Prefácio.
A vida e a obra de Boécio não
deixam de impressionar, mesmo depois de séculos após sua morte; pois, sua obra
intelectual, somada ao testemunho de sua vida, tornaram-no um ponto de
inflexão, tanto na história da filosofia quanto na história da cristandade
latina; Boécio é o último intelectual do mundo antigo, e o primeiro dos
medievais; Boécio, literalmente se empenhou para promover o encontro das
culturas, a filosófica e a teológica, tal como Bento XVI afirmara: “Neste
âmbito, ou seja, no empenho de promoção do encontro das culturas, utilizou as
categorias da filosofia grega para propor a fé cristã, também aqui em busca de
uma síntese entre o património greco-romano e a mensagem evangélica”.
E os escritos de Boécio são
magistrais, tanto os escritos maiores, quanto os escritos menores; e entre os
escritos menores de Boécio, chamam a atenção alguns pequenos tratados, mais
propriamente chamados de opúsculos; dois deles são icônicos, a saber, o De
Hebdomadibus e o De Trinitate; estes dois opúsculos estão entre os
textos mais importantes da história da filosofia e da teologia; e, tanto um
quanto o outro são sínteses extraordinárias, entre o pensamento teológico e a
utilização de categorias filosóficas para explicar os mistérios da fé; e,
ambos, igualmente, concernem tanto ao assunto específico que os compõem, quanto
são permeados por uma ampla gama de princípios teoréticos que permeiam não só o
assunto que versam, mas também versam sobre os preceitos básicos que concernem
ao estudo da sabedoria.
Por isso, explicar e comentar
Boécio, não somente é uma tarefa trabalhosa, mas também uma tarefa extremamente
necessária; pois, Boécio não somente versa sobre problemas e temas teológicos,
mas ao fazê-lo, estabelece uma série de preceitos fundamentais, que se
extraídos e burilados com cuidado e esmero, contribuem não somente para o
assunto específico destes textos, mas também para todos aqueles que buscam a
verdade e se dedicam ao estudo da sabedoria.
Portanto, os textos de Boécio não
somente são pérolas teológicas e filosóficas, mas também são como que conselhos
direcionados àqueles que buscam o Bem através do encontro com Verdade.
E o legado de Boécio, por estas e
outras razões, é imorredouro; e, justamente por este legado, e pela proximidade
da rememoração dos 15 séculos de sua morte em 23 de outubro de 2024, se faz
necessário retomar Boécio e colocá-lo no lugar de honra, como um dos maiores
intelectuais da história; e, para isso, de início, se vai fazer um comentário
ao De Hebdomadibus, a fim de explicar e expor este difícil opúsculo, que
versa sobre o tema do bem nas coisas.
Pois, este ilustre livro de
Boécio, foi um dos textos mais bem quistos na escolástica, e foi comentado por
muitos dos grandes teólogos escolásticos, tais como Erigena, Porretanus, Tomás
de Aquino, etc.; além do que versa sobre um dos temas filosóficos fundamentais,
o modo da existência dos entes enquanto entes, isto é, o modo como existem
naquilo que são, a saber, como provenientes do Primeiro Bem; e, por isso, são
bons naquilo que são.
Portanto, na esteira da lembrança
dos 1.500 anos da morte de Boécio, filósofo e mártir da fé, se apresenta este
comentário ao De Hebdomadibus, tanto para investigar as noções de bem,
ser, participação, etc., concernentes a este livro, mas também para elucidar
que Boécio, ao mesmo tempo em que magistralmente elucubrara sobre estes
conceitos, também elucubrara sobre a sabedoria, pois, era algo que lhe era
inerente, e, por isso, pode falar dos preceitos da sabedoria de maneira tão
incisiva e grandiloquente, a ponto de seu testemunho continuar a ecoar mesmo no
séc. XXI, o qual certamente continuará a ecoar até a consumação dos séculos.
Pois, a excelência da sabedoria
não é sua medida na ordem do tempo, se é antiga ou nova, mas a profundidade em
que penetrou no seio da eternidade; tal como o Pe. Sertillanges aconselhara: “a
sabedoria consiste em dirigir-se a quem, não importa quando, conseguiu
mergulhar mais profundamente no seio da eternidade”.
Boécio manteve os olhos na
eternidade, mesmo em meio as tormentas da época em que viveu, e por isso, a
mestria de suas palavras continuará a encantar, a deleitar e a comover os
espíritos superiores em todas as épocas.
Soli Deo Gloria!
In Nomine Iesus!
30 de setembro de 2024.
Proêmio.
i. “Toda boa dádiva e todo dom perfeito
vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança, nem sombra de
variação” (Tg 1.17); ora, todo bem procede da fonte de todo bem; por isso,
a Escritura afirma que toda boa dádiva vem do alto, do Pai das luzes; os bens,
tal como luzes, são provenientes do Primeiro Bem, o Pai da luzes; e tudo o que
o Primeiro Bem faz, tem algo do bem e algo de Sua luz; donde, o cronista da
criação ter descrito a avaliação de Deus de sua própria obra, de modo hexaplo,
com as seguintes palavras: “e viu Deus que era bom” (Gn 1.10b, 12b, 18b,
21b, 25b, 31a).
O bem nas criaturas e nas coisas são
proveniência da obra do Sumo Bem, e são como que sua assinatura, demonstrando
donde são provenientes (cf. Sb 13.5). Pois, se as coisas são boas,
necessariamente são provenientes de uma fonte que possui maior bem do que o que
as coisas possuem.
ii. Deste modo, as coisas são boas,
mesmo que não sejam o Bem; pois, as coisas são boas porque provêm do Primeiro
Bem, embora não sejam o Bem; ora, isto demonstra a necessidade de se elucubrar
sobre o modo como as coisas são boas; por isso, Boécio, em seu livro De
Hebdomadibus se pôs a investigar “como as substâncias são boas naquilo
que são, ainda que não sejam bens substanciais”.
E, embora o termo Hebdomadibus
seja uma descrição genérica para o que Boécio se propõe a analisar, a indicar o
modo e a forma que se seguirá em determinada análise, naquilo que propriamente
dito investiga faz uma análise de como as coisas são boas, mesmo que não sejam
bens substanciais; isto é, as coisas são boas porque procedem da fonte de todo
bem, o Primeiro Bem, embora não sejam bens, isto é, não são transmissoras do
bem na mesma ordem que o Primeiro Bem, embora comuniquem algo do bem enquanto
entes existentes.
iii. E, tal como Boécio fizera em
suas investigações, a análise sobre o bem conduz-se sob os princípios da
sabedoria; e a sabedoria tem sua casa bem firmada: “A sabedoria já edificou
sua casa, já lavrou as suas setes colunas” (Pv 9.1); as setes colunas da
sabedoria, abalizam a compreensão sobre o bem, isto é, a perfeita sabedoria
abaliza a compreensão sobre o bem, porque funda-se no Primeiro Bem; na verdade,
o Primeiro Bem, fizera todas as coisas em sabedoria, tal como Sirach afirma: “O
Senhor em pessoa a criou, a conheceu e a mediu, e a derramou sobre todas as
suas obras” (Eclo. 1.9); logo, é evidente que para se compreender as coisas
é necessário a sabedoria, a qual está em certa medida nas próprias coisas tal
como o Primeiro Bem as criou.
iv. Por isso, ao se compreender a
pressuposição de Boécio, de “como as substâncias são boas naquilo que são,
ainda que não sejam bens substanciais”, se consegue compreender o porquê o
estudo deste assunto coaduna-se com a sabedoria já que naquilo em que as coisas
são boas, se tem nestas o influir do Primeiro Bem, e compreender o modo e a
forma deste influir se estabelece como parte do estudo que concerne a
sabedoria; além do que, ao estudo da sabedoria ser suficiente, pois, o estudo
da sabedoria, “é o mais perfeito, o mais sublime, o mais útil e o mais
alegre”[1], então, o
mesmo sendo efetuado, se terá no mesmo o privilégio deste estudo, que ainda que
possa advir de diversos modos e de diversas maneiras, é suficiente em si mesmo;
tal como diz o Teólogo: “O estudo da sabedoria tem este privilégio, que ela
mesma lhe é mais que suficiente para expor sua atividade”[2].
v. Portanto, compreender as
Hebdômadas de Boécio, é uma excelente forma para se entender um modo de se
adentrar no estudo de como as coisas boas são boas naquilo que são, e no modo
como esta compreensão, amalgama de princípios teológicos e filosóficos, está
presente no âmbito do estudo da sabedoria, o qual por ser o mais perfeito, o
mais sublime, o mais útil e o mais alegre, por isso mesmo, afere aos vários
aspectos que compõem o estudo da sabedoria também algo desta perfeição, desta
sublimidade, desta utilidade e desta alegria; logo, compreender o que significa
a proposição de Boécio, em suas Hebdômadas, se estabelece no escopo do estudo
da sabedoria, e por isso, também é açambarcado nas características fundamentais
do que constitui o estudo da sabedoria.
vi. Mas, não somente isso; pois, as
Hebdômadas de Boécio, analisam propriamente dito o modo como as coisas boas são
boas naquilo que são, isto é, analisa a natureza ontológica das coisas e dos seres enquanto qualificativos
primordiais dos entes reais enquanto entes existentes, sob uma ordem, sob uma
processão e sob uma ordenação; sob uma ordem, porque fazem parte da ordem
cósmica estabelecida pelo Sumo Bem; sob uma processão, porque tem suas
existências e essências provenientes do Primeiro Bem; sob uma ordenação porque
no modo como existem demonstram que são provenientes do Primeiro Bem e que
estão em ordem sob sua prescrição criacional (cf. Eclo. 16.26s; De An. 432b20).
vii. Ora, as coisas são boas naquilo
que são justamente porque procedem do Sumo Bem, donde se lhes confere o modo da
processão, isto é, a medida de bem, e a ordenação necessária como entes reais
na ordem da realidade, isto é, na condução ao devido fim das coisas; logo,
nestes dois aspectos se compreende que as coisas boas são boas naquilo que são,
pois, como diz Tomás, se afirma que algo é bom porque conduz ao fim (cf. De
Ver., q. 21, a. 1, co.). Logo, os entes, tanto são bons, quanto são
ordenados ao devido fim, pelo Primeiro Bem. E isto, por si, demonstra a
natureza ontológica dos entes.
viii. Deste modo, os entes reais são
subsistentes a partir do Primeiro Bem; e isto se prova tanto pela luz interior
quanto pela luz superior; pela luz interior, pois, as coisas são boas e
permanecem boas porque subsistem a partir do Primeiro Bem, ou Ser Superior, que
as move e neste movimento as mantêm boas; pela luz superior, pois, como o diz o
Apóstolo: “porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17.28);
logo, etc.
Portanto, sendo os entes reais
subsistentes no modo ora descrito, cumpre investigar o modo como são
subsistentes, ou como Boécio propusera: “como as substâncias são boas
naquilo que são, ainda que não sejam bens substanciais”.
Lição 1
Analisa-se o conceito de Hebdômadas.
A. Texto de Boécio (De
Hebdomadibus, prol.).
Tu me pedes que, por meio de nossas Hebdômadas,
mostre mais claramente e disperse a obscuridade daquela questão que concerne o
modo como as substâncias são boas naquilo que são, ainda que não sejam bens
substanciais.
E dizes que isso deve ser feito
assim porque o estilo destes escritos não é conhecido por todos.
B. Comentário.
1. Boécio inicia falando sobre as
Hebdômadas[3]; e,
realmente é um termo singular, não somente pela complexidade que traz imbuído
em si, pois que mais de 14 séculos de vários debates ainda não conseguiram
aclarar totalmente este termo enigmático; todavia, o termo Hebdômadas, diz
respeito não tanto a um conteúdo, mas a um método; ou mais propriamente, uma
forma de resolver um problema teorético a partir do emprego de um meio de
análise, que pode ser entendido de quatro modos: primeiro, estabelecendo a
questão; segundo, apresentando os axiomas principais desta questão; terceiro,
resolvendo a questão; quarto, apresentando a solução para as objeções a esta
questão.
2. Este modo quadrilátero de se
resolver um problema, que as Hebdômadas delineiam, podem ser entendidas como a
base primeira do que depois se desenvolverá de maneira mais rigorosa na
escolástica medieval, da qual Boécio é o precursor; além disso, as Hebdômadas,
precursora da quaestio, singular exercício daqueles que amam e buscam a
sabedoria, também demonstra uma maneira de se seguir no estudo e na compreensão
sobre determinado objeto de estudo; Boécio, especificamente, estabelece suas
Hebdômadas a partir da “questão que concerne o modo como as substâncias são
boas naquilo que são, ainda que não sejam bens substanciais”, mas os
princípios estruturais que ele delineia são fundamentais e aplicáveis a
qualquer objeto de estudo.
3. E o termo Hebdômadas tem uma
estrutura não somente metodológica, mas etimológica, que a ajuda a compreender
a razão da proposição acima descrita; o que, além de designar as Hebdômadas
como método da busca pelo saber, também designa as Hebdômadas como modo de se
alcançar a sabedoria, porque é imbuída nos princípios sapenciais; e sobre isso
três aspectos se discutem[4]: primeiro,
porque a sabedoria exige esmero e dedicação; segundo, porque na sabedoria se
encontra deleite; terceiro, porque através da sabedoria o ser humano adquire o
conhecimento da verdade.
4. Assim sendo, pode-se afirmar que
as Hebdômadas são empregadas em sentido duplo: primeiro, num sentido alegórico;
segundo, num sentido filosófico.
5. Primeiro, num sentido alegórico;
o sentido alegórico, neste quesito, pode ser definido a partir de se tomar as
Hebdômadas como se fossem servidas na mesa do banquete da sabedoria; em meio a
enormidades de iguarias e deleites do banquete da sabedoria, se tem as
Hebdômadas, das quais se pode afirmar que são as concepções que o texto
sapencial traz imbuídos em si: “ocupa-te das tuas concepções”; e as
Hebdômadas estão imbuídas entre as sete colunas da sabedoria (cf. Pv 9.1),
pois, na verdade, compreendem algo do que concerne as setes colunas da
sabedoria, isto é, do que concerne a sabedoria perfeita; por isso, também o
termo Hebdômadas são tidos como semanas e são oriundos da designação de setes
semanas do texto sagrado da Festa das Trombetas (cf. Lv 23.23-25)[5].
E, do mesmo como como se tem um significado
teológico-alegórico na Festa das Trombetas[6],
assim também se tem um significado alegórico na descrição boeciana das
Hebdômadas; e este significado alegórico é o que aponta para a excelência das
Hebdômadas diante do convite para o banquete da sabedoria.
6. Segundo, num sentido filosófico;
o sentido filosófico, neste quesito, pode ser definido como a descrição
filosófica do que fora afirmado sobre as Hebdômadas no sentido alegórico; na
verdade, o sentido filosófico das Hebdômadas está, guardadas as devidas
proporções, como a maiêutica nos diálogos platônicos; embora sejam métodos
distintos, o propósito se coaduna; pois, as Hebdômadas buscam chegar ao cerne
da questão, embora com brevidade; no entanto, não com as obscuridades do
não-conhecimento, ou os erros dos sofismas, mas com a “obscuridade” da
sapiência que atinge seu grau de engenhosidade na simplicidade; logo, as
Hebdômadas, no sentido filosófico pleno, atingem sua excelência e vigor,
justamente porque versam sobre assuntos que tem em si a luz do conhecimento
interior, a luz do saber filosófico, pois, como diz Boécio, “o estilo destes
escritos não é conhecido por todos”.
7. Com isso, se compreende o que se
quer dizer propriamente com o termo Hebdômadas; portanto, o termo traz imbuído
tanto um significado sapencial, já que é um modo de se buscar a sabedoria
através da solução de problemas teoréticos, bem como é um modo de se
compreender a filosofia e de desenvolver o saber filosófico; tanto o é, que
Boécio afirma: “Tu me pedes que, por meio de nossas Hebdômadas, mostre mais
claramente e disperse a obscuridade...”, no que demonstra que a prática das
Hebdômadas era um costume, para “mostrar mais claramente”, isto é,
proporcionar um entendimento mais claro, e para “dispersar a obscuridade”,
isto é, para tornar o assunto mais simples e sem as obscuridades filosóficas;
logo, as Hebdômadas são um excelente meio para se evocar e solucionar um
problema teorético, e isto de maneira mais fácil e simples, pelo menos, na
simples acepção do entendimento do problema teorético analisado e de sua
solução.
8. Deste modo, o conceito de
Hebdômadas apresenta um método singular para o desenvolvimento do conhecimento,
que proporciona os meios para um frutuoso estudo sobre a sabedoria; Boécio
apresenta suas Hebdômadas - pelo menos a que se chegou escrita, já que a frase
inicial de Boécio indica que houveram outras Hebdômadas -, na busca pelo
conhecimento de como as coisas são boas naquilo que são, e ao mesmo tempo,
forneceu instrumentos adequados para se desenvolver o saber; portanto, as
Hebdômadas servem tanto para o propósito de Boécio em explicar o assunto que se
propõem, quanto serve de método para os estudiosos posteriores, que
desenvolverão este método e elevá-lo-ão, ao ponto de, séculos depois, se chegar
ao rigor teorético da questão (quaestio).
9. Certamente, no status
quaestiones do saber hodierno, dificilmente se conseguirá de início subir
ao topo novamente e evocar o método da quaestio (salvo um ou outro
estudioso), mas, de maneira contundente, se pode evocar o método das
Hebdômadas, como uma forma de novamente abalizar o saber e resolver as
obscuridades sobre determinado tema, mas principalmente para se solucionar as
obscuridades que rondam o saber e a busca pelo saber.
10. Pois, Boécio, demonstrara sua
contemplação da sabedoria, a partir de suas Hebdômadas, ou, a partir de suas
declarações sobre a sabedoria; Hebdômadas também pode ser traduzido do grego
como declaração (este é o sentido empregado por Tomás de Aquino); as
declarações de Boécio sobre o saber, ou mais propriamente, sobre as coisas
enquanto são boas, forneceu um instrumento à sabedoria filosófica; as
declarações de Boécio, por se formularem de acordo com a sabedoria filosófica,
são chamadas de Hebdômadas, porque versam sobre as concepções; donde, Tomás de
Aquino as evocar inicialmente a partir do conselho do texto sapencial: “sê o
primeiro a correr para casa, e ocupa-te de tuas concepções. Invoca-as e
deleita-te nelas” (Eclo. 32.15-16); as concepções, ou Hebdômadas, são as
concepções da sabedoria, que ao serem evocadas, pelo simples fato de
participarem em algo da sabedoria, trazem também algo do deleite e do prazer da
sabedoria; e isso demonstra a excelência da sabedoria, a respeito do que afirma
o Pregador: “a excelência da sabedoria é que ela dá vida ao seu possuidor”
(Ec 7.12b).
