Hoje, dia 31 de outubro é o dia onde se relembra a
reforma protestante, pois, neste dia, em 1517, Martinho Lutero afixou na porta
da Igreja de Wittenberg as 95 teses contra a corrupção que nesta época tomava
conta da Igreja Católica, particularmente quanto a imoralidade do clero de
Roma.
E, dentre os tantos assuntos que engendram a lembrança
desta data, que goste-se ou não, toca protestantes e católicos - embora não
faça sentido para a teologia grega! -, os que versam sobre questões
doutrinárias sempre são os mais polêmicos; e, um dentre tantos, é a respeito
dos cinco solas (os cinco “somente” da doutrina protestante); pois, os cinco
solas não eram dispostos deste modo pelos reformadores; os mais comuns, nos
escritos de Lutero e de Melanchthon eram o sola fide (somente a fé) e o sola
gratia (somente a graça); aliás, algo que era afirmado nos comentários bíblicos,
por exemplo, de Santo Alberto Magno e de Santo Tomás de Aquino; não se pode
negar que a teologia bíblica luterana é plenamente influenciada pela teologia
bíblica tomista; na verdade, a teologia bíblica luterana é quase que idêntica a
teologia bíblica tomista, o que basta analisar os comentários bíblicos de Santo Tomás
e os comentários de Lutero, para se constatar esta proximidade; talvez Lutero
não tenha feito isso conscientemente, ou o tenha sem ter mencionado Santo Tomás; mas
isso é elucubração para outro momento.
Mas, em se tratando dos solas, estes dois foram
os mais significativos no contexto do estopim e desenvolvimento da reforma; o sola
Scriptura (somente a Escritura), em se tratando da existência eclesial,
estava mais ligado inicialmente a Zwinglio, que inicia a reforma em terras
suíças em 1521-1522; pois, Zwinglio, que era um grande orador e pregador,
propugnou o que na época ficou conhecido como uma Igreja somente bíblica;
portanto, o que hoje em dia se chama de sola Scriptura é mais comum na
época da reforma à teologia reformada ligada a Zwinglio e ao zwinglianismo; o
radicalismo bíblico é propriamente zwingliano, e não tanto luterano; e o
radicalismo bíblico, associado ao radicalismo estético foi acoplado depois pela
parte da reforma conhecida como “reforma radical”; etc.
No entanto, mesmo em se tratando dos reformados, esta
definição ganha outra conotação no séc. XVI, após a morte de Zwinglio e a
partir da influência de Calvino; em suas preleções sobre a Escritura, Calvino
procurou-se manter totalmente bíblico, e em grande medida o conseguiu; no
entanto, mesmo Calvino evitou o que se pode chamar de colocar a Escritura como “papa
de papel”, o que parecia haver em Zwinglio, fato esse comprovado nas
confusões entre Zwinglio e os zwinglianos contra Lutero, Melanchthon e os
luteranos iniciais.
E, mesmo após a reforma, principalmente a partir da
escolástica protestante, que se inicia após a publicação do Livro de Concórdia
em 1580, o que se define como sola Scriptura não se encontra deste modo
definido, mesmo nos mestres da ortodoxia luterana, que no protestantismo são os
mais biblicamente firmados e resolutos; por exemplo, mesmo em Quenstedt, que
afirmara a doutrina da inspiração plena da Escritura, não existe ainda o que se
definira depois como sola Scriptura, pois, mesmo a elaboração desta
doutrina por parte de uma das mentes mais brilhantes dentro do luteranismo, que
foi seguido depois pelo mestre da ortodoxia reformada François Turretini, o
fora devido as confusões doutrinárias da época; o mesmo se diz de Calov; etc.
Deste modo, se compreende que o sola Scriptura
só foi formulado tal como o conhecemos no séc. XX, e pasme-se, pela
neo-ortodoxia; o que é um fato curioso, já que praticamente todos os
protestantes mais rígidos em questões bíblicas, tendem a demonizar e vituperar
a neo-ortodoxia; mas, goste-se ou não, a definição do sola Scriptura é
feita apenas no séc. XX, muito devido a influência de Kohlbrügge, um completo
desconhecido da teologia contemporânea; certamente, fora Kohlbrügge o cultor do
que hoje se conhece como sola Scriptura.
Pois, o séc. XIX, viu no seio do protestantismo o que ficou
conhecido como liberalismo teológico, que não negava todas as doutrinas
fundamentais, mas negava a ideia inspiracional inerente a cada doutrina
bíblica; isto é, o liberalismo teológico procurou destruir a ideia de que as
doutrinas tinham alguma autoridade divina por que eram provenientes da
Escritura; Kohlbrügge, assim como outros, se vociferou contra isso, e reafirmou
em tons mais absolutos a autoridade da Sagrada Escritura; mas, como constatou
Karl Barth, Kohlbrügge foi muito além dos reformadores, muito além de Calvino
neste quesito; na verdade, o radicalismo de Kohlbrügge neste quesito, ocasionou
um epiteto para a doutrina protestante desde então a respeito da Escritura, a
saber, que a mesma, a partir das invectivas de Kolhbrügge se tornara um “papa
de papel”.
Ora, tal radicalismo superou até mesmo as veementes
críticas de Lutero contra o catolicismo no séc. XVI; e fez com que Kohlbrügge
fosse intitulado em sua época, com desprezo pelos católicos e com estima por
muitos protestantes, tal como um dos “reformadores” do séc. XVI. Da atitude de
Kohlbrügge, provêm a ideia de sola Scriptura, que embora não seja nuda
Scriptura (nada além da Escritura), tal como fora afirmada e depois
reafirmada, deu esta ideia; e até hoje em dia, ao se ouvir sola Scriptura,
principalmente os católicos desavisados, chegam até a se embravecer.
Em suma, esta é a história da ideia do sola Scriptura
que se propaga em tempos atuais.
Todavia, a atitude em relação a Escritura fora tomada
não porque a teologia católica era contra a Escritura; pois, Santo Tomás de
Aquino reafirmara (cf. STh Ia, q. 1, a. 8, ad. 2), embasado na autoridade de
Agostinho (cf. Epist. 82), que Deus nada tem a nada a nos falar além da
revelação dada na Escritura; Santo Alberto também era severo neste quesito; a
problemática se instaura em relação ao que se pode ter em conjunto ou não com a
Escritura; mas, isso é questão para outra investigação.
Isso serve para mostrar que a atitude inicial de
Lutero é contra a corrupção moral, não contra os princípios da teologia
católica; muito embora os mesmos também tenham sido corrompidos na época, dada
a enorme corrupção moral, mas tal corrupção provinha da proposição do primado
da vontade sobre o intelecto; na verdade, o desprezo pela Escritura, ocasionou
a aceitação de práticas infames e vis como se fosse movidas por alguma nova
revelação, além da Escritura; esta era a situação quanto a autoridade bíblica
no início do séc. XVI em meio a cristandade latina; e, contra isso Lutero, com
espírito profético, veementemente e corretamente se vociferou, embora nem
sempre com discernimento sobre as reais causas desta corrupção.
Mas, o radicalismo do sola Scriptura reafirmado
no séc. XX, conquanto busque retomar um princípio caro aos reformadores, bem
como a todos os grandes teólogos da cristandade, sejam católicos, sejam
ortodoxos; a ideia do sola Scriptura está presente nos reformadores, mas
agora a formulação doutrinária que o sola Scriptura tomou desde o final
do séc. XIX, até os tempos atuais, muitas vezes não tem o mesmo espírito do que
tinha nos reformadores.
Na verdade, em muitas Igrejas protestantes,
infelizmente, o sola Scriptura se tornou uma forma de manipular e manter
as Igrejas sob cabrestos, os quais, por sua vez, nada tem de bíblicos, mas como
a expressão se tornou icônica, mantém-se muitas vezes uma Igreja que aparenta
ser bíblica, mas que na verdade, faz pior do que os erros criticados por Lutero
no catolicismo das primeiras décadas do séc. XVI.
E, esta breve descrição, embora fragmentária e
simplória, é suficiente para se ter um parâmetro da distinção entre o que é
realmente o estar sob a Escritura, e a afirmação do sola Scriptura, que
embora busque definir a doutrina das Escrituras entre os reformadores, na
verdade, em muitos casos, acaba por desfigurar o pensamento dos mesmos sobre
estes assuntos.
Pois, a diferença entre os reformadores e os
escolásticos, é basicamente em se tratando as órbitas em que faziam suas
reflexões: os escolásticos a uma tocavam em questões bíblicas, dogmáticas e
filosóficas, com substância e agudeza de análise, e a brevidade inerente aos
escolásticos; os reformadores tocavam apenas em questões bíblicas, com a fulgor
da lógica humanista, ao mesmo tempo em que deixavam a brevidade; logo, parece
aos olhos de muitos que os reformadores são mais bíblicos, enquanto na verdade tem
o princípio bíblico em tão alta conta quanto os escolásticos, mas não conseguem
ser tão precisos quanto os mesmos.
Portanto, a ideia do sola Scriptura está
basicamente presente em toda a cristandade; embora, a designação doutrinária
que tal definição tomou, esteja além em certos momentos até mesmo dos
reformadores protestantes; logo, se afirmar o sola Scriptura de maneira
sóbria e racional, é se conhecer um dos axiomas da Igreja Protestante, em
grande parte comum a toda a cristandade, mas que também pode se tornar uma
quimera, e se ser tornar a própria antípoda daquilo que afirma, a saber, se
tornar um “papa de papel”.
A autoridade inegável, infalível e inerrante das Sagradas Escrituras é algo inerente a toda a cristandade; todavia, tornar a Escrituras um “papa de papel”, é uma heresia terrível cometida e propagada pela doutrina protestante nos últimos 150 anos.
E que isto seja tido não como uma defesa do protestantismo ou aprovação da doutrina dos reformadores protestantes, mas pura e simplesmente como uma breve invectiva para explicar este tema, que tem sido tão mal interpretado tanto por protestantes quanto por católicos.
No entanto, que se saiba que, após todas estas confusões em relação ao que concerne a autoridade das Escrituras, tanto por católicos quanto por protestantes, somente no séc. XX, o teólogo reformado suíço Karl Barth, que conseguira abalizar a questão e explicá-la adequadamente, mesmo diante das más interpretações de sua bibliologia; todavia, para se ter uma visão correta da doutrina das Escrituras do ponto de vista protestante, além das confusões que permearam este assunto, sem sombra de dúvidas, é as explicações de Karl Barth que devem ser levadas a sério, principalmente no volume I da “Kirchliche Dogmatik” (principalmente: cap. III, §§ 19-21; mas aconselha-se que, se possível, se leia todo este volume); a par disso, as mais das vezes, se tem desequilíbrios racionais e teológicos, seja por obstinação seja por imbecilidade; etc.
Além disso, em muitos aspectos - não em todos! -, a argumentação de Barth retoma de maneira sóbria e adequada o ensino cristão em geral a respeito das Escrituras, com equilíbrio e distinções corretas, o que acaba por se tornar útil à toda cristandade.
θεῷ χάρις!
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