1. Ora, tendo em vista a inerente dificuldade dos
assuntos filosóficos, principalmente devido a limitação da inteligência e a
limitação da linguagem para expressar as coisas que são de modo correto, se
estabeleceu, como que uma tradição, em definir, mesmo que de maneira geral,
todas as coisas existentes como ente; por isso, o termo ente passou a ser
designado para definir todas as coisas que existem na realidade.
2. Portanto, este designativo geral, em relação as
coisas naturais, é muito útil; no entanto, também possui limitações; ao se
definir todas as coisas como ente se açambarca um modo de analisar a realidade,
que até certo ponto tem alguma utilidade; todavia, ao se definir todas as
coisas da realidade como ente, se tem uma definição generalíssima, a qual não
significa as particularidades de cada ente.
Por isso, ao se aferir que tudo o que é, é ente, se
faz uma descrição geral, a fim de engendrar a compreensão sobre determinado
algo num modo adequado de compreensão sobre a realidade.
E, quanto a isso, não se tem problemáticas, já que o
próprio desenvolvimento da ciência e da filosofia é algo inerente ao mandamento
cultural do Criador à criatura (cf. Gn 1.28, 2.19-20a); e não somente na
perspectiva judaico-cristã, mas também na perspectiva árabe, onde também se
reafirma o cultivo da racionalidade através do estudo, pois a dignificação dos
islâmicos está na busca pelo conhecimento (cf. Al-Qur’án, 58.11).
3. Deste modo, ao se adentrar na explicação da
filosofia, a partir de vias aristotélicas, em todo o amplo âmbito do
aristotelismo, do antigo helenismo ao averroísmo e ao albertianismo/tomismo, se
tem um salutar aspecto para se facilitar a compreensão da análise da realidade;
assim, o termo ente é um dos primeiros termos a serem definidos e explicados no
âmbito da análise filosófica; e, como tal, sua utilização não impugna os
assuntos da fé; todavia, a utilização deste termo tem limites, e os mesmos precisam
ser explicados, tanto em função da melhor utilização da filosofia, quanto para
se evitar erros filosóficos que vituperam os mais importantes aspectos da fé.
Pois, a má utilização do termo ente, e sua
significação errônea, tem gerado uma compreensão despessoalizada da realidade e
da vida, quase como uma negação da realidade, tal como na filosofia oriental;
pois, se tem tomado os seres, os indivíduos, como se fossem coisas; e, pior, se
tem tomado o ser humano como uma coisa, o que é vituperação da dignidade
humana, além do que gera uma série de problemas sobre a significação teológica
do homem como criado a imagem de Deus; etc.
Ora, uma das razões da despessoalização, da
compreensão despessoalizada do ser humano está na não-compreensão e na má utilização
do termo ente, pois se tomara o termo ente como se fosse um dogma, enquanto na
verdade não o é. O termo ente é simplesmente um vocábulo para ajudar na
compreensão filosófica, não um dogma; por isso, se se utilizar o termo ente, é
apenas para melhor clarificar algumas ponderações e elucubrações racionais, não
para criar dogma filosófico.
4. Com isso, e a fim de que o conceito de ente seja
corretamente utilizado, se deve ter três aspectos, os quais devem ser muito bem
abalizados, a saber: primeiro, a definição de ente; segundo, as distinções
inerentes a ente; terceiro, as divisões inerentes ao estudo filosófico.
5. Primeiro, a definição de ente; em suma, se define
ente como a descrição de todas as coisas existentes; pois, tudo o que é, é o
que primeiro o intelecto concebe; por isso, no dizer de Avicena, ente é o que é
primeiro concebido pelo intelecto (cf. Met., I, 6); por isso, tudo aquilo que
é, é o que atina aos sentidos, e estes para a intenção da coisa presente na
alma, a fim de que ao captar algo da realidade, o intelecto racional abstraia
os indivisíveis, na simples intelecção; ora, ao fazer isso, a inteligência
começa a se desenvolver a partir da abstração sensível e racional dos costumes,
das definições dos entes tal como eles são na realidade.
Portanto, ao se definir ente, se faz em suma, a
definição generalíssima das coisas que são apreendidas ao serem atinadas pela
percepção sensível. Logo, ente, pode ser corretamente definido, como Avicena
propugnara, como aquilo que é primeiro concebido pelo intelecto, não porque o
intelecto concebe ente pura e simplesmente como tal, mas porque o termo ente é
usado para designar as coisas existentes, as quais, por sua vez, são realmente
o que primeiro o intelecto capta através da experiência sensível.
6. Segundo, as distinções inerentes a ente; ora, as
distinções concernentes ao ente, a partir de sua definição geral, dizem
respeito a se distinguir os entes em coisas e seres; as coisas, os objetos
inanimados; os seres, os objetos animados; nas coisas, se tem muitas
subdivisões, que não convém por ora evocar; no entanto, quanto aos seres, se os
subdivide primeiro através da distinção entre ente infinito e os entes finitos;
e, os entes finitos, ou seres, se os distingue em animais, seres humanos e
seres espirituais (substâncias separadas ou anjos).
Portanto, estas são as distinções mais fundamentais ao
se elucubrar sobre o ente; pois, ao se distinguir o ente finito em coisas e
seres, se sabe o modo como se deve designar de modo mais particular tanto as
coisas quanto os seres; pois, jamais se deve confundir ou não distinguir
corretamente, e por definições, a diferença entre coisas e seres, já que o
primado ontológico do indivíduo é preceito constituinte da ordem da realidade;
logo, nunca uma coisa será mais importante do que um ser.
Assim, tendo estas distinções de forma clara e
precisa, e observando os limites das mesmas, se consegue se utilizar
adequadamente do termo ente no que concerne a reflexão filosófica e às
exposições racionais.
7. Terceiro, as divisões inerentes ao estudo
filosófico; ora, tendo compreendido os dois aspectos mais primordiais a
respeito de ente, cumpre entender o modo como estes aspectos inerem no estudo
filosófico; pois, o modo como se define e o modo como se distingue o termo ente
dá a base para o próprio estudo filosófico, já que constitui a própria ordem
das disciplinas filosóficas; assim sendo, primeiro se dá a predicação, ou a
abstração de ente, o que está na lógica; logo após, se dá a predicação do ente
mais em geral, ou o ente móvel e suas espécies, o que é a física em geral, por
isso mesmo é tida como o prólogo da filosofia; depois, o ente enquanto ente, a
metafísica, a filosofia propriamente dita.
8. Deste modo, se observa que nesta tríplice distinção
se tem a compreensão sobre o estudo filosófico, a saber: primeiro, o
instrumento da reflexão filosófica, a lógica; segundo, a base da reflexão
filosófica, a física; terceiro, a filosofia em si, a metafísica.
Na lógica, a medida da abstração dos entes da
realidade, se compreende o próprio modo da mente funcionar; na física, a medida
da compreensão sobre os fenômenos naturais, se compreende as leis que os regem,
que estão em consonância com o modo do intelecto funcionar, e assim se
compreende o próprio modo como saber é disposto; na metafísica, a medida da
compreensão das coisas tal como elas são, se compreende o que concerne a
natureza dos entes e sua posição na ordem da realidade, o que por sua vez,
demonstra os graus de dignidade ontológica dos entes.
9. Portanto, para uma melhor compreensão do saber, e
dos aspectos amalgamados ao saber, se utiliza do termo ente em função desta
compreensão e para o desenvolvimento filosófico; e, lembra-se, isto no âmbito
do helenismo aristotélico, que perpassou a história; e, mesmo que tenha havido
muita rejeição ao aristotelismo após a escolástica latina, não foi tanto por
causa de reflexões filosóficas errôneas, mas dado que os mesmos elevaram tais
reflexões a patamares muitos altos, o que por si gerou certa estratificação,
posto que pensou-se que estava encerrada toda reflexão sobre a filosofia
aristotélica dado a qualidade das exposições filosóficas desta época.
10. No entanto, mesmo que neste sentido os
escolásticos tenham elevado a compreensão sobre a filosofia aristotélica, a
mesma não se resume apenas as sínteses escolásticas, embora estas tenham
extraído inúmeras riquezas do corpus aristotelicum.
Por isso, quanto ao aristotelismo, se deve sim se
utilizar das descobertas e ampliações corretas que provêm dos escolásticos
latinos; todavia, não se pode decair na petulância de evocar que todo o
aristotelismo se resume aos mesmos.
Pois, mesmo que Alberto, Tomás, Scotus, e outros,
tenham elevado o aristotelismo, e mesmo que Tomás seja tido como o Expositor do
Filósofo, ainda sim a filosofia aristotélica não se resume ao escolasticismo;
há inúmeros outros comentaristas e muitos comentadores que precisam ser
resgatados para a compreensão mais apurada do Filósofo.
Os escolásticos deram precisão a muitos pontos soltos
e solucionaram muitas aporias, mas existem ainda muitos outros pontos soltos e
ainda muitas outras aporias, provenientes inclusive dos próprios escolásticos, as
quais devem ser solucionadas, tais como a própria ambiguidade no conceito de
ente, a questão da analogia, etc.
11. Deste modo, se compreende que ao se ponderar sobre
a correta utilização do termo ente, se compreende uma série de outros aspectos
que vem amalgamados, posto que tal questão é açambarcada em todo o âmbito da
elucubração filosófica; embora, a filosofia não se resuma apenas ao
aristotelismo, o mesmo é um dos dois pontos da filosofia - o outro é o
platonismo.
Pois, como dissera Coleridge, todos os homens ou são
platônicos ou são aristotélicos; na verdade, se pode afirmar que os dois
pulmões da filosofia são o platonismo e o aristotelismo; assim, o conceito de
ente, mais comum ao aristotelismo, sendo utilizado corretamente, pode ser
entendido inclusive a partir de categorias platônicas, já que o que se define
como ente a partir do aristotelismo, se define como coisas existentes no
platonismo e nas outras escolas filosóficas helênicas.
Com isso, basta apenas evitar desvios conceituais,
analógicos e metafísicos provenientes da não-compreensão do termo ente, que a
reflexão filosófica continua a se desenvolver de maneira sóbria, e se for
utilizada em algum ponto em questões da fé, a fim de se ter uma melhor
compreensão e explicação da fé, não gerará nenhum problema e/ou heresia.
Ora, quanto a questão do conceito de ente e sua correta utilização, o que fora dito basta para uma compreensão adequada sobre o assunto, principalmente tendo por parâmetro as lentes da fé.
θεῷ χάρις!
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