Prefácio.
A vida e a obra de Roberto Grosseteste impressionam
não somente por sua obra como teólogo, filósofo, cientista, bispo e professor;
mas, principalmente porque ao realizar tanto em vários campos do saber, também
influenciou profundamente a época em que viveu; embora o pensamento filosófico
de Grosseteste tenha algumas falhas, seu legado continua imenso e profundamente
profícuo, principalmente em questões científicas.
Na verdade, os labores de Grosseteste foram um modo de
acrescer e de complementar o ímpeto cultural do alto desenvolvimento que se
tornara ainda mais incisivo a partir do séc. XI; pois, seguindo a linha do que
já havia sido feito desde o Abade Suger de Saint-Denis, com as inovações da
arquitetura gótica, que transparecia, lucidamente e de maneira eficaz, a
relação entre o cosmos e o ser humano, em princípios hierárquicos, embasados
nos preceitos de Pseudo-Dionísio.
Pois, o que o Abade Suger houvera feito no tocante a
arquitetura, era o que já havia sendo feito filosoficamente desde Boécio (séc.
VI), e que alcançara um fulgor peculiar a partir da renascença carolíngia
(sécs. VIII-IX), a saber, entre tantos aspectos, a integração entre cosmologia
e antropologia, demonstrado na simbologia natural e religiosa, transcrevendo a
glória de Deus em cada aspecto da criação e principalmente na coroa da criação,
o homem.
Isto, por si, perfaz alguns aspectos da grandeza da
escolástica, a qual Grosseteste em sua época elevará principalmente no
desenvolvimento de questões ligadas a filosofia da natureza e de questões
científicas, ao mesmo tempo em que novamente recuperava os preceitos do método
científico aristotélico, a observação e a experimentação; mas, como se pode
observar não somente por seu conteúdo filosófico e científico as obras de
Grosseteste chamam a atenção, mas por conseguir concatenar os aspectos naturais
numa simbologia plena de sentido e de vigor intelectual.
Na verdade, esta questão que se observa nos escritos
de Lincolnense, principalmente em seu interesse por questões da filosofia
natural, é parte integrante do desenvolvimento cultural desde Boécio; pois, a
concatenação dos princípios da natureza, do sistema astrológico (da astrologia
científica), e da antropologia bíblica, tomaram as mais variadas formas, e
foram expressas, de maneira contundente, através das artes, das ciências, da
filosofia e da teologia; portanto, era um preceito fundamental da alta-cultura
a concatenação destes princípios e sua relação com a simbologia natural da
ordem cósmica, principalmente a partir dos princípios hierárquicos delineados no
Corpus Dionysiacum.
E, para se entender esta questão se evoca outro
exemplo, a saber, o que Sta. Hildergarda de Bingen fizera no livro “Causae
et curae - Liber compositae medicinae”; pois, o que as catedrais góticas
fizeram arquitetonicamente na relação entre o homem e o cosmos em toda a
simbologia natural, Sta. Hildergarda fizera neste ilustríssimo livro de maneira
assombrosa; neste icônico livro em que Sta. Hildegarda elucubrara sobre as
plantas e suas propriedades para a saúde humana, é descrito a relação
concêntrica entre o homem e o universo, não somente do ser humano enquanto
mordomo da criação, mas principalmente na proposição de que a criação está
presente no próprio homem, ao este ser a coroa da criação.
Este é um preceito fundamental do saber, que
infelizmente fora deixado de lado, e atualmente é quase que totalmente
desconhecido; e, quanto isso, se observa obviamente que isto nada tem a ver com
panteísmo ou coisas similares; mas apenas para aclarar que quanto as coisas
naturais, o universo possui uma harmonia tal que tudo está inter-ligado
naturalmente, e o ser humano está imbuído nesta harmonia.
No entanto, cumpre designar que esta harmonia tem a
ver com as coisas naturais, pois a vida humana não está sujeita aos preceitos
moventes dos corpos celestes quanto ao movimento da vontade (ou questões
espirituais); mas, tal harmonia permeia totalmente as coisas naturais na ordem
da natureza; ou, como dissera Olavo de Carvalho, “o ser humano está livre de
todas as influências astrais, embora elas dominem todo o horizonte terrestre no
qual ele se move”.
Por isso, a compreensão plena sobre este aspecto, e
sua efetivação no saber e na vida cotidiana, é um dos preceitos mais
importantes para o desenvolvimento do saber, e da própria vida - da
personalidade do indivíduo e de sua compreensão sobre o mundo em que vive,
tanto no sentido espacial quanto no sentido ético.
Pois, a não utilização da simbologia natural gerará a
possibilidade da aceitação ou da implementação de uma simbologia anti-natural e
ideologizadora, tal como por exemplo o fazem a cultura dita “woke”, os comunistas,
os globalistas, os liberais, etc.; e a problemática se estabelece justamente na
falta de uma simbologia natural, o que impede o desenvolvimento do indivíduo e a
formação de sua personalidade.
Deste modo, se compreende toda a problemática em torno
da falta desta simbologia; e, por isso, se retoma este breve texto de
Grosseteste; pois, este texto, muito provavelmente uma resposta ou uma breve
anotação, contém elementos profundíssimos que evocam justamente a relação entre
o homem e o cosmos, a qual é a base e o fundamento da simbologia natural, que
tanto concerne a ordem da grandeza dos corpos – o heliocentrismo -, quanto a
ordem de eminência na criação – o geocentrismo.
Ora, estas perspectivas estão inter-ligadas, pois a
primeira refere-se a descrição dos corpos celestes, e a segunda refere-se a
representação da vida humana no cosmos; a primeira é insuficiente para
representar a vida humana, a segunda insuficiente para representar a ordem dos
corpos celestes; por isso, devem ser inter-relacionar de modo concêntrico e
complementar, como já esclareci brevemente noutro escrito.
Portanto, a proposição grossetiana, é em si mesma e
àquilo a que aponta, de suma importância; pois, como fora dito, o que as
catedrais góticas fizeram arquitetonicamente, e o que Sta. Hildegarda fizera no
livro supramencionado, entre outros exemplos formidáveis na escolástica, etc.,
fora o que Grosseteste fizera neste brevíssimo escrito intitulado “Quod homo
sit mundus minor”, que acopla todas essas descrições feitas bem como
pontifica o caminho para uma correta compreensão sobre o mundo e sobre o homem
tanto a partir da natureza quanto a partir da revelação.
Com isso, a descrição de Grosseteste do homem como “mundus
minor”, como um mundo menor - ou como um microcosmo -, é adequada para a
compreensão sobre o que concerne a necessidade de uma simbologia natural que
não rejeite a natureza e a ordem cósmica, mas que também não menospreze a
posição do homem no cosmos, bem como que oriente a compreensão sobre a vida
humana tanto em relação a ordem cósmica quanto em relação ao valor vida do ser
humano.
Por isso, este texto, mais especificamente, é acoplado
pelo Dr. Ludwig Baur em conjunção com o “De Luce” (Sobre a Luz), como um
texto que está em ordem a cosmologia; e, talvez, tal pressuposição chegue a
desconcertar; mas, realmente, tal texto é como um corolário a compreensão
cosmológica estabelecida por Grossesteste; e, embora não verse diretamente
sobre problemas cosmológicos, toca no assunto quanto a simbologia natural e sua
utilização de acordo com a ordem cósmica, e perfaz a concatenação entre
cosmologia e antropologia, tornando a própria antropologia, a partir de sua
natureza simbólica, um modo para a compreensão do que concerne a cosmologia,
formando assim uma cosmologia antropológica ou uma antropologia cosmológica.