11. Assim sendo, através das
declarações de Boécio, de suas Hebdômadas, se discerne entre o que são
concepções e o que são concepções comuns; a primeira, recebe o nome de
Hebdômadas; a segunda, recebe o nome de entimemas. Sobre isso, Gilbertus
Porretanus afirma: “Porque a inteligência superior percebe essas coisas,
elas são chamadas de Hebdômadas, isto é, concepções em virtude de sua
excelência: elas são, é claro, muito diferentes daquelas concepções que são
chamadas de entimemas”[7]; logo, a
expressão de Porretanus demonstra a diferença entre a simples concepção e a
concepção simples, ou, respectivamente, entre a concepção comum e a concepção;
e a inteligência superior percebe as coisas concernentes as Hebdômadas, pois,
somente a inteligência superior se encontra aberta aos preceitos da sabedoria.
E, nisto também se encontra a diferença entre o verdadeiro saber e o saber
aparente, ou, em outros termos, entre a busca e o amor pelo saber (filosofia),
e o amor pela opinião (filodoxia).
12. A pressuposição de Porretanus,
da diferença entre Hebdômadas e entimemas, é assaz significativa; pois, segundo
o Filósofo, os entimemas são um silogismo que baseia-se em premissas ocultas; e
para o Filósofo existem dois tipos de entimemas: os demonstrativos e os
refutativos; os demonstrativos, de algo que é ou não é, e os refutativos, as
conclusões que o adversário não aceita (cf. Ret. 1396b25-29); os entimemas,
podem ser úteis em questões gerais, nas generalidades, que só são válidas se
não se perderem em verborreias; no entanto, os entimemas não são a estrutura
para se resolver uma questão de acordo com a sabedoria; donde, a diferença
entre um simples entimema e as Hebdômadas; o entimema até pode ser utilizado
como ponte de partida da solução de um problema, mas que não se constitui-se de
um modo apropriado para a análise de um problema no âmbito do estudo da
sabedoria; por isso, o modo escolhido por Boécio são as Hebdômadas, que podem
abarcar os entimemas, mas não se esvaem de significado filosófico tal como um
entimema, que ao ter em si algo da retórica sempre decai em verborreias através
dos sofismas da não-sabedoria.
13. Portanto, os Hebdômadas não são
um simples modo de analisar e resolver um problema filosófico; na verdade,
constituem-se um modo excelente, realmente filosófico, de se analisar um
problema, que se estabelece muito além dos sofismas, as mais das vezes,
impregnado com entimemas; pois, as Hebdômadas são açambarcadas pelos princípios
da sabedoria, a qual é a luz interior, a do conhecimento filosófico, a qual só
é superada pela luz superior, a do conhecimento das coisas reveladas[8].
Logo, as Hebdômadas são expressão do
conhecimento filosófico, da plena luz interior, em seu exercício de
“deleitar-se” no banquete da sabedoria (cf. Pv 9.1); somente quem possui esta
luz interior, é que pode adentrar a este banquete, porque somente com esta luz
é que se entende e compreende o convite a este banquete; e Boécio muito bem o
sabe, e por isso, estabelece, através de suas Hebdômadas, os exercícios do
verdadeiro jogo da filosofia[9].
14. Aliás, também parece ser esta a
razão do porque um certo diácono João pedira a Boécio para lhe responder a
questão sobre como as coisas boas são boas naquilo que são através das
Hebdômadas e não através de outro modo, o que se confirma na expressão do
próprio Boécio no prólogo: “E dizes que isso deve ser feito assim porque o
estilo destes escritos não é conhecido por todos”. “E dizes”, no
caso quem pedira esta solução a Boécio, o diácono João; “que isso deve ser
feito assim”, isto é, através das Hebdômadas; “porque o estilo destes
escritos não é conhecido por todos”, isto é, somente por aqueles que buscam
a sabedoria e não por aqueles que não buscam e não se interessam pelo
verdadeiro saber. Isto, é o que significa basicamente o conceito de Hebdômadas
evocado e utilizado magistralmente por Boécio na análise de como as coisas são
boas naquilo que são.
Lição 2
Investiga-se a natureza e o propósito das Hebdômadas.
A. Texto de Boécio (De
Hebdomadibus, prol.).
Tu me pedes que, por meio de nossas Hebdômadas,
mostre mais claramente e disperse a obscuridade daquela questão que concerne o
modo como as substâncias são boas naquilo que são, ainda que não sejam bens
substanciais.
E dizes que isso deve ser feito
assim porque o estilo destes escritos não é conhecido por todos. Inclusive eu mesmo
sou testemunha do modo tão vivaz que tens abraçado estes [temas] anteriormente.
De fato, eu mesmo pondero as Hebdômadas
e conservo essas considerações na minha memória em vez de compartilhá-las
com qualquer um daqueles que o desenfreio e a insolência não permitem que nada
seja enlaçado sem jogo e risadas.
Portanto, não sejas desfavorável às
obscuridades da brevidade. Pois sendo misteriosas, têm a vantagem de serem
fiéis guardiãs [de um segredo], já que elas dialogam somente com aqueles que
são dignos. Assim, como se costuma fazer na matemática e demais disciplinas,
propus termos e regras dos quais demonstrarei todas as coisas que se derivam.
B. Comentário.
15. Boécio propugna suas Hebdômadas
em um escrito; e subdivide este escrito de dois modos[10]:
primeiro, em prólogo; segundo, em tratado. No prólogo trabalha dois aspectos
gerais; já o tratado se subdivide em cinco partes. De início, compete analisar
o prólogo; depois, o tratado e suas cinco partes. Em relação ao prólogo, o
apresenta em dois aspectos gerais, os quais açambarcam a natureza e o propósito
das Hebdômadas; no primeiro, descreve a razão e a necessidade das Hebdômadas;
no segundo, o objetivo das Hebdômadas.
16. Primeiro, a natureza das
Hebdômadas; o primeiro aspecto que Boécio apresenta no prólogo é sobre a
natureza das Hebdômadas; pois, o vocábulo Hebdômadas não somente representa um
conceito que serve de método para o estudo da sabedoria; na verdade, as Hebdômadas,
em si mesmas, são parte do que concerne ao estudo da sabedoria, bem como de um
modo de se adentrar no estudo da sabedoria; por isso, o diácono João, ao pedir
a Boécio para que lhe sanasse certa dúvida, o fez declaradamente com o
propósito de que Boécio o fizesse através das Hebdômadas: “Tu me pedes que,
por meio de nossas Hebdômadas...”.
17. E, a razão da escolha das
Hebdômadas, é pela própria natureza das Hebdômadas; pois, Boécio diz: “por
meio de nossas Hebdômadas, mostre mais claramente e disperse a obscuridade
daquela questão...”; o pedido do diácono João a Boécio, para se utilizar
das Hebdômadas, é com um propósito duplo, a saber: primeiro, mostrar mais
claramente, ou mostrar de maneira clarividente; segundo, dispersar a
obscuridade de determinada questão.
No primeiro, se demonstra e
evidencia a questão e a resolve de maneira direta, simples e profunda; no
segundo, se dispersa as dificuldades mais comuns da questão analisada, e assim,
se abaliza o entendimento e a compreensão sobre a solução desta questão.
Portanto, a natureza das Hebdômadas, tem por função mostrar mais claramente e
dispersar as obscuridades no que concerne a determinada questão posta à
análise.
18. E, tendo compreendido isso, algo
aliás, proposto na pergunta do diácono João, e que Boécio descreve logo no
início do prólogo, se prossegue para se demonstrar o conteúdo destas
Hebdômadas: “que concerne o modo como as substâncias são boas naquilo que
são, ainda que não sejam bens substanciais”; e justamente esta é uma das
questões filosóficas das mais importantes; porque versa sobre o ser, sobre a
essência, sobre a subsistência e sobre a participação; temas fundamentais da
filosofia e da reflexão ontológica; mais propriamente, o que Boécio soluciona
com suas Hebdômadas, é o que concerne ao modo como as substâncias são boas
(existência) naquilo que são (essência), ainda que não sejam bens substanciais
(participação); pois, se as coisas são boas, mas não são bens substanciais,
então, necessariamente, estas coisas participam do Bem Substancial; já na
proposição da questão, se tem a solução da dificuldade básica que inere a
própria questão.
19. Depois, Boécio diz: “E dizes
que isso deve ser feito assim porque o estilo destes escritos não é conhecido
por todos”; evidentemente, mesmo que o objetivo das Hebdômadas seja o de
mostrar mais claramente e o de dispersar as obscuridades, pelo próprio assunto
e por ser concernente ao estudo da sabedoria, nem todos conseguirão compreender
este assunto; por isso, o próprio diácono João pede que seja feito por este
método porque não é conhecido de todos, isto é, não é conhecido daqueles que
não buscam o verdadeiro saber; é acessível a todos, mas não é conhecido por
todos, pois, nem todos buscam a sabedoria; mas, o próprio diácono João ao fazer
este pedido a Boécio, e ao descrevê-lo deste modo por essa razão, também se
demonstrou exercitado nos assuntos que concernem a sabedoria, como o próprio
Boécio declara: “Inclusive eu mesmo sou testemunha do modo tão vivaz que
tens abraçado estes [temas] anteriormente”; ora, a proposição é evidente:
somente aqueles que estão exercitados na sabedoria é que conseguem compreender
as coisas concernentes a sabedoria.
20. E o próprio pedido do diácono
João, se coaduna com as pressuposições do mestre que está sendo indagado;
Boécio afirma o que as Hebdômadas eram para ele: “De fato, eu mesmo pondero
as Hebdômadas e conservo essas considerações na minha memória”; e o faz
desta maneira para evitar que aqueles que não buscam o saber não possam
entendê-las adequadamente; por isso, diz: “em vez de compartilhá-las com
qualquer um daqueles que o desenfreio e a insolência não permitem que nada seja
enlaçado sem jogo e risadas”; aqueles que com “desenfreio” e “insolência”
se colocam diante da sabedoria, acabam por decair diante destas questões, pois,
as obscuridades que provêm do desenfreio e da insolência tornam os assuntos
concernentes a sabedoria tão obscuros que parecem impossíveis de serem
entendidos; pois, o desenfreio (cf. Sl 32.9), o espírito esvoaçado na reflexão
teorética, e a insolência (cf. Pv 21.24), o desrespeito aos preceitos e aos
modos de se buscar a sabedoria, formam uma nuvem opaca sobre a inteligência, velando
à esta as benesses e deleites da sabedoria. Por isso, quando diz: “em vez de
compartilhá-las com qualquer um...”, diz respeito àqueles que “não eram
influenciados pelo mesmo desejo que ele tinha para com elas”[11].
21. E Boécio procede desta maneira,
porque quer tratar deste assunto de modo claro e de modo obscuro; é a dialética
inerente as Hebdômadas; de modo claro, a fim de que, através das declarações,
os verdadeiros amantes da sabedoria possam entendê-la, donde afirmar no início:
“mostre mais claramente e disperse a obscuridade”; mas também de modo
obscuro, de modo àqueles que não são influenciados pelo mesmo desejo da busca
da sabedoria, não as possam compreender, donde Boécio afirmar: “De fato, eu
mesmo pondero as Hebdômadas e conservo essas considerações na minha memória em
vez de compartilhá-las com qualquer um daqueles que o desenfreio e a insolência
não permitem que nada seja enlaçado sem jogo e risadas”; o desenfreio e a
insolência, tomados por Tomás de Aquino, respectivamente, como luxúria e
superficialidade, castificam a inteligência e a percepção nos enlaces do jogo e
das risadas; não do verdadeiro jogo da filosofia - tomado em sentido alegórico
como o banquete da sabedoria -, mas os enlaces dos jogos falsos, ou em sentido
alegórico, os jogos viciantes; mas também aqueles que são desenfreados e
insolentes, dão risadas, e como se sabe, riso e sorriso são diferentes; o
primeiro, é expressão de vício, de luxúria e de superficialidade; o segundo, de
verdadeira alegria e de virtude.
Por isso, aqueles que amam os falsos
jogos do falso saber e amam as risadas que destes provêm, são na verdade,
desenfreados e luxuriosos, insolentes e superficiais. Pois, ao invés de se
deixarem ensinar pela sabedoria, buscam os prazeres passageiros e escarnecem do
saber, formando uma roda de escarnecedores, que na descrição do Pregador
possuem as seguintes características: amam a necedade, desejam o escárnio e
aborrecem o conhecimento, e por isso, são chamados, respectivamente, de
néscios, de escarnecedores e de loucos (cf. Pv 1.22). E, certamente, as risadas
daqueles que são desenfreados e insolentes, são risadas que acutilam com as
setas da luxúria e que castificam com o cimento da superficialidade.
22. Depois, Boécio diz: “Portanto,
não sejas desfavorável às obscuridades da brevidade”; diante destas
descrições dos desenfreados e insolentes, a única maneira de se privar dos
enlaces malditos que destes provêm é por meio da brevidade; as almas esvoaçadas
e luxuriosas que dizem tudo preferir de maneira mais prática, possuem ódio e
rancor contra a brevidade, isto é, contra o verdadeiro saber expresso em
obscuridade; enquanto que para os amantes da sabedoria, a brevidade contém
muito saber e muito conhecimento, para os desenfreados e insolentes, a
brevidade possui obscuridade desnecessária; por isso, Boécio pede ao diácono
João que este não seja desfavorável as obscuridades, isto é, que não rejeite as
dificuldades da brevidade, mas que antes, as aceite de bom grado, pois, somente
assim, as Hebdômadas, isto é, aquilo que expressam as Hebdômadas, são guardadas
como tesouro dos salteadores do saber e do conhecimento, a saber, os
desenfreados e insolentes.
23. Pois, a brevidade possui uma
inestimável utilidade. Boécio afirma: “Pois sendo misteriosas, têm a
vantagem de serem fiéis guardiãs [de um segredo], já que elas dialogam somente
com aqueles que são dignos”; pois, as brevidades, sendo misteriosas, por si
mesmas, encerram o falso ímpeto dos desenfreados e insolentes com relação ao
saber e ao conhecimento; por isso, as brevidades, “têm a vantagem de serem
fiéis guardiãs”, isto é, de servirem de guardiãs do templo da sabedoria,
não permitindo que desenfreados e insolentes adentrem aos mistérios sapenciais
e irrompam contra o verdadeiro saber; como diz Tomás de Aquino: “a
obscuridade, ao guardar fielmente um segredo, traz isto de utilidade: ‘que fala
somente com aqueles que são dignos’, a saber, com os inteligentes e dedicados,
que são dignos de serem admitidos aos segredos da sabedoria”[12].
Pois, somente aqueles que são dignos
de serem admitidos aos segredos da sabedoria, é que compreendem o que concerne
as Hebdômadas; e para isso, tanto o diácono João em seu pedido, quanto o
próprio Boécio em sua resposta, demonstram a razão das Hebdômadas para a
análise do tema proposto, quanto descrevem o modo como se seguirá nestas
Hebdômadas, isto é, com as obscuridades das brevidades; pois, para aqueles que
são dignos, estas servem de instrumento para crescer ainda mais em saber e
conhecimento, mas para os desenfreados e insolentes são obscuridades
instransponíveis, porque nestes não há verdade e sinceridade para buscar
aprender na mesa do banquete da sabedoria.
24. E, depois de haver demonstrado a
natureza e o propósito das Hebdômadas, isto é, a razão e a necessidade, bem
como o objetivo das Hebdômadas, Boécio descreve o modo inicial como vai
proceder em sua análise; ou seja, Boécio apresenta a ordem em que vai proceder
na análise, ou mais propriamente, as duas partes iniciais que compõem o tratado
(caps. I e II); Boécio afirma: “Assim, como se costuma fazer na matemática e
demais disciplinas, propus termos e regras dos quais demonstrarei todas as
coisas que se derivam”; Boécio descreve que o método pelo qual vai seguir
em sua análise é o mesmo da matemática e das demais disciplinas, a saber, o da
demonstração; Boécio estabelece a demonstração como base de sua análise, e isto
por dois motivos: primeiro, porque a demonstração pressupõem o saber e o
conhecimento comuns a toda demonstração; segundo, porque a partir da
demonstração os princípios evidentes ficam mais claros e se tornam mais
perceptíveis.
Ora, no primeiro, se estabelece que
para compreender algo de uma demonstração são necessários conhecimentos prévios
necessários que se antepõem a toda instrução intelectual (cf. Anal. Post.
71a1); e em relação ao segundo, se demonstra, que ao se compreender as
proposições referidas na demonstração, se pode adentrar ao estudo da questão
sem nenhuma dificuldade da ordem de demonstração e da ordem do conhecimento
demonstrativo.
25. Portanto, Boécio propõem termos
e regras; e esta é a base axiomática de qualquer demonstração, tal como por
exemplo, se encontra em “Os Elementos” de Euclides; e a invectiva de
Boécio se estabelece tendo em vista a chave hermenêutica principal de sua
invectiva no que concerne a analisar as coisas boas naquilo que são, a saber, “dos
quais demonstrarei todas as coisas que se derivam”, isto é, o modo como as
coisas são derivadas duma fonte de bem, da qual emanam como bens, embora não
sejam bens substanciais, isto é, embora não sejam os primeiros princípios; a
base e a forma da análise de Boécio tem o conceito de participação como eixo
analítico principal, e o Primeiro Bem, como proposição apodítica de tudo quanto
diz respeito a participação, ao bem, a existência e a essência; donde, ser
corretamente aferida a proposição de que neste tratado Boécio apresenta o
binômio ser-participação, ou a partir da leitura albertiana, de
essência-participação[13].
