I
Ao novamente ver algumas críticas imbecis sobre a
filosofia de Nietzsche, agora quanto ao que Nietzsche falara sobre o
cristianismo, decidi escrever um breve artigo para esclarecer de maneira justa
a posição de Nietzsche sobre o cristianismo; pois, ao se tomar erroneamente,
como todos fizeram e fazem, o livro “O Anticristo” (1888), sem entender
o seu real propósito na antítese evocada, que apesar da crítica aguda ao
cristianismo não é evidência de anticristianismo, antes é crítica ao falso
cristianismo - e nisto Nietzsche está totalmente certo.
Pois, qualquer crítica, aguda ou não, pode vir em
teses ou em antíteses; se for em teses se contrapõe totalmente e absolutamente
ao objeto criticado, como por exemplo, as críticas de Kant; e se for em
antíteses se contrapõe aos erros e desvios do objeto criticado a partir de
teses já formuladas que podem ser ocultas ou não - e isto, especificamente, é o
que Nietzsche fizera.
Assim, se tem a filosofia crítica; ou da crítica
absoluta, como Kant e Hegel, ou da crítica que busca esfarelar os falsos
ídolos, como Nietzsche fizera. Deste modo, o problema não está na crítica em
si, mas no modo e no propósito com que se critica, bem como no método utilizado
para a crítica. Portanto, ao se criticar um filósofo crítico, antes de tudo é
bom entender tudo quanto concerne a tal critica, o que na prática ninguém busca
fazer (principalmente em se tratando de Nietzsche).
E isto se exemplifica do seguinte modo: Kant criticou
tudo com ceticismo absoluto, e é valorado como cristão e grande filósofo; Hegel
criticou tudo com o propósito de se tornar um “deus” e subjugar tudo a si, e é
tido como um luterano totalmente ortodoxo; aí vem Nietzsche, critica erros
abruptos e terríveis com notória genialidade, e é chamado de ateu e anti-homem;
logo, etc.
Enfim, se vai brevemente explicar o que Nietzsche
entendia do cristianismo, para pelo menos livrar da filosofia de Nietzsche a
sombra de anticristianismo ateísta que paira sobre a mesma, e para mostrar que
se houve alguém na filosofia que compreendeu o cristianismo, esse alguém fora
Nietzsche.
II
A vida de Nietzsche, principalmente sua formação moral
e intelectual, foi permeada pelo cristianismo; a experiência cristã de
Nietzsche foi cultivada naquilo que de melhor o protestantismo já teve; embora
em meados do séc. XIX, o protestantismo já tivesse sido dominado primeiramente
pelo iluminismo, e depois totalmente pelo hegelianismo, a família de Nietzsche,
de uma longa linhagem de pastores luteranos, ainda mantinha a devoção pessoal
pietista e o culto ao estudo da época dos escolásticos luteranos; Nietzsche
aprendeu sobre o cristianismo neste ambiente; e, diga-se de passagem, que se
existe algo respeitável no protestantismo no sentido intelectual é justamente a
escolástica luterana (ou ortodoxia luterana).
Na verdade, Nietzsche, que pensava em seguir a
carreira pastoral, foi ensinado na teologia luterana desde criança - naquilo
que de melhor o luteranismo já teve; Nietzsche aprendeu muito mais e muito
melhor sobre o cristianismo do que quase todos os teólogos protestantes de
língua alemã do séc. XIX, apesar de ter seguido a carreira acadêmica na
filologia, e apesar de ter se “distanciado” do cristianismo em sua vida adulta;
pois, a maior parte destes teólogos se desenvolveu em meio ao liberalismo
teológico, enquanto Nietzsche foi ensinado entre o pietismo tardio e o cultivo
da erudição dos teólogos-filósofos da ortodoxia luterana.
Aliás, quanto a isso, se pode mencionar um aspecto
curioso; era prática comum do pietismo, desde Spener (o pai do pietismo
luterano), e que depois se assomou no moravianismo (através do conde
Zinzendorf), que a família pastoral dos pietistas, entre filhos, netos,
bisnetos, primos, etc., se cantasse todo dia um hino em honra a Cristo quando
estivessem juntos sentados a mesa (geralmente na parte da noite); com quase
absoluta certeza, embora não se tenha como provar por documentos, Nietzsche
fazia isso quando criança; pois, era parte de uma família pastoral luterana, a
qual mesmo no séc. XIX ainda mantinha este costume.
Então, Nietzsche aprendeu o que de melhor havia em
relação a espiritualidade protestante, embora com excessos, e aprendeu o que
havia de melhor em relação a intelectualidade protestante (e realmente aprendeu
algo de valor intelectual); e tanto em relação a piedade quanto em relação a
intelectualidade, entre o que Nietzsche aprendeu e entre o que a abstrata
cristandade da segunda metade do séc. XIX praticava e vivia, se tem um abismo
continental, mesmo em se tratando do protestantismo.