Na verdade, este escrito, é uma glosa a toda a
grandiloquente e peculiar metafísica da luz desenvolvida no “De Luce” e
em seu notabilíssimo “Hexaëmeron”.
Assim, na invectiva de se explicar e comentar alguns dos
textos de Grosseteste, se inicia por este breve escrito, que açambarca uma
série de aspectos diversos e que discorre sobre vários temas e assuntos
importantes, tal como os que foram delineados neste prefácio; pois, muitas são as
possibilidades instrumentais e reais presentes nas entrelinhas deste texto,
oriundo da pena do precursor do método científico moderno, aquele que exercera
profunda influência em Roger Bacon, o cientista que anteviu muitos dos assuntos
e tópicos discutidos na ciência hodierna, o primeiro intelectual a servir como
chanceler da Universidade de Oxford (salvo o engano!), e aquele que desenvolveu
um duplo preceito para o desenvolvimento científico através do método da
resolução e composição (o mais remoto preceito metodológico que serve para a
elucubração sobre a combinação das duas esferas da natureza, a das operações
visíveis e a das operações ocultas); etc.
Por estas e outras razões, é sempre importante
consultar o que Grosseteste tem a dizer sobre questões teológicas, filosóficas
e científicas.
Soli Deo Gloria!
In Nomine Iesus!
14 de outubro de 2024.
Texto de Grosseteste.
O grandioso Deus fez o homem a semelhança de si mesmo. O
corpo do homem se compõe de carne e ossos. Deste modo, se divide nos quatro
elementos. Pois, em si tem algo do fogo, algo do ar, algo da água, algo da
terra. A razão da terra está na carne; a da água no sangue, a do ar no
espírito; a do fogo no calor vital. Pois também a razão quadrupla do corpo
humano designa as quatro espécies de elementos. Pois, a cabeça se refere ao
céu, nonde estão os olhos tal como os luminares do sol e da luz. O peito se
relaciona com o ar, porque assim como dele se emite a respiração expirada,
assim do ar os sopros dos ventos. O ventre se assimila ao mar pelo conjunto de
todos os fluídos, assemelhando-se a conjunção das águas. Por último, os
extremos se comparam a terra. Pois os extremos dos membros são áridos como a
terra ou secos como a terra.
A. Proêmio.
1. “Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos,
a lua e as estrelas que preparaste; que é o homem mortal para que te lembres
dele? E o filho do homem, para que o visites? Contudo, pouco menor o fizeste do
que os anjos e de glória e de honra o coroaste” (Sl 8.3-5); ora, estas
palavras do salmista referem-se a dignidade do ser humano como ser criado a imago
Dei; pois, o homem fora feito em perfeição menor do que os anjos, mas fora
coroado pelo Criador de glória e de honra, isto é, lhe fora outorgado o ser o
mordomo da Criação, já que diferentemente dos anjos, fora criado a imagem e a
semelhança da Santíssima Trindade.
2. Por isso, ao homem é dada a ordenança divina para
que domine sobre toda a natureza (cf. Gn 1.28), tal como o salmista também
afirma: “Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo
puseste debaixo de seus pés: todas as ovelhas e bois, assim como os animais do
campo; as aves dos céus, e os peixes do mar, e tudo o que passa pelas veredas
dos mares” (Sl 8.6-8); portanto, ao homem compete dominar e sujeitar a
natureza, de modo a haurir da natureza tudo quanto é necessário para a vida
humana, ao mesmo tempo em que cuida e vela pela natureza (cf. Gn 2.15).
3. Logo, o ser humano, diante do cosmos criado por
Deus, e diante de todo o esplendor da Criação, tem uma tarefa estabelecida pelo
Criador; por isso, o ser humano, “homem mortal”, diante de todo o
cosmos, é um pequeno ser; mas, por sua função, é de suma importância, pois, “de
glória e de honra o coroaste”; por isso, como Basílio diz: “Desta sorte,
ele nada é, tomando-se em consideração a matéria do que foi feito, mas é grande
por causa da honra que lhe foi outorgada”[1];
ora, esta é a dialógica que pesa sobre o homem: nada é, quanto ao que é; e é
grande, quanto a dignidade que fora lhe outorgada pelo Criador.
4. Além disso, diante de sua função ante a Criação,
pondera-se sobre o modo como o homem a executa; ora, sobre isso, as Escrituras
dizem duas coisas: primeiro, que o homem cuida e lavra a terra (cf. Gn 2.15),
isto é, que faz o necessário para manter e preservar a vida natural; segundo,
que o homem desenvolve o saber ao nomear todos os animais (cf. Gn 2.20a), isto
é, desenvolve a ciência e a arte de acordo com a própria realidade.
5. Assim, o homem diante do universo tem uma posição
peculiar e singular, ao mesmo tempo em que ordena a compreensão sobre o
universo a partir da ordem do próprio universo; ora, a ordem do universo
designa uma simbologia natural; portanto, tudo o que o homem desenvolve a
partir desta ordem, será expresso por uma estrutura simbólica natural, em
consonância tanto com a natureza em geral quanto com a natureza humana em
particular; portanto, diante do “mundo maior”, isto é, de todo o
universo observável e possível, se tem um “mundo menor”, isto é, o
observador deste universo, o homem.
6. Por isso, ao se aferir a ordem cósmica, se fala
sobre “mundo maior” ou macrocosmo, e ao se compreender quem afere esta
ordem, se fala sobre “mundo menor” ou microcosmo; ao se falar do
universo como “sistema total das latências” (a expressão é de Olavo de
Carvalho!), se o define como um macrocosmo; e ao se falar sobre o ente mais
importante do universo criado, aquele que busca assimilar estas latências, se o
define como um microcosmo; pois, o macrocosmo só é entendido pelo microcosmo,
principalmente em se tratando da assimilação-acomodação da ordem cosmonômica,
isto é, da ordem que demonstra que o homem é um “mundo menor” diante do “mundo
maior”, e vice-versa.
7. Ora, tal designação é assaz necessária; pois, traz
imbuída tudo quanto é necessário para se adentrar a compreensão do universo,
quanto para se entender sobre a glória e a honra do homem como conferidas pelo
próprio Criador; ou dito em outros termos, sobre a beleza do cosmos, e sobre a
posição do homem no cosmos; e isto sempre é expresso em termos simbólicos,
tanto em relação a natureza em geral, quanto em relação a natureza humana em
particular, e as vezes, na amalgama destas; pois, a realidade sempre é expressa
através do simbolismo, e o simbolismo sempre expressa algo da realidade; e,
para que esta expressão se coadune com o real - e com a sobriedade psíquica -,
é necessário que este simbolismo seja um simbolismo natural.
8. Portanto, a intenção de Grosseteste, no breve
escrito “Quod homo sit mundus minor”, é justamente fazer uma declaração
a respeito do fato do homem como um “mundo menor”; e, ao fazê-lo,
acoplar a explicação de que toda a ordem cósmica é explicada a partir do ser
humano, tanto em relação a própria terra quanto em relação aos corpos celestes,
donde surge a inter-relação entre geocentrismo e heliocentrismo.
Por isso, Grosseteste amalgama vários princípios e
pressupostos que demonstram esta inter-relação, com analogias entre os
elementos naturais e as partes do corpo humano, as quais integram todo este
simbolismo natural, designado especificamente pelo Lincolnense para a
explicação da proposição central que delineara neste breve escrito.
9. Ora, tal proposição, por sua vez, integra vários
aspectos, que vão da teologia as ciências naturais, etc.; por isso, Grosseteste
conseguira reunir e sintetizar neste escrito tudo aquilo quanto concerne a
compreensão sobre o ser humano e sua relação com a natureza; e, pelos preceitos
naturais analogados por Grosseteste, se constata uma série de princípios
simbólicos fundamentais.
Pois, Grosseteste conseguira demonstrar a posição do
homem no cosmos, tanto em ordem aos preceitos naturais, quanto em ordem as
preceituações simbólicas que destes emergem, já que isto concerne,
evidentemente, ao preceito do saltério: “pouco menor o fizeste do que os
anjos e de glória e de honra o coroaste” (Sl 8.5); pois, o homem é um ser
físico-espiritual-moral; e ao sê-lo, também é um ser cultural; e tudo o que é
cultural é simbólico; logo, o homem ao ser um animal cultural, também é um
animal simbólico; portanto, o que concerne a proposição do Lincolnense neste
escrito, está em ordem ao preceito de que o homem é um animal simbólico.
B. Comentário.
1. A dignidade do ser humano se dá tanto por ter sido
criado a imago Dei (cf. Gn 1.26), quanto por ser instituído como mordomo
da criação (cf. Gn 1.28); mas, a isto se acrescenta que, a dignidade do ser
humano se demonstra tanto em seu relacionamento com o Criador (cf. Gn 2.16-17),
quanto em seu cuidado para com a criação (cf. Gn 2.15); e em relação ao cuidado
para com a criação, se estabelecem dois princípios: primeiro, que o homem ao
cuidar e velar pela criação demonstra tanto sua dignidade como mordomo da
criação, quanto a importância da própria criação; segundo, que o homem ao
cuidar da criação, extrai da inter-relação com a mesma, os preceitos e os
símbolos básicos de como deve organizar a vida neste mundo quanto as coisas
naturais. E ambos os aspectos estão inter-relacionados, pois, são subsequentes
e complementares; por isso, quando um destes aspectos é desfigurado, o outro
também é.
2. Assim, se constata de maneira mais evidente que o
segundo aspecto tem sido paulatinamente desfigurado; portanto, a dignidade
humana tem sido solapada justamente porque se tem renegado e/ou desprezado os
saberes que emergem da inter-relação do homem com o cosmos, e, por
consequência, se tem a não-compreensão e/ou não-valoração dos preceitos e
símbolos naturais que emergem desta inter-relação.
E, quanto a isso, se compreende uma problemática assaz
aporética, pois, esta não-compreensão se estabelece tanto sobre questões em
relação ao conhecimento quanto sobre questões em relação a vida interior do
próprio indivíduo; em suma, obnubila o ímpeto para o saber, bem como
despersonaliza.
No entanto, a raiz desta problemática está no
desconhecimento da causa primeira, da qual provêm o homem e tudo o que existe;
pois, sem o conhecimento da causa, não se compreende o que é necessário sobre
os causados; ora, sem o conhecimento de Deus, não se pode conhecer o homem e
nem a natureza de maneira adequada, pois, o próprio Deus é quem outorga o
conhecimento. “E o que dá ao homem o conhecimento, não saberá?” (Sl
94.10b).
3. Portanto, o homem perdeu o conhecimento de si, do
cosmos e de sua inter-relação com o cosmos, quando perdeu o conhecimento de
Deus, tal como Dooyeweerd constatou: “O homem perdeu o verdadeiro
autoconhecimento desde que perdeu o verdadeiro conhecimento de Deus”[2].
Pois, o verdadeiro conhecimento de si, se dá a medida do conhecimento de Deus,
ou causa primeira; Agostinho afirmara: “o que sei de mim, eu o conheço
graças à tua luz”[3]; por
isso, os homens, ao buscarem o conhecimento das causas, acabam por chegar ao
conhecimento de uma causa incausada, ou causa primeira.
4. Assim, se pode constatar que somente sob a luz
superior, se pode conhecer adequadamente o homem, o cosmos e a inter-relação do
homem com o cosmos; pois, embora a luz interior seja muito útil neste quesito,
ela permite apenas organizar o que concerne a inter-relação do homem com o
cosmos a partir da reta razão, e não aclara totalmente a natureza humana, a
qual só é conhecida plenamente a partir daquele que a criou; logo, da luz
superior se emana o conhecimento primeiro a respeito do homem e do cosmos, e da
luz interior se emana o conhecimento a respeito do homem enquanto ser
relacional com o cosmos.
5. Ora, em relação a esta perspectiva, Grosseteste
elaborara um breve escrito, que açambarca estes aspectos e os abaliza a partir
tanto da luz superior, quando a partir da luz interior; portanto, neste
escrito, Grosseteste especificamente trabalha a noção da inter-relação do homem
com o cosmos, ou numa proposição mais burilada, na designação do homem como
microcosmo, e nas nuances que vem amalgamadas; com isso, Grosseteste pontilha
os preceitos fundamentais que devem permear essa reflexão, ao mesmo tempo em
que a demonstra de maneira grandiloqüente, tanto em ordem a luz superior,
quanto em ordem a luz interior.
6. E, neste escrito, Grosseteste faz nove coisas:
primeiro, evoca a obra do Criador; segundo, delineia a natureza corpórea do ser
humano; terceiro, evoca a analogia entre o corpo humano e os elementos da
natureza; quarto, demonstra a comparação entre os elementos da natureza e o
corpo humano; quinto, delineia as partes do corpo e a sua respectiva analogia
com as quatro espécies de elementos; sexto, evoca a primeira parte do corpo e
sua analogia com o céu; sétimo, evoca a segunda parte do corpo e sua analogia
com o ar; oitavo, evoca a terceira parte do corpo e sua analogia com as águas;
nono, evoca a quarta parte do corpo e sua analogia com a terra.
7. Primeiro, evoca a obra do Criador, onde diz: “O
grandioso Deus fez o homem a semelhança de si mesmo”; em primeiro lugar evoca
a obra do Criador, demonstrando quem é o Criador: “O grandioso Deus”; o
Criador é definido como Grande, tanto por Seu Ser quanto por Ser poder (cf. Sl
95.3; 96.4); pois, a natureza do Criador, demonstra a excelência de Sua obra, a
Criação (cf. Sl 104.24); e a mais importante entre as criações de Deus é o
homem, pois, “fez o homem a semelhança de si mesmo”; Deus criara o homem
a sua imagem e semelhança (cf. Gn 1.26), e o homem fora coroado de honra e
glória pelo próprio Criador devido a esta imagem e semelhança (cf. Sl 8.3-8).
Portanto, ao evocar a obra do Criador, tanto demonstra
a grandeza infinita do Criador, quanto demonstra a beleza da obra da criação,
principalmente da coroa de toda a criação, a saber, o homem; logo, sendo o
Criador grande, criou o homem com uma grandeza acima de toda a criação; e em
relação aos seres criados menor apenas do que os anjos (cf. Sl 8.5). A grandeza
do Criador demonstra o modo e a forma do que concerne a grandeza da criatura.
8. Segundo, delineia a natureza corpórea do ser
humano, onde diz: “O corpo do homem se compõe de carne e ossos”; ora, o
homem é criado com uma forma corpórea; por isso, o corpo do homem se compõem de
duas partes principais, carne e ossos: carne como princípio da vida orgânica, e
ossos como princípio da sustentação de sua vida orgânica; logo, a natureza
corpórea do ser humano, sua forma, é o ponto de contato do mesmo com o restante
da criação; pois, é pelos sentidos corporais que se tem o contato com a realidade.
Além disso, através do amor pelo conhecimento sensível, diz o Filósofo, se
observa que os homens tendem ao saber (cf. Met. 980a22-24).
Logo, a natureza corpórea do ser humano, pela qual se
demonstra a dupla proveniência do homem: a do criador, donde advêm sua
dignidade; e do pó da terra, onde advêm sua miséria. Assim, o ser humano tem
uma dupla realidade a qual lida em si mesmo: grandeza e miséria; e em sua
natureza corpórea isso é demonstrado, já que ao ser formado de carne e ossos,
respectivamente, se tem a mesma significação: carne para demonstrar a miséria e
fragilidade; ossos para demonstrar a firmeza e a dignidade.
E, por exemplo, é por esta razão que quando se diz da
humilhação do Senhor Jesus Cristo, dada sua divindade, afirma-se que não foram
quebrados os seus ossos (cf. Sl 34.20; Jo 19.36), pois, mesmo em Sua humilhação
manteve sua grandeza já que era inocente, ou como diz o Príncipe dos Apóstolos:
“o justo pelos injustos” (1Pe 3.18); etc.
9. Terceiro, evoca a analogia entre o corpo humano e
os elementos da natureza, onde diz: “Deste modo, se divide nos quatro
elementos”; ora, tendo o corpo humano esta natureza específica, se observa
que na constituição do mesmo além de ter algo elementar e em ordem a designação
dos elementos da natureza, o próprio corpo é afetado por estes elementos; pois,
tudo o que é corpo está em algum modo de relação com os elementos da natureza,
já que possui algo dos mesmos, como afirma o Filósofo no livro II do Sobre a
Geração e a Corrupção (cf. De Ger. et Corrup., II, 8); ora, em
analogia se pode aplicar este preceitos dos corpos com relação ao corpo humano,
e se demonstrar a relação entre o corpo humano e os elementos da natureza, já
que a matéria de que fora feito o corpo humano é o pó da terra (cf. Gn 2.7), no
qual se encontram alguns dos elementos da natureza; por isso, se pode evocar
uma analogia, isto é, uma relação de semelhança e dessemelhança entre o corpo
humano e os elementos da natureza, tanto em relação ao corpo humano quanto em
relação aos elementos da natureza.
10. Quarto, demonstra a comparação entre os elementos
da natureza e o corpo humano, onde diz: “Pois, em si tem algo do fogo, algo
do ar, algo da água, algo da terra. A razão da terra está na carne; a da água
no sangue, a do ar no espírito; a do fogo no calor vital”; ora, tendo sido
explicado a relação analógica entre o corpo humano e os elementos da natureza,
se estabelece a demonstração da comparação entre ambos; pois, tendo
estabelecido a regra de tal pressuposição, a analogia, se pode fazer uma
comparação; pois, o corpo, “em si tem algo do fogo, algo do ar, algo água,
algo da terra”; assim, se compreende que a razão da analogia está na
natureza do próprio corpo, em que, se constata tanto ontologicamente quanto
fisicamente a presença dos elementos da natureza. Logo, no corpo se tem a razão
de cada um dos quatro elementos, donde ser deveras correto a proposição de que
há uma comparação entre os mesmos e o corpo humano.
11. Portanto, se constata esta afirmação do seguinte
modo: “A razão da terra está na carne”, isto é, a analogia entre a terra
e o corpo está numa das partes constitutivas do corpo, a saber, a carne, que é
feita do pó da terra, e a própria terra possui uma natureza que provêm da
carne, o que é constatado pela ciência, pois, o ser humano provém do pó e ao pó
retorna (cf. Gn 3.19).
Outrossim, é que na constituição da terra, tem muitos
elementos que estão presentes na constituição do corpo; o que, cientificamente,
demonstra que o ser humano tem certa similitude com a natureza da terra; pois,
alguns dos minerais e os elementos constitutivos da terra, também estão nos
elementos constitutivos do corpo, embora de modo diverso (o que per se é
evidente!).
Assim, a natureza corpórea do ser humano tem relação
com a terra, não somente pelo contato sensível com a terra, pois os elementos
constituintes da mesma também estão no corpo; o que indica tanto a proveniência
do corpo - do pó -, quanto sua natureza - de carne (em comparação: terra mole,
ou pó) e de ossos (em comparação: terra firme, ou estrutura rochosa); pois,
tanto a carne quanto os ossos, a dupla natureza do corpo, tem similitude com a
dupla natureza da terra, estrutura térrea e estrutura rochosa; etc.
12. Além disso, “a da água no sangue”, isto é,
a razão da água está no sangue já que este é liquido e flui dentro do corpo
humano tal como o fluir das águas; e se observa que o ser humano tem a maior
parte do seu corpo composto de água; portanto, em relação a constituição do
corpo humano, o homem tem a razão da água em sua natureza corpórea; no caso da
analogia evocada, a razão da água se demonstra através da constituição
sanguínea do ser humano.
Outrossim, é que a vida da carne está no sangue (cf.
Lv 17.11), isto é, a vida natural; logo, ao se comparar analogicamente a água
enquanto elemento natural e a natureza sanguínea do corpo humano, se percebe a
importância impreterível dos mesmos ao ser humano; tanto que se fala do
coração, órgão que bombeia o sangue em todo o corpo, como princípio do
movimento animal (cf. STh Ia IIae, q. 17, a. 9, arg. 2), e o mesmo se dá com a
água, sem a qual não há vida natural, a qual também é imprescindível para a
vida humana; aliás, até se afirma um adágio científico: “água é vida”;
etc.
13. Além disso, “a do ar no espírito”, isto é,
a razão do ar está no espírito; isto é, analogia entre o ar e o corpo humano se
mostra através do espírito; tanto o é, que a mesma palavra era utilizada pelos
antigos para descrever tanto o ar, como elemento natural, quanto o espírito,
como parte da constituição do ser humano; pois, o Criador após ter feito o
homem do pó da terra, soprou em suas narinas o ar da vida ou fôlego da vida
(cf. Gn 2.7a); o ar que Deus soprou que fez o homem ser alma vivente (cf. Gn 2.7b),
isto é, o fizera ser um “ser desejante”.
E isto também se constata pela natureza do ar; pois, o
ar move-se sem que ninguém o veja; assim também é o espírito, é o princípio de
toda a vida humana, e ninguém o vê; pois, o ser humano é composto de uma
unidade, corpo e alma (ou espírito); logo, nesta unidade, o espírito é nonde
está o folego de vida, e este fôlego permeia toda sua natureza corpórea
dando-lhe vida natural, a qual permeia sua carne e sangue, já que a vida de sua
carne está no sangue; e, quando a vida acaba, o sangue para de se mover no corpo,
e aos poucos a carne apodrece, demonstrando que a vida do corpo está no
princípio do movimento animal e na animalidade.
Pois, o ar, que para Anaximandro era o princípio de
todas as coisas - e, quanto a natureza humana em parte está correto -, pois, o
ar diferencia-se nas substâncias por rarefação e condensação (cf. DK 13 A 5),
já que o ar possui a vantagem de ser o mais liberto da forma (a expressão é de
Hegel!); por isso, se diz que a razão do ar está no espírito, já que o espírito
em si não possui forma corpórea; assim, o espírito humano é o princípio da vida
humana como um todo, tanto em relação a vida natural, no corpo, quanto em
relação a vida espiritual, no espírito, bem como da vida psíquica, na alma.
Portanto, se compara o ar com a alma, pois tanto o ar
quanto a alma não possuem limites físicos; pois, segundo o dito atribuído a
Heráclito, se se procurasse os limites da alma não seriam encontrados (cf. DK
22 B 45); logo, como o ar não possui limites (delimitações físicas), assim como
a alma (embora a alma esteja no corpo), então, é correto se fazer uma analogia
entre o ar e a alma.
14. Além disso, “a do fogo no calor vital”,
isto é, a razão do fogo está no calor vital; pois, do mesmo modo como fogo
emana calor, assim o corpo possui um calor vital, dado a vida natural no mesmo,
a qual é significada pelo sangue que corre por todo o corpo; logo, o calor
vital é entendido como o bom funcionamento do corpo, pelo fato do corpo está
bombeando sangue em toda sua extensão, o que torna o corpo numa temperatura
térmica adequada para a vida.
Outrossim, é que se compara o fogo ao calor vital,
devido as propriedades do fogo; o Teólogo afirma que entre as coisas sensíveis,
o fogo é a com maior nobreza, a com maior brilho, o mais ativo[4], etc.;
logo, o fogo, com estas e outras características, é comparado ao calor vital,
pois, este também tem estas características, conquanto em relação ao princípio
do movimento animal; logo, o calor vital é nobre e é o mais ativo, pois
demonstra a força e vitalidade do corpo humano quanto ao seu funcionamento
natural.
Portanto, do mesmo modo como o fogo está para a
natureza, o calor vital está para o corpo; na verdade, em uma comparação bem
simples e genérica, se pode afirmar que o que o fogo é para a natureza, o calor
vital é para o corpo; o que fogo faz na natureza, o calor vital faz no corpo;
etc. Logo, a razão do fogo, um dos elementos naturais, está no calor vital,
propriedade inerente a natureza corpórea do ser humano. Pois, como dissera o
Filósofo, a vida e a posse de alma dependem de um certo grau de calor (cf. Resp.
474a25-26).
15. Quinto, delineia as partes do corpo e a sua
respectiva analogia com as quatro espécies de elementos, onde diz: “Pois
também a razão quadrupla do corpo humano designa as quatro espécies de
elementos”; ora, tendo compreendido a analogia do corpo com os elementos,
se prossegue para compreender a relação entre as partes do corpo e sua analogia
com as quatro espécies de elementos; pois, do mesmo modo como o corpo se
relaciona com os quatro elementos da natureza, assim também as partes gerais do
corpo também se relacionam; e o mesmo princípio analógico que fora aplicado com
relação a natureza corpórea do homem e os elementos da natureza, também pode
ser aplicado em relação as partes do corpo e os quatro elementos naturais.
Por isso, diz: “a razão quadrupla do corpo humano”,
isto é, a constituição geral do corpo humano; e, quanto a isso, duas coisas são
afirmadas: primeiro, a razão do corpo humano é delineada de acordo com o modo
com que foi formado; segundo, a razão do corpo humano é quadrupla, tanto em
relação a sua dignidade, quanto em relação a sua função perante a natureza.
Portanto, a “razão quadrupla” do corpo humano,
diz respeito a natureza humana em particular, bem como diz respeito ao contato
do ser humano com a natureza em geral. Pois, o ser humano só pode velar pela
natureza em geral, tendo em si algo desta natureza; pois, o que é natural se
defronta com o que é natural, e a natureza só pode ser entendida a partir da
natureza e do contato com a mesma.
Por isso, a razão quadrupla do corpo humano “designa
as quatro espécies de elementos”, isto é, significa analogicamente as
quatro espécies de elementos; pois, esta razão quadrupla, se defronta com a
razão quadrupla que está na natureza, a saber, as quatro espécies de elementos;
portanto, há uma relação natural dada a similitude dos elementos na natureza e
no corpo humano, conquanto estejam de modo distintos em ambos; mas, como estão
em ambos, então, se inter-relacionam, o que está em ordem tanto em relação a
função do homem como mordomo da criação (cf. Gn 1.28), quanto está em ordem ao
desenvolvimento saber (que está interligado com o desenvolvimento da
personalidade, da vida, etc.).
16. Sexto, evoca a primeira parte do corpo e sua
analogia com o céu, onde diz: “Pois, a cabeça se refere ao céu, nonde estão
os olhos tal como os luminares do sol e da luz”; ora, tendo demonstrado a
relação entre as partes do corpo e os quatro elementos da natureza, prossegue e
demonstra cada uma das partes do corpo e sua relação com os elementos da
natureza; em primeiro lugar, evoca a primeira parte do corpo, a cabeça, e sua
analogia com o céu; pois, “a cabeça se refere ao céu”, isto é, a
primeira parte do corpo, a cabeça, com a primeira obra da Criação, o céu (cf.
Gn 1.6-8); logo, o que a cabeça é para o corpo, o céu é para a criação, pelo
menos, quanto a ordem dos elementos.
Por isso, a comparação é feita também tendo em vista
outro aspecto, a saber: “nonde estão os olhos tal como os luminares do sol e
da luz”, isto é, como os olhos são os luminares do corpo (cf. Mt 6.22-23),
assim o sol e a lua são os luminares que estão nos céus (cf. Gn 1.16). Logo, há
similitude entre a cabeça como parte do corpo e os olhos com o céu e os seus
dois luminares (sol e lua). Pois, do mesmo modo como os dois luminares no céu
cumprem o propósito específico para o qual foram criados, tanto em relação a
terra quanto em relação ao universo específico (ao nosso sistema planetário),
do mesmo modo os olhos também tem uma função importantíssima, tanto em relação
aos sentidos naturais quanto em relação a alma.
17. Sétimo, evoca a segunda parte do corpo e sua
analogia com o ar, onde diz: “O peito se relaciona com o ar, porque assim
como dele se emite a respiração expirada, assim do ar [se expelem] os sopros
dos ventos”; ora, tendo evocado a primeira parte do corpo, prossegue para
evocar a segunda, a saber, o peito; e “o peito se relaciona com o ar”,
isto é, a parte do corpo onde estão os órgãos respiratórios se relacionam com o
ar; e isto é algo evidente quanto a natureza do elemento e a natureza do corpo
humano; pois, o próprio modo de funcionar do peito demonstra isso: “porque
assim como dele se emite a respiração expirada”, isto é, a saída do ar,
pois, o peito, mais propriamente os pulmões (em relação com o coração), possuem
a respiração de dois modos, a aspiração e a expiração; a entrada do ar é
chamada de aspiração, e sua saída, expiração (cf. Resp. 480b9-10).
E do mesmo modo como o peito expele o ar, “assim do
ar os sopros dos ventos”, isto é, do ar se expelem os sopros dos ventos,
que são uma forma do ar; portanto, a segunda parte do corpo se relaciona com o
ar ao modo da respiração expirada, pois assim o ar se dá no sopro dos ventos.
Logo, um efeito natural, o sopro dos ventos, possui a mesma estrutura de um
efeito corporal, a respiração expirada; e ambos com relação ao ar. Por isso, no
que concerne ao fôlego de vida, se compara o mesmo com o ar, elemento fundamental
para a vida do mundo, por assim fizer, o “fôlego do mundo”.
18. Oitavo, evoca a terceira parte do corpo e sua
analogia com as águas, onde diz: “O ventre se assimila ao mar pelo conjunto
de todos os fluídos, assemelhando-se a conjunção das águas”; ora, tendo
evocado a segunda parte do corpo e sua analogia com o ar, passa a evocar a
terceira parte do corpo, o ventre, e sua analogia com as águas; pois, se o
mundo fosse tomado simbolicamente como um corpo, seu ventre seriam os mares;
logo, “o ventre se assimila ao mar pelo conjunto de todos os fluídos”,
pois, o ventre era tido pelos antigos como o conjunto de todos os fluídos
corporais, já que ao ventre, ou as entranhas, eram assimilados as emoções (cf.
Sl 73.21); além disso, os fluídos corporais num olhar geral parecem ter sua
razão justamente no ventre, já que o estomago e o intestino realizam tudo
quanto é necessário nos processos orgânicos pós-nutrição.
Portanto, o conjunto de todos os fluídos corporais,
assemelha-se a conjunção das águas, aos mares e oceanos; e é interessante que
para os mestres da literatura, a natureza, principalmente os mares, era um dos ananke
(necessidade, fatalidade, fado, destino) que pesa sobre os homens; donde, a
braveza e o terror dos mares, pois não podiam ser domados pelos navios e pelos
trabalhadores do mar; assim, ao se comparar o ventre com os mares, demonstra-se
um caractere imprescindível do ventre para os antigos, a saber, sua natureza
volátil, tal como os mares. Nisto, também se acoplava o saber dos antigos a
respeito do ventre como sede das emoções; pois, mesmo que se saiba que o ventre
não seja a sede das emoções, todavia, qualquer emoção não-sóbria afeta
diretamente o ventre, do mesmo modo como qualquer mudança de estado na
conjunção das águas afeta os mares.
19. Nono, evoca a quarta parte do corpo e sua analogia
com a terra, onde diz: “Por último, os extremos se comparam a terra. Pois os
extremos dos membros são áridos como a terra ou secos como a terra”; ora,
tendo evocado a terceira parte do corpo e sua analogia com os mares, passa a
evocar a quarta parte do corpo, os pés (isto é, tudo abaixo do ventre), e sua
analogia com a terra; pois, os pés, são o que dão sustentação ao corpo, já que
o permite ao corpo ficar em pé e se manter ereto; por isso, “os extremos”,
isto é, os pés, “se comparam a terra”, tanto no sentido da função quanto
no sentido da posição entre as partes; pois, do mesmo modo como o pé está para
sustentar e manter o corpo, assim a terra sustenta e mantém a vida humana neste
mundo em firmeza.
Portanto, “os extremos”, os pés, “são áridos”,
isto é, são firmes, como a terra ou secos como a terra”; os pés se
comparam a terra por sua firmeza e aridez; e aridez no sentido de firmeza, já
que a terra é árida dando a mostrar sua natureza firme proveniente das rochas;
logo, os pés estão para o corpo como a terra, a crosta terrestre, está para os
elementos naturais; pois, na terra se observam os elementos naturais e suas
ações ao longo do tempo, na qual os próprios elementos agem e produzem o que
necessário para a própria terra; e isto de uma maneira cíclica, cumprindo um
ciclo natural, já que a natureza não falha no que lhe compete (cf. Eclo. 16.27);
etc.
20. Ora, esta subdivisão do corpo em quatro partes
gerais, cumpre um modo da simbologia bíblica; pois, no livro profeta Daniel
está escrito que Deus deu um sonho ao rei Nabucodonosor, de uma estátua de um
homem com cinco partes distintas (cf. Dn 2.31-35); e as cinco partes da estátua
justamente são essas: cabeça, peito, ventre, pernas e pés; e este é um
simbolismo básico para designar as partes do corpo humano, e que Deus se
utilizou para dar a conhecer a Nabucodonosor o que concerne a história humana (cf.
Dn 2.28-30); logo, a designação do homem em cinco partes gerais (ou numa
descrição mais geral, em quatro partes) serve de simbolismo básico para tudo
quanto concerne a vida natural, seja em relação a história, como no livro no
profeta Daniel, seja em relação a natureza em geral, como o Lincolnense faz
neste escrito, e como outros houveram feito em outros escritos.
21. Deste modo, ao se fazer estas comparações,
concomitantemente, se demonstra do que o homem é constituído, a saber, não
somente demonstra as partes do corpo, mas também a constituição humana tal como
descrita nas Escrituras; pois, segundo o cronista da criação, o homem é um ser
é desejante (alma), deliberante (coração), contingente (carne) e vivente (espírito).
E em cada uma das partes do corpo e em suas analogias com os elementos
naturais, se evoca uma destas partes que concernem biblicamente ao que o homem
é, tanto em relação a natureza corpórea quanto em relação a natureza interior
outorgada por Deus ao soprar o fôlego de vida (cf. Gn 2.7). Embora, na
descrição grossetiana, se estabeleça uma comparação ainda mais geral, mas
imbuídas nesses aspectos ora evocados.
22. Além disso, se constata que tal comparação, é
feita desde os primórdios da humanidade; e os primeiros filósofos gregos (que
também eram físicos), sempre procuraram evocar a compreensão sobre a realidade
a partir do homem e sua relação com a natureza; pois, desde os cantores e os
poetas, tais como Homero e Hesíodo, se estabeleceram obras poéticas que
narravam a relação entre o homem e o cosmos, em consonância com os elementos da
natureza e com o panteão sagrado que possuíam e de acordo com o sistema astrológico;
no período áureo da poesia romana também fora feito isso, principalmente por
Virgílio; o maior dos poetas, Dante, também fizera isso de maneira magistral em
sua obra magna (A Divina Comédia); etc.
Portanto, é preceito do saber, e da compreensão sobre
o cosmos, o homem e a inter-relação entre ambos, que esta inter-relação seja
expressa de modo simbólico, de modo a este simbolismo expressar algo da
realidade e manter o que concerne para a compreensão da própria realidade.
23. Assim sendo, toda a estrutura que Grosseteste
sintetiza neste escrito, demonstra três coisas: primeiro, a natureza do
conhecimento; segundo, a estrutura simbólica da natureza do conhecimento;
terceiro, que o simbolismo natural é parte da essência da racionalidade. Logo,
os preceitos grossetianos, ao evocar o homem como um microcosmo (mundo menor),
amalgamam a relação entre estas três preceituações, bem como demonstra que a
natureza do conhecimento, ao defrontar-se com o simbolismo, demonstra que o ponto
fulcral neste simbolismo, sempre imbuído do simbolismo astrológico (da
astrologia científica), é o homem, o mundo menor, que é o centro de honra e
dignidade do mundo maior, o universo.
24. Pois, o grande Deus, em toda a sua obra
esplendorosa na criação, em ordem e harmonia, dignou ao homem, a quem coroou de
honra e glória (cf. Sl 8.5), o descortinar e compreender toda a grandeza que
imbuiu na criação e em todo o simbolismo natural que emerge da mesma; logo, em
tudo o que o homem é e faz, tanto em si quanto em seu contato com a realidade,
em sua posição espacial e temporal, consegue compreender o cosmos, e isto de
duas maneiras: primeiro, a partir de si mesmo, já que a estrutura do corpo se
coaduna com a estrutura do universo e dos elementos naturais, como o próprio
Grosseteste demonstrara neste escrito; segundo, a partir do cosmos, já que a
máquina do mundo está em ordem e é ordenada a partir do movimento, quanto a
grandeza dos corpos, mas em relação ao ser humano, quanto a ordem de
importância na natureza.
25. E isto basta quanto a compreensão geral do que
Grosseteste delineia neste escrito.
C. Dúbias.
Em relação a algumas proposições delineadas na
explicação deste texto, surgiram três dúbias:
Primeiro, se os elementos naturais estão em toda a
natureza.
Segundo, se o homem deve dominar sobre os elementos
naturais.
Terceiro, se existe uma determinação divina quanto a
simbologia natural.
<Dúbia I>
Acerca da primeira, procede-se assim: se os elementos
naturais estão em toda a natureza.
E parece que não.
I. [Argumentos].
1. O Filósofo, no livro II da Física, afirma
que a natureza é chamada de princípio do movimento (cf. Phys., 192b20);
ora, parece que no movimento não estão os elementos naturais, pois nem tudo na
natureza produz movimento; logo, os elementos naturais não estão em toda a
natureza.
2. Ademais, Xenófanes afirma que tudo vem da terra e
tudo termina na terra (cf. DK 21 B 27); ora, se tudo está em ordem a terra,
então, os elementos naturais só estão em terra; no entanto, o fogo e o ar não
estão em terra; logo, os elementos naturais não estão em toda a natureza.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, Sirach assevera que Deus
criou suas obras e determinou as tarefas e o domínio de cada uma em suas
gerações (cf. Eclo. 16.27a); ora, o que concerne a geração, que está em toda a
natureza, está em ordem aos elementos naturais; logo, os elementos naturais
estão em toda a natureza.
III. [Solução].
1. A universalidade dos elementos naturais, os fazem
estar presentes em toda a natureza; e como o princípio da natureza é o
movimento, como afirma o Filósofo, então, no movimento se engendra o que
necessário para a geração natural dos elementos naturais; por exemplo, o ar,
pode servir para aumentar ou diminuir a intensidade do fogo; logo, nos
elementos naturais está o que concerne a outro elemento e para a geração ou
diminuição das formas do mesmo na natureza.
2. Além disso, como os elementos naturais estão em
ordem a tudo quanto existe na natureza, então, tudo na natureza contém alguma
forma dos elementos naturais; pois, como diz o Filósofo, todo corpo contém os
quatro elementos (cf. De Gen. et Corrup., 334b33); assim sendo, em toda
a vida natural no planeta terra, assim como nos corpos celestes, se tem os
quatro elementos; e, em se tratando da terra, onde há a vida humana, isto é
ainda mais evidente, dada a necessidade destes elementos para a vida natural.
IV. [Respostas aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro se responde que a proposição do
Filósofo refere-se ao movimento de todas as coisas que estão na natureza; pois,
tudo na natureza, tem o princípio do movimento animal, quanto aos seres vivos,
ou o princípio do movimento corporal, quanto aos corpos celestes; logo, tudo
que está em movimento está consonância com os elementos naturais, seja em suas
formas básicas ou em outras formas; portanto, na própria compreensão sobre o
que é a natureza se compreende que os elementos naturais estão em toda a
natureza, diferindo apenas o modo como estão de acordo com a espécie de
movimento.
2. Quanto ao segundo se responde que a pressuposição
de Xenófanes está em parte correta; pois, quanto a natureza corpórea dos seres
vivos, tudo vem da terra e tudo termina na terra, como bem afirma a Escritura
(cf. Gn 3.19; Ec 12.7), e como o atesta a natureza dos seres vivos (sejam
animais, sejam vegetais); logo, quanto a isso, se observa algo concernente a
natureza constituinte dos seres vivos; no entanto, já que a natureza
constituinte dos seres vivos tem algo em razão da terra, e a terra está em
relação com os elementos naturais, pois, é o habitat dos seres vivos, então, os
elementos naturais estão em toda a natureza, já que estão sob a terra; logo, os
elementos naturais estão em toda a natureza, pois são parte substancial da
própria natureza; e a natureza é a amalgama das mais variadas formas dos
elementos naturais em relação com os seres vivos, seja do reino animal seja do
reino vegetal.
<Dúbia II>
Acerca da segunda, procede-se assim: se o homem deve
dominar sobre os elementos naturais.
E parece que não.
I. [Argumentos].
1. Os elementos naturais não podem ser dominados pelo
homem; pois, algumas das formas dos elementos naturais, como os ventos
impetuosos e os mares bravios, não podem ser dominadas; logo, o homem não pode
dominar os elementos naturais.
2. Ademais, Empédocles diz que os quatro elementos são
as quatro raízes de todas as coisas (cf. DK 31 B 6); ora, as raízes de todas as
coisas são os primeiros princípios de todas as coisas; e os primeiros
princípios de todas as coisas não podem ser dominados pelos homens; logo, o
homem não pode dominar os elementos naturais.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, Sirach afirma que Deus
deu ao homem autoridade sobre tudo o que há na terra (cf. Eclo. 17.3); ora, autoridade
diz respeito ao domínio sobre as coisas naturais que lhe convém; logo, tudo
quanto há na natureza deve ser dominado pelo ser humano; portanto, o homem deve
dominar sobre os elementos naturais.
III. [Solução].
1. O Filósofo afirma que na terra se tem os quatro
elementos (cf. De Gen. et Corrup., 334b33); logo, tudo quanto concerne a
vida tem algo em relação com os quatro elementos, pois, o próprio corpo tem
algo dos quatro elementos em sua constituição natural; assim, se a vida se
desenvolve na terra, então se desenvolve com os quatro elementos e na
utilização destes, já que tudo na vida natural está em ordem aos elementos
naturais.
2. E como compete ao homem dominar sobre a natureza,
então, compete ao mesmo dominar sobre os elementos naturais; pois, ao dominar
estes elementos, os utiliza para algum bem da vida humana, como por exemplo, a
utilização da água para plantio ou para fins higiénicos, ou então do fogo para
aquecer e cozinhar alimentos e carne de animais, etc.; logo, quando o homem
sujeita a terra, também sujeita os elementos naturais, não como senhor destes,
mas como cultor dos bens naturais que destes provêm tal como estabelecidos pelo
Criador.
IV. [Respostas aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro se responde que em um sentido os
elementos naturais podem ser dominados pelo homem, em suas formas básicas, já
que fazem parte da vida natural, pois concerne a sobrevivência humana, e isto
está em ordem ao instinto animal; e em outro sentido os elementos naturais não
podem ser dominados pelo homem, em suas formas abruptas, tais como os ventos
impetuosos e os mares bravios, pois estes não estão em ordem ao que concerne ao
instinto animal, mas são acidentes naturais, causados por diversos fatores.
Logo, quanto a vida natural, o homem pode dominar os elementos naturais, já que
isto faz parte da própria vida na natureza.
2. Quanto ao segundo se responde que a proposição de
Empédocles refere-se a um preceito físico como se fosse um preceito metafísico;
logo, os quatro elementos estão em todas as coisas, como parte da natureza das coisas,
quanto a sua realidade física, mas não como as raízes metafísicas da coisa;
pois, se assim o fosse, os quatro elementos seriam as causas de todas as
coisas; no entanto, como se sabe que a causa de todas as coisas, a causa
incausada, é apenas uma, então, os quatro elementos não são as raízes de todas
as coisas; logo, os elementos naturais podem ser dominados pelo homem, e os
primeiros princípios de todas as coisas podem ser conhecidos pelo homem, pois,
as raízes de todas as coisas, quanto a física, estão em ordem ao movimento, e
os primeiros princípios de todas as coisas, estão em ordem a causa primeira que
causa o movimento, e isto tanto no sentido real quanto no sentido formal.
V. [Resposta ao Em Contrário].
1. Em relação a isso, compete dizer que há dois tipos
de domínio: primeiro, o domínio entendido como sujeitar a natureza; segundo, o
domínio entendido como utilizar os elementos da natureza. E é neste segundo
sentido que se afirma que o homem deve dominar sobre os elementos naturais,
para destes se utilizar em benefício da vida humana; pois, como fora dito, existem
formas dos elementos naturais que o homem não consegue dominar; mas, a forma
básica dos elementos, o homem pode e deve dominar, como parte da ordenança que
lhe fora conferida pelo Criador (cf. Gn 1.26, 28).
<Dúbia III>
Acerca da terceira, procede-se assim: se existe uma
determinação divina quanto a simbologia natural.
E parece que não.
