12/11/2025

Nietzsche e o Cristianismo

I

 

Ao novamente ver algumas críticas imbecis sobre a filosofia de Nietzsche, agora quanto ao que Nietzsche falara sobre o cristianismo, decidi escrever um breve artigo para esclarecer de maneira justa a posição de Nietzsche sobre o cristianismo; pois, ao se tomar erroneamente, como todos fizeram e fazem, o livro “O Anticristo” (1888), sem entender o seu real propósito na antítese evocada, que apesar da crítica aguda ao cristianismo não é evidência de anticristianismo, antes é crítica ao falso cristianismo - e nisto Nietzsche está totalmente certo.

Pois, qualquer crítica, aguda ou não, pode vir em teses ou em antíteses; se for em teses se contrapõe totalmente e absolutamente ao objeto criticado, como por exemplo, as críticas de Kant; e se for em antíteses se contrapõe aos erros e desvios do objeto criticado a partir de teses já formuladas que podem ser ocultas ou não - e isto, especificamente, é o que Nietzsche fizera.

Assim, se tem a filosofia crítica; ou da crítica absoluta, como Kant e Hegel, ou da crítica que busca esfarelar os falsos ídolos, como Nietzsche fizera. Deste modo, o problema não está na crítica em si, mas no modo e no propósito com que se critica, bem como no método utilizado para a crítica. Portanto, ao se criticar um filósofo crítico, antes de tudo é bom entender tudo quanto concerne a tal critica, o que na prática ninguém busca fazer (principalmente em se tratando de Nietzsche).

E isto se exemplifica do seguinte modo: Kant criticou tudo com ceticismo absoluto, e é valorado como cristão e grande filósofo; Hegel criticou tudo com o propósito de se tornar um “deus” e subjugar tudo a si, e é tido como um luterano totalmente ortodoxo; aí vem Nietzsche, critica erros abruptos e terríveis com notória genialidade, e é chamado de ateu e anti-homem; logo, etc.

Enfim, se vai brevemente explicar o que Nietzsche entendia do cristianismo, para pelo menos livrar da filosofia de Nietzsche a sombra de anticristianismo ateísta que paira sobre a mesma, e para mostrar que se houve alguém na filosofia que compreendeu o cristianismo, esse alguém fora Nietzsche.

 

II

 

A vida de Nietzsche, principalmente sua formação moral e intelectual, foi permeada pelo cristianismo; a experiência cristã de Nietzsche foi cultivada naquilo que de melhor o protestantismo já teve; embora em meados do séc. XIX, o protestantismo já tivesse sido dominado primeiramente pelo iluminismo, e depois totalmente pelo hegelianismo, a família de Nietzsche, de uma longa linhagem de pastores luteranos, ainda mantinha a devoção pessoal pietista e o culto ao estudo da época dos escolásticos luteranos; Nietzsche aprendeu sobre o cristianismo neste ambiente; e, diga-se de passagem, que se existe algo respeitável no protestantismo no sentido intelectual é justamente a escolástica luterana (ou ortodoxia luterana).

Na verdade, Nietzsche, que pensava em seguir a carreira pastoral, foi ensinado na teologia luterana desde criança - naquilo que de melhor o luteranismo já teve; Nietzsche aprendeu muito mais e muito melhor sobre o cristianismo do que quase todos os teólogos protestantes de língua alemã do séc. XIX, apesar de ter seguido a carreira acadêmica na filologia, e apesar de ter se “distanciado” do cristianismo em sua vida adulta; pois, a maior parte destes teólogos se desenvolveu em meio ao liberalismo teológico, enquanto Nietzsche foi ensinado entre o pietismo tardio e o cultivo da erudição dos teólogos-filósofos da ortodoxia luterana.

Aliás, quanto a isso, se pode mencionar um aspecto curioso; era prática comum do pietismo, desde Spener (o pai do pietismo luterano), e que depois se assomou no moravianismo (através do conde Zinzendorf), que a família pastoral dos pietistas, entre filhos, netos, bisnetos, primos, etc., se cantasse todo dia um hino em honra a Cristo quando estivessem juntos sentados a mesa (geralmente na parte da noite); com quase absoluta certeza, embora não se tenha como provar por documentos, Nietzsche fazia isso quando criança; pois, era parte de uma família pastoral luterana, a qual mesmo no séc. XIX ainda mantinha este costume.

Então, Nietzsche aprendeu o que de melhor havia em relação a espiritualidade protestante, embora com excessos, e aprendeu o que havia de melhor em relação a intelectualidade protestante (e realmente aprendeu algo de valor intelectual); e tanto em relação a piedade quanto em relação a intelectualidade, entre o que Nietzsche aprendeu e entre o que a abstrata cristandade da segunda metade do séc. XIX praticava e vivia, se tem um abismo continental, mesmo em se tratando do protestantismo.

