31/10/2024

Breve Reflexão sobre o Sola Scriptura

Hoje, dia 31 de outubro é o dia onde se relembra a reforma protestante, pois, neste dia, em 1517, Martinho Lutero afixou na porta da Igreja de Wittenberg as 95 teses contra a corrupção que nesta época tomava conta da Igreja Católica, particularmente quanto a imoralidade do clero de Roma.

E, dentre os tantos assuntos que engendram a lembrança desta data, que goste-se ou não, toca protestantes e católicos - embora não faça sentido para a teologia grega! -, os que versam sobre questões doutrinárias sempre são os mais polêmicos; e, um dentre tantos, é a respeito dos cinco solas (os cinco “somente” da doutrina protestante); pois, os cinco solas não eram dispostos deste modo pelos reformadores; os mais comuns, nos escritos de Lutero e de Melanchthon eram o sola fide (somente a fé) e o sola gratia (somente a graça); aliás, algo que era afirmado nos comentários bíblicos, por exemplo, de Santo Alberto Magno e de Santo Tomás de Aquino; não se pode negar que a teologia bíblica luterana é plenamente influenciada pela teologia bíblica tomista; na verdade, a teologia bíblica luterana é quase que idêntica a teologia bíblica tomista, o que basta analisar os comentários bíblicos de Santo Tomás e os comentários de Lutero, para se constatar esta proximidade; talvez Lutero não tenha feito isso conscientemente, ou o tenha sem ter mencionado Santo Tomás; mas isso é elucubração para outro momento.

Mas, em se tratando dos solas, estes dois foram os mais significativos no contexto do estopim e desenvolvimento da reforma; o sola Scriptura (somente a Escritura), em se tratando da existência eclesial, estava mais ligado inicialmente a Zwinglio, que inicia a reforma em terras suíças em 1521-1522; pois, Zwinglio, que era um grande orador e pregador, propugnou o que na época ficou conhecido como uma Igreja somente bíblica; portanto, o que hoje em dia se chama de sola Scriptura é mais comum na época da reforma à teologia reformada ligada a Zwinglio e ao zwinglianismo; o radicalismo bíblico é propriamente zwingliano, e não tanto luterano; e o radicalismo bíblico, associado ao radicalismo estético foi acoplado depois pela parte da reforma conhecida como “reforma radical”; etc.

No entanto, mesmo em se tratando dos reformados, esta definição ganha outra conotação no séc. XVI, após a morte de Zwinglio e a partir da influência de Calvino; em suas preleções sobre a Escritura, Calvino procurou-se manter totalmente bíblico, e em grande medida o conseguiu; no entanto, mesmo Calvino evitou o que se pode chamar de colocar a Escritura como “papa de papel”, o que parecia haver em Zwinglio, fato esse comprovado nas confusões entre Zwinglio e os zwinglianos contra Lutero, Melanchthon e os luteranos iniciais.

E, mesmo após a reforma, principalmente a partir da escolástica protestante, que se inicia após a publicação do Livro de Concórdia em 1580, o que se define como sola Scriptura não se encontra deste modo definido, mesmo nos mestres da ortodoxia luterana, que no protestantismo são os mais biblicamente firmados e resolutos; por exemplo, mesmo em Quenstedt, que afirmara a doutrina da inspiração plena da Escritura, não existe ainda o que se definira depois como sola Scriptura, pois, mesmo a elaboração desta doutrina por parte de uma das mentes mais brilhantes dentro do luteranismo, que foi seguido depois pelo mestre da ortodoxia reformada François Turretini, o fora devido as confusões doutrinárias da época; o mesmo se diz de Calov; etc.

Deste modo, se compreende que o sola Scriptura só foi formulado tal como o conhecemos no séc. XX, e pasme-se, pela neo-ortodoxia; o que é um fato curioso, já que praticamente todos os protestantes mais rígidos em questões bíblicas, tendem a demonizar e vituperar a neo-ortodoxia; mas, goste-se ou não, a definição do sola Scriptura é feita apenas no séc. XX, muito devido a influência de Kohlbrügge, um completo desconhecido da teologia contemporânea; certamente, fora Kohlbrügge o cultor do que hoje se conhece como sola Scriptura.

Pois, o séc. XIX, viu no seio do protestantismo o que ficou conhecido como liberalismo teológico, que não negava todas as doutrinas fundamentais, mas negava a ideia inspiracional inerente a cada doutrina bíblica; isto é, o liberalismo teológico procurou destruir a ideia de que as doutrinas tinham alguma autoridade divina por que eram provenientes da Escritura; Kohlbrügge, assim como outros, se vociferou contra isso, e reafirmou em tons mais absolutos a autoridade da Sagrada Escritura; mas, como constatou Karl Barth, Kohlbrügge foi muito além dos reformadores, muito além de Calvino neste quesito; na verdade, o radicalismo de Kohlbrügge neste quesito, ocasionou um epiteto para a doutrina protestante desde então a respeito da Escritura, a saber, que a mesma, a partir das invectivas de Kolhbrügge se tornara um “papa de papel”.

Ora, tal radicalismo superou até mesmo as veementes críticas de Lutero contra o catolicismo no séc. XVI; e fez com que Kohlbrügge fosse intitulado em sua época, com desprezo pelos católicos e com estima por muitos protestantes, tal como um dos “reformadores” do séc. XVI. Da atitude de Kohlbrügge, provêm a ideia de sola Scriptura, que embora não seja nuda Scriptura (nada além da Escritura), tal como fora afirmada e depois reafirmada, deu esta ideia; e até hoje em dia, ao se ouvir sola Scriptura, principalmente os católicos desavisados, chegam até a se embravecer.

