Prefácio.
Após as quatro primeiras epístolas direcionadas a
Gaio, se chega a epístola V, direcionada a Doroteu; embora mude-se o
destinatário, o assunto é o mesmo que o da epístola I, que também versa sobre
um aspecto da obra De Mystica Theologia; a diferença é que, enquanto na
epístola I se fala sobre a possibilidade do conhecimento a respeito de Deus,
nesta epístola se fala sobre a concreção deste conhecimento no fiel a partir da
caligine divina; pois, o verdadeiro conhecimento de Deus, tal como fora dito anteriormente,
produz nos homens dois efeitos; etc.
Portanto, o que concerne a caligine divina, tal como
analisado noutras epístolas está em ordem a obra De Mystica Theologia;
pois, duas coisas são afirmadas a título de introdução sobre esta obra:
primeiro, o que concerne o conhecimento a respeito de Deus; segundo, o que
concerne ao modo de alcançar este conhecimento.
E estes dois aspectos estão inter-ligados de acordo
com a obra mencionada; no entanto, Pseudo-Dionísio os trabalha nas epístolas I,
III e V; o primeiro aspecto nas epístolas I e III; o segundo aspecto na
epístola V.
Mas, como se pode constatar, os aspectos estão
imbuídos nestas epístolas de maneira conjunta; portanto, o que versa uma
epístola também versa as outras duas, e vice-versa; pois, a diferença está no
modo como se apresentou a indagação a Pseudo-Dionísio, e, evidentemente, daí
segue sua forma de responder de modo diverso.
Deste modo, se constata que estas epístolas que versam
sobre os temas concernentes a teologia mística, são um modo de introdução a
esta icônica e enigmática obra da história da teologia; a fonte de muita coisa
boa que surgiu depois, mas também donde emanaram muitos princípios errôneos que
corroeram tanto o catolicismo quanto o protestantismo.
As várias reprimendas de Lutero quanto a teologia
dionísica (cf. WA 6, 562; etc.), principalmente quanto a teologia mística (cf.
WA 39/1, 389s), se baseiam justamente contra a linha de pensamento errado que
emergiu desta obra (por exemplo, os tipos errôneos de misticismo que
desfiguraram a cristandade nos sécs. XIV e XV, etc.); mesmo que o próprio
Lutero não tenha se apercebido da raiz deste erro, ele pelo menos se apercebeu
dos problemas que emergiram desta obra na baixa escolástica (os problemas do “dionisianismo
afetivo”), e contra os mesmos se vociferou de forma contundente e muitas
vezes de maneira correta.
Aliás, isto fora algo que muito antes de Lutero
houvera sido percebido por Alberto Magno, mas que infelizmente poucos ou quase
ninguém dera a devida atenção – com a exceção de seus alunos, principalmente
Tomás de Aquino. Pois, fora Alberto Magno quem se apercebera de forma cabal e
cirúrgica dos problemas terríveis do “dionisianismo afetivo”.
Portanto, ao se adentrar a explicação destas
epístolas, aquilo que fora afirmado de antemão, que se procuraria o equilíbrio
entre as duas linhas de interpretação do Corpus Dionysiacum, se mostra
mais evidente; conquanto, em relação aos problemas que emergem da obra De
Mystica Theologia, se deva não propriamente equilibrar estes aspectos, mas
se deve seguir no “dionisianismo intelectual”, para se evitar os erros e
os desvios terríveis que a afetividade traz para a reflexão teológica e para a
existência eclesial, o que os sécs. XIV e XV bem como a cristandade hodierna
(catolicismo e protestantismo) demonstram de maneira inconcussa.
Assim, ao se concluir o comentário as cinco primeiras
epístolas, se estabelece a base introdutória do Corpus Dionysiacum, ao
mesmo tempo em que se apresenta uma série de reflexões e explicações que
ponderam sobre vários problemas teológicos fundamentais que estão em ordem a duas
das obras de Pseudo-Dionísio (cf. DN e MT), mas que também servem para abalizar
muitos problemas teológicos fundamentais já que nestas epístolas estão imbuídos
implicitamente muitos tópicos que concernem aos artigos da fé.
Soli Deo Gloria!
In Nomine Iesus!
19 de novembro de 2024.
Texto de Pseudo-Dionísio (Epist. V)[1].
A caligine divina é a “luz
inacessível” na qual, diz-se, “Deus habita” (cf. Êx 20.21; 1Tm
6.16). E se a excelência da sua claridade a torna invisível, e o excesso da
efusão da sua luz mais que substancial a faz inacessível, é, todavia, nela que
nasce quem é digno de conhecer e de contemplar Deus. É por este ‘não ver nem
conhecer’ que ele se eleva verdadeiramente para além da vista e do
conhecimento. Sabendo que está para além do sensível e do inteligível, ele diz
com o Profeta: “Maravilhoso é para mim o teu conhecimento, tão elevado, que
eu não posso atingi-lo” (Sl 139.6) [cf. DN II, 1; EH II, II.7; IV, II].
Foi assim que o divino Paulo conheceu Deus, diz-se. Ele soube que Deus está para além de todo o entendimento e de todo o conhecimento. Por esta razão é que ele diz que os seus “caminhos são impenetráveis” e “insondáveis os seus decretos” (cf. Rm 11.33), que “os seus dons são inexprimíveis” (cf. 2Co 9.5), e que a “sua paz ultrapassa toda a inteligência” (cf. Fp 4.7). Pois ele encontrou quem está para além de todas as coisas, e soube, de uma maneira que está para além de todo entendimento, que a causa da existência de todas as coisas está para além de todas as coisas.
A. Proêmio.
1. “Nuvens e obscuridade estão ao redor dele”
(Sl 97.2a); ora, estas palavras do salmista foram engendradas teologicamente
nesta epístola; pois, de modo geral, três coisas são afirmadas a respeito de
Deus: primeiro, de Deus em si mesmo, isto é, de Seu Ser. “E disse Deus a
Moisés: EU SOU O QUE SOU” (Êx 3.14a). “Porque o Senhor é Deus grande e
Rei grande acima de todos os deuses” (Sl 95.3). “Vive o Senhor, na
verdade, no juízo e na justiça; e nele se bendirão as nações e nele se gloriará”
(Jr 4.2).
Segundo, das obras de Deus, ou seja, das coisas que dEle
emanam. “Tu só és Senhor, tu fizeste o céu, o céu dos céus e todo o seu
exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto neles há; e tu
os guardas em vida a todos, e o exército dos céus te adora” (Ne 9.6). “Digno
és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder, porque tu criaste todas as
coisas, e por tua vontade são e foram criadas” (Ap 4.11).
Terceiro, o caminho para Deus, a saber, o Senhor Jesus
Cristo. “Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida. Ninguém
vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6). “Porque há um só Deus e um só
mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem” (1Tm 2.5).
2. Portanto, a primeira maneira de conhecer algo de
Deus é a partir das coisas que dEle emanam, já que nesta vida o fiel não o pode
ver em essência, mas, nesta vida, como efeito da graça, Ele é conhecido de modo
geral “a partir das criaturas, de acordo com a via da causalidade, a da excelência
e a da remoção” (STh Ia, q. 13, a. 1, co.); logo, se vê a Deus, por
analogia, nas coisas criadas (cf. Sb 13.5); por isso, se afirma que das coisas
que dEle emanam, se pode conhecer algo sobre Ele; no entanto, das coisas que
dEle emanam não somente se diz sobre as coisas criadas, mas também sobre o que
nEle está envolto, isto é, sobre o que emana dEle em Sua habitação e de Sua
presença (cf. Êx 40.34-35; 1Rs 8.12; 1Tm 6.16).
3. Por isso, do preceito do salmista se diz que em
Deus se tem envolto nuvens e obscuridade ou escuridade; ou seja, em Deus se tem
a nuvem de Sua glória (cf. 2Cr 5.14), e a caligine (cf. Êx 20.21b); ora, a
nuvem representa a transcendência de Seu Ser, impossível de ser contemplado tal
como é, e a caligine representa o que dEle pode ser conhecido e entendido,
através da via da negação (cf. MT, I, § 1).
Ora, isto é o que concerne a esta epístola, posto que versa sobre a caligine divina, na qual, se demonstra que Deus está “para além da vista e do conhecimento”; e isto tanto evidencia o que concerne a caligine, quanto sobre o modo como Deus pode ser conhecido na caligine; por isso, nesta caligine e através desta caligine, é “que nasce quem é digno de conhecer e de contemplar Deus”; logo, etc.
B. Comentário.
1. Após as quatro epístolas a
Gaio, se adentra a epístola V, para Doroteu[2];
embora, mude-se o destinatário, e a ordem dos assuntos mude, nesta epístola
continua-se diretamente a abordar problemas relacionados as obras que também
foram motivo de dúvida a Gaio; todavia, a dúvida de Doroteu se refere a
designação que Pseudo-Dionísio faz sobre a caligine divina no cap. 1 de “De
Mystica Theologia”; e, Alberto assevera que esta caligine é aquela na qual
é dito que Deus é e na qual é dito que Ele é visto[3],
isto é, é a descrição pela qual se fala sobre Deus e na qual Deus habita (cf.
Êx 20.21b; 1Rs 8.12; 1Tm 6.16).
2. Assim, a designação dionísica
de “caligine divina”, pressupõem uma série de aspectos do que se constitui o
modo de se conhecer as coisas divinas, tal como Pseudo-Dionísio delineara no
capítulo inicial da obra “De Mystica Theologia”. E, sobre isso,
Pseudo-Dionísio estabelece sete aspectos: primeiro, estabelece a questão;
segundo, evoca a sobre excelência da luz na qual Deus habita; terceiro,
estabelece o pressuposto da não-visão desta luz como parte da compreensão sobre
esta luz; quarto, evoca a pressuposição de que Deus está para além do sensível
e do inteligível; quinto, evoca o exemplo dessa pressuposição a partir da vida
do Apóstolo; sexto, apresenta os pressupostos teológicos que o Apóstolo
estabelecera a partir do modo como conhecera Deus; sétimo, estabelece que o
conhecer Deus que o Apóstolo demonstra é fruto de uma experiência que ele
tivera.
3. Primeiro, estabelece a
questão, onde diz: “A caligine divina é a ‘luz inacessível’ na qual, diz-se,
‘Deus habita’ (cf. Êx 20.21; 1Tm 6.16)” (cf. MT I, 3); ora, o primeiro
aspecto, é referente a designação da “bruma divina”, ou mais corretamente, a
caligine divina[4];
pois, a caligine refere-se a luz inacessível na qual o próprio Deus habita, a
qual é descrita na Escritura de dois modos: primeiro, um modo negativo, quando
se diz: “Moisés, porém, se chegou à escuridade, onde Deus estava” (Êx
20.21b); segundo, um modo afirmativo, quando o Apóstolo afirma: “aquele que
tem, ele só, a imortalidade e habita na luz inacessível” (1Tm 6.16a).
Logo, Pseudo-Dionísio evoca dois
aspectos sobre a compreensão a respeito do conhecimento sobre Deus, a saber:
que Ele habita na caligine, isto é, habita de maneira que o ser humano por si
não consegue se achegar a Ele, e habita na luz inacessível, isto é, numa luz
que nenhuma luz exterior, inferior ou interior consegue alcançar e/ou
compreender.
4. Por isso, a designação da
caligine divina, demonstra que Deus não é entendível nem pelas artes mecânicas,
nem pelo conhecimento sensitivo e nem pelo conhecimento filosófico; embora, por
estes se possa saber algo sobre Deus do ponto de vista geral, isto é, que é o
Ser Supremo e o Primeiro Princípio (cf. Sl 19.1; Rm 1.19-20); todavia, por meio
destas luzes, não se consegue compreender a Deus e nem se adentrar a caligine
divina, a qual só acessível através da graça e pela Sagrada Escritura.
Portanto, apenas o hábito da
graça, permite ao fiel contemplar Deus nesta vida, antevendo a glória aurifica
da eternidade; pois, enquanto nesta vida a caligine divina se oculta, e só se
pode conhecê-Lo através de um enigma por espelho (cf. 1Co 13.12a), na
eternidade, se adentrará a própria habitação de Deus, pois que, “então,
veremos face a face; agora, conheço em parte, mas, então, conhecerei como
também sou conhecido” (1Co 13.12b). A proposição teológica da caligine
divina evoca a distinção entre o contemplar a Deus nesta vida e a contemplação
de Deus na vida eterna.
5. Segundo, evoca a
sobre-excelência da luz na qual Deus habita, onde diz: “E se a excelência da
sua claridade a torna invisível, e o excesso da efusão da sua luz mais que
substancial a faz inacessível, é todavia nela que nasce quem é digno de
conhecer e de contemplar Deus”; ora, após ter evocado a questão sobre a
caligine divina, passa a considerar a sobre-excelência da luz na qual Deus habita.
E, sobre isso, faz três coisas:
primeiro, demonstra a natureza desta luz, onde diz: “E se a excelência de
sua claridade a torna invisível”; isto é, esta luz é tão excelsa, que em
sua natureza como luz, ou seja, em “sua claridade”, a mesma se torna
invisível, isto é, está além de toda visão e compreensão humana.
Segundo, demonstra os efeitos da
efusão desta luz, onde diz: “e o excesso da efusão da sua luz mais que
substancial a faz inacessível”, isto é, mesmo que esta luz seja espargida
em excesso de efusão, por causa de sua natureza, “da sua luz mais que
substancial”, isto é, de sua luz que se sobreleva a toda substância e
substanciação humana, o que, por si, “a torna invisível”, ou seja,
incompreensível, a torna além de qualquer abstração sensível ou de qualquer
conhecimento intelectual.
Terceiro, evoca aqueles que são
nascidos a partir desta luz, onde diz: “é todavia nela que nasce quem é
digno de conhecer e de contemplar Deus”, isto é, é nesta luz e a partir
desta luz, que os homens são nascidos de novo para poderem contemplar a Deus;
e, Cristo, é quem ilumina os homens para os tornar dignos de conhecerem e
contemplarem a Deus (cf. Jo 8.12); donde, aqueles que são por esta luz
iluminados, mediante a graça, podem compreender que esta luz que receberam é
uma luz maravilhosa (cf. 1Pe 2.9). Somente aqueles que são por Deus iluminados
podem compreender algo sobre Seu ser. Portanto, a caligine se torna acessível
apenas aos que receberam a graça da iluminação superior.
6. Pois, conquanto a caligine
divina seja inacessível, a mesma se torna compreensível quando há esta
iluminação; por isso, o Apóstolo orara: “tendo iluminados os olhos do vosso
entendimento, para que saibais qual seja a esperança da sua vocação e quais as
riquezas da glória da sua herança nos santos” (Ef 1.18). Logo, Deus ilumina
aqueles que recebem Sua graça, para que possam compreender algo sobre caligine,
e assim, se tornem dignos de conhecê-Lo e de contemplá-Lo, ainda que, como
dissera o Apóstolo, o seja em enigma por espelho (cf. 1Co 13.12a); portanto, a
sobre-excelência desta luz inacessível, é tão alta que nenhum homem a pode
atingir, isto é, nenhum homem a pode contemplar por si mesmo; por esta razão, a
Escritura afirma: “Deus nunca foi visto por alguém” (Jo 1.18a).
7. Terceiro, estabelece o
pressuposto da não-visão desta luz como parte da compreensão sobre esta luz,
onde diz: “É por este ‘não ver nem conhecer’ que ele se eleva
verdadeiramente para além da vista e do conhecimento”; ora, se esta luz é
inacessível, então, somente a não-compreensão da mesma a torna realmente
compreendida; pois, somente quem é de Deus nascido pode contemplar algo sobre
esta luz, ainda que não a possa ver totalmente. Portanto, somente assim se pode
conhecer algo e entender algo sobre a caligine divina; pois, “é por este ‘não
ver nem conhecer’”, isto é, pela compreensão de que esta luz não é vista e
nem entendida que se pode conhecer algo a respeito da mesma, já que a
não-compreensão de algo que é necessário se compreender, pois diz respeito a
fim último do ser humano, ou leva o ser humano a blasfêmia, tal como nos
infiéis (cf. Sl 53.1-5), ou então, leva os homens ao desespero, isto é, a
humilhação diante de Deus (cf. Zc 1.3); logo, em meio a este desespero os
homens correm a Deus, e este desespero se torna, tal como dissera Lutero, em “desesperatio
fiducialis” (desespero consolado).
Por isso, o pressuposto da
não-visão desta luz, é a base para a compreensão sobre esta luz; pois, aquele
que reconhece que não a pode conhecer, é por Deus ajudado a entender esta luz,
já que o próprio Deus outorga, como dádiva imerecida, como dádiva graciosa, o
que é necessária para a compreensão desta luz, tornando a iluminação para a
compreensão desta luz um dom perfeito; e, sobre isso, diz a Escritura: “Toda
boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem
não há mudança, nem sombra de variação” (Tg 1.17). Portanto, é justamente
por não “ver e nem conhecer” esta luz, que o fiel “se eleva
verdadeiramente para além da vista e do conhecimento”, isto é, para onde
esta luz habita, ou seja, onde Deus realmente se encontra.
8. Quarto, evoca a pressuposição
de que Deus está para além do sensível e do inteligível, onde diz: “Sabendo
que está para além do sensível e do inteligível, ele diz com o Profeta: ‘Maravilhoso
é para mim o teu conhecimento, tão elevado, que eu não posso atingi-lo’ (Sl
139.6)”; ora, se Deus somente é contemplado quando se eleva para além da
vida e do conhecimento, então, Deus está para além do sensível e do
inteligível; e, Pseudo-Dionísio justamente evoca esta pressuposição; pois, ao
se compreender e perceber que Deus está para além do sensível e do inteligível,
isto é, está além de toda forma de compreensão puramente natural, o que resta é
romper em efusivo louvor, pois, assim se entende que os mistérios divinos devem
antes ser adorados do que estudados, como já acertadamente Melanchthon
afirmara: “Tanto mais correto que tenhamos adorado os mistérios da
divindade, do que que os tenhamos investigado”[5];
mas isso não significa que não devam ser estudados, mas que o estudo sobre os
mistérios da divindade é um ato doxológico, senão engendra-se no “dionisianismo
afetivo” (a qual fora propugnada a partir do Corpus Dionysiacum, por
muitos comentaristas, e de maneira cabal por Thomas Gallus).
Portanto, ao se compreender que
Deus está para além do sensível e do inteligível, o fiel há de romper em
efusivo louvor tal como o salmista afirmara e tal como Pseudo-Dionísio também
evoca, a saber: “Maravilhoso é para mim o teu conhecimento, tão elevado, que
eu não posso atingi-lo (Sl 139.6)”.
Logo, esta atitude do salmista
deve ser a mesma atitude daquele que ao contemplar a Deus, entende que Ele está
para além do sensível, isto é, está além de todo conhecimento por experiência,
e está além do inteligível, isto é, está além de todo conhecimento intelectual;
o que faz com que a alma do fiel, pelo efeito da graça, rompa em efusivo louvor
e adoração ante a majestade de Deus (cf. Mt 11.25).
9. Quinto, evoca do exemplo dessa
pressuposição a partir da vida do Apóstolo, onde diz: “Foi assim que o
divino Paulo conheceu Deus, diz-se. Ele soube que Deus está para além de todo o
entendimento e de todo o conhecimento”; ora, depois de evocar a
pressuposição de que Deus está para além do sensível e do inteligível, e que
somente Deus pode dar o conhecimento de Si, passa a evocar um exemplo para
confirmar esta pressuposição, a saber, o exemplo a partir da vida do Apóstolo.
Pois, o Apóstolo conhecera a Deus desta forma, a saber: “Ele soube que Deus
está além de todo o entendimento e de todo o conhecimento”. Deste modo, a
vida do Apóstolo é um exemplo desta pressuposição, a qual, permeia toda a
teologia e toda elucubração sobre o conhecimento a respeito de Deus. Ora, o
Apóstolo conheceu Deus deste modo; e todo aquele que, pelo efeito da graça, se
torna digno do conhecimento de Deus, também o conhece desse modo.
10. Sexto, apresenta os
pressupostos teológicos que o Apóstolo estabelecera a partir do modo como
conhecera a Deus, onde diz: “Por esta razão é que ele diz que os seus ‘caminhos
são impenetráveis’ e ‘insondáveis os seus decretos’ (cf. Rm 11.33), que ‘os
seus dons são inexprimíveis’ (cf. 2Co 9.5), e que a ‘sua paz ultrapassa toda a
inteligência’ (cf. Fp 4.7)”; ora, tendo o Apóstolo conhecido a Deus do modo
como fora anteriormente descrito, ao conhecê-Lo, o Apóstolo rompera em efusivo
louvor e adoração; e, Pseudo-Dionísio apresenta o que concerne ao modo como o
Apóstolo conhecera Deus, e como exprimira este conhecimento que tivera; e, “por
esta razão”, isto é, por causa do modo como conhecera Deus, “é que ele
diz”, isto é, que o Apóstolo faz declarações efusivas, as quais, constituem
o cerne de sua teologia, e o âmago da teologia neotestamentária.
11. E, sobre isso, evoca três
aspectos: primeiro, sobre incompreensibilidade da sabedoria divina, onde evoca
a sentença do Apóstolo: “os seus ‘caminhos são impenetráveis’ e ‘insondáveis
os seus decretos’”; ora, esta declaração do Apóstolo provém de uma singular
passagem da epístola aos Romanos, na qual afirma: “Ó profundidade das
riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os
seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos!” (Rm 11.33). Logo, o
Apóstolo, em seu conhecimento de Deus, pode contemplar e experienciar que Deus,
em seus caminhos e decretos, isto é, em suas obras e ações, está além de toda
compreensão; este princípio retoma a declaração que está no profeta: “Porque
os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os
meus caminhos, diz o Senhor. Porque, assim como os céus são mais altos do que a
terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os
meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos” (Is 55.8-9).
Ora, deste modo se afirma que Deus é insondável e inescrutável.
Segundo, que as dádivas divinas
são inexprimíveis, onde evoca a sentença do Apóstolo: “os seus dons são
inexprimíveis”; ora, as dádivas divinas, entre elas a maior, a saber, a
salvação, são inexpressáveis, isto é, estão além de qualquer definição e
compreensão, donde Deus, em suas dádivas, também ser reconhecido como
Super-Teárquico e Super-Bonárquico. Ora, para o Apóstolo as dádivas divinas são
inexprimíveis, e isto por dois motivos: primeiro, pela fonte donde provêm, a
saber: dAquele que é a fonte de toda dádiva, e que está acima de toda
definição; segundo, porque as dádivas em si mesma são efeito da graça, isto é,
são favores imerecidos; logo, são inexprimíveis.
Terceiro, que a paz que provêm do
conhecimento de Deus está acima de toda inteligência, onde evoca a sentença do
Apóstolo: “a sua paz ultrapassa toda inteligência”; por isso, a paz,
sendo efeito da graça (cf. Ef 2.14), está para além de toda inteligência e de
todo entendimento; pois, sendo efeito da graça, a paz é sem medida e sem
limites (cf. Gl 5.22-23); tal como diz o salmista: “Mas os mansos herdarão a
terra e se deleitarão na abundância de paz” (Sl 37.11). Por isso, esta paz
ultrapassa toda inteligência, por causa de sua fonte e de seus efeitos no fiel,
a saber, guardar a mente e o coração, tal como diz o Apóstolo: “E a paz de
Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos
sentimentos em Cristo Jesus” (Fp 4.7).
12. Ora, o Apóstolo propugna
estes aspectos, e outros, a partir do modo como conhecera Deus; logo, são
expressões que evocam os efeitos da graça que recebera, e a qual usufruíra.
Portanto, descrevem e demonstram o que é produzido no homem quando este conhece
a Deus verdadeiramente.
13. Sétimo, estabelece que o
conhecer Deus que o Apóstolo demonstra é fruto de uma experiência que ele
tivera, onde diz: “Pois ele encontrou quem está para além de todas as
coisas, e soube, de uma maneira que está para além de todo entendimento, que a
causa da existência de todas as coisas está para além de todas as coisas”;
ora, a experiência que o Apóstolo tivera, de quando conhecera Deus
verdadeiramente, o mostrou quatro coisas: primeiro, que ele encontrou quem está
acima de todas as coisas; por isso, se diz: “Pois ele encontrou quem está
para além de todas as coisas”; isto é, o Apóstolo conheceu o Criador de
todas as coisas, Aquele que está além e acima de todas as coisas.
Segundo, que o Apóstolo realmente
obteve o conhecimento a respeito de Deus pela graça, a partir de quando, ele
verdadeiramente soube quem Deus é; por isso, se diz: “e soube”.
Terceiro, a experiência que o
Apóstolo tivera o mostrou, e ele soube, de um modo que está para além do
entendimento, isto é, de maneira gloriosa e efusiva; por isso, se diz: “de
uma maneira que está para além de todo entendimento”.
Quarto, a experiência que o
Apóstolo tivera o mostrou a causa de todas as coisas, pois, somente a causa de
todas as coisas está para além de todas as coisas; por isso, se diz: “que a
causa da existência de todas as coisas está para além de todas as coisas”.
14. A experiência do Apóstolo o
mostrara estas coisas, e ele, por isso, pode irromper em efusivo louvor e
adoração a Deus, de modo tal que, pode exclamar estas verdades de maneira
límpida e cristalina (cf. Rm 11.36). Ou, como o próprio Pseudo-Dionísio afirma
no início da obra “De Caelesti Hierarchia”: “Mas ainda, toda
manifestação luminosa que recebemos e que procede da bondade do Pai, nos atrai
e nos conduz ao alto com seu poder unificante, nos faz voltar a unidade e a
simplicidade divinizante do Pai que nos reúne” (CH I, § 1). Ora, toda
iluminação, ou “manifestação luminosa”, é o Pai, em sua imensa bondade,
trazendo os homens de volta a Si, tal como fizera com o Apóstolo, na
experiência que este tivera com a luz divina no caminho de Damasco (cf. At 9.3,
26.12-13); etc.
15. Assim, Pseudo-Dionísio
soluciona a dúvida de Doroteu no que concerne a proposição do cap. 1 da obra “De
Mystica Theologia”; e, com isso, não somente esclarece a pressuposição
sobre a caligine divina, mas ao mesmo tempo em que faz isso, também efetua uma “introdução”
a obra “De Mystica Theologia”. A epístola V, é uma introdução mais
simples às profundezas singulares desta obra, as quais, saltam aos olhos e
tornam-se não somente em elemento de conhecimento para os fiéis e sinceros na
fé, mas descortina os mistérios da teologia e do verdadeiro modo de conhecer a
Deus, “que é bendito eternamente” (Rm 1.25), pois, é o Deus incomparável
e inigualável, tal como o salmista afirma: “Que deus é tão grande como o
nosso Deus?” (Sl 77.13), o qual também foi contemplado pelo Príncipe dos
Profetas: “No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi ao Senhor
assentado sobre um alto e sublime trono, etc.” (Is 6.1-3).
Portanto, a partir destes aspectos,
se entende a proposição sobre a caligine divina, do que concerne ao
conhecimento apofático, o qual, por vez demonstra que o conhecimento que se
pode ter de Deus, não somente pode ser explicado mesmo de forma imperfeita e
fragmentária, mas este conhecimento é, ao mesmo tempo, uma experiência com o
poder de Deus, tal como Moisés ao adentrar a caligine divina.
16. A teologia não somente tenta
explicar algo sobre Deus, mas é fundamentalmente experiência com Deus, que se
torna em expressão de explicação racional fragmentária e imperfeita; a
experiência não impugna a explicação, mas é a base donde surge a explicação; e
quanto maior e mais efusiva for a experiência, melhor e mais admirável deve ser
a explicação.
Pois, a experiência não tolhe a
explicação, antes a dignifica como algo verdadeiro e que fora realmente
experienciado; e a explicação não impugna a experiência, mas não deixa que a
afetividade se torne o condutor do ser, mas orienta a mesma sob a reta razão.
E a experiência ou afetividade
que não se orienta intelectualmente é vã e não passa de emocionalismo estéril e
imbecilizante; pois, experiência ou afetividade que obnubila a inteligência
sempre é movimento demoníaco, já que o que é operado pelo Diabo – no caso aqui
a falsa afetividade -, “impede o uso da razão”[6].
E o que fora dito basta quanto a compreensão sobre esta epístola.
C. Dúbias.
Em relação as pressuposições estabelecidas ao se explicar
a epístola V de Pseudo-Dionísio, surgiram três dúbias:
Primeiro, se a treva divina
consiste na luz inacessível na qual Deus habita.
Segundo, se Deus, que habita numa
luz inacessível, pode ser contemplado.
Terceiro, se a afetividade deve
orientar a teologia.
<Dúbia I>
Acerca da primeira, procede-se
assim: se a treva divina consiste na luz inacessível na qual Deus habita.
E parece que não.
I. [Argumentos].
1. A treva não é luz, e
vice-versa; além disso, se compreende que a propriedade inerente a treva é ser
ausência de luz; logo, a treva divina não consiste na luz na qual Deus habita.
2. Ademais, a Escritura diz: “Deus
é luz, e não há nele treva nenhuma” (1Jo 1.5); logo, se Deus é luz,
evidentemente, nEle não há treva; então, a treva em Deus não existe; portanto, a
treva divina não consiste na luz na qual Deus habita.
3. Ademais, o fim último do homem
é contemplar a Deus, que a Escritura chama de herança dos fiéis; e a herança
dos fiéis é na luz (cf. Cl 1.12); ora, como a herança dos fiéis é contemplar a
Deus, então a herança dos fiéis é na luz, junto de Deus; portanto, a treva não
consiste na luz na qual Deus habita, pois, os fiéis ao contemplá-Lo,
contemplá-Lo-ão na luz; logo, etc.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, diz
a Escritura: “O SENHOR disse que habitaria nas trevas” (1Rs 8.12); logo,
Deus habita nas trevas; portanto, a treva divina diz respeito a luz inacessível
na qual Deus habita.
III. [Solução].
1. A descrição da treva divina,
ou caligine divina, diz respeito não a essência de Deus, que sendo luz não tem
treva, mas à visão que os homens tem de Deus; pois, se compreende que muita
luz, ao invés de iluminar, acaba por obscurecer; ora, se se olhar diretamente
para o sol, ao invés de se ver sua luz, os olhos são envoltos em trevas;
portanto, ao se olhar para Deus, que habita numa luz inacessível, infinitamente
superior em luminosidade a luz do sol, então, o intelecto acaba envolto em escuridade;
e é justamente isso a que se refere o texto sagrado ao se referir a habitação
de Deus nas trevas, não propriamente as trevas em si, isto é, a ausência de luz,
mas a caligine, já que os homens per se não o podem contemplar sem serem
envoltos na escuridade, tal como ocorrera com Moisés (cf. Êx 20.21b).
2. Portanto, por Deus habitar na
luz inacessível, os homens, ao contemplá-Lo, são envoltos no mesmo que ocorre
ao olharem diretamente para o sol; e, como Deus habita nesta luz inacessível, então,
o hábito que concerne a sua compreensão, necessariamente está ligado ao modo de
chegar a esta luz, que teologicamente fora chamado de treva ou caligine divina;
portanto, Deus que habita na luz inacessível, é conhecido pelos homens como
efeito da graça (cf. Jo 1.16), quando estes, pela própria graça, são tornados
idôneos para se achegar a sua escuridade (cf. Cl 1.12), a qual está além de
todo sensível e além de todo inteligível (cf. MT, I, § 1), e que somente pela
graça conseguem se aproximar e adentrar a esta caligine para melhor conhecer a
Deus do modo como o mesmo se dá a conhecer, a saber, de modo geral através da
natureza (cf. Sl 19.1-6), e de modo particular através de Sua palavra (cf. Is
8.20; Rm 15.4).
IV. [Respostas aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro argumento se responde que, embora
Deus habite na luz inacessível, a natureza e o esplendor desta luz, ao ser
apenas pensada, envolve o intelecto na caligine; portanto, Deus habita na luz,
onde não há treva, mas o intelecto humano ao contemplá-Lo, é envolto na
caligine, devido ao esplendor da luminosidade desta luz. Logo, a caligine não
consiste na luz na qual Deus habita per se, mas no efeito desta luz no
ser humano ao contemplá-Lo.
2. Donde fica clarividente a resposta ao primeiro
argumento.
3. Quanto ao terceiro se responde que, a herança dos
fiéis é na luz; ora, Deus habita na luz, então, a herança dos fiéis é habitar
com Deus; no entanto, isto se refere a glória celeste, onde livres do Pecado e
de toda imperfeição desta vida, poderemos contemplá-Lo tal como Ele é (cf. 1Co
13.12b); todavia, nesta vida, ainda que com o efeito da graça, não podemos
vê-Lo plenamente (cf. 1Co 13.12a); logo, ao contemplá-Lo nesta vida, o fiel o
vê através da caligine, na qual penetra pela fé guiado pelo Espírito Santo, na
qual consegue contemplá-Lo e viver diante de dEle em idoneidade pelo efeito da
graça; o que, em si, é a antecâmara da glória celeste ou da visão beatífica.
<Dúbia II>
Acerca da segunda, procede-se
assim: se Deus, que habita numa luz inacessível, pode ser contemplado.
E parece que sim.
I. [Argumentos].
1. A contemplação de Deus é o fim
último do homem; logo, tudo que existe no homem é suficiente para tudo aquilo
para o que naturalmente tende; portanto, como o homem tende à contemplação de
Deus, então, Deus, que habita numa luz inacessível, pode ser contemplado.
2. Ademais, diz a Escritura: “E
chamou Jacó o nome daquele lugar Peniel, porque dizia: Tenho visto a Deus face
a face, e a minha alma foi salva” (Gn 32.30); portanto, Jacó viu a Deus
face a face, isto é, o contemplou; logo, etc.
3. Ademais, é dito sobre Moisés:
“E falava o SENHOR a Moisés face a face, como qualquer fala a seu amigo”
(Êx 32.11a); portanto, como Deus falava a Moisés face a face, isto significa
que Moisés o contemplou; logo, etc.
4. Ademais, o Príncipe dos
Profetas diz: “os meus olhos viram o rei, o SENHOR dos Exércitos!” (Is
6.5c); ora, se o profeta Isaías viu a Deus com seus olhos, então, Deus, que
habita numa luz inacessível, pode ser contemplado.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, diz
a Escritura: “Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a
minha face e viverá” (Êx 33.20); logo, como os homens não permaneceriam
vivos ao verem a Deus, logo, os mesmos, nesta vida, não o podem contemplar;
portanto, Deus, que habita numa luz inacessível, não pode ser contemplado.
III. [Solução].
1. A luz inacessível, o é por
dois motivos: primeiro, pela habitação de Deus, que transcende completamente o
alcance humano, pois habita na eternidade (cf. Is 57.15); segundo, pela
incapacidade humana de chegar per se até Deus (cf. Rm 3.11). Logo, Deus,
habita numa luz inacessível, e, por isso, não pode ser contemplado em Seu ser.
No entanto, como o ser humano tende para a beatitude eterna, e a beatitude
eterna consiste na contemplação de Deus, então, deve haver um modo pelo qual o
ser humano possa contemplar a Deus nesta vida.
2. Ora, o ser humano pode
contemplar a Deus nesta vida, como efeito da graça, pois, pela graça se alcança
a salvação (cf. Ef 2.8-9), e a salvação é a porta de entrada para a
contemplação de Deus, já que pela graça Deus justifica os pecadores, dando-lhes
acesso a Sua presença, tal como diz o Apóstolo: “Sendo, pois,
justificados pela fé, temos paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo; pelo
qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes; e nos
gloriamos na esperança da glória de Deus” (Rm 5.1-2). Logo, a contemplação de Deus nesta vida, se dá pela entrada
pela fé a esta graça, a qual proporciona o ser humano contemplar a Deus, ainda
que nesta vida de forma imperfeita e embaçada (cf. 1Co 13.12a), ao passo que,
na glória, se O contemplará de maneira perfeita e cabal, de maneira a ser
afirmar como o Apóstolo afirmara: “então, veremos face a face; agora,
conheço em parte, mas, então, conhecerei como também sou conhecido” (1Co
13.12b).
IV. [Respostas aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro argumento se
responde que, embora o ser humano tenda ao seu fim último, o mesmo não é
alcançado naturalmente; pois, este fim transcende as coisas naturais; logo, é
necessária a divina revelação para demonstrar este fim e torná-lo conhecido;
mas, o ser humano não atinge este fim per se; logo, Deus não pode ser
contemplado nesta vida, a não ser como efeito da graça naquele que fora por Ele
regenerado e justificado (cf. Tt 3.4-7; Rm 5.1-2).
2. Quanto ao segundo se responde
que Jacó viu a Deus através de uma teofania, isto é, uma manifestação divina de
forma entendível ao ser humano; mas, Jacó não o viu em Seu resplendor total;
logo, Jacó o viu de modo que o próprio Deus se tornou visível a Ele, mas não na
manifestação excelsa de Seu Ser na glória. Portanto, Jacó o contemplou, a
partir do efeito da obra divina em se dá a conhecer, isto é, pela graça; assim,
Deus pode ser contemplado a partir do efeito de Sua obra em se tornar conhecido
aos homens, mas os homens não o podem conhecer per se. Além disso, Deus
se mostrou a Jacó para salvá-lo; logo, Jacó contemplou a Deus para a salvação;
portanto, o homem, nesta vida, pode contemplá-Lo como efeito da graça, já que
pela graça é que se é salvo (cf. Ef 2.8-9). Logo, o ser humano pode contemplar
a Deus nesta vida apenas como efeito da graça, e não per se.
3. Quanto ao terceiro argumento se
responde que Moisés falava com Deus como a um amigo, e Deus falava com Ele;
logo, parece que Moisés o contemplou; todavia, Deus falava com Ele, e não
Moisés que o via tal como Ele é; por isso, Moisés o contemplou na manifestação
de Sua glória; ora, toda manifestação da glória de Deus que é compreensível aos
homens é efeito da graça; logo, Moisés O contemplou e falou com Ele como efeito
da graça, e não per se; ou mais propriamente Moisés o viu pelas costas
na fenda da penha (cf. Êx 33.18-23), porque encontrou graça diante de Deus (cf.
Êx 33.17).
4. Quanto ao quarto argumento se
responde que o Príncipe dos Profetas viu a Deus num alto e sublime trono; mas,
o viu naquilo que o próprio Deus permitiu em ser visto; além disso, era profeta
de Deus à Israel; logo, era separado por Deus; por isso, pode contemplá-Lo não
em Si mesmo, mas em Seu trono; ora, aqueles que eram designados como profetas
era para serem mensageiros das boas-novas (cf. Is 40.9); portanto, eram
designados como profetas como efeito da graça de Deus para anunciar Sua vontade
a Seu povo. Logo, o Príncipe dos Profetas o viu, não per se, mas como
efeito da graça em sua vocação como profeta, como canal de Deus para transmitir
Sua revelação; e isto se prova pelo fato de que, ao vê-Lo, o profeta exclamou: “Então,
disse eu: ai de mim, que vou perecendo! Porque eu sou um homem de lábios
impuros e habito no meio de um povo de impuros lábios; e os meus olhos viram o
rei, o Senhor dos Exércitos!” (Is 6.5); e isto demonstra o reconhecimento
de Sua pecaminosidade diante da santidade de Deus. Logo, contemplou a Deus, o
que o fez ver quem ele realmente era; ora, contemplar a Deus deste modo é
efeito da graça, já que ao se contemplá-Lo, se compreende a pecaminosidade do próprio
coração; e este é o efeito da graça para a salvação: contemplar a Deus para se
compreender Seu amor e conhecê-Lo como o Salvador; enquanto contemplá-Lo per
se é virtude da felicidade eterna que os homens não alcançam plenamente
nesta vida, mas apenas na glória.
V. [Resposta ao Em Contrário].
1. De fato, os homens, se vissem
a Deus face a face não permaneceriam vivos, dada a excelsa glória que
contemplariam (cf. Êx 33.20); por isso, nesta vida, os homens não o podem
contemplar em Sua glória; todavia, o podem contemplar como efeito da graça; por
isso, mesmo que habite numa luz inacessível se pode contemplá-Lo não como hábito
inerente a esta luz, que aos homens naturais per se é inacessível, mas
como hábito proveniente da graça, dado as “abundantes riquezas da sua graça”
(Ef 2.7), nas quais, Deus provê vários meios e modos para ser conhecido pelos
homens nesta vida (cf. Hb 1.1-2; etc.).
<Dúbia III>
Acerca da terceira, procede-se
assim: se a afetividade deve orientar a teologia.
E parece que sim.
I. [Argumentos].
1. A afetividade é mais
propriamente o modo de orientar a teologia pois o que importa é o amor; pois, o
amor é evidência de que se é nascido de Deus (cf. 1Jo 4.7b); ora, a afetividade
tem preeminência no que concerne a existência eclesial; portanto, também a tem
no que concerne a reflexão teológica; logo, a afetividade deve orientar a
teologia.
2. Ademais, o Apóstolo diz que o
que importa é a fé que opera em amor (cf. Gl 5.6); logo, a operação da fé diz
respeito ao amor; ora, o que concerne ao amor diz respeito a afetividade; logo,
como o amor é o que importa à fé, então, a afetividade é o aspecto mais
importante ao se elucubrar sobre a fé; portanto, a afetividade deve orientar a
teologia.
3. Ademais, o evangelista dos
segredos de Deus diz que não há necessidade de que ninguém ensine os fiéis pois
estes têm a Unção que lhes ensina todas as coisas (cf. 1Jo 2.27); ora, esta
Unção, o Espírito Santo, é chamado, a partir da processão em Deus, de Amor;
logo, a afetividade é evidência da atuação do Espírito, do Amor; portanto, pneumaticamente,
é evidente que a afetividade deve orientar a teologia.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, Tomás
diz que a doutrina sagrada é mais especulativa do que prática (cf. STh Ia, q.
1, a. 4, co.); logo, lida principalmente com algo especulativo; ora, se lida principalmente
com algo especulativo – a saber, Deus -, então, isto deve orientar a doutrina
sagrada; portanto, a afetividade não deve orientar a teologia.
III. [Solução].
1. A teologia deve ser orientada
de acordo com seu princípio constitutivo mais evidente, a saber, que é uma
ciência especulativa; logo, a via intelectual deve orientar a teologia, pois a
glória da fé é o conhecimento de Deus (cf. Jr 9.24); e o conhecimento se
estabelece pela via intelectual; portanto, a glória da fé é o conhecimento
intelectual que se pode obter de Deus nesta vida através da Revelação, o qual
permeia o fiel em todas as suas ações, na prática dos mandamentos; assim,
inicia-se pela via intelectual e consuma-se na via afetiva, nesta ordem, pois a
intelecção que se consuma mostra-se no agir correto; pois, do contrário, se tem
desordem quanto a constituição do ser, já que o ser pressupõe o conhecer tanto
para o próprio ser quanto para ser. Logo, no que concerne ao conhecimento das
coisas de Deus, ser e conhecer estão juntos: o conhecer precede o fazer (ética),
já que a medida que se conhece mais de Deus, mais o fiel vai sendo transformado
pelo Espírito como efeito da graça (cf. 2Co 3.18).
2. Além disso, se constata que a
via intelectual deve orientar a teologia já que a mesma é uma ciência (cf. STh
Ia, q. 1, a. 2, co.); e, como compete a ciência elucubrar sobre o assunto que
lhe convém - no caso da doutrina sagrada, Deus -, então se compreende que o que
deve orientar a ciência é o modo do assunto que lhe convém; logo, como convém a
doutrina sagrada o modo especulativo do saber, já lida com Deus, então, se
constata que o que deve orientar a doutrina sagrada é a via intelectual, já que
esta abaliza o que concerne as potências da alma para a compreensão e a
aplicação deste saber na prática; pois, segundo Alberto o intelecto intelige
tudo (cf. De Int. et Intel., trat. I, cap. 6); logo, analogamente, se
pode afirmar que a via intelectual concerne a teologia já que comporta tudo
quanto diz respeito aos princípios da doutrina sagrada, na qual estão ordenadas
todas as matérias com relação a Deus (cf. STh Ia, q. 1, a. 7, co.); ademais, é
parte constitutiva da própria existência da doutrina sagrada, sem o qual a
doutrina sagrada não se estabelece como ciência. Portanto, a via intelectual
não somente se estabelece em ordem ao saber, mas pela ordem disposta na própria
doutrina sagrada quanto as coisas concernentes a Deus, já que tem por preceito
a autoridade normativa da Escritura, pois seus princípios são obtidos por
divina revelação (cf. STh Ia, q. 1, a. 8, ad. 2), a qual é fundamentalmente uma
via intelectual, procedente da ciência de Deus (cf. Sl 139.6; Rm 11.33). Logo, tudo
quanto concerne ao lidar com temas oriundos destes preceitos, deve ser embasado
e abalizado pela via intelectual.
IV. [Resposta aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro argumento se
responde que embora na doutrina sagrada se tenha a preeminência do amor, o amor
nunca diz respeito a somente a afetividade, ou a propriamente a orientação a
partir da afetividade; mas sempre o amor a partir da verdade (cf. Ef 4.15); pois,
a afetividade só tem sentido na verdade e sob a verdade; portanto, aquele que
nasce de Deus, nasce pelo encontro com a Verdade (cf. Jo 14.6), e assim na
afetividade demonstra que é nascido de Deus, tal como diz a Escritura;
portanto, a afetividade só tem valor na existência eclesial orientada sob a
verdade; logo, o que concerne a reflexão teológica é a verdade seguida pelo
amor, e não o amor seguido pela verdade; ora, esta ordem importa, pois diz
respeito a ordem do que Deus revelou de Si, a saber, como Verdade (cf. Dt
32.4b) e como Amor (cf. 1Jo 4.8); etc. Portanto, implica necessariamente a
mesma ordem no que concerne a orientação teológica, já que é a ordem imbuída do
raciocínio escriturístico.
2. Quanto ao segundo argumento se
responde que a proposição do Apóstolo diz respeito ao modo de operar da fé, não
tanto ao que concerne diretamente a própria fé; pois, a fé opera em amor; mas a
fé se estabelece a partir do conhecimento (notitia) de Deus, já que a fé
vem pelo ouvir a Palavra de Deus (cf. Rm 10.17); portanto, o que concerne a fé,
primeiramente e fundamentalmente está em ordem a Palavra de Deus; e, somente depois,
operar em amor nas obras de caridade (cf. Gl 6.10; Tg 2.18); mas, o operar da
fé só se dá a partir da Palavra de Deus, pois o que importa a fé é o que
conhecimento de Deus, essência da felicidade eterna (cf. STh Ia, q. 1, a. 4,
co.); logo, a Palavra de Deus é o aspecto que mais importa ao se elucubrar
sobre a fé, e não a afetividade; pois, a afetividade é consequência da fé firme
e sóbria, e a não a causa da fé; portanto, o que deve orientar a fé é a causa
da mesma e não seus efeitos no fiel; logo, a palavra de Deus é o que deve
orientar a teologia e não a afetividade.
3. Quanto ao terceiro argumento
se responde que a expressão do evangelista dos segredos de Deus diz respeito a
iluminação do fiel nas coisas concernentes a Deus; no entanto, mesmo nestas
coisas há necessidade do ensino, pois a Escritura fora outorgada para o ensino
(cf. 2Tm 3.16); logo, o Espírito Santo, o Amor, conduz os fiéis no conhecimento
de Deus a partir do entendimento oriundo da explicação das Escrituras, através
da qual Deus outorga sabedoria aos homens (cf. Sl 119.130); assim, a atuação do
Amor, é a operação em função do conhecimento da revelação, para com isso,
engendrar a afetividade; pois, afetividade sem conhecimento é emoção vã, que
torna o fiel sujeito a qualquer vento de doutrina (cf. Ef 4.14), tal como as
nuvens errantes (cf. Jd 1.12b); portanto, quanto a teologia pneumática, é
evidente que a teologia deve ser orientada pela via intelectual, a saber, pela
Palavra de Deus, e não pela afetividade, pois a maior evidência da atuação do
Espírito no fiel é a santificação, a qual Ele efetua, entre outros meios,
através da Palavra de Deus (cf. Jo 17.17). Logo, é pela Palavra de Deus, a via
intelectual, e não pelas experiências pessoais, a via afetiva, que se deve
orientar a reflexão teológica e a existência eclesial (cf. At 2.42).
V. [Resposta ao Em Contrário].
1. Em relação a isso, se constata que a ciência sagrada é ao mesmo tempo ciência especulativa e prática, como afirma Tomás; todavia, em relação a ordem que concerne a esta ciência, é antes especulativa do que prática, dado ao seu objeto ser o assunto especulativo por excelência; ora, nisto está preceituado o que deve orientar a ciência sagrada; logo, a teologia deve ser orientada pelo preceito especulativo e não pelo preceito prático ou afetividade. Pois, a regra de fé quanto a reflexão sobre Deus se baseia na revelação de Deus e não na experiência e/ou afetividade humana, mesmo a dos mais santos doutores, como se confirma pela autoridade de Santo Agostinho (cf. Epist. 82, 1), e de outros Padres da Igreja; etc. Ora, quanto aos preceitos dionísicos, que açambarcam tudo quanto diz respeito a estes aspectos, se deve orientar pela via intelectual e não pela via afetiva. Logo, quanto ao Corpus Dionysiacum, a via intelectual é o que concerne à orientação teológica e não a via afetiva.
[1] O texto da Epístola V provêm de
uma adaptação da tradução de Mário Santiago de Carvalho (In: Medieavalia
10 [Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1996], pág. 77).
[2] A epístola V, constitui-se uma excelente
introdução a obra “De Mystica Theologia”; pois, esta obra, de suma
importância, é o escrito fundamental para se entender o programa teológico
dionísico, e para se compreender os aspectos concernentes a toda a teologia
mística que se desenvolveu desde então, tanto na teologia latina quanto na
teologia grega.
[3] cf. Alberto Magno, Commentari In
Epistolas B. Dionysii Areopagitae, epist. V, A, In: Op. Om., XIV,
892.
[4] Este é o termo em língua
portuguesa mais apropriado para significar o que Pseudo-Dionísio pretende ao afirmar
sobre “γνόφον” (gnofon), muito mais do que “bruma” ou “treva”, como
costumeiramente se apresenta nas traduções das obras de Pseudo-Dionísio.
[5] Filipe Melanchthon, Loci Theologici - Tópicos
Teológicos de 1521 [São Leopoldo, RS: Sinodal/EST, 2018], § 84, n. 4-5,
pág. 39.
[6] Tomás de Aquino, Comentário a
Tessalonicenses [Porto Alegre, RS: Concreta, 2015], 2ª Epístola, Cap. II,
lect. 2, n. 48, pág. 145.
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