No protestantismo que Nietzsche apreendeu, pelo menos existia caráter, honra, racionalidade e bom senso; já protestantismo que ele viu em sua juventude e vida adulta era expressão de falta de caráter, desonra, irracionalidade e total falta de bom senso. No cristianismo que Nietzsche viu já adulto não havia mais nada de fé cristã; aliás, este cristianismo era puro hegelianismo; por isso, Nietzsche martelou com “veemência” o fétido cristianismo hegeliano.

Ora, se se estudar com atenção, se compreenderá que o cristianismo que Nietzsche aprendeu até poderia, com cautela, ser respeitado como “cristianismo”, mas o que cristianismo que ele viu na cristandade de língua alemã de sua época (a maior parte protestante, e uma pequena parcela de católicos), era totalmente contrário a verdadeira fé cristã; o cristianismo que Nietzsche viu e observou quando adulto era um cristianismo totalmente corrompido, tanto no sentido moral quanto no sentido intelectual.

Por isso, as críticas ferrenhas de Nietzsche contra este tipo de cristianismo estão totalmente corretas; aliás, a críticas de Nietzsche foram um pouco “proféticas”, pois os filhos da geração que ele duramente criticou acabaram por adorar Hitler como uma nova “revelação da história”, como alguém superior a Jesus Cristo; ora, os erros de uma geração são filhos dos erros da geração anterior; etc.

Portanto, Nietzsche estava certo no que criticou da cristandade de sua época e de seu contexto; trinta anos após sua morte, suas palavras se mostraram totalmente corretas, pois a formação dos “cristãos alemães” (deutsche christen) comprova cabalmente a veracidade e a verdade da crítica abrupta de Nietzsche.

 

III

 

Ora, em relação a crítica de Nietzsche ao cristianismo, a mais contundente e aguda está em seu livro “O Anticristo” (1888), embora se tenham observações factuais em toda a sua obra; no próprio título já dá para perceber isso; todavia, este livro, apesar de curto, na verdade um ensaio, não é tão simples - aliás, é um livro dificílimo; as críticas são abruptas, veementes e diretas, quase no estilo do profetismo veterotestamentário.

No entanto, entender o real propósito destas críticas e o fundamento das mesmas, não é algo tão simples; pois, este livro não somente é expressão de uma mente genial, com profunda capacidade de análise, mas é como que um desabafo de um homem virtuoso e sincero ao ver um cristianismo dominado pelo hegelianismo.

E este é um princípio fundamental para entender a crítica abrupta de Nietzsche ao cristianismo; ele não critica o cristianismo simplesmente por criticar; na verdade, o propósito de Nietzsche é esfarelar os ídolos do sistema da ciência de Hegel, mesmo os que se impregnaram na religião; e como o protestantismo do séc. XIX (e como também o protestantismo dos sécs. XX e XXI), é totalmente permeado pelo hegelianismo, Nietzsche, com total razão, se vociferou contra este tipo de cristianismo.

Por isso, a crítica de Nietzsche ao cristianismo não somente se deve aos desvios morais e intelectuais da cristandade de língua alemã do séc. XIX, mas principalmente por que a cristandade de língua alemã de sua época era totalmente hegeliana (aliás, o liberalismo teológico protestante, na verdade, é cristianismo hegeliano). A crítica de Nietzsche ao cristianismo é a crítica ao cristianismo hegeliano, ao cristianismo que, mesmo que de maneira inconsciente, tem Hegel como “deus” e não Cristo.

Assim sendo, as teses evocadas em “O Anticristo”, na verdade são antíteses; antíteses postas a partir de teses; embora, neste escrito, sejam teses ocultas (tal como o sujeito oculto na gramática); Nietzsche apresenta teses (antíteses) muito bem concatenadas que esfarelam o cristianismo hegeliano; as antíteses de Nietzsche são marteladas cirúrgicas contra as teses do cristianismo hegeliano.

Ora, estas teses (antíteses), são postas tendo em vista dois aspectos: primeiro, a contraposição a uma tese correta através de uma antítese errada, para através do erro mostrar a veracidade da tese (oculta) criticada. Segundo, a crítica abrupta contra alguma tese posta pelo cristianismo hegeliano, que tem aparência de cristianismo, mas cristianismo não é; a maior parte destas teses (antíteses), é posta contra preceitos hegelianos que se impregnaram no cristianismo como se fossem parte da fé cristã (através da impregnação passiva de hábitos).

Aliás, neste interim, surge uma indagação: por que Nietzsche se utilizou do método tese-antítese e não o método de tese-antítese-síntese? Ao que parece, dado ao estilo da crítica nietzschiana, a mesma se enquadraria melhor no método tese-antítese-síntese; pois, antíteses evocadas com teses ocultas quase que “reclamam” uma síntese.

Ora, a resposta a esta questão é bem simples: Nietzsche se utilizou do método tese-antítese, porque se fosse colocar uma síntese entre a tese oculta e a antítese evocada, seguiria o princípio da lógica hegeliana; Nietzsche procurou evitar justamente isso, já que lutou contra a parafernalia dialética de Hegel, o que lhe custou a própria saúde.

Assim, Nietzsche fez antítese em relação a teses ocultas; e conquanto isso gere muito mais dificuldades para a compreensão, e tenha feito que ele tenha sido totalmente incompreendido, pelo menos não o sucumbiu - nem ele nem os seus leitores -, nos círculos mágicos da lógica hegeliana.

As antíteses de Nietzsche não permitem sínteses (graças a Deus!): ou estão certas ou estão erradas; aliás, isso demonstra que Nietzsche está em total conformidade com a lógica aristotélica, com as leis do pensamento correto.

Portanto, se constata que esses dois aspectos estão entrelaçados e interligados em todo esse ensaio de Nietzsche; compreender o que concerne a estes aspectos é compreender o núcleo da crítica nietzschiana ao cristianismo. Nietzsche, que é chamado um dos “cavaleiros do Apocalipse”, lutou em sua obra contra o espírito apocalíptico do fim dos tempos (o espírito dialético).

E estas são apenas algumas observações sobre no que concerne a crítica de Nietzsche ao cristianismo.

Ademais, o ensaio “O Anticristo”, é um ensaio de uma crítica do cristianismo; observe-se bem: uma crítica do cristianismo, e não uma crítica ao cristianismo (a tradução na língua de Camões capta bem o sentido pretendido por Nietzsche); e não somente uma crítica, mas como consta nos manuscritos de Nietzsche, uma maldição sobre o cristianismo; especificamente, uma maldição contra o cristianismo que foi impregnado pelos princípios hegelianos, tanto em suas formas interiores quanto em suas formas exteriores.

Na verdade, o que Nietzsche pretendia com este ensaio, e outros escritos da filosofia crítica, era uma reavaliação; uma reavaliação dos valores reais, dos valores que se instituem a partir das verdades eternas, os quais haviam sido transmogrifados pelo sistema da ciência; a reavaliação dos valores proposta por Nietzsche, também tem inserida uma reavaliação do cristianismo, uma reavaliação do cristianismo para tentar livrá-lo de Hegel. Neste sentido, e para assombro e estupefação de todos, Nietzsche fez mais para o bem do cristianismo do que quase todos os teólogos posteriores.

Pois, o cristianismo que Nietzsche viu e o cristianismo que ele analisou, era um cristianismo dominado por Hegel e inserido nos círculos cabalísticos do sistema da ciência (ou dito em outros termos, era um cristianismo dominado pela feitiçaria, pois cristianismo hegeliano é cristianismo mágico).

E estas palavras são apenas uma sumula sobre em que consiste a crítica de Nietzsche ao cristianismo. E, certamente, isso será uma surpresa para muitos, posto que ninguém que fala de Nietzsche procurou compreender a natureza de sua crítica ao cristianismo.

Por isso, chega-se a um veredito inicial: no que Nietzsche crítica do cristianismo hegeliano (e há de se entender isso corretamente), ele está totalmente correto; quanto a isso, mesmo em relação a mais abrupta crítica, não há contra o que argumentar.

Assim sendo, a crítica de Nietzsche ao cristianismo nunca perderá sua atualidade e vitalidade enquanto a cristandade (principalmente o protestantismo) for dominada pelo sistema da ciência de Hegel. Nietzsche, portanto, é incontornável.

***

Ora, em suma, isto é o que concerne a compreensão sobre a relação entre Nietzsche e o cristianismo; mais propriamente para se entender as razões e as raízes da crítica veemente e abrupta de Nietzsche contra o cristianismo; embora não se dê para elucubrar sobre este assunto com simplismos, entender estes aspectos que foram evocados dá um norte sobre como este assunto deve ser elucubrado e investigado; se isso for feito de maneira correta, e sendo justo e honesto para com Nietzsche, se compreenderá que o anticristianismo de Nietzsche não é fruto de um ateísmo doentio, como muitos propugnaram, mas sim fruto de uma boa consciência do verdadeiro cristianismo.

θεῷ χάρις


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