Em suma, esta é a história da ideia do sola Scriptura que se propaga em tempos atuais.

Todavia, a atitude em relação a Escritura fora tomada não porque a teologia católica era contra a Escritura; pois, Santo Tomás de Aquino reafirmara (cf. STh Ia, q. 1, a. 8, ad. 2), embasado na autoridade de Agostinho (cf. Epist. 82), que Deus nada tem a nada a nos falar além da revelação dada na Escritura; Santo Alberto também era severo neste quesito; a problemática se instaura em relação ao que se pode ter em conjunto ou não com a Escritura; mas, isso é questão para outra investigação.

Isso serve para mostrar que a atitude inicial de Lutero é contra a corrupção moral, não contra os princípios da teologia católica; muito embora os mesmos também tenham sido corrompidos na época, dada a enorme corrupção moral, mas tal corrupção provinha da proposição do primado da vontade sobre o intelecto; na verdade, o desprezo pela Escritura, ocasionou a aceitação de práticas infames e vis como se fosse movidas por alguma nova revelação, além da Escritura; esta era a situação quanto a autoridade bíblica no início do séc. XVI em meio a cristandade latina; e, contra isso Lutero, com espírito profético, veementemente e corretamente se vociferou, embora nem sempre com discernimento sobre as reais causas desta corrupção.

Mas, o radicalismo do sola Scriptura reafirmado no séc. XX, conquanto busque retomar um princípio caro aos reformadores, bem como a todos os grandes teólogos da cristandade, sejam católicos, sejam ortodoxos; a ideia do sola Scriptura está presente nos reformadores, mas agora a formulação doutrinária que o sola Scriptura tomou desde o final do séc. XIX, até os tempos atuais, muitas vezes não tem o mesmo espírito do que tinha nos reformadores.

Na verdade, em muitas Igrejas protestantes, infelizmente, o sola Scriptura se tornou uma forma de manipular e manter as Igrejas sob cabrestos, os quais, por sua vez, nada tem de bíblicos, mas como a expressão se tornou icônica, mantém-se muitas vezes uma Igreja que aparenta ser bíblica, mas que na verdade, faz pior do que os erros criticados por Lutero no catolicismo das primeiras décadas do séc. XVI.

E, esta breve descrição, embora fragmentária e simplória, é suficiente para se ter um parâmetro da distinção entre o que é realmente o estar sob a Escritura, e a afirmação do sola Scriptura, que embora busque definir a doutrina das Escrituras entre os reformadores, na verdade, em muitos casos, acaba por desfigurar o pensamento dos mesmos sobre estes assuntos.

Pois, a diferença entre os reformadores e os escolásticos, é basicamente em se tratando as órbitas em que faziam suas reflexões: os escolásticos a uma tocavam em questões bíblicas, dogmáticas e filosóficas, com substância e agudeza de análise, e a brevidade inerente aos escolásticos; os reformadores tocavam apenas em questões bíblicas, com a fulgor da lógica humanista, ao mesmo tempo em que deixavam a brevidade; logo, parece aos olhos de muitos que os reformadores são mais bíblicos, enquanto na verdade tem o princípio bíblico em tão alta conta quanto os escolásticos, mas não conseguem ser tão precisos quanto os mesmos.

Portanto, a ideia do sola Scriptura está basicamente presente em toda a cristandade; embora, a designação doutrinária que tal definição tomou, esteja além em certos momentos até mesmo dos reformadores protestantes; logo, se afirmar o sola Scriptura de maneira sóbria e racional, é se conhecer um dos axiomas da Igreja Protestante, em grande parte comum a toda a cristandade, mas que também pode se tornar uma quimera, e se ser tornar a própria antípoda daquilo que afirma, a saber, se tornar um “papa de papel”.

A autoridade inegável, infalível e inerrante das Sagradas Escrituras é algo inerente a toda a cristandade; todavia, tornar a Escrituras um “papa de papel”, é uma heresia terrível cometida e propagada pela doutrina protestante nos últimos 150 anos. 

E que isto seja tido não como uma defesa do protestantismo ou aprovação da doutrina dos reformadores protestantes, mas pura e simplesmente como uma breve invectiva para explicar este tema, que tem sido tão mal interpretado tanto por protestantes quanto por católicos. 

No entanto, que se saiba que, após todas estas confusões em relação ao que concerne a autoridade das Escrituras, tanto por católicos quanto por protestantes, somente no séc. XX, o teólogo reformado suíço Karl Barth, que conseguira abalizar a questão e explicá-la adequadamente, mesmo diante das más interpretações de sua bibliologia; todavia, para se ter uma visão correta da doutrina das Escrituras do ponto de vista protestante, além das confusões que permearam este assunto, sem sombra de dúvidas, é as explicações de Karl Barth que devem ser levadas a sério, principalmente no volume I da Kirchliche Dogmatik” (principalmente: cap. III, §§ 19-21; mas aconselha-se que, se possível, se leia todo este volume); a par disso, as mais das vezes, se tem desequilíbrios racionais e teológicos, seja por obstinação seja por imbecilidade; etc. 

Além disso, em muitos aspectos - não em todos! -, a argumentação de Barth retoma de maneira sóbria e adequada o ensino cristão em geral a respeito das Escrituras, com equilíbrio e distinções corretas, o que acaba por se tornar útil à toda cristandade. 

θεῷ χάρις! 


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