I. [Argumentos].
1. A designação de símbolos está em ordem aos signos
já que destes provêm; e, segundo o preceito platônico entre os signos uns são
naturais e outros são inventados; e, como a simbologia emerge dos signos
inventados não precede de uma determinação divina, mas da vontade humana; logo,
não existe uma determinação divina quanto a simbologia natural.
2. Ademais, quanto a simbologia natural, parece que
não há uma determinação divina, já que o próprio Deus proíbe fazer imagens de
escultura (cf. Êx 20.4); e, como a simbologia natural também se refere a
expressões artísticas, então, não há uma determinação afirmativa quanto a
simbologia natural, embora haja uma determinação negativa quanto a simbologia
natural.
3. Ademais, o Filósofo afirma que os homens tendem ao
saber porque tem estima pelos sentidos (cf. Met. 980a22-23); ora, os símbolos
não são abstraídos pelos sentidos, mas pela inteligência; logo, não estão em
ordem ao saber; e, como tudo que não está em ordem ao saber não procede da
determinação divina, então, fica claro que não há uma determinação divina
quanto a simbologia natural.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, diz a Escritura: “mas
a terra, deu-a ele aos filhos dos homens” (Sl 115.16b); ora, se Deus
outorgou a terra aos filhos dos homens, então, tudo na vida humana está sob a
determinação criacional de Deus, a qual é imbuída e permeia tudo quanto diz
respeito a vida natural; e, como a simbologia concerne a vida natural, logo,
existe uma determinação divina quanto a simbologia natural.
III. [Solução].
1. O Filósofo, no livro I da Física, afirma que
quando os objetos de uma investigação têm princípios, causas ou elementos, é
por meio destes que o conhecimento e a compreensão são alcançados (cf. Phys.,
184a10-12); ora, um dos princípios fundamentais do conhecimento é o axioma
sobre a simbologia; pois, tudo que existe é ente; e os entes finitos são
simbólicos; logo, como o saber se inicia pela compreensão do que concerne ao
ente e a essência, então, o que concerne ao saber em geral, é simbólico, já que
os entes finitos são simbólicos; por isso, se estabelece o preceito filosófico
de que “todo conhecimento é simbólico”[5].
2. Deste modo, como um dos princípios fundamentais do
conhecimento é de que “todo conhecimento é simbólico”, e como o
conhecimento é outorgado por Deus (cf. Sl 94.10b), então, a simbologia natural
é preceito e é preceituada como parte do que concerne ao conhecimento, sempre
em ordem a bondade divina; pois, a simbologia é um axioma concernente a própria
racionalidade; e, como fora Deus quem dera racionalidade ao homem como parte da
imago Dei, então, a natureza simbólica do conhecimento é preceito da
natureza estabelecido por Deus como parte de seus mandamentos como Criador. Pois,
o homem, como animal racional, também é um animal cultural; e, por isso, também
é um animal simbólico.
IV. [Respostas aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro se responde que os símbolos não
necessariamente provêm dos signos, embora todo signo expresse algo em
consonância com algum símbolo; por isso, mesmo os signos inventados estão em
ordem a esta preceituação, pois, os signos inventados são de algum ente de
razão, o qual, por si, também é simbólico, mesmo sendo não-real, já que a
própria possibilidade de se pensar sobre os entes finitos está imbuída com a preceituação
simbólica; assim, a simbologia pode emergir de signos inventados, porque existe
nos signos naturais; logo, procede de uma ordenança natural, que pode ser evocada
artificialmente; e, como o que procede da natureza está em ordem ao mandamento
de Deus com relação as coisas naturais, então, a simbologia, seja em relação
aos signos naturais seja em relação aos signos inventados, procede de uma
determinação divina imbuída no núcleo de sentido de Criação.
2. Quanto ao segundo se responde que a determinação
negativa é em relação a se fazer imagens de escultura de Deus, e não quanto a
simbologia, mesmo a expressa em formas artísticas; logo, se há uma determinação
divina quanto a simbologia natural, a mesma pode ser expressa em termos
artísticos, desde que a estética não contradiga a natureza, no que concerne as
questões naturais, e nem atente contra a graça, no que concerne as questões
espirituais. Logo, existe um preceito geral quanto a simbologia natural, que
pode ser açambarcado nos preceitos específicos das formas artísticas, o que os
preceitos sapenciais prescrevem de maneira incisiva.
3. Quanto ao terceiro se responde que o tender natural
ao saber, indica tanto o modo deste tender, pelos sentidos, quanto o que
concerne ao próprio saber, pela inteligência; logo, tanto os sentidos quanto a
inteligência estão em ordem ao saber, e com isso, os símbolos também estão, já
que concernem tanto aos sentidos quanto a inteligência; portanto, como está em
ordem ao saber, procede da determinação divina, já que o tender ao saber é
preceito divino estabelecido na natureza humana, que toma várias formas diferentes
em relação as espécies diversas de saber, e com isso, demonstra as várias
preceituações que concernem a simbologia natural. Logo, o que resulta disso é
compreendido facilmente; etc.
V. [Resposta ao Em Contrário].
1. Em relação a determinação criacional de Deus quanto
ao ser humano se distinguem quatro aspectos: primeiro, Deus estabelece uma
ordenança quadrupla ao homem, quanto a mordomia em relação a criação (cf. Gn
1.28); segundo, Deus ordena ao homem o cuidar e o velar pela criação (cf. Gn
2.15); terceiro, Deus estabelece uma ordenança pactual com o homem (cf. Gn
2.16-17); quarto, Deus designa ao homem o ímpeto para desenvolvimento do saber
e da ciência (cf. Gn 2.20a). E, como a simbologia natural está em ordem a estes
aspectos, especificamente em relação ao quarto aspecto, então, existe uma
determinação divina quanto a simbologia natural, pois, todo saber está em
ressonância com a simbologia, e vice-versa. E, em relação ao quarto aspecto, se
pode afirmar que o homem é um animal cultural; ora, se é um animal cultural,
então, é um animal simbólico, pois, tudo o que é cultural também é simbólico;
então, se constata que, na natureza em geral e na natureza humana em
particular, existe uma preceituação divina quanto a simbologia natural, pois
está em ordem a determinação criacional de Deus.
***
E termina aqui este comentário. Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém!
[1] Basílio de
Cesareia, Homilia sobre Lucas 12 - Homilias sobre a Origem do Homem -
Tratado sobre o Espírito Santo [São Paulo: Paulus, 2019], pág. 63.
[2] Herman
Dooyeweerd, No Crepúsculo do Pensamento Ocidental: Estudo sobre a pretensa
autonomia do pensamento filosófico [1ª ed. Brasília, DF: Monergismo, 2018],
§ 30, pág. 244.
[3] Agostinho, Confissões
[Coleção Clássicos de Bolso. São Paulo: Paulus, 2002], livro X, cap. 5, n. 7,
pág. 274.
[4] cf. Tomás
de Aquino, Super Epistolam ad Hebraeos, cap. 12, lect. 5.
[5] Este é um preceito apodítico a respeito do conhecimento; mas, infelizmente tal preceito ficara esquecido e fora deixado de lado, e quase não é mais mencionado; mas, em relação ao pensamento brasileiro, se pode falar do resgate que Olavo de Carvalho fizera em relação a este preceito e sobre a designação geral da simbologia, em vários escritos, principalmente nos que constam no livro “O Saber e o Enigma” (cf. Olavo de Carvalho, O Saber e o Enigma: Introdução ao estudo dos esoterismos [Campinas, SP: Ecclesiae, 2021], pág. 54-56). Quanto a compreensão sobre o simbolismo, indica-se a leitura deste livro e o aprofundamento das questões nele trabalhadas com maestria por Olavo de Carvalho.
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