No protestantismo que Nietzsche apreendeu, pelo menos
existia caráter, honra, racionalidade e bom senso; já protestantismo que ele
viu em sua juventude e vida adulta era expressão de falta de caráter, desonra,
irracionalidade e total falta de bom senso. No cristianismo que Nietzsche viu
já adulto não havia mais nada de fé cristã; aliás, este cristianismo era puro
hegelianismo; por isso, Nietzsche martelou com “veemência” o fétido
cristianismo hegeliano.
Ora, se se estudar com atenção, se compreenderá que o
cristianismo que Nietzsche aprendeu até poderia, com cautela, ser respeitado
como “cristianismo”, mas o que cristianismo que ele viu na cristandade de
língua alemã de sua época (a maior parte protestante, e uma pequena parcela de
católicos), era totalmente contrário a verdadeira fé cristã; o cristianismo que
Nietzsche viu e observou quando adulto era um cristianismo totalmente corrompido,
tanto no sentido moral quanto no sentido intelectual.
Por isso, as críticas ferrenhas de Nietzsche contra
este tipo de cristianismo estão totalmente corretas; aliás, a críticas de
Nietzsche foram um pouco “proféticas”, pois os filhos da geração que ele
duramente criticou acabaram por adorar Hitler como uma nova “revelação da
história”, como alguém superior a Jesus Cristo; ora, os erros de uma
geração são filhos dos erros da geração anterior; etc.
Portanto, Nietzsche estava certo no que criticou da
cristandade de sua época e de seu contexto; trinta anos após sua morte, suas
palavras se mostraram totalmente corretas, pois a formação dos “cristãos
alemães” (deutsche
christen) comprova cabalmente a veracidade e a verdade da
crítica abrupta de Nietzsche.
III
Ora, em relação a crítica de Nietzsche ao
cristianismo, a mais contundente e aguda está em seu livro “O Anticristo”
(1888), embora se tenham observações factuais em toda a sua obra; no próprio
título já dá para perceber isso; todavia, este livro, apesar de curto, na
verdade um ensaio, não é tão simples - aliás, é um livro dificílimo; as
críticas são abruptas, veementes e diretas, quase no estilo do profetismo
veterotestamentário.
No entanto, entender o real propósito destas críticas
e o fundamento das mesmas, não é algo tão simples; pois, este livro não somente
é expressão de uma mente genial, com profunda capacidade de análise, mas é como
que um desabafo de um homem virtuoso e sincero ao ver um cristianismo dominado
pelo hegelianismo.
E este é um princípio fundamental para entender a
crítica abrupta de Nietzsche ao cristianismo; ele não critica o cristianismo
simplesmente por criticar; na verdade, o propósito de Nietzsche é esfarelar os
ídolos do sistema da ciência de Hegel, mesmo os que se impregnaram na religião;
e como o protestantismo do séc. XIX (e como também o protestantismo dos sécs.
XX e XXI), é totalmente permeado pelo hegelianismo, Nietzsche, com total razão,
se vociferou contra este tipo de cristianismo.
Por isso, a crítica de Nietzsche ao cristianismo não
somente se deve aos desvios morais e intelectuais da cristandade de língua
alemã do séc. XIX, mas principalmente por que a cristandade de língua alemã de
sua época era totalmente hegeliana (aliás, o liberalismo teológico protestante,
na verdade, é cristianismo hegeliano). A crítica de Nietzsche ao cristianismo é
a crítica ao cristianismo hegeliano, ao cristianismo que, mesmo que de maneira
inconsciente, tem Hegel como “deus” e não Cristo.
Assim sendo, as teses evocadas em “O Anticristo”,
na verdade são antíteses; antíteses postas a partir de teses; embora, neste
escrito, sejam teses ocultas (tal como o sujeito oculto na gramática);
Nietzsche apresenta teses (antíteses) muito bem concatenadas que esfarelam o
cristianismo hegeliano; as antíteses de Nietzsche são marteladas cirúrgicas
contra as teses do cristianismo hegeliano.
Ora, estas teses (antíteses), são postas tendo em
vista dois aspectos: primeiro, a contraposição a uma tese correta através de
uma antítese errada, para através do erro mostrar a veracidade da tese (oculta)
criticada. Segundo, a crítica abrupta contra alguma tese posta pelo
cristianismo hegeliano, que tem aparência de cristianismo, mas cristianismo não
é; a maior parte destas teses (antíteses), é posta contra preceitos hegelianos
que se impregnaram no cristianismo como se fossem parte da fé cristã (através da
impregnação passiva de hábitos).
Aliás, neste interim, surge uma indagação: por que
Nietzsche se utilizou do método tese-antítese e não o método de
tese-antítese-síntese? Ao que parece, dado ao estilo da crítica nietzschiana, a
mesma se enquadraria melhor no método tese-antítese-síntese; pois, antíteses
evocadas com teses ocultas quase que “reclamam” uma síntese.
Ora, a resposta a esta questão é bem simples:
Nietzsche se utilizou do método tese-antítese, porque se fosse colocar uma
síntese entre a tese oculta e a antítese evocada, seguiria o princípio da
lógica hegeliana; Nietzsche procurou evitar justamente isso, já que lutou
contra a parafernalia dialética de Hegel, o que lhe custou a própria saúde.
Assim, Nietzsche fez antítese em relação a teses
ocultas; e conquanto isso gere muito mais dificuldades para a compreensão, e
tenha feito que ele tenha sido totalmente incompreendido, pelo menos não o
sucumbiu - nem ele nem os seus leitores -, nos círculos mágicos da lógica
hegeliana.
As antíteses de Nietzsche não permitem sínteses
(graças a Deus!): ou estão certas ou estão erradas; aliás, isso demonstra que
Nietzsche está em total conformidade com a lógica aristotélica, com as leis do
pensamento correto.
Portanto, se constata que esses dois aspectos estão
entrelaçados e interligados em todo esse ensaio de Nietzsche; compreender o que
concerne a estes aspectos é compreender o núcleo da crítica nietzschiana ao
cristianismo. Nietzsche, que é chamado um dos “cavaleiros do Apocalipse”,
lutou em sua obra contra o espírito apocalíptico do fim dos tempos (o espírito
dialético).
E estas são apenas algumas observações sobre no que
concerne a crítica de Nietzsche ao cristianismo.
Ademais, o ensaio “O Anticristo”, é um ensaio
de uma crítica do cristianismo; observe-se bem: uma crítica do cristianismo, e
não uma crítica ao cristianismo (a tradução na língua de Camões capta bem o
sentido pretendido por Nietzsche); e não somente uma crítica, mas como consta
nos manuscritos de Nietzsche, uma maldição sobre o cristianismo;
especificamente, uma maldição contra o cristianismo que foi impregnado pelos
princípios hegelianos, tanto em suas formas interiores quanto em suas formas
exteriores.
Na verdade, o que Nietzsche pretendia com este ensaio,
e outros escritos da filosofia crítica, era uma reavaliação; uma reavaliação
dos valores reais, dos valores que se instituem a partir das verdades eternas, os
quais haviam sido transmogrifados pelo sistema da ciência; a reavaliação dos
valores proposta por Nietzsche, também tem inserida uma reavaliação do
cristianismo, uma reavaliação do cristianismo para tentar livrá-lo de Hegel. Neste
sentido, e para assombro e estupefação de todos, Nietzsche fez mais para o bem do
cristianismo do que quase todos os teólogos posteriores.
Pois, o cristianismo que Nietzsche viu e o
cristianismo que ele analisou, era um cristianismo dominado por Hegel e
inserido nos círculos cabalísticos do sistema da ciência (ou dito em outros
termos, era um cristianismo dominado pela feitiçaria, pois cristianismo
hegeliano é cristianismo mágico).
E estas palavras são apenas uma sumula sobre em que
consiste a crítica de Nietzsche ao cristianismo. E, certamente, isso será uma
surpresa para muitos, posto que ninguém que fala de Nietzsche procurou
compreender a natureza de sua crítica ao cristianismo.
Por isso, chega-se a um veredito inicial: no que
Nietzsche crítica do cristianismo hegeliano (e há de se entender isso
corretamente), ele está totalmente correto; quanto a isso, mesmo em relação a
mais abrupta crítica, não há contra o que argumentar.
Assim sendo, a crítica de Nietzsche ao cristianismo
nunca perderá sua atualidade e vitalidade enquanto a cristandade
(principalmente o protestantismo) for dominada pelo sistema da ciência de
Hegel. Nietzsche, portanto, é incontornável.
***
Ora, em suma, isto é o que concerne a compreensão sobre a relação entre Nietzsche e o cristianismo; mais propriamente para se entender as razões e as raízes da crítica veemente e abrupta de Nietzsche contra o cristianismo; embora não se dê para elucubrar sobre este assunto com simplismos, entender estes aspectos que foram evocados dá um norte sobre como este assunto deve ser elucubrado e investigado; se isso for feito de maneira correta, e sendo justo e honesto para com Nietzsche, se compreenderá que o anticristianismo de Nietzsche não é fruto de um ateísmo doentio, como muitos propugnaram, mas sim fruto de uma boa consciência do verdadeiro cristianismo.
θεῷ χάρις!
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