomás por tudo de bom que fizeram em relação a intelectualidade, sem deixar de lado a verdadeira piedade; foram gigantes intelectuais, mas também foram mestres da espiritualidade.

Alberto reformou a filosofia e a ciência, e Tomás elevou a filosofia; além do que, naquilo que não estão especificamente explicando a latinidade são muito úteis a todos os cristãos, especialmente nos comentários bíblicos que escreveram; e digo mais, os comentários bíblicos de Alberto e de Tomás são verdadeiras pérolas de grande valor. As glosas albertianas e tomasianas aos livros da Sagrada Escritura, num geral, são utilíssimas.

Também nutro admiração e estima pelos intelectuais árabes da era de ouro do islamismo, tais como Alfarábi, Avicena, Averróis, entre outros; e em relação a filosofia na modernidade, tenho profunda estima e admiração por Nietzsche, Husserl e Lavelle: tenho grande admiração e estima por Nietzsche, sempre fico estupefato com a profundidade de Husserl, e sempre me surpreendo com a vitalidade intelectual de Lavelle.

Aliás, poderia mencionar aqui Platão, Aristóteles, Cícero, Boécio, etc., mas outros escritos já são por si suficientes para mostrar minha estima, predileção e grandíssima admiração por estes e num geral por todos os autores clássicos. E, como é óbvio, se tem a influência salutar destes e de outros autores em minha obra intelectual.

Em suma, e embora não seja sincretista, posso afirmar que procuro extrair o que de cada um destes autores tem de melhor, sem deixar de ter a minha própria contribuição ao saber; ou dito em outros termos, ao ler estes e outros autores alcanço muitos saberes, e a partir disso procuro desenvolver outros saberes; deste modo, com sinceridade posso fazer minha a sentença de C. S. Lewis: “Ao ler bons livros, tornei-me mil homens sem deixar de ser eu mesmo”.

***

Ora, tendo feito estas ponderações gerais, subdivididas em três parágrafos, creio que responderá de maneira mais adequada a indagação feita sobre meu santo de devoção; embora tenha feito apenas um panorama geral da vida e do legado de São Genádio Escolário, o que foi dito é para o presente propósito suficiente para aclarar quem foi este pilar da ortodoxia; no mesmo interim, também evoquei alguns outros santos que tenho devoção, e alguns filósofos que tenho estima; mas isso já está claro em outros escritos. 

Portanto, ao declarar meu santo de devoção, que tenha ficado bem explicado que a vida cristã se desenvolve em contato com os santos de todas as épocas, pois a comunhão dos santos não está sujeita a épocas temporais, é uma comunhão eterna; por isso, os cristãos verdadeiros também veneram os ícones dos santos dos tempos de outrora, porque suas vidas e testemunho continuam a falar em tempos atuais e continuarão a falar até a consumação dos séculos. 

Bendito seja Deus por outorgar à Santa Igreja Ortodoxa santos dignos de testemunharem com suas vidas o Santo Evangelho. 

θεῷ χάρις


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