26. E a demonstração de Boécio, do
modo como “todas as coisas que se derivam”, é imbuída na ideia de
essência-participação; as coisas essencialmente boas participam da bondade,
porque em suas essências, tem algo de uma essência donde procedem, tanto como
existentes, quanto como boas; isto é, a existência e a essência das coisas,
provêm de uma fonte, tanto que lhes abaliza a existência quanto que lhes
confere a essência; esta fonte, como Boécio mesmo demonstrará, é o Primeiro
Bem; logo, todas as coisas derivam e se derivam a partir do Primeiro Bem; e os
termos e regras que Boécio demonstra (nos caps. I e II), são por si mesmas
necessárias para aclarar este fato e são suficientes para adentrar ao estudo da
solução do problema que concerne ao “modo como as substâncias são boas
naquilo que são, ainda que não sejam bens substanciais”.
27. Mas, além destes aspectos
mencionados e analisados, o prólogo de Boécio também apresenta vários insights
e perspectivas sobre o que é e no que concerne o estudo da sabedoria; e a
partir da descrição de Boécio se pode elencar estes princípios sobre o estudo
da sabedoria de três modos: primeiro, o que é o estudo da sabedoria; segundo,
no que concerne o estudo da sabedoria; terceiro, das atitudes necessárias
daqueles que se colocam no estudo da sabedoria.
Estes três aspectos, estão
delineados de forma embrionária no prólogo de Boécio, pois, tanto a atitude do
diácono João em pedir a solução de uma questão através das Hebdômadas, quanto a
atitude de Boécio em responder este pedido, demonstram que a sabedoria possui
uma natureza, um propósito e um modo, os quais, estão interligados e são
indissolúveis. Por isso, os insolentes e luxuriosos não conseguem compreender o
que concerne a sabedoria. Mas, vejamos estes três aspectos elencados.
28. Primeiro, o que é o estudo da
sabedoria; o estudo da sabedoria é o estudo que não é feito por todos, embora,
a sabedoria clame nas praças buscando a quem possa ensinar (cf. Pv 1.20); pois,
a sabedoria não é conhecida de todos, então, as coisas que concernem ao estudo
da sabedoria também não serão conhecidos de todos e nem entendíveis por todos;
os mistérios da sabedoria só são entendidos a medida da dedicação a este
estudo, distante dos desenfreados e insolentes; portanto, o estudo da sabedoria
é uma coisa excelente, sendo em si mesmo suficiente, mas que não é conhecidos
de todos, e não é entendido por aqueles que por palavras e ações declaradamente
são contra a sabedoria; por isso, o estilo dos escritos e estudos sobre a
sabedoria não são conhecidos por todos. Aliás, conhece-se quem rejeita a
sabedoria pela não-compreensão destes dos assuntos concernentes a sabedoria; e,
pelo contrário, conhece-se quem ama e é amigo da sabedoria pela compreensão
destes dos assuntos concernentes a sabedoria.
29. Segundo, no que concerne o
estudo da sabedoria; a sabedoria consiste em demonstrar mais claramente e
dispersar as obscuridades e dificuldades de determinada questão; e justamente
nisso está a utilidade sempre necessária da sabedoria, a saber, o dispersar
questões obscuras, que sendo resolvidas, contribuem não só com o
desenvolvimento do saber, mas com o próprio desenvolvimento do indivíduo que
busca a sabedoria; o caminho do estudo da sabedoria é árduo, mas sempre
benéfico com aqueles que enfrentam suas agruras (cf. Sl 126.5-6); pois, o
estudo da sabedoria, também consiste em ponderar e conservar na memória;
ponderar, porque sem ponderar não há a compreensão do assunto estudado;
conservar na memória, porque sem memória não há aprendizado e saber. E só quem
ama a sabedoria é que pondera e guarda na memória seus frutos palatáveis e
agradáveis.
E Boécio, as pondera e as conserva
na memória, porque o ato de ponderar e o ato de conservar na memória são
amalgamados, e impedem que o saber e a sabedoria sejam utilizados por pessoas
insolentes, bem como demonstram que realmente houvera o estudo da sabedoria; a
meditação e a memória são elementos imprescindíveis no estudo da sabedoria,
pois, tanto ensinam a quem aprende (cf. Pv 2.10), quanto disciplina estes
diante daqueles que não são dignos de apreenderem da verdade e não são dignos
de serem ensinados na sabedoria (cf. Pv 2.12-19).
30. Terceiro, das atitudes
necessárias daqueles que se colocam no estudo da sabedoria; e sobre isso, cinco
aspectos são necessários: primeiro, a vivacidade na busca pela sabedoria, como
Boécio diz: “Inclusive eu mesmo sou testemunha do modo tão vivaz que tens
abraçado estes [temas] anteriormente”; segundo, os vícios a serem evitados
no estudo da sabedoria, como Boécio diz: “De fato, eu mesmo pondero as
Hebdômadas e conservo essas considerações na minha memória em vez de
compartilhá-las com qualquer um daqueles que o desenfreio e a insolência não
permitem que nada seja enlaçado sem jogo e risadas”; terceiro, o modo de se
enfrentar as dificuldades que advêm do estudo da sabedoria, como Boécio diz: “Portanto,
não sejas desfavorável às obscuridades da brevidade”; quarto, que todas as
dificuldades do estudo da sabedoria são recompensadas pela própria sabedoria,
como Boécio diz: “Pois sendo misteriosas, têm a vantagem de serem fiéis
guardiãs [de um segredo], já que elas dialogam somente com aqueles que são
dignos”; quinto, o estudo da sabedoria contribui nos estudos das outras
disciplinas, como Boécio diz: “Assim, como se costuma fazer na matemática e
demais disciplinas, propus termos e regras dos quais demonstrarei todas as
coisas que se derivam”.
E, este estudo, como dissera Tomás
de Aquino, se enche de utilidade, porque o estudo da sabedoria é o sustentáculo
de todas as artes; tal como Cícero afirmara: “o interesse e o conhecimento
de todas as artes, que se referem ao modo correto de viver, são mantidos pela
dedicação à sabedoria, que se denomina filosofia”[14];
logo, etc.
31. Deste modo, no prólogo, Boécio
fizera três coisas: primeiro, descrevera seu propósito e objetivo em suas
Hebdômadas; segundo, apresentara os preceitos e ditames que o guiarão em suas
Hebdômadas; terceiro, apresentara os preceitos fundamentais do que constitui o
estudo da sabedoria. E, isto, tanto diz respeito as próprias Hebdômadas, quanto
a outros aspectos do saber, que por serem feitos a partir e/ou em consonância
com o estudo da sabedoria, também são permeados pelos princípios imorredouros
que guiam Boécio em suas Hebdômadas; extrair o significado da solução do
problema que concerne ao modo como as coisas boas são boas naquilo que são, mas
também apresentar os preceitos do verdadeiro saber e da busca do verdadeiro
saber, eis a natureza e o propósito de Boécio em suas Hebdômadas.
Lição 3
Elucubra-se sobre a concepção comum da mente.
A. Texto de Boécio (De
Hebdomadibus, cap. I).
Uma concepção comum da mente é uma
enunciação que, tendo ouvido, qualquer um aprova.
Dessas existem dois tipos: de fato,
uma delas é tão comum que é própria de todos os homens como, por exemplo,
quando propões isto: ‘se de duas coisas iguais diminuis porções iguais, o
que sobrará serão coisas iguais’. Ninguém que entenda o negará. Porém há
outras que pertencem somente aos instruídos, ainda que procedam de tais
concepções comuns da mente como é esta: ‘aquelas coisas que são incorpóreas
não estão em um lugar’, e outras que os instruídos comprovam, mas não a
plebe.
B. Comentário.
32. Após descrever no prólogo a
natureza e o propósito das Hebdômadas, Boécio prossegue para o tratado; e
inicia apresentando sua primeira parte (cap. I), onde demonstra a primeira
proposição que delineara no prólogo sobre o objetivo de suas Hebdômadas; e
Boécio enuncia dois aspectos: primeiro, apresenta a pressuposição dos
princípios auto-evidentes da demonstração; segundo, apresenta os dois tipos
destes princípios.
No primeiro, Boécio prossegue em sua
afirmação no prólogo e prossegue apresentando os termos, pois, “efetivamente,
em tais princípios encontra-se a resolução de todas as demonstrações”[15]; no
segundo, apresenta o modo como estes termos são predicados, a saber, de dois
modos, formando dois tipos de termos.
33. Depois Boécio diz: “Uma
concepção comum da mente é uma enunciação que, tendo ouvido, qualquer um aprova”;
e, nesta definição Boécio faz três coisas: primeiro, designa a concepção comum
da mente; segundo, afirma o que é uma concepção comum da mente; terceiro,
demonstra a natureza da concepção comum da mente.
34. No primeiro, faz-se duas coisas:
uma é a designação de “concepção”, outra é a designação de “comum”; a
designação de concepção (conceptio), tem dois sentidos: formal e
alegórico; o formal, é o sentido propriamente dito de conceito; o alegórico, é
o conceito entendido como uma espécie de “fórmula” para algo ou que
expressa algo; por isso, se toma conceito como um termo que expressa o sentido
de algo, seja tal como uma fórmula matemática, ou então como uma definição
precisa a partir da razão do nome. Já a designação de “comum”, qualifica a
forma do conceito; é um conceito comum, isto é, é um conceito que expressa algo
comum tal como numa fórmula que todos conhecem e reconhecem.
35. No segundo, apresenta
propriamente o que quer dizer com concepção comum da mente, a saber, que é uma
enunciação; uma concepção comum da mente é mais do que apenas um conceito, é
uma enunciação; e toda enunciação possui sujeito e predicado, ou pelo menos,
pressupõem sujeito e predicado, mesmo uma enunciação simples; por isso, a
concepção comum da mente, é uma enunciação a medida que é a razão de algo, e
que demonstra a essência deste algo; portanto, a concepção comum da mente é
sempre uma enunciação, a qual, sempre requer a presença de um verbo ou de uma
flexão verbal (cf. Da Inter. 17a9); mas, às vezes, a concepção comum da mente
só vem expressa no conceito, mas um conceito que reclama um verbo, ou então
sendo o próprio um verbo, reclama uma flexão verbal.
36. No terceiro, demonstra a
natureza da concepção comum da mente, a saber, “que é uma enunciação que,
tendo ouvido, qualquer um aprova”; a concepção comum da mente é uma
enunciação que ao se ouvi-la qualquer um a aprova; pois, é auto-evidente, e,
por isso, apodítica; e uma concepção comum da mente só é ouvida como tal
através de um enunciado, demonstrado que o enunciado é o meio pelo qual a
concepção comum da mente é expressa e é mais facilmente entendida; logo, o
enunciado tendo sido proferido ou anunciado, se compreende que a concepção
comum da mente é inegável, e por isso, qualquer um que a ouve, a aprova.
37. Depois, Boécio prossegue para
elencar os dois tipos de concepção comum da mente, ao afirmar: “Dessas
existem dois tipos”; e, sobre isso, duas coisas são evidentes: primeiro,
que as concepções comuns da mente são predicáveis; segundo, que ao serem
predicáveis, são demonstráveis a partir do sujeito e/ou do predicado.
38. Em relação ao primeiro, as
concepções comuns da mente são predicáveis, porque são comuns, e sendo comuns,
ou são gerais ou são específicas; o primeiro tipo são as gerais, o segundo tipo
as específicas; Boécio apresenta o primeiro tipo, as concepções comuns gerais e
entendíveis de maneira geral por todos os homens, instruídos e não instruídos;
e, estas concepções são predicáveis, porque são comuns e todos as reconhecem;
mas, são predicáveis, porque são parte do primeiro saber que o ser humano
desenvolve a partir de seu próprio desenvolvimento e do contato com a
realidade. Na verdade, são estas concepções as que primeiro são predicadas pelo
intelecto na ordem da predicação das coisas, e que as mais das vezes, ao não
serem expressas num enunciado, defronta-se com uma das categorias, como o
Filósofo demonstra no livro dos Predicamentos.
39. E, em relação ao segundo, as
concepções comuns, ao serem predicáveis, são demonstráveis a partir do sujeito
e/ou do predicado; e, o são, porque tendo sido predicadas, são aferidas a
partir de um sujeito ou em um sujeito; se aferidas a partir de um sujeito,
podem estar ou não no sujeito, embora não sejam afirmadas de um sujeito
conhecido (isto é, no sujeito num enunciado); e, se aferidas em um sujeito, são
designadas e demonstradas na razão do nome pelo predicado deste sujeito; por
isso, as concepções comuns são as que primeiro são expressas em linguagem e as
que de início são parte do ato predicativo do ser humano em relação ao saber e
ao desenvolvimento da vida na realidade.
Pois, o saber se desenvolve primeiro
a partir das coisas mais evidentes, ou mais comuns, para depois se ir as coisas
menos evidentes ou mais difíceis de serem compreendidas.
40. Depois, Boécio avança e
apresenta o primeiro tipo de concepção comum da mente, ao asseverar: “de
fato, uma delas é tão comum que é própria de todos os homens como, por exemplo,
quando propões isto: ‘e de duas coisas iguais diminuis porções iguais, o que
sobrará serão coisas iguais’. Ninguém que entenda o negará”; no primeiro
tipo de concepção comum, Boécio apresenta duas características gerais:
primeiro, que é própria de todos os homens; segundo, que não podem ser negadas;
a primeira característica designa que a concepção comum é própria de todos os
homens, isto é, está presente em todos os homens de maneira indistinta, o que
também demonstra a universalidade da concepção comum da mente que é própria de
todos os homens; a segunda característica, é que esta concepção comum da mente
ninguém a pode negar.
41. E, para provar isso, Boécio
elenca um exemplo que demonstra a primeira característica e que por isso mesmo
comprova a segunda característica; Boécio afirma: “por exemplo, quando
propões isto: ‘e de duas coisas iguais diminuis porções iguais, o que sobrará
serão coisas iguais’”; ora, o exemplo fornecido por Boécio é algo
auto-evidente, pois, seria igual afirmar: dois vezes dois (2x2) são quatro (4);
ou então, se afirmar que o cruzamento entre um galo e uma galinha vai nascer um
pintinho; ou qualquer outra verdade auto-evidente por natureza e por
demonstração; por isso, Boécio afirma: “ninguém que entende o negará”,
isto é, qualquer um que possa entender basicamente esta demonstração
auto-evidente não a pode negar.
A concepção comum da mente, em seu
primeiro tipo, possui universalidade, isto é, está presente em todos os homens,
e é apodítica, isto é, não pode ser negada. Logo, se compreende o porquê Boécio
diz que na análise que se propõem a fazer, procederá por termos e regras, isto
é, tal como na matemática e outras disciplinas, a fim de demonstrar os
princípios auto-evidentes e que não podem ser negados.
42. Depois, Boécio prossegue e
apresenta o segundo tipo de concepção comum da mente, ao afirmar: “Porém há
outras que pertencem somente aos instruídos, ainda que procedam de tais
concepções comuns da mente como é esta: ‘aquelas coisas que são incorpóreas,
não estão em um lugar’ e outras que os instruídos comprovam, mas não a plebe”;
e neste segundo tipo, duas coisas ficam clarividentes: primeiro, que o segundo
tipo de concepção comum da mente não é acessível a todos; segundo, que há
coisas só entendíveis a partir da instrução intelectual.
43. No primeiro aspecto, a segunda
concepção comum da mente, só se torna entendível a partir do entendimento de
outros conhecimentos e de outros saberes, pois que, há conhecimentos que só se
conhecem a partir de outros conhecimentos; logo, se entende o porquê há outras
coisas que pertencem somente aos instruídos, que são as verdades que se
estabelecem a partir das verdades mais evidentes, embora não sejam verdades
acessíveis somente ao senso comum, pois, estão guardadas como um tesouro, que
tal como as pedras preciosas, somente quem escava com esmero as pode encontrar.
44. Além disso, as coisas que só os
instruídos conseguem compreender, procedem das concepções comuns (o primeiro
tipo de concepção comum da mente); pois, naturalmente, o intelecto opera o
conhecimento a partir do que já é conhecido, a fim de conhecer o que é
desconhecido; e a mente busca conhecer o que é desconhecido a partir do já
conhecido, por aproximações e afirmações (ou, nos termos de Piaget, por
assimilação e acomodação); e, segundo Alberto, isto se dá através do
conhecimento das coisas incomplexas e das coisas complexas[16],
isto é, as coisas que os homens desejam conhecer quando as desconhecem, e que
as conhecem a partir das coisas incomplexas e das coisas complexas, a saber, a
partir das coisas que não possuem combinação, ou as simples concepções da
mente, e as coisas que possuem combinação, ou as concepções que vem ou estão
dispostas num enunciado.
45. Assim sendo, a partir do
primeiro tipo de concepção comum da mente, se evoca dois pressupostos, os quais
são: primeiro, a universalidade da concepção comum se estabelece a partir da
realidade, pois o real não pode ser negado por ninguém que o conheça e o
perceba (a não ser nos casos da recusa em se aperceber da realidade[17]);
segundo, a concepção comum é apodítica, e por isso, preceitual ao conhecimento
sensível, pois, todo conhecimento sensível vem imbuído de concepções comuns e é
expresso através do primeiro tipo de concepção comum da mente, donde, “são
chamadas de concepções comuns da mente e geralmente caem no entendimento de
qualquer intelecto. A explicação disto é que o predicado está contido na razão
do sujeito”[18].
46. E, a partir do segundo tipo de
concepção comum da mente, se evoca dois pressupostos: primeiro, toda concepção
provêm de outra concepção ou de outras concepções, pois, o segundo tipo de
concepção comum da mente não é conhecível por todos; segundo, toda concepção
tem sua predicação; por isso, o Teólogo fala sobre o modo da predicação das
concepções comuns, o qual se estabelece de modo duplo[19];
ora, as concepções comuns, filosoficamente, se estabelecem como as primeiras a
serem predicadas; por isso, são parte da primeira das operações do intelecto, a
apreensão dos indivisíveis (cf. De An. 430a26); logo, são as primeiras a serem
apreendidas na predicação; por isso, são concepções que estão ou de maneira
unívoca, ou de maneira equívoca ou de maneira cognominada em relação as coisas
predicadas (cf. Cat. 1a1-15); entretanto, existe uma distinção entre a
predicação das concepções comuns da mente, e o modo como estas são predicadas
no aspecto central da simples apreensão do intelecto.
Pois, a predicação das concepções
comuns que primeiro ocorre na predicação, é a parte mais rudimentar da
predicação. Logo, são a parte da predicação que se demonstra de maneira
auto-evidente, e por isso, conhecidas por todos, e que abaliza a compreensão de
outras coisas não tão evidentes, e por isso, conhecidas somente por aqueles que
buscam a sabedoria.
47. Ora, o que é concebido de
maneira comum, o é porque fora parte do que primeiro é concebido pelo
intelecto; as concepções comuns da mente são parte das coisas mais comuns que o
intelecto concebe e conhece; ou, dito em outros termos, daquilo que primeiro o
intelecto concebe; e, segundo Tomás, a partir da proposição de Avicena, se
afirma que “o ente e a essência são o que é concebido primeiro pelo
intelecto”[20]; logo,
aquilo que é concebido de maneira comum pelo intelecto, é ente, conhecido pelo
intelecto na apreensão dos indivisíveis como objeto adequador; por isso, Tomás
afirma: “aquelas coisas que caem em qualquer intelecto são as mais comuns, a
saber: ente, uno e bem”[21].
Portanto, o que primeiro o intelecto
concebe são as concepções comuns mais gerais, ou as concepções comuns que
açambarcam todas as demais, as quais são: ente, uno e bem - os transcendentais.
E, estes três aspectos são delineados por Boécio na segunda parte do tratado
(cap. II), onde se propõe os axiomas ou regras fundamentais de suas Hebdômadas.
48. Além de descrever estes dois
aspectos, e se compreender suas nuances, cada um dos dois tipos de concepção
comum da mente possui suas características, as quais, Boécio evoca a partir de
exemplos; e os exemplos evocados por Boécio, são em si mesmos suficientes para
delinear o escopo fundamental da concepção comum da mente. E sobre isso, e em
consonância com os dois tipos de concepção comum da mente, se estabelecem dois
aspectos: primeiro, a natureza demonstrativa do primeiro tipo de concepção
comum da mente; segundo, a natureza especulativa do segundo tipo de concepção
comum da mente.
49. Primeiro, a natureza
demonstrativa do primeiro tipo de concepção comum da mente, sobre o qual Boécio
afirma: “uma delas é tão comum que é própria de todos os homens como, por
exemplo, quando propões isto: ‘se de duas coisas iguais diminuis porções
iguais, o que sobrará serão coisas iguais’. Ninguém que entenda o negará”;
ora, o primeiro tipo de concepção comum da mente, se estabelece a partir da
racionalidade inerente ao ser humano; pois, é própria de todos os homens, isto
é, é a mesma a todos os homens, e é entendível facilmente por todos os homens,
tal como as verdades mais simples, que Boécio evoca exemplo a partir da
proporção matemática.
Logo, existem concepções que são
comuns tanto em si mesmas, quanto à compreensão humana, que independem da
aceitação ou não, pois, por si, são evidentíssimas; por isso, ninguém que
realmente entenda as negará, isto é, somente quem estiver com o entendimento
obscurecido as negará.
Deste modo, o primeiro tipo de
concepção comum da mente possui uma natureza demonstrativa comum; ou seja,
todos que possuem o entendimento a compreenderão; pois, está disponível a
todos. E, esta natureza demonstrativa comum, é o que abaliza inclusive o sujeito
da lógica, pois, os dois tipos de concepção comum da mente, são açambarcados na
lógica já que esta é uma ciência comum.
50. Segundo, a natureza especulativa
do segundo tipo de concepção comum da mente, sobre o qual Boécio afirma: “Porém
há outras que pertencem somente aos instruídos, ainda que procedam de tais
concepções comuns da mente como é esta: ‘aquelas coisas que são incorpóreas,
não estão em um lugar’ e outras que os instruídos comprovam, mas não a plebe”;
ora, o segundo tipo de concepção comum da mente, se estabelece através do ato
de raciocinar; pois, o ser humano, sendo um ser racional, raciocina sobre as
coisas existentes, de tal modo que em algumas destas, encontra algumas coisas
que são de difícil compreensão e acesso, pois, são entendidas e compreendidas
somente com aqueles que possuem instrução nas coisas referentes ao
conhecimento.
Logo, do mesmo modo como existem
verdades que são por si mesmas evidentes, também existem verdades que não são;
as que são mais evidentes, são comuns; as que são menos evidentes, são as menos
comuns, e, por isso, são de natureza mais especulativa; e requerem uma reflexão
mais apurada e que são embasadas muitas vezes pela procedência das concepções
comuns da mente; mas, como versam sobre assuntos mais difíceis, requerem certa
instrução intelectual para a compreensão.
51. Deste modo, o segundo tipo de
concepção comum da mente, pertence somente aos instruídos, tal como o exemplo
evocado por Boécio demonstra, das coisas que são incorpóreas; para se alcançar
tal compreensão são necessários outros conhecimentos; assim sendo, a natureza
especulativa do segundo tipo de concepção comum da mente pressupõe aquilo que o
Filósofo delineara no livro I dos Analíticos Posteriores, de que todo
ensino e toda instrução intelectual procedem de conhecimento pré-existente (cf.
Anal. Post. 71a1).
52. Com isso, se compreende que a
concepção comum da mente, está presente tanto na lógica quanto nas ciências
reais; na lógica, enquanto parte do sujeito da lógica; nas ciências reais, como
parte do conhecimento das mesmas e das análises que concerne a cada uma destas
ciências. Assim sendo, se compreende que a universalidade da concepção comum da
mente tem duas formas: a primeira, a da generalidade, no primeiro tipo de
concepção comum da mente; a segunda, a da especificidade, no segundo tipo de
concepção comum da mente. A primeira, disponível a todos que entendam; a
segunda, disponível para a compreensão apenas para aqueles que, segundo o
Filósofo, possuem instrução intelectual[22].
E a partir disto se compreende a
razão do porque Boécio se utiliza da designação das concepções comuns da mente
ao solucionar um problema teórico em ordem a sabedoria, e do porque as
Hebdômadas estarem fundamentadas a partir dos princípios da demonstração.
C. Dúbias[23].
Em relação as pressuposições estabelecidas nesta lição,
surgiram duas dúbias: (1) se é necessário existirem dois tipos
de concepção comum da mente; e (2), se os dois tipos de concepção comum da mente se
relacionam com os modos de predicar.
<Dúbia I>
Acerca da primeira, procede-se
assim: se é necessário existirem dois tipos de concepção comum da mente.
E parece que não.
I. [Argumentos].
1. A mente não lida com conceitos,
mas com realidades; logo, não é necessário existirem concepções da mente, mesmo
as tidas como comuns, pois, a mente lida com as realidades; portanto, não é
necessário existirem concepções comuns da mente.
2. Ademais, as concepções referem-se
apenas a signos e a significados, enquanto que a mente trabalha com signo,
significado e referente, tal como a coisa está na realidade; portanto, não se
fazem necessário as concepções da mente, pois estas não versam sobre algum
referente; logo, não é necessário existirem concepções comuns da mente.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, Sirach
diz: “sê o primeiro a correr para casa, e ocupa-te de tuas concepções.
Invoca-as e deleita-te nelas” (Eclo. 32.15-16); ora, se se deve ocupar com
as concepções, então, as mesmas concernem a mente; e, como as mesmas são deleitáveis,
então, são necessárias, já que tudo o que é deleitável para o intelecto é
necessário; e se sabe que existem dois tipos de deleite: um pelo conhecimento
do que é comum, o outro pelo entendimento do que está além do que é comum; ora,
isto concerne aos dois tipos de concepção comum da mente; portanto, são
necessários dois tipos de concepção comum da mente.
III. [Solução].
1. A concepção da mente,
necessariamente, deve ser uma concepção comum, tanto em função da apreensão,
quanto da própria compreensão; pois, uma concepção comum refere-se a algo
facilmente entendido e reconhecido por todos; logo, diz respeito a algo tido por
verdadeiro por todos, de modo a sua demonstração ser conhecida por todos.
2. E a concepção comum da mente se
dá em dois tipos; pois, tudo o que é conhecido, o é de forma a se entender o
que é conhecido e a se entender o que é desconhecido; portanto, um tipo de
concepção comum da mente versa sobre o que é plenamente conhecido, e o outro
tipo sobre aquilo que não é facilmente conhecido; ou, para se utilizar dos
termos predicamentais, o primeiro tipo de concepção comum da mente diz respeito
a algo incomplexo, enquanto que o segundo tipo diz respeito a algo complexo.
Portanto, se compreende a razão de existirem dois tipos de concepção comum da
mente, tanto em ordem a compreensão quanto em ordem a predicação, e vice-versa.
IV. [Respostas aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro argumento se
responde que a mente lida com a realidade a partir de sua própria natureza, mas
expressa este lidar a partir de conceitos que designam coisas reais, que tanto
podem estar dispostos em algum símbolo quando em alguma definição, e ainda em
ambos os modos; pois, ao lidar com realidades, a mente formula conceitos que
expressam o real e a essência das coisas existentes; portanto, a mente lida com
conceito, donde se formarem concepções; logo, é necessário que existam concepções
comuns da mente, tanto na realidade quanto na razão, a qual nada mais é do que
expressão do que está na própria realidade.
2. Quanto ao segundo argumento se
responde que as concepções comuns da mente, ao surgirem do real, não se referem
a apenas signos e a significados, mas também a referentes; pois, toda concepção
comum da mente, tem necessariamente estes três aspectos, pois, senão não se
forma uma concepção de um ente real, o que se não tivesse estes três aspectos
poderia apenas se imaginar um ente de razão, que mesmo assim seria incompleto
pois não seria real, nem mesmo no pensamento; portanto, a mente trabalha com a
realidade, e ao conhecer algo da realidade, passa a designar seu significado a
partir da própria realidade, donde também se conduz a construção de um signo ou
símbolo a respeito da coisa real significada. E as concepções comuns da mente
surgem em consonância com estes aspectos, na ordem ora mencionada, com signo,
significado e referente.
<Dúbia II>
Acerca da segunda, procede-se assim:
se
os dois tipos de concepção comum da mente se relacionam com os modos de
predicar.
E parece que não.
I. [Argumentos].
1. A predicação refere-se a predicação das coisas, tal
como feita pelo intelecto ao se defrontar com as coisas na realidade; enquanto
que a concepção comum da mente refere-se a algo já predicado; portanto, os dois
tipos de concepção comum da mente não se relacionam com os modos de predicar.
2. Ademais, os modos de predicar são três, como o
Filósofo demonstra no cap. I das Categorias; logo, se são três os modos
de predicar, ao passo que são dois os tipos de concepção comum da mente, é
evidente que não se relacionam; portanto, os dois tipos de concepção comum da
mente não se relacionam com os modos de predicar.
3. Ademais, os modos de predicar referem-se a simples
apreensão do intelecto, enquanto que as concepções comuns da mente se referem
as coisas conhecidas por todos; portanto, não se referem ao mesmo aspecto;
logo, os dois tipos de concepção comum da mente não se relacionam com os modos
de predicar.
4. Ademais, o ato predicativo refere-se as realidades
mais simples apreendidas pelo intelecto; ora, estas diferem da concepção comum
da mente; portanto, os dois tipos de concepção comum da mente não se relacionam
com os modos de predicar.
II. [Em Contrário].
1. Mas, em contrário, Tomás afirma que há dois
modos de predicação[24]; logo, se
há dois modos de predicar, isso parece indicar que os modos de predicar se
relacionam mais com os dois tipos de concepção comum da mente.
2. Além disso, Scotus afirma que só há dois modos de
predicar[25]; ora,
isso também parece indicar que os modos de predicar se relacionam com os dois
tipos de concepção comum da mente.
III. [Solução].
1. Ora, a predicação refere-se a apreensão dos
indivisíveis; e, a mesma se dá em duas partes: a primeira, com os dois tipos de
concepção comum da mente, e, com isso, se tem dois modos de predicar, os quais,
Scotus confirma ao demonstrar sobre os dois modos primeiros de predicar[26]; a
segunda, a qual o Filósofo demonstra no cap. I das Categorias, ao
apresentar três modos de predicar.
E isso está em conformidade, pois, os dois tipos de
concepção comum da mente, se estabelecem antes da predicação como preceito
anti-predicamental; pois, para se predicar algo, há de se ter conhecido algo
antes, o qual, evidentemente, se dá através dos dois tipos de concepção comum
da mente, mais propriamente a partir da relação dialógica dos tipos de
concepção comum da mente, as quais também inferem nas coisas predicamentais.
2. Portanto, se tem duas formas para se entender os modos
de predicar, as quais, são subsequentes e complementares: uma em relação a
concepção comum da mente, outra em relação a predicação enquanto intenção
lógica; pois, a concepção comum da mente é o que existe na realidade, enquanto
que os modos de predicar anti-predicamentais referem-se primeiramente as
intenções lógicas; logo, se relacionam a medida que os modos de predicar
anti-predicamentais se demonstram na realidade e não apenas com intenções lógicas;
portanto, enquanto os dois modos de predicar a partir dos dois tipos de
concepção comum da mente referem-se a apenas a possibilidade da lógica enquanto
ciência instrumental, os três modos de predicar anti-predicamentais referem-se
a lógica, mas com o pano de fundo metafísico, embora o modo de predicar na
lógica seja de um modo e o da metafísica seja de outro, a partir do que
efetivamente se demonstra a lógica como ciência instrumental.
Por isso, os três modos estão delineados no livro dos Predicamentos,
enquanto que os dois modos não, embora estejam imbuídos nas entrelinhas. No
entanto, os dois modos de concepção comum da mente, são anteriores aos três
modos de predicar dispostos pelo Filósofo.
IV. [Resposta aos Argumentos].
1. Quanto ao primeiro se responde que, embora a
predicação se refira a predicação dos entes, o que per se é evidente,
todo ato predicatório refere-se necessariamente ao intelecto se defrontar com
os entes na realidade, pois, somente assim a percepção se torna percepção
consciente, e a inteligência se desenvolve; todavia, em se tratando da
predicação, se refere a algo predicado facilmente perceptível, a saber, o
primeiro tipo de concepção comum da mente; mas, como o segundo tipo não é
conhecido por todos, mas apenas por aqueles que possuem instrução intelectual,
então, os dois tipos de concepção comum da mente se relacionam com os modos de
predicar, embora de maneira diversa. Pois, uma concepção comum da mente,
necessariamente, se refere a algo da realidade, e os modos de predicar, neste
sentido, só se estabelecem porque se coadunam com o real e não apenas com o
possível.
Logo, tanto os dois tipos de concepção comum da mente,
quanto os modos de predicar se referem a realidade, as coisas na realidade, e
tanto um quanto o outro, se referem aos entes predicáveis, enquanto aferíveis
pela ciência comum: os dois tipos de concepção comum da mente, em relação
àquilo que é comum e que não pode ser negado, os modos de predicar em relação
ao ente predicável, conquanto o segundo tipo de concepção comum da mente também
se relaciona com o ente predicado interpretável.
2. Quanto ao segundo se responde que os três modos de
predicar que o Filósofo evoca, se relacionam com os dois tipos de concepção
comum da mente, pois, se referem a mesma operação do intelecto; mas, se
relacionam não de maneira unitária, mas de maneira complementar e subsequente:
enquanto os dois tipos de concepção comum da mente advêm primeiro, os modos de
predicar necessariamente advêm logo após. Portanto, é evidente que se
relacionam em ordem e isto, de maneira dialógica e complementar. No entanto, os
dois tipos de concepção comum da mente não concernem ao livro dos Predicamentos,
embora estejam pressupostos nos anti-predicamentos.
3. Quanto ao terceiro se responde que, tanto os modos de
predicar quanto os dois tipos de concepção comum da mente, se referem a
primeira operação do intelecto, já que evocam a apreensão dos indivisíveis,
isto é, aquelas coisas que são conhecidas por todos; pois, enquanto o primeiro
tipo de concepção comum da mente se refere aos dois primeiros aspectos do modo
de predicar tal como o Filósofo os delineia no cap. I das Categorias, o
segundo tipo de concepção geralmente se estabelece a partir do terceiro aspecto
dos modos de predicar e o que neste está imbuído. Logo, se referem a aspectos
distintos da mesma operação do intelecto, conquanto o segundo tipo de concepção
comum da mente também infere algo da operação do intelecto de compor e dividir.
4. Donde se resulta clara a resposta ao quarto argumento.
V. [Respostas aos Argumentos Em Contrário].
1. A proposição do Teólogo refere-se a interpretação da
designação de Boécio sobre os dois tipos de concepção comum da mente, as quais,
referem-se, evidentemente, ao aspecto evocado sobre a primeira parte da
apreensão dos indivisíveis, isto é, ao aspecto mais elementar e geral do
conhecimento sensível e da compreensão sobre o mesmo; donde, Tomás afirmar
sobre dois modos de predicação; o que não tolhe a unidade da ciência
predicamental e nem os preceitos metafísicos.
2. E a proposição de Scotus, de igual modo, também evoca
dois modos de predicar, mas de modo diverso ao proposto pelo Teólogo, conquanto
se refiram basicamente a mesma coisa; pois, enquanto o Teólogo refere-se a
apenas a primeira parte da apreensão dos indivisíveis, Scotus evoca os dois
modos de predicação do “ente”, para que o mesmo açambarque o necessário para se
tornar o primeiro objeto adequado ao nosso intelecto[27];
o, que, evidentemente, só se compreende na Metafísica e não na lógica,
isto é, somente na ciência real e não na ciência instrumental.
Pois, na ciência instrumental o ente é objeto adequador,
enquanto que na ciência real o ente é objeto adequado. E, disto, percebe-se a
distinção entre a estrutura dos modos de predicar concernentes a ciência
instrumental e a estrutura dos modos de predicar dispostos na ciência real.
Enquanto que o primeiro tipo de concepção comum da mente perfaz plenamente a
ciência dos predicamentos, o segundo tipo de concepção comum da mente é
demonstrado mais especificamente a partir ciência da interpretação. Por isso, se
compreende o modo desta inter-relação e que a mesma está em ordem aos preceitos
da ciência instrumental.
Lição 4
Analisa-se os princípios das coisas que são.
A. Texto de Boécio (De
Hebdomadibus, cap. II).
1. (I) Diverso é o ser e aquilo
que é. (II) Pois o mesmo ser ainda não é, porém aquilo que é, tendo recebido a
forma de ser, é e consiste. (III) O que é pode participar de algo, mas o mesmo
ser de nenhum modo participa de algo. A participação se dá quando algo já é.
Por outro lado, é algo quando tenha recebido o ser. (IV) Aquilo que é pode ter
algo além do que ele mesmo é. Mas o mesmo ser não tem nada mais misturado além
de si. Diverso é, no entanto, ser algo e ser algo naquilo que é. (V) Pois
aquele significa o acidente, este, a substância. Tudo o que é participa daquilo
que é o ser para que seja. (VI) Entretanto, participa de outra coisa para que
seja algo. E, por isso, aquilo que é participa daquilo que é o ser para que
seja. Por outro lado, é para que participe de qualquer outra coisa.
2. (I) Em todo composto, uma
coisa é o ser e outra coisa é ele mesmo. (II) Todo aquele que é simples tem o
seu ser e aquilo que é como uma só coisa.
3. (I) Toda diversidade é
discordante; a semelhança, em vez, deve ser desejada. (II) E aquele que deseja
outro mostra que ele mesmo é por natureza tal como é aquilo mesmo que apetece.
4. Em conclusão, são suficientes
[os princípios] que preestabelecemos, pois, cada uma dessas noções será
aplicada aos argumentos pelo intérprete prudente.
B. Comentário.
53. Depois de iniciar o tratado
apresentando os termos, Boécio prossegue à segunda parte (cap. II), para
apresentar as regras, ou axiomas; e esta é a ordem descrita por Boécio no
prólogo: primeiro, apresentar os termos (cap. I); segundo, apresentar as regras
(cap. II). E, nas regras, estão delineados dois aspectos: primeiro, o modo de
proceder; segundo, a tríplice estrutura metodológica.
No primeiro, procede de três
modos: primeiro, apresenta as regras ou axiomas dos sábios; segundo, nestas
regras apresenta os aspectos principais da natureza do que é concebido primeiro
pelo intelecto; terceiro, demonstra a fonte donde deriva as coisas enquanto
possuintes de essência.
No segundo, apresenta uma
tríplice estrutura metodológica, que açambarca a base da reflexão filosófica,
em consonância com os preceitos dos sábios e com os princípios da ciência
demonstrativa; por isso, nestas regras faz três coisas: primeiro, apresenta o
ente; segundo, apresenta o uno; terceiro, apresenta o bem.
54. Analisemos o primeiro
aspecto. No primeiro modo, Boécio faz três coisas: primeiro, apresenta as
regras ou axiomas dos sábios; os oito axiomas evocados por Boécio são baseados
nos preceitos do sábios e são parte do banquete da sabedoria; assim sendo, estes
axiomas estão em consonância com o propósito dos sábios e com o propósito do
próprio Boécio ao estabelecer em suas Hebdômadas, de as ponderar e meditar, “em
vez de compartilhá-las com qualquer um daqueles que o desenfreio e a insolência
não permitem que nada seja enlaçado sem jogo e risadas”; os axiomas
apresentados por Boécio são as regras dos sábios, porque aqueles que são
desenfreados e insolentes não conseguem compreender estes axiomas, e, velam
este fato tentando coibir os sábios e propugnar os mistérios da sabedoria
através dos enlaces dos jogos e das risadas, na roda dos insolentes e dos tolos
(cf. Pv 1.10).
55. Segundo, nestas regras
apresenta os aspectos principais da natureza do que é concebido primeiro pelo
intelecto; pois, se estas regras são os preceitos dos sábios, então, estas
serão a base para a compreensão do que primeiro é necessário se compreender, a
saber, aquilo que é concebido primeiro pelo intelecto; os preceitos dos sábios
tem ordenação a partir do real, e com isso, estabelecem a ordem do conhecimento
de acordo com a própria realidade; e, a partir disso, se compreende a
necessidade do saber já que os homens tendem ao saber (cf. Met. 980a22); e a
necessidade primeira do saber é, evidentemente, o entendimento sobre o próprio
saber; donde, ser necessário, de início, e para que se evite erros em relação
ao saber, compreender o que primeiro é concebido pelo intelecto; e, é isto
necessário, de acordo com Tomás de Aquino, pois o desconhecimento desses
conceitos conduz ao erro[28].
Este preceito de Tomás se
estabelece em consonância com o pressuposto das regras que Boécio delineia em
suas Hebdômadas, pois, o pressuposto evocado pelo aquinate demonstra a base e a
importância da reflexão sobre o que é concebido primeiro pelo intelecto, ao
passo que Boécio apresenta estas regras já pressupostas como parte do estudo da
sabedoria.
56. Terceiro, demonstra a fonte
donde deriva as coisas enquanto possuintes de essência; ora, se estas regras
evocadas estão em consonância com os preceitos dos sábios, e nestas regras está
delineado aquilo que é concebido primeiro pelo intelecto, então, nestas regras
está pressuposto o aspecto mais importante de toda reflexão racional, a saber,
o ser; pois, a própria proposição da sabedoria e da reflexão dos sábios tem o
ser como pressuposto apodítico; mas, ao se falar do ser em relação as coisas,
não se fala da natureza propriamente dita do ser em si mesmo, mas o modo como
ser está nas coisas, ou mais especificamente, o modo como as coisas participam
do ser; a dignidade das coisas se evidencia a partir de sua participação no ser
e naquilo que são a partir do ser.
57. Dito isso, prossigamos para
analisar o segundo aspecto. Pois, no segundo modo, em consonância ao primeiro
aspecto, Boécio apresenta uma tríplice estrutura metodológica; e esta estrutura
é haurida a partir dos axiomas apresentados por Boécio; os quais, açambarcam
tanto os preceitos dos sábios quanto os princípios da ciência demonstrativa;
pois, esta estrutura, em si mesma e em relação ao que significa, é uma
estrutura transcendental; e na verdade, em se tratando do assunto disposto e dos
pressupostos evocados por Boécio no prólogo, estes axiomas só poderiam ser
evocados sob uma estrutura transcendental; e esta estrutura transcendental
constitui-se da base da reflexão sobre os princípios das coisas que são; pois,
se uma coisa é, então, ao ser, esta coisa é uma coisa que é a partir de sua
existência e de sua essência, as quais, por sua vez, derivam e são derivadas do
ser. Por isso, nestas regras se refere a três coisas: (i) primeiro, se refere
ao ente; (ii) segundo, se refere ao uno; (iii) terceiro, se refere ao bem.
58. [i] Primeiro, se refere ao
ente; e, ente, na proposição aviceniana, é aquilo que primeiro é concebido pelo
intelecto; o Cardeal Caetano afirma que “ente significa algo comum a tudo o
que é existente”[29].
Portanto, ao se referir ao ente, Boécio se refere àquela característica comum
de tudo o que é existente, que, por ser existente, é ente.
E, sobre isso, Boécio evoca seis
coisas: primeiro, estabelece a diversidade entre as intenções lógicas; segundo,
estabelece a distinção formal entre ser e aquilo que é; terceiro, evoca a
definição de que a participação só ocorre em algo que é; quarto, introduz a
diferença entre ser algo e ser algo naquilo que é; quinto, demonstra que desta
diferença se estabelece a distinção entre acidente e substância; sexto, evoca
que a participação confere a coisa que existe o ser algo como coisa existente.
59. Primeiro, estabelece a
diversidade entre as intenções lógicas, onde diz: “(I) Diverso é o ser e
aquilo que é”; ora, este axioma estabelece algo fundamental em relação as
noções lógicas, pois, evoca a diferença entre o que é o ser e aquilo que é;
logo, uma coisa é o ser de algo, outra é aquilo que é; pois, o ser, aqui,
refere-se a existência de algo, e aquilo que é, refere-se a essência deste
algo.
Ora, uma coisa é algo ser
realmente algo existente, pois, pode-se afirmar algo sobre um ser não-existente
(ente de razão); outra coisa é este algo realmente ser algo que é (ente real).
Além disso, a diversidade entre as possibilidades das intenções lógicas
demonstra a diferença entre a ideia de algo a partir da percepção lógico-formal
e a partir da percepção predicamental; em relação a percepção lógico-formal, se
pode elucubrar sobre coisas abstratas, apenas em noções e/ou definições, que as
mais das vezes concernem a apreensão dos indivisíveis; mas, em relação a
percepção predicamental, se elucubra somente sobre aquilo que realmente fora
predicado da realidade a partir das regras predicamentais, os entes reais, os
quais são demonstrados como tais.
E o ente, evidentemente, se
estabelece destes dois modos na lógica: primeiro, enquanto possibilidade
lógica-formal, ou ente predicável interpretável, o que o Filósofo analisa em
parte no livro dos Predicamentos (caps. I-III); segundo, enquanto
realidade predicamental, que se dá de dois modos: um com as coisas incomplexas,
o ente predicável, passível de ser definido, o que o Filósofo também analisa no
livro dos Predicamentos; o outro com as coisas complexas, o ente
predicado interpretável, passível de ser demonstrado, o que o Filósofo analisa
no Sobre a Interpretação.
60. Segundo, estabelece a
distinção formal entre ser e aquilo que é, onde diz: “(II) Pois o mesmo ser
ainda não é, porém aquilo que é, tendo recebido a forma de ser, é e consiste”;
ora, ser e aquilo que é são diversos, embora um abalize o outro; pois, “o
mesmo ser que ainda não é”, isto é, o ser que ainda não fora predicamentado
como coisa existente; mas, “aquilo que é”, isto é, a coisa existente que
é por essência, “tendo recebido a forma de ser”, isto é, participado no
ser possuindo algo do ser, de acordo com a forma do ser e de acordo com as
qualidades do ser; pois, “sem dúvida a forma, produzindo o ser, constitui a
essência da coisa”[30].
Por isso, esta coisa “é e
consiste”, isto é, se estabelece como uma coisa existente e se mantém por
si mesma enquanto possuinte de uma essência, tanto em si mesma se é algo
existente, quanto se a possui como algo participante; pois, a consistência de
uma coisa existente se dá de acordo com o modo de sua essência, assim como, por
exemplo, a consistência do cimento se dá a partir da medida certa de seus
elementos constitutivos.
61. Terceiro, evoca a definição
de que a participação só ocorre em algo que é, onde diz: “(III) O que é pode
participar de algo, mas o mesmo ser de nenhum modo participa de algo. A
participação se dá quando algo já é. Por outro lado, é algo quando tenha
recebido o ser”; ora, a participação se dá quando algo é; pois, a coisa
existente, como algo que é, pode participar de algo, já que a coisa que existe,
enquanto algo que pode ser, não pode participar de algo na realidade; por isso,
a coisa existente como participante, recebe algo do objeto participado;
portanto, “a participação se dá quando algo já é”, isto é, quando é uma
coisa existente, donde, se afirmar que esta coisa enquanto é, pode participar
de algo, pois, para ser algo, é necessário que esta coisa tenha recebido o ser,
embora não seja o próprio ser. A participação torna o objeto participado em
semelhança do objeto do qual participa, mas não o torna neste objeto. Por isso,
“o mesmo ser de nenhum modo participa de algo”, embora este algo
participe do ser.
62. Quarto, introduz a diferença
entre ser algo e ser algo naquilo que é, onde diz: “(IV) Aquilo que é pode
ter algo além do que ele mesmo é. Mas o mesmo ser não tem nada mais misturado
além de si. Diverso é, no entanto, ser algo e ser algo naquilo que é”; ora,
esta diferença, é definida, respectivamente, como a essência formal e a
essência real; ou dito em outros termos, entre aquilo que tem uma essência mas
não está descrito como existente, e aquilo que realmente é algo existente.
Por isso, “aquilo que é”,
isto é, o algo que possui uma essência formal, “pode ter algo além do que
ele mesmo é”, isto é, algo que possui uma essência real; pois, mesmo que “aquilo
que é” seja descrito como uma essência real, sendo algo que é, pode a
partir de si se tornar outro algo além do que o mesmo é, participando ou sendo
participado de algo além do que é.
Pois, o “ser não tem nada mais
misturado além de si”, isto é, o ser não tem nada além de si; portanto,
diverso é ser algo, ou seja, ser algo enquanto possuinte de uma essência formal
como coisa que existe, e diverso é ser algo naquilo que é, ou seja, ser algo
enquanto possuinte de uma essência real como coisa existente. As coisas podem
ser simplesmente algo, isto é, como coisa que existe, ou podem ser algo naquilo
que é, isto é, como coisa existente.
63. Quinto, demonstra que desta
diferença se estabelece a distinção entre acidente e substância, onde diz: “(V)
Pois aquele significa o acidente, este, a substância. Tudo o que é participa
daquilo que é o ser para que seja”; ora, da distinção entre a essência
formal e a essência real, surge a distinção entre acidente e substância; pois,
acidente, segundo Porfírio, “é o que pode aparecer e desaparecer sem
provocar a destruição do sujeito”[31];
e, substância, “é aquilo que não é nem dito de um sujeito nem em um sujeito”
(Cat. 2a13); logo, o ser, tomado aqui como se fosse um “sujeito”, pode ser
entendido de dois modos: primeiro, como não tendo nada mais misturado além de
si, isto é, como substância; segundo, como aquilo que é e que pode ter algo
além de si, isto é, como acidente, pois, “acidente é aquilo que pode
pertencer ou não pertencer à mesma coisa”[32].
Pois, esta distinção,
estabelece-se a partir do cap. II das Categorias, respectivamente, como “estar
em um sujeito” e “ser dito de um sujeito”; pois, “tudo o que é”,
isto é, tudo que é existente, “participa daquilo que é”, isto é, do ser,
e o faz, “para que seja”, isto é, para seja uma coisa existente que
tanto pode ser em si mesma (substância), quanto pode pertencer ou não à mesma
coisa existente (acidente).
Por isso, de acordo com Alberto,
a substância é o ente que por si é passível de ser predicado, enquanto que o
acidente é o ente que não é por si passível de ser predicado[33].
Ora, a substância, a partir dos comentaristas antigos, é tida como matéria;
enquanto que o acidente, como forma. Portanto, como acidente é forma, e não é por
si passível de ser predicado, então, o acidente se predica em nove categorias
distintas, a partir das quais se consegue aclarar a natureza de uma coisa
incomplexa a partir das definições categóricas; pois, a definição de algo é o
que primeiro há de mais indivisível ao se realizar a simples operação do
intelecto.
64. Sexto, evoca que a
participação confere a coisa que existe o ser algo como coisa existente, onde
diz: “(VI) Entretanto, participa de outra coisa para que seja algo. E, por
isso, aquilo que é participa daquilo que é o ser para que seja. Por outro lado,
é para que participe de qualquer outra coisa”; ora, a participação, confere
ao ser algo como uma coisa existente, pois, pode ser algo como coisa que
existe; com isso, a coisa que existe, “participa de outra coisa para que
seja algo”, isto é, para que, ontologicamente, se torne algo que é, diverso
de apenas ser algo. Logo, “aquilo que é participa daquilo que é o ser para
que seja”, isto é, a coisa que existe participa de algo do que é o ser,
para que seja uma coisa existente, isto é, seja algo na realidade a partir do
próprio ser. Pois, “primeiramente convém que se entenda que algo
simplesmente é; depois que é algo”[34].
Entretanto, participa do que é o
ser, não para que se torne o ser, mas para que se torne algo a partir do ser;
logo, participa do que é o ser, com um propósito específico, a saber, “para
que participe de qualquer outra coisa”, isto é, para que possa participar
de outra coisa existente, sem com isso perder sua essência e sem se tornar
nesta outra coisa, a não ser naquilo que na própria coisa é perfectível, como
por exemplo na teologia, na questão de que pela fé o fiel se torna participante
na natureza da divindade (cf. 2Pe 1.4); ou em relação ao conhecimento que os
seres humanos podem ter de Deus; etc.
65. Ora, todos estes seis
aspectos, se referem ao ente e as características do ente; mais propriamente,
das nuances que concerne ao ente finito ante o ente infinito. Pois, o ente
finito tem sua existência e essência provenientes do ente infinito, do qual
também tem sua consistência; portanto, o ente infinito, ou primeiro princípio,
é a fonte dos valores constituintes que os princípios das coisas existentes têm
em si e a partir de si. Mas, isso concerne a outra investigação, e não
propriamente ao que Boécio analisa em suas Hebdômadas.
66. [ii] Segundo, se refere ao
uno; o Filósofo, no livro V da Metafísica, afirma que a maiorias das
coisas são chamadas de unas pois produzem alguma outra coisa una, ou participam
da mesma, ou sofrem alguma ação dela, ou de algum modo estão relacionada a ela
(cf. Met. 1016b7-8). E, o sentido evocado por Boécio sobre o uno através dos
axiomas, está em consonância com aquilo que o Filósofo afirmara sobre o uno. Logo,
a compreensão sobre o uno abaliza o modo de entendimento de como aquilo que é
participa ou é participante do ser. E, sobre isso, Boécio evoca duas coisas: primeiro,
demonstra a ordem real das coisas existentes a partir das coisas compostas;
segundo, demonstra a ordem real das coisas existentes a partir das coisas
simples.
67. Primeiro, demonstra a ordem
real das coisas existentes a partir das coisas compostas, onde diz: “(I) Em
todo composto, uma coisa é o ser e outra coisa é ele mesmo”; ora, ao
demonstrar a ordem real das coisas existentes, Boécio evoca o uno a partir do
entendimento das coisas compostas; pois, as coisas unas, são aferidas a partir
das coisas compostas, já que as coisas simples podem apenas se referir as
intenções lógicas, enquanto que as coisas compostas se referem a algo
realmente; Tomás afirma: “deve-se considerar primeiramente que assim como o
ser e aquilo que é diferem nas coisas simples segundo as intenções, assim nas
compostas diferem realmente”[35].
Portanto, ao se afirmar sobre o uno, evoca a compreensão mais fácil sobre o
uno, através das coisas compostas, e o faz com o intuito de sair da esfera
puramente intencional, das intenções lógicas, para ir à esfera real, das coisas
existentes enquanto existentes.
Assim sendo, “em todo composto”,
isto é, em tudo aquilo que mostra o uno, “uma coisa é o ser”, isto é, o
uno por sua própria natureza, e “outra coisa é ele mesmo”, isto é, o uno
por acidente. Pois, uma coisa é o ser em si mesmo, outra coisa é o ser
acidental (cf. Met. 1017b8); logo, através das coisas compostas se mostra a
diferença entre as intenções lógicas e a ordem real das coisas existentes, já
que estas, ao serem compostas, o são a partir do ser, mas o próprio Ser não é
composto; donde, após ter evocado as coisas compostas, evoca as coisas simples;
as quais, a seu modo, estão em ordem ao uno.
68. Segundo, demonstra a ordem
real das coisas existentes a partir das coisas simples, onde diz: “(II) Todo
aquele que é simples tem o seu ser e aquilo que é como uma só coisa”; ora,
as coisas simples diferem das compostas, porque as compostas o mesmo ser e
aquilo que é são diferentes, já nas simples a mesma coisa é o ser e aquilo é.
Todavia, a diferença entre as coisas simples e compostas, demonstra-se de dois
modos: primeiro, através da própria coisa; segundo, através da coisa em relação
a ordem ontológica.
Pois, uma coisa simples, ao ser
simples, é uma coisa que tem o mesmo ser e aquilo que é, embora em si mesmo não
seja coisa simplíssima, já que não são em si mesmas por si mesmas, o que
somente Deus é, e, por isso é chamado de Ser simplíssimo ou absolutamente
simples.
E, em consonância a isso, se
afirma também que as coisas simples, ao serem afirmadas de tal modo que “todo
aquele que é simples tem o ser”, isto é, sua essência, “e aquele que é”,
isto é, sua essência como coisa existente; o que em consonância uma com as
outras demonstra que são “uma só coisa”. Logo, neste sentido, a
compreensão sobre as coisas simples, só pode ser efetivada na teologia, tal
como Porretanus afirma, já que Deus é absolutamente simples[36];
pois, o ser simples, não tem causa, mas é a causa primeira (cf. STh Ia, q. 3,
a. 7, co.), ou a causa de todas as coisas; portanto, as coisas que provêm do
Ser absolutamente simples, são coisas compostas, pois, “as coisas que vêm de
Deus imitam Deus como sendo causadas pela causa primeira. Ora, isto é da razão
do causado, que ele seja de alguma forma composto, porque pelo menos o seu ser
é diferente do que é” (STh Ia, q. 3, a. 7, ad. 1); ora, as coisas causadas
são, em ordem a causa primeira, coisas compostas, já que a causa primeira é
simples.
E todas as coisas que são
causadas pela causa primeira como substância primeiras, estão em ordem a alguma
simplicidade, mas não de modo simplíssimo; por isso, por exemplo, se fala da
substância do orbe, uma substância primária, que é simples, mas não é simplíssima;
etc.
Logo, Boécio evoca a simplicidade
das coisas não para analisá-las em si mesmas, mas, para demonstrar a fonte
donde provêm as coisas, a saber, do Ser absolutamente simples, isto é, Deus,
que por ser assim, também é o Sumo-Bem, a fonte de todo bem. Por isso, neste
sentido, se compreende a diferença entre as puras intenções lógicas para as
coisas concretas, reais, já que lida com a realidade mesma e com o ponto de
sustentação da própria realidade, o Ser absolutamente simples, do que provêm
todas as coisas simples (substâncias primeiras, substâncias primárias) e todas
as coisas compostas (substâncias secundárias, acidentes, etc.), as quais de
algum modo demonstram a natureza simplíssima da qual são provenientes (cf. Sb
13.5).
69. [iii] Terceiro, se refere ao
bem; ora, ao ter evocado o uno, prossegue para analisar o bem; pois, o bem,
segundo Tomás, se dá de três formas: pelo modo, pela espécie e pela ordem (cf.
STh Ia, q. 5, art. 5, co.). Logo, a partir do bem se conhece a medida do bem
nas coisas (o modo); a partir do bem se caracteriza a coisa a partir de sua
forma em relação ao bem, isto é, de acordo com sua espécie (a espécie); e, a
partir do bem se compreende o fim para o qual as coisas tendem, isto é, ao que
as coisas estão ordenadas (a ordem).
Assim, a partir do bem, se
compreende o modo como as coisas são boas, a forma como são boas, e o fim para
o qual tendem enquanto são boas. Pois, as coisas compostas, enquanto são coisas
causadas, participam no ser, que é bem, a partir destes três modos, que
açambarcam a descrição das coisas enquanto possuem algo de bem. E, sobre isso,
Boécio evoca dois axiomas: primeiro, estabelece a distinção entre diversidade e
semelhança; segundo, estabelece a proposição do tender natural a semelhança.
70. Primeiro, estabelece a
distinção entre diversidade e semelhança, onde diz: “(I) Toda diversidade é
discordante; a semelhança, em vez, deve ser desejada”; ora, ao estabelecer
que as coisas compostas são diferentes das simples, passa a evocar o modo desta
diferença, a saber, por semelhança e dessemelhança; e, só pode haver semelhança
e dessemelhança em relação as coisas causadas, já que estas tem uma causa
primeira, a partir da qual possuem algo de semelhança e algo de dessemelhança
(donde surge a noção de analogia).
Por isso, “toda diversidade é
discordante”, isto é, toda diversidade tem algo de discordância daquilo em
que diverge, seja por essência seja por natureza; portanto, as coisas
existentes, diferem em essência da causa primeira, já que são causadas,
enquanto que a causa primeira é incausada e subsiste per se; logo, há
dessemelhança em relação a natureza das coisas causadas e a natureza da causa
primeira.
Mas, “a semelhança, em vez,
deve ser desejada”, isto é, apesar desta dessemelhança e diversidade, se
tem algo de semelhança, pois, o ser das coisas existentes participa de algo do
ser da causa primeira; e esta participação se averigua pela medida da
compreensão do bem nas coisas existentes, seja por modo, seja pela espécie, seja
pela ordem. Portanto, ainda que haja dessemelhança em sentido absoluto, as
coisas existentes, hão naturalmente de desejar alguma semelhança; e, segundo o
Filósofo no livro I de Ética a Nicômaco, o que todas as coisas desejam é
o bem (cf. Et. Nic. 1094a2). Logo, qualquer semelhança desejada pelas coisas se
dá em relação ao bem, e, isto, em relação aos três aspectos evocados sobre o
bem, os quais, por sua vez, também estão em ordem ao ente e ao uno.
71. Segundo, estabelece a
proposição do tender natural a semelhança, onde diz: “(II) E aquele que
deseja outro mostra que ele mesmo é por natureza tal como é aquilo mesmo que
apetece”; ora, se a semelhança desejada pelas coisas causadas diz respeito
ao bem, então, as coisas causadas como são coisas existentes, devem sua
existência a causa primeira; por isso, naturalmente tendem a alguma semelhança
com a causa primeira, embora, a causa primeira difira absolutamente das coisas
existentes, por lhes ser a causa primeira. Portanto, o bem das coisas
existentes, demonstra que estas tendem a alguma semelhança com a fonte do bem
que possuem.
Pois, “aquele que deseja outro”,
isto é, a coisa existente que tende ao bem, “mostra que ele mesmo”, isto
é, que em sua essência, “é por natureza”, isto é, possui em sua natureza
um tender para o que deseja, já que é “tal como é aquilo mesmo que apetece”,
isto é, tende para a fonte do que provêm pois apetece a este mesmo algo. Ora,
se as coisas existentes tendem ao bem, então, necessariamente a causa das
coisas existentes é a fonte do bem das coisas; pois, algo só tende a alguma
coisa que possui uma virtude maior do que o bem que possui. Então, as coisas
existentes, ao tenderem para o bem, tendem porque provêm da fonte de todo bem.
A diferença está apenas no entendimento sobre o modo, a espécie e a ordem em
que participam do bem que emana, de diversos modos e em diversos graus, do Sumo
Bem.
72. Deste modo, se pode elucubrar
sobre a estrutura transcendental das regras hebdomadárias, as quais, de maneira
precisa são colocadas antes de se adentrar ao problema em questão, o qual é
abalizado pelas regras ou axiomas evocados por Boécio nestas três classes
distintas de pressuposições que foram analisadas; na verdade, é quase como que
uma pressuposição apodítica para tudo quanto concerne ao estudo da sabedoria e
suas diversas formas nos assuntos filosóficos, a saber, iniciar refletindo
sobre a estrutura transcendental da realidade, que por sua vez delineia a
estrutura transcendental do conhecimento.
Além disso, estes axiomas de
Boécio, são em si mesmos suficientes para confutar uma série de erros
filosóficos sobre os transcendentais que, quase em exceção, é um caractere
indiscutível da filosofia moderna; certamente, muitos dos filósofos modernos
quiseram adentrar a reflexão filosófica sem antes terem seguidos os preceitos
da sabedoria, donde terem errado no início, e os erros destes, terem se tornado
grandes no final, confirmando a proposição do Filósofo de que um erro pequeno
no início se torna grande no final (cf. De Cael. 271b8-10).
73. Assim sendo, a estrutura
transcendental das regras hebdomadárias, são de uma limpidez e preciosidade
efusivas; pois, pela forma da brevidade com que são envoltas as fazem encerrar
vários preceitos amalgamados, que se analisados com cuidado e esmero, se vê
sobressair não só os três transcendentais evocados, mas todos os
transcendentais - os quais, por sua vez, são a base das elucubrações
metafísicas.
Logo, nas regras hebdomadárias,
se encontram não somente os preceitos para a solução do problema apresentado a
Boécio, mas também princípios para a solução de vários problemas que se
apresentam na ordem do saber; pois, estas regras, tal como as definições (cap.
I), açambarcam aspectos lógicos e metafísicos fundamentais, que delineiam
pressuposições fundamentais sobre que estão presentes tanto na ciência
instrumental (a lógica) quanto nas ciências reais (as ciências matemáticas, a
física e metafísica [cf. Met. 1026a19-20]).
74. Por isso, Boécio, em seus
axiomas, ao se referir ao ente (ens), evoca os preceitos que reclamam o
entendimento sobre tudo aquilo que existe e é existente, o que, por si,
delineia aspectos lógicos e metafísicos, da ontologia formal a ontologia real;
ao se referir ao uno (unum), evoca os preceitos que reclamam o núcleo de
sentido das coisas compostas, das coisas existentes enquanto participam de algo
do ser absolutamente simples; e, ao se referir ao bem (bonum), evoca os
preceitos que reclamam a natureza das coisas existentes, a partir da fonte de
todo bem, ou seja, enquanto possuem algo de bom em suas naturezas que reflete
algo do Sumo Bem.
Lição 5
Elucubra-se a respeito da controvérsia sobre se as coisas que são realmente são boas.
A. Texto de Boécio (De
Hebdomadibus, cap. III).
Assim sendo, a controvérsia se
apresenta da seguinte maneira: Aquelas coisas que são, são boas. Em verdade, a
opinião de todos os instruídos sustém que tudo que é tende ao bem. Por outro
lado, tudo tende a algo semelhante. Logo os que tendem ao bem são, eles mesmos,
bons.
Mas deve-se perguntar de que modo
as coisas são boas: se por participação ou por substância.
Se por participação, de nenhum
modo elas são boas por si mesmas, pois o que é branco por participação, não o é
por si, ou seja, naquilo que ele mesmo é e o mesmo diga-se das demais
qualidades deste tipo. Assim, se são boas por participação, de nenhuma maneira
são boas por si mesmas. Consequentemente, não tendem ao bem. Mas foi concedido
que tendem ao bem. Logo, não são boas por participação, mas substancialmente.
Assim de fato, sendo a substância
delas boa, aquilo que elas são, é bom. No entanto, aquilo que elas são, elas o
têm daquilo que é o ser. Por conseguinte, o seu mesmo ser é bom e o mesmo ser
de todas as coisas também é bom. Mas se o ser é bom, aquelas coisas que são,
são boas naquilo que são e assim para elas, ser é a mesma coisa que ser bom.
Portanto são bens substanciais, porque não participam da bondade. E por isto,
se nelas o mesmo ser é bom, não há dúvida que sendo bens substanciais, são
semelhantes ao primeiro bem. Consequentemente são este mesmo bem, pois nada lhe
é semelhante além de seu mesmo ser. Do qual se conclui que todas as coisas que
são, são Deus, o que é um sacrilégio dizê-lo. Logo não são bens substanciais e
por isto, nessas coisas, o bem não é o ser. Assim, não são boas naquilo que
são. Mas se tampouco participam da bondade, de nenhum modo tenderiam ao bem e,
portanto, de modo algum são boas.
B. Comentário.
75. Após apresentar o propósito
de suas Hebdômadas, e de apresentar os termos (cap. I) e o axiomas (cap. II)
que o guiarão em sua análise, os quais constituem-se dos preceitos fundamentais
de toda e qualquer análise racional, Boécio prossegue e coloca em pauta a
questão propriamente dita a ser elucubrada, tal como demonstrara no início do
prólogo. Evidentemente, ao colocar a controvérsia tal como a mesma é, e isto
logo após apresentar os axiomas, descreve que o princípio preponderante para o
entendimento desta controvérsia, que Boécio faz no cap. III, bem como a solução
desta controvérsia, está delineado nos axiomas, que tanto prescrevem preceitos
fundamentais quanto delineiam a atitude fundamental daquele que busca a
sabedoria, embasado nos preceitos dos sábios.
76. E, ao apresentar a questão no
cap. III, em consonância ao que fizera no cap. II, Boécio subdivide a
proposição sobre a questão em três aspectos: primeiro, apresenta a questão;
segundo, propõe o termo médio desta questão; terceiro, estabelece as linhas de
argumentação básica entre a proposição da questão e o termo médio da mesma.
77. No primeiro aspecto, Boécio
apresenta a questão ao estabelecer os aspectos fundamentais e basilares da
mesma; não somente no sentido do assunto a ser elucubrado, mas também como um
pressuposto metodológico, que através das Hebdômadas, estabelece algumas
pressuposições fundamentais no que concernem ao estudo da sabedoria e no modo
deste estudo na solução de questões teoréticas.
78. No segundo aspecto, Boécio
propõe o termo médio desta questão, isto é, o termo que está entre a proposição
da questão e a argumentação básica da mesma; este termo médio estabelece a base
interrogativa da questão, e a abaliza a partir de uma dialética específica, que
ao se estabelecer, evoca uma dialógica estrutural no assunto analisado; a
partir desta dialética, estabelece-se a diferença nos princípios do termo
médio, a diferença entre o modo como as coisas são boas naquilo que são: se por
participação ou por substância; e a partir da dialógica estrutural, se
estabelece a inter-relação e o modo desta inter-relação, a partir dos
princípios do termo médio, isto é, a relação entre participação e substância.
79. No terceiro aspecto, Boécio
apresenta a solução parcial para o problema da questão, a partir da descrição
interrogativa do termo médio da própria questão; ora, se se investiga o modo
como as coisas são boas naquilo que são, e se se apresenta o termo médio desta
investigação, então, se evoca necessariamente a primeira forma de argumentação
deste problema, a saber, a proposição da possibilidade se a resposta ao termo
médio é “por participação” ou se é “por substância”. E ao elencar
os principais aspectos sobre estas duas possibilidades, Boécio então pode
prosseguir para a solução da questão, o que fará no cap. IV.
80. Em relação ao primeiro
aspecto, Boécio faz cinco coisas: primeiro, estabelece a ordem da questão, ao
afirmar: “Assim sendo, a controvérsia se apresenta da seguinte maneira”;
segundo, apresenta a pressuposição fundamental da questão, ao afirmar: “Aquelas
coisas que são, são boas”; terceiro, estabelece um princípio auto-evidente
sobre a questão, ao afirmar: “Em verdade, a opinião de todos os instruídos
sustém que tudo que é tende ao bem”; quarto, apresenta um aspecto em
contrapartida ao princípio auto-evidente sobre a questão, ao afirmar: “Por
outro lado, tudo tende a algo semelhante”; quinto, estabelece uma breve
solução parcial sobre a ordem da questão estabelecida, ao afirmar: “Logo os
que tendem ao bem são, eles mesmos, bons”.
81. Em relação ao segundo
aspecto, Boécio faz duas coisas: primeiro, estabelece a pergunta fundamental a
partir da proposição da questão, ao afirmar: “Mas deve-se perguntar de que
modo as coisas são boas”; segundo, estabelece a dialética da questão, ao
afirmar: “se por participação ou por substância”.
Pois, se este é o termo médio da
questão, isto é, o termo que está entre a proposição da questão e entre a
apresentação dos argumentos possíveis e prováveis, então, necessariamente, este
termo médio deverá conter a base donde se poderá solucionar a questão e se
resolver as objeções a esta questão, o que de fato ocorre na asseveração de
Boécio; portanto, ao ter uma pergunta fundamental, se estabelece o caminho de
uma resposta contundente e apodítica, de acordo com os princípios da ciência
demonstrativa, e assim, para se chegar a esta resposta se estabelece uma
dialética fundamental entre os princípios fundacionais da proposição da
questão.
82. Em relação ao terceiro
aspecto, Boécio o subdivide em dois aspectos: primeiro, estabelece o modo como
as coisas que são realmente são boas; segundo, apresenta a relação entre o ser
e a essência.
Em relação ao primeiro, estabelece
o modo como a questão deve ser estabelecida; por isso, diz no início: “Mas
deve-se perguntar de que modo as coisas são boas”; depois, apresenta a
proposição fundamental da questão, onde diz: “se por participação ou por
substância”; e, por fim, ao apresentar a proposição da questão estabelece
uma regra predicamental, também onde diz: “se por participação ou por
substância”; logo, em relação ao primeiro, se estabelece o modo como as
coisas que são realmente são boas; pois, deste modo, se estabelece o
pressuposto predicativo de como se entende se as coisas que são realmente são
boas.
83. Por isso, ao se predicar
alguma coisa, se compreende que uma coisa que é, realmente é boa; ora, isto se
dá de dois modos, tal como Boécio evidencia, ou por participação ou por
substância; logo, a questão se estabelece a partir desta proposição; donde, o
Teólogo afirmar: “A questão é, portanto, se os entes são bons por essência
ou por participação”[37];
assim, a questão se estabelece na pergunta se os entes são bons por
participação ou por substância; ora, nisto se estabelece um qualificativo comum
dos entes, a saber, que são bons; e, assim, se elucubra o modo como são bons, ou que tipo de bens são, tal como propugna
Porretanus: “é preciso investigar que tipo de bens são: se são particípios
ou substâncias”[38].
84. Com isso, se estabelece duas
pressuposições: primeiro, que a essência dos entes possui algo em comum;
segundo, que a essência dos entes ao serem consideradas em seus modos, há algo
de oposto.
Em relação ao primeiro, a
essência dos entes possui em comum algo do bem; pois, o Primeiro-Bem, o que
lhes confere a existência, dá-lhes algo do bem; logo, todos os entes possuem
algo do bem. Ora, o ente existente, tem algo em sua essência que demonstra sua
existência e a fonte donde provêm enquanto ente existente.
Em relação ao segundo, se observa
que há maneira opostas de se considerar o modo como as coisas são boas; pois,
assim, se observa a diferença entre a forma que as coisas possuem a partir do
modo que estão no bem; se por participação, se estabelece um modo; se por
substância, se estabelece outro modo; embora a essência que provêm da
existência demonstre que todos os entes provêm do Primeiro-Bem, na existência
que convém a cada ente, os mesmos podem se relacionar de maneira diversa com o
bem, donde, a partir disso, se inferir que “ser algo por essência e por
participação são coisas opostas”[39].
85. E a respeito disso, ao se
analisar o modo como os entes estão em ordem ao bem, se observa que a
existência dos entes demonstra o modo como estes estão em relação ao bem; e,
sobre isso, Boécio faz duas coisas: primeiro, analisa o modo de “se por
participação”; segundo, analisa o modo de “se por substância”.
86. Em relação ao primeiro,
Boécio faz três coisas: primeiro, analisa a proposição inicial; segundo,
confronta a proposição inicial com a proposição da essência geral dos entes;
terceiro, evoca a contradição geral da questão.
87. Primeiro, analisa a
proposição inicial, onde diz: “Se por participação, de nenhum modo elas são
boas por si mesmas, pois o que é branco por participação, não o é por si, ou
seja, naquilo que ele mesmo é e o mesmo diga-se das demais qualidades deste
tipo”; o que primeiro Boécio faz é evocar a possibilidade de se as coisas
são boas por participação; ora, isto indica um modo pelo qual as coisas podem
se relacionar com o bem; mas, tudo que participa de algo ou é porque tende a
este algo, ou por que este algo a açambarca de maneira inescapável; ora, no que
concerne as coisas serem boas, parece que os dois aspectos concorrem
conjuntamente; no entanto, em relação ao que as coisas são, isto é, o que a
coisa é enquanto é, a mesma é um bem, porque tende ao que é semelhante (isto é,
a um Bem maior), tal como diz Tomás: “convém que o bem se encontre naquilo
que todo apetite tende”[40].
Logo, se as coisas são boas, então, as mesmas tendem ao Bem, ou seja, tem o
apetite pelo Bem.
Por isso, Boécio, ao afirmar a
questão do se “por participação”, então conclui que, “de nenhum modo
elas são boas por si mesmas”; pois, o bem por si mesmo não necessita de
outro bem; e a respeito disto evoca um exemplo: “o que é branco por
participação, não o é por si, naquilo que ele mesmo é e o mesmo diga-se das
demais qualidades deste tipo”; ora, em relação ao bem enquanto
qualificativo, realmente, se as coisas são boas por participação, seus
qualificativos se tornam expressão daquilo em que participa e não por si
mesmas; mas, o qualificativo ou qualidade não é um bem substancial, mas um bem
acidental; logo, se as coisas participam de um bem acidental, isto torna
clarividente que neste bem de que participam não é um bem que a coisa possua em
si mesma, mas um bem no qual participa ou no qual é participada, o que segundo
Boécio se aplica a todas as qualidades deste tipo ou espécie.
88. Segundo, confronta a
proposição inicial com a proposição da essência geral dos entes, onde diz: “Assim,
se são boas por participação, de nenhuma maneira são boas por si mesmas.
Consequentemente, não tendem ao bem”; ora, após evocar a possibilidade do “se
por participação”, e descrever a proposição que concerne a este aspecto,
Boécio evoca outro aspecto importante, sobre a essência geral dos entes, pois,
se as coisas são boas por participação, “de maneira nenhuma são boas por si
mesmas”, isto é, não são bens substanciais; logo, se os entes não são bons
por si mesmos, tampouco eles tendem ao bem, tal como diz Boécio: “consequentemente,
não tendem ao bem”; no entanto, ao evocar a questão do “se por
participação” com a proposição da essência geral dos entes, Boécio chega a
uma conclusão negativa, pois, se algo é bem por participação, então, não é bem
em si mesmo, e como só o bem em si mesmo tende ao bem, logo, se são boas por
participação, não podem tender ao bem.
89. Portanto, se indaga não se
são por participação, mas em que modo de participação; pois, a participação se
dá a partir da essência de algo; ora, o ente em sua essência tende ao Bem Substancial,
e por isso, pode participar de algum bem acidental sem com isso impugnar sua
essência, pois todo bem emana do Primeiro Bem ou está em ordem ao mesmo; logo,
todo ente tende ao Bem, mesmo que participe de algo em algum bem acidental, o
qual também é proveniente do Primeiro Bem.
90. Pois, esta confrontação que
Boécio faz demonstra que um ente, ao participar de algum bem, não tem sua
essência enquanto ente mudada em relação ao bem substancial, embora possa ter
algo mudado enquanto em participação de algum bem acidental. Por exemplo, ao se
afirmar que algo é, se afirma algo sobre a essência deste algo, bem como se
descreve o tipo de bem que é; mas, ao se acrescentar que este algo é branco,
então, não somente se demonstra o que este algo é, mas também em algo que
participa enquanto bem, embora não seja um bem substancial; logo, um algo tanto
pode ser um bem em si, mas não per se, em relação a sua proveniência do
Primeiro Bem, quanto possuir um bem por participação, em relação ao modo de sua
existência.
91. Terceiro, evoca a contradição
geral que a questão sobre a participação evoca, onde diz: “Mas foi concedido
que tendem ao bem. Logo, não são boas por participação, mas substancialmente”;
assim, após ter feito essa confrontação, Boécio chega a conclusão razoável a
partir da linha de argumento proposto, a saber, se fora concedido que as coisas
tendem ao bem, as mesmas não podem ser boas por participação, mas
substancialmente; ora, quanto a isso se sabe que as coisas tendem ao bem porque
são entes, e o ente, possui três aspectos primordiais e apodíticos, a saber, a
verdade, o belo e o bem; logo, todo ente tende a estes três aspectos.
Por isso, ao se chegar a uma
conclusão parcial que a questão sobre a participação evoca, se pode compreender
que só se fala que tende ao bem em relação ao bem substancial, e se fala que se
participa de um bem, se for um bem acidental.
Portanto, enquanto são bens
substanciais, as coisas boas tendem ao bem, o que per se é clarividente;
mas, enquanto participa de algum bem acidental, não tendem a este bem – o bem substancial
-, mas participam deste tipo de bem, sem com isso impugnar a essência se for
bem substancial, o que não tolhe a unidade do ente enquanto coisa existente.
Pois, a natureza dos entes é
tender ao bem; mas, se algum ente participa de algum bem acidental, não perde
seu tender ao bem substancial, e nem se torna por isso, na participação de um
bem acidental, um bem substancial, já que a participação em algo acidental não
o torna algo substancial, embora o que é acidental esteja prescrito a partir do
que é substancial. Logo, o modo da participação infere o tipo de bem que um
ente participa ou no qual é participado.
92. E, em relação ao segundo (n. 85),
ao analisar o modo de “se por substância”, Boécio faz duas coisas:
primeiro, analisa o modo como as coisas são boas por substância; segundo,
analisa se as coisas que são boas por substância são bens substanciais.
93. Em relação ao primeiro, faz
duas coisas: primeiro, verifica se a substância das coisas é o mesmo do que
elas são; segundo, analisa se as coisas naquilo que elas são tem algo do ser.
94. Primeiro, verifica se a
substância das coisas é o mesmo do que elas são, onde diz: “Assim de fato,
sendo a substância delas boa, aquilo que elas são, é bom”; ora, uma coisa
ao ser boa, de fato, é algo bom; pois, “sendo a substância delas boas”,
isto é, algo que elas são substancialmente, então, “aquilo que elas são, é
bom”; mas, isto se refere ao bem substancial; ora, todo ente tende ao bem
em sua essência; logo, todo ente tende ao bem substancial, e pode participar de
algum bem acidental; portanto, se algo é bom em sua substância, isto é, naquilo
que este algo é, então, o que este algo é, é necessariamente bom.
Deste modo, se compreende que a
substância da coisa designa o que a mesma é; mas o modo como Boécio evoca a
substância aqui, diz respeito ao próprio ser; pois, a substância de algo, é o
que esta coisa é, é seu ser, tal como diz Porretanus: “Aqui ele quer que a
substância seja entendida, não aquilo que é, mas o próprio ser, isto é, aquilo
que não subsiste, mas aquela própria subsistência”[41];
logo, o ser de algo é o que este algo é, o que fica claro a partir da definição
da essência, que designa o que este algo é, tanto em si mesmo, quanto naquilo
em que participa se for afirmado algum predicado que indique algum tipo de
participação acidental.
95. Segundo, analisa se as coisas
naquilo que elas são tem algo do ser, onde diz: “No entanto, aquilo que elas
são, elas o têm daquilo que é o ser. Por conseguinte, o seu mesmo ser é bom e o
mesmo ser de todas as coisas também é bom”; ora, ao se compreender que o
ser de algo é aquilo que este algo é, se pode entender se as coisas naquilo que
são tem algo do ser; pois, se são algo, como realmente o são, então, tem algo
do ser, tal como Boécio afirma: “no entanto, aquilo que elas são, elas o têm
daquilo que é o ser”, pois, fora afirmado numa das regras hebdomadárias,
que o que é o têm daquilo que é o ser; por isso, “segue, então, que o mesmo
ser das coisas que são boas segundo o sujeito é bom”[42].
Deste modo, se algo é tem algo do
ser, pois, ser algo, significa que é; logo, tem semelhança com o Ser, o
Primeiro Bem, já que nas regras o próprio Boécio afirma que a semelhança deve
ser desejada; logo, algo que é, só pode desejar semelhança com aquilo que é
superior, a saber, o Primeiro Bem; então, o ser dos entes, necessariamente
tende ao bem do ente infinito, pois, são boas a partir deste que é o Bem.
E se são bens substanciais, o são
a partir do Bem Substancial; ou para se utilizar dos termos categóricos, são
substâncias secundárias que emanam da substância primária absoluta ou
substância primeira. E isto também confere o fundamento para a própria
participação, como Boécio assevera: “A participação se dá quando algo já é”.
Ora, somente algo que é, isto é, que tem algo aquilo que é o ser, pode receber
algo de participação, ou seja, pode participar de algum tipo de bem.
96. Em relação ao segundo (n. 92),
faz cinco coisas: primeiro, analisa se as coisas que por substância são boas
são bens substanciais; segundo, analisa se as coisas que são boas por
substância são semelhantes ao primeiro bem; terceiro, analisa se as coisas que
são semelhantes ao primeiro bem são Deus; quarto, se analisa se o bem é o mesmo
que o ser; quinto, analisa se as coisas que não participam da bondade são boas.
97. Primeiro, analisa se as
coisas que por substância são boas são bens substanciais, onde diz: “Mas se
o ser é bom, aquelas coisas que são, são boas naquilo que são e assim para
elas, ser é a mesma coisa que ser bom. Portanto são bens substanciais, porque
não participam da bondade”; ora, sendo que o ser é bom, o que per se é
evidente, então, “aquelas coisas que são”, hão de ser boas no que são;
logo, parece que “ser é a mesma coisa que ser bom”; pois, nesta linha de
pensamento, subscreve-se que se algo é, então, porque é, necessariamente é bom;
pois, uma das propriedades do ser é o bem. Por isso, acopla-se que “são bens
substanciais, porque não participam da bondade”.
No entanto, uma coisa é ser algo
que é, outra coisa é ser algo que é bom; embora, o ser algo que é indique que é
bom, o ser algo que é, necessariamente, demonstra que se é; enquanto que ser
bom, tanto pode ser devido ao que se é, quanto por participação em algo bom;
logo, ser bom, significa que enquanto é, é bom; mas, ser e ser bom são coisa
distintas, já que o modo do bem em algo que é, pode ser distinto do bem
enquanto é.
Portanto, as coisas que por
substância são boas, demonstram que substancialmente participam de algum bem
substancial, mas em si mesmas, não são bens substanciais; pois, as coisas que
por substância são boas o podem ser de dois modos: um enquanto substâncias
primárias, as que por si são bens substanciais; ou enquanto substâncias
secundárias, as que por si participam de algum bem substancial. Logo, nem todas
as coisas que por substância são boas são bens substanciais.
98. Segundo, analisa se as coisas
que são boas por substância são semelhantes ao Primeiro Bem, onde diz: “E
por isto, se nelas o mesmo ser é bom, não há dúvida que sendo bens
substanciais, são semelhantes ao primeiro bem”; ora, ao se evocar se as
coisas que são boas por substância são bens substanciais, parece que isso
obviamente evoca que se estas coisas são semelhantes ao primeiro bem; pois,
sendo bens substanciais, logo, devem ser semelhantes ao Primeiro Bem, isto é,
devem estar na mesma ordem de bem que o Sumo Bem.
Ora, isto estabelece uma aporia;
pois, se as coisas que são boas por substância são bens substanciais, então,
parece que são semelhantes ao primeiro bem; no entanto, em relação ao Primeiro Bem,
ou se tem semelhança a ele, ou se é semelhante a ele; são duas coisas
distintas: o ser ter semelhança ao primeiro bem, significa que emana dele de
alguma forma; o ser semelhante ao Primeiro Bem, significa que se é da mesma
forma que o mesmo e que possui a mesma substância que o mesmo; ora, se as
coisas que são boas por substância são bens substanciais, e isto por sua vez,
demonstram que tem a mesma forma que o Primeiro Bem, então, chega-se a
conclusão de que são a mesma coisa que o Primeiro Bem; então, se isso for
verdadeiro se chega a conclusão de que as coisas boas são “deus”; no entanto,
isto evidentemente não é verdadeiro, tanto porque o Primeiro Bem dista
absolutamente das criaturas e das coisas, quanto porque o Primeiro Bem não tem
forma, já que é o ser absolutamente simples; logo, se as coisas que são boas
por substância são bens substanciais, somente podem ter semelhança com o Primeiro
Bem.
99. Terceiro, analisa se as
coisas que são semelhantes ao Primeiro Bem são “deus”, onde diz: “Consequentemente
são este mesmo bem, pois nada lhe é semelhante além de seu mesmo ser. Do qual
se conclui que todas as coisas que são, são Deus, o que é um sacrilégio dizê-lo”;
ora, a conclusão da proposição de que as coisas que são boas por substância são
bens substanciais, demonstra que são semelhantes ao Primeiro Bem; e, como o Primeiro
Bem é “deus”, então, conclui-se que as coisas que são boas por substância são
bens substanciais são semelhantes em substância ao Primeiro Bem, isto é, têm a
mesma substância que o Primeiro Bem; logo, são “deus”, “pois nada lhe é
semelhante além de seu mesmo ser”.
Mas, esta proposição é sacrílega;
pois, teria de se concluir, “que todas as coisas que são, são Deus”, e,
tal como Boécio afirma, “é um sacrilégio dizê-lo”; logo, as coisas que
são, ao serem boas, podem ser algum bem substancial, mas não são o Bem Substancial
ou Primeiro Bem; na verdade, mesmo se forem bens substanciais, participam de
algo do Primeiro Bem, ou derivam alguma semelhança do mesmo, mas não são o Primeiro
Bem.
Pois, uma coisa é as coisas que
são serem bens substanciais, outra coisa seria as próprias coisas que são serem
o Bem Substancial; e isto é algo que por si é evidentíssimo. Logo, se conclui
que o modo de participação não torna as coisas participadas no próprio Bem,
embora a medida da participação indiquem certa semelhança com o Bem, mas
semelhança do sentido de espelharem imperfeitamente o Bem, não de se tornarem
da mesma substância que o Bem.
Assim, se conclui que a
participação muda o objeto participado a semelhança do que participa, mas não
torna propriamente o objeto participado a mesma coisa do que naquilo em que
participa.
100. Quarto, se analisa se o bem
é o mesmo que o ser, onde diz: “Logo não são bens substanciais e por isto,
nessas coisas, o bem não é o ser. Assim, não são boas naquilo que são”;
ora, após ter mostrado a incongruência da conclusão anterior, Boécio prossegue
para indagar se o bem é o mesmo que o ser; portanto, se deve distinguir entre o
bem enquanto se é, que é bem ontológico; e o bem enquanto se é algo que é, ou
seja, o bem enquanto qualidade; por isso, as coisas que são “não são bens
substanciais”, isto é, não são bem enquanto o bem ontológico, logo, “nessas
coisas, o bem não é o ser”; portanto, neste sentido, “não são boas
naquilo que são”, mas só podem ser boas enquanto são alguma coisa, isto é,
enquanto tem alguma participação na bondade em relação a alguma qualidade.
Logo, se conclui que uma coisa
que é, só é boa, enquanto o ser boa o é de alguma qualidade, já que se afere
que são boas naquilo que são através de alguma qualidade e não através daquilo
que são, embora naquilo que são, tenha algo do bem, mas não são o próprio Bem.
Pois, o ser bem em sentido absoluto é próprio apenas do Primeiro Bem, enquanto
tudo o que é bom tem algo do bem por algum modo de participação e por alguma
forma de manifestação da bondade, mesmo que seja na substância da coisa, já que
mesmo as substâncias primárias distam infinitamente do esplendor do bem da
Substância Primeira.
10. Quinto, analisa se as coisas
que não participam da bondade são boas, onde diz: “Mas se tampouco
participam da bondade, de nenhum modo tenderiam ao bem e, portanto, de modo
algum são boas”; ora, se as coisas não são boas naquilo que são, isso
parece designar que não participam da bondade; portanto, “se tampouco
participam da bondade”, isto é, se não são boas naquilo que são, “de
nenhum modo tenderiam ao bem”, ou seja, não tendem a semelhança com o bem;
e se não tendem a semelhança ao bem, não podem ser boas; mas, algo ao ser o que
é, tende ao bem, pelo fato de ser; por isso, participam de algum modo da
bondade; logo, possuem algo de bom, embora naquilo que são não sejam boas
enquanto o Bem Substancial.
Pois, tudo o que é, participa do
bem, mas não são o próprio Bem; já que tudo o que há é bom, mas nem tudo que é,
é bem substancial, além do que, ainda que uma coisa que é seja um bem
substancial, ainda sim não é o Bem Substancial.
102. Assim sendo, Boécio
demonstrara a natureza e o escopo da controvérsia a respeito de que tudo que é
tende ao bem, e apresentara as nuances que concernem a este aspecto, bem como
analisou as possibilidades que emergiram destas nuances, as quais, evocaram
vários aspectos diversos, que por si já demonstraram as aporias desta questão,
abalizando o caminho para a solução da mesma, que Boécio fará no cap. IV.
Lição 6
Elucubra-se sobre a fonte donde emana todo bem.
A. Texto de Boécio (De
Hebdomadibus, cap. IV).
Pode-se oferecer a seguinte
solução para esta questão: há muitas coisas que, apesar de não poderem
separar-se em ato, contudo, separam-se na alma e no pensamento. Pois ninguém
separa em ato um triângulo ou outras coisas do gênero sujeitas à matéria. Não
obstante, segregando o mesmo triângulo e sua propriedade, observa com a mente
além da matéria.
Agora, removamos por um breve
tempo de nosso pensamento a presença do Primeiro Bem o qual, sem dúvida, consta
que existe e ainda mais pode conhecer-se pela opinião de todos os instruídos e
não instruídos, assim como das religiões dos povos bárbaros.
Tendo desta maneira removido Este
por um breve tempo, sustenhamos que todas as coisas que são sejam boas e as
consideremos de que modo possam ser boas, se não derivassem de nenhuma maneira
do Primeiro Bem. Desta perspectiva, observo que, nelas, uma coisa é que são
boas e outra coisa diferente o que são. Suponha-se, então, que uma e a mesma
substância boa seja branca, pesada e redonda. Então uma coisa seria aquela
mesma substância e outra sua redondeza, outra a cor, outra a bondade. Pois se
cada uma destas coisas fosse o mesmo que a própria substância, o peso seria a
mesma coisa que a cor, que o bem, e o bem seria o mesmo que o peso, o qual a
natureza não permite que [isso] se faça. Então uma coisa, nelas, seria ser e
outra ser algo. E agora certamente seriam boas, mas de nenhuma maneira teriam o
mesmo ser como algo bom. Logo se de algum modo fossem sem [proceder] do Bem,
certamente seriam boas, mas não seriam idênticas com as coisas boas, mas para
elas uma coisa seria ser e outra ser boas.
E, por isso, se não fossem
absolutamente nada mais que boas, não haveria nelas nem peso, nem cor, nem
extensão pela dimensão do espaço, nem qualidade alguma, senão que somente
seriam boas. Agora elas não pareceriam que são coisas, mas o princípio das coisas.
E não só pareceriam, mas pareceria, pois uma coisa, e somente uma, é assim: a
que é simplesmente boa e nada mais.
Como aquelas coisas não são
simples, não poderiam de nenhum modo existir, a não ser que Aquele que é
simplesmente é bom quisesse que elas existissem. Por esse motivo elas se dizem
boas, já que o ser delas procede da vontade do Bem. De fato, o Primeiro Bem é
bom naquilo que é. Todavia, o segundo bem, pelo fato de fluir daquele cujo
mesmo ser é bom, ele próprio também é bom. Além disso, o mesmo ser de todas as
coisas fluiu daquele que é o Primeiro Bem e que é tão bom que propriamente se
diz que é bom naquilo que é. Logo o mesmo ser delas é bom. Então, neste caso,
não seriam boas naquilo que são, se de nenhum modo tivessem procedido do
primeiro bem.
B. Comentário.
103. Após apresentar a
controvérsia sobre o assunto, Boécio apresenta a solução para a questão
proposta (cap. IV); pois, se constatara que as coisas enquanto são boas naquilo
que são, o são apenas por que são existentes; logo, como Porretanus afirma: “os
bens não são determinados pela participação, mas sim pela substância, isto é,
pela subsistência”[43];
assim, as coisas são apenas porque subsistem, isto é, porque se mantém como
existentes, porque foram estabelecidas deste modo pelo Sumo Bem e assim são
mantidas por Ele (cf. Eclo. 16.27).
104. Com isso, Boécio prossegue
para apresentar a solução da questão proposta. E ao apresentar a solução para a
questão, Boécio faz duas coisas: primeiro, analisa a fonte donde emana todo
bem; segundo, analisa se as coisas boas procedem do Primeiro Bem.
105. Ora, quanto ao primeiro,
Boécio faz duas coisas: primeiro, estabelece a base do argumento a partir de
uma redução teorética; segundo, estabelece a resolução desta redução.
106. Em relação ao primeiro,
Boécio faz quatro coisas: (i) primeiro, estabelece a pressuposição básica para
a solução da questão; (ii) segundo, estabelece uma redução teorética; (iii)
terceiro, prossegue com as argumentações a partir desta redução teorética; (iv)
quarto, apresenta uma suposição a partir da redução.
107. [i] Primeiro, estabelece a
pressuposição básica para a solução da questão, onde diz: “Pode-se oferecer
a seguinte solução para esta questão: há muitas coisas que, apesar de não
poderem separar-se em ato, contudo, separam-se na alma e no pensamento. Pois
ninguém separa em ato um triângulo ou outras coisas do gênero sujeitas à
matéria. Não obstante, segregando o mesmo triângulo e sua propriedade, observa
com a mente além da matéria”; ora, a pressuposição básica que Boécio evoca
estabelece duas coisas: primeiro, uma pressuposição, a respeito do modo como as
coisas podem se separar, onde diz: “há muitas coisas que, apesar de não
poderem separar-se em ato, contudo, separam-se na alma e no pensamento”;
ora, quanto a isso, se compreende que existe uma distinção entre o que está em
ato e o que está na mente, ou na alma e no pensamento; pois, o que está em ato
não se separa, mas o que está na mente, pode se separar enquanto objeto
elucubrável.
Assim, se pode aclarar o seguinte
pressuposto: já que há coisas que podem se separar na mente, mas não no ato, se
consegue raciocinar sobre o que compõem as coisas em ato, embora não se consiga
na realidade separá-los; e isto se dá deste modo, para que se possa compreender
as coisas através da operação intelectiva do compor e do dividir; logo, mesmo
que as coisas enquanto são boas, isto é, enquanto são substância, ou seja,
enquanto subsistem, não se pode separar o que elas são do bem, se pode na mente
raciocinar sobre o modo como estas coisas são boas, isto é, o que as compõem ou
o que as compusera a fim de que sejam boas naquilo que são. E, a razão desta
separação, segundo Tomás, é porque “de um modo estão as coisas na alma e de
outro modo na matéria”[44].
108. E o segundo aspecto é uma
exemplificação, que Boécio faz a partir dos princípios matemáticos, onde diz: “Pois
ninguém separa em ato um triângulo ou outras coisas do gênero sujeitas à
matéria. Não obstante, segregando o mesmo triângulo e sua propriedade, observa
com a mente além da matéria”; ora, após delinear que as coisas podem estar
de um modo na alma e do outro modo na matéria, Boécio elenca um exemplo, a
saber, o triângulo; pois, o triângulo, enquanto matéria não é separado, mas
pode ser separado na mente; enquanto na matéria o triângulo é um polígono de
três lados; agora, enquanto na mente, pode ser separado nestes três lados;
portanto, se compreende que, ao se segregar o triângulo, isto é, ao se
pensá-lo, se pode compreendê-lo além da matéria; ora, tal exemplo evoca uma
suposição, a qual, como o próprio Boécio afirma, estão em outras coisas do
gênero sujeitas à matéria.
Logo, isto designa que ao se
compreender as coisas que estão na matéria, de acordo com o pensamento, se pode
compreender além da aparência das coisas, e se chegar a essência das mesmas, ou
a composição da essência e da natureza de determinada coisa; e assim, se
observa que um algo na realidade não pode ser separado senão deixa de ser este
algo, tal como no caso do triângulo que se for separado na realidade deixa de
ser triângulo; etc.
109. [ii] Segundo, estabelece uma
redução teorética, onde diz: “Agora, removamos por um breve tempo de nosso
pensamento a presença do Primeiro Bem o qual, sem dúvida, consta que existe e
ainda mais pode conhecer-se pela opinião de todos os instruídos e não
instruídos, assim como das religiões dos povos bárbaros”; ora, tendo
demonstrado que as coisas estão de um modo na alma e de outro modo na matéria,
e que para se compreendê-las além da matéria se faz necessário segregá-las,
isto é, separá-las no pensamento, para se melhor entendê-las, Boécio então
aplica este princípio e faz uma redução teorética no tema que propusera.
E, Boécio propõem a redução do
Primeiro Bem no pensamento, isto é, a fonte de todo o bem, o qual, como diz
Boécio, “sem dúvida, consta que existe”, o que se demonstra de vários
modos, tanto “pela opinião dos instruídos e não instruídos, assim como das
religiões dos povos bárbaros”, pois, a compreensão sobre o Primeiro Bem, ou
Ser Superior, é naturalmente ínsita em todos os homens, como diz Damasceno (cf.
De Fid. Orth., I, 1), e é demonstrado nas mais variadas manifestações
religiosas.
Com isso, a redução consiste em
num momento retirar ou não-pensar na presença do Primeiro Bem; o que, na
realidade, é algo impossível, mas é estabelecido como possibilidade de se
pensar para se chegar a alguma conclusão sobre a natureza das coisas, quanto ao
modo de bem que as mesmas possuem.
110. [iii] Terceiro, prossegue
com as argumentações a partir desta redução teorética, onde diz: “Tendo
desta maneira removido Este por um breve tempo, sustenhamos que todas as coisas
que são sejam boas e as consideremos de que modo possam ser boas, se não
derivassem de nenhuma maneira do Primeiro Bem”; ora, ao ter removido o
Primeiro Bem, Boécio então evoca o pressuposto das coisas boas e o modo como
são boas; pois, se se retirou a presença do Primeiro Bem, o qual em si já
designa que todas as coisas são boas porque derivam da fonte de todo bem,
então, se pode elucubrar se existe alguma possibilidade de as coisas serem boas
sem serem provenientes do Primeiro Bem. Por isso, após fazer a redução, Boécio
prossegue com a argumentação nesta linha de raciocínio. E, tal redução só pode
ser feita por um “breve tempo”, isto é, de maneira parcial na realidade;
pois, não se pode deixar de pensar naquilo de maior que pode ser pensado.
111. [iv] Quarto, apresenta uma
suposição a partir da redução, onde diz: “Desta perspectiva, observo que,
nelas, uma coisa é que são boas e outra coisa diferente o que são. Suponha-se,
então, que uma e a mesma substância boa seja branca, pesada e redonda. Então
uma coisa seria aquela mesma substância e outra sua redondeza, outra a cor,
outra a bondade”; assim, se pode observar algumas conclusões, as quais,
então, se estabelecem sob o princípio de que “uma coisa é que são boas e
outra coisa diferente o que são”; pois, se se retira o Primeiro Bem, então,
as coisas serão compreendidas naquilo que são de dois modos inter-ligados:
primeiro, que são boas; segundo, o que são; e, com isso, se estabelece que as
coisas seriam definíveis de um modo homonímico, já que uma coisa que são boas e
outra o que realmente são, dando a
entender, que nestas, a partir da redução teorética evocada, uma coisa é o ser
e outra coisa é que são boas.
E, para exemplificar isso, Boécio
propõe que uma mesma substância tenha três aspectos: seja branca, pesada e
redonda; se tal coisa é entendida a partir da redução proposta por um breve
tempo, então, “uma coisa seria aquela mesma substância e outra sua
redondeza, outra a coisa a cor, outra a bondade”; logo, se teria nesta
substância, quatro coisas diversas: uma coisa seria o seu ser, outra a sua
redondeza, outra a sua cor, e outra a sua bondade; logo, uma coisa, seria
essencialmente quadrilátera enquanto algo existente. E, isto, evidentemente, é
uma impossibilidade real e lógica.
Pois, o que uma coisa é, é o seu
ser, e não outras coisas que a caracterizam, as quais, por sua vez, estão em
ordem a seu ser. Logo, na própria redução do Primeiro Bem, se mostra que seria
impossível que as coisas sejam boas sem a fonte de todo bem, mesmo numa redução
hipotética feita na mente.
112. Quanto ao segundo (n. 105) -
isto é, a resolução da redução -, Boécio faz cinco coisas: (i) primeiro,
estabelece uma base de argumentação a partir desta suposição; (ii) segundo,
estabelece a partir desta redução um axioma; (iii) terceiro, confronta a
suposição com a realidade; (iv) quarto, estabelece a conclusão racional; (v)
quinto, resolve a redução e apresenta a proposição para a solução.
113. [i] Primeiro, estabelece uma
base de argumentação a partir desta suposição, onde diz: “Pois se cada uma
destas coisas fosse o mesmo que a própria substância, o peso seria a mesma
coisa que a cor, que o bem, e o bem seria o mesmo que o peso, o qual a natureza
não permite que isso se faça. Então uma coisa, nelas, seria ser e outra ser
algo. E agora certamente seriam boas, mas de nenhuma maneira teriam o mesmo ser
como algo bom. Logo se de algum modo fossem sem [proceder] do Bem, certamente
seriam boas, mas não seriam idênticas com as coisas boas, mas para elas uma
coisa seria ser e outra ser boas”; ora, após ter feito a redução e chegado
a uma conclusão mais do que absurda, Boécio estabelece a base de argumentação a
partir desta suposição, mesmo que em si mesma seja absurda.
Assim, Boécio estabelece que, “se
cada uma destas coisas fosse o mesmo que a própria substância, o peso seria a
mesma coisa que a cor, que o bem, e o bem seria o mesmo que o peso, o qual a
natureza não permite que isso se faça”; pois, se uma coisa é o mesmo que a
substância, então, seriam o mesmo que são, e tanto o peso, quanto a cor, quanto
o bem, seriam misturados substancialmente, de modo a não ser discernidos, e
isto, evidentemente, é algo contrário a natureza; por isso, a própria natureza
não permite que isto se dê deste modo. Pois, senão, “uma coisa, nelas, seria
ser e outra ser algo”, isto é, uma coisa seria o que são e outra coisa
totalmente distinta seria o algo que são, dando a entender que as coisas
possuem dualidade ontológica em suas existências, o que seria proveniente de
uma dupla ordenação metafisica - o que per se é algo impossível -, tal
como nas metafísicas orientais (o que em si é algo aporético e contrário tanto
a razão quanto contrário a revelação).
E, neste sentido, ainda se pode
afirmar que seriam boas, como Boécio afirma: “e agora certamente seria boas,
mas de nenhuma maneira teriam o mesmo ser como algo bom”; no entanto, se
fossem boas a partir dessa redução, seriam boas, mas não teriam o mesmo ser
como algo bom; então, nessas coisas uma coisa seria o ser boas e outra coisa o
que são; isto, evidentemente, geraria um dualismo na ordem do ser, já que se
evocaria que uma mesma coisa pode ser algo bom e ser outra coisa em seu ser[45].
114. [ii] Segundo, estabelece a
partir desta redução um axioma, onde diz: “E, por isso, se não fossem
absolutamente nada mais que boas, não haveria nelas nem peso, nem cor, nem
extensão pela dimensão do espaço, nem qualidade alguma, senão que somente
seriam boas”; ora, se a partir da redução proposta, as coisas não fossem
nada mais que boas, pois, uma coisa nestas seria o ser e outra o serem boas, o
que designa que seriam apenas boas, pois, uma coisa somente pode ser o que é e
não outra coisa, então, nestas coisas não haveria nada além do serem boas;
logo, “não haveria nelas nem peso, nem cor, nem extensão pela dimensão do
espaço, nem qualidade alguma”, isto é, se fossem apenas boas, não poderiam
ter nenhuma outra qualidade, já que o ser das mesmas seria apenas o serem boas;
por isso, não poderia ser pesadas, nem brancas nem de qualquer outra cor, nem
seriam medíveis no espaço, etc., ou seja, seriam coisas materiais sem estarem
materiadas, o que, em si, é impossível de ocorrer na realidade. Logo, seriam
existentes apenas como possibilidade (como ente de razão), tal como a redução
ora propugnada para o entendimento da questão.
115. [iii] Terceiro, confronta a
suposição com a realidade, onde diz: “Agora elas não pareceriam que são
coisas, mas o princípio das coisas. E não só pareceriam, mas pareceria, pois
uma coisa, e somente uma, é assim: a que é simplesmente boa e nada mais”;
ora, se tal redução tem o axioma evocado acima, então, tais coisas não seriam
apenas coisas, pois, seriam algo imateriado; por isso, “elas não pareceriam
que são coisas”, isto é, que são algo materiado, mas sim, que são “o
princípio das coisas”; ora, se retira o primeiro bem, o que resta é tornar
as próprias coisas ou outro algo qualquer da ordem das coisas temporais, como
se fosse o Ser Superior; pois, “uma coisa, e somente uma, é assim”, isto
é, somente uma coisa é o princípio das coisas, a saber, o Primeiro Bem. Logo,
somente uma coisa é o princípio das coisas, “a que é simplesmente boa e nada
mais”, isto é, a que é absolutamente boa e nada mais, ou seja, a que possui
a simplicidade perfeita e absoluta, a qual somente pode ser Deus, o Primeiro
Bem.
E, assim, se conclui que, se as
coisas são o princípio das coisas, então, não só pareceriam que são assim, mas
pereceriam, pois, se auto-destruiriam, já que esta característica é atributo
exclusivo e único do Primeiro Bem, Aquele que é simplesmente bom. Logo, se as
coisas fossem assim, as mesmas deixariam de existir, e nem as próprias coisas
poderiam ser elucubradas; e isto demonstra que a própria designação de não se
pensar no Primeiro Bem, tornaria as próprias coisas impensáveis de serem
pensadas, porque não existiriam se não fosse pelo Primeiro Bem. Pois, se se
retira o fundamento da ordem tudo desaba em desordem.
116. [iv] Quarto, estabelece a
conclusão racional, onde diz: “Como aquelas coisas não são simples, não
poderiam de nenhum modo existir, a não ser que Aquele que é simplesmente é bom
quisesse que elas existissem. Por esse motivo elas se dizem boas, já que o ser
delas procede da vontade do Bem”; ora, tendo confrontado a suposição que
emerge da redução ora feita, e demonstrado que de acordo com a realidade tal
suposição é impossível, Boécio prossegue para estabelecer uma conclusão
racional e óbvia; pois, “como aquelas coisas não são simples”, isto é,
como as coisas não possuem a simplicidade perfeita, as mesmas “não poderiam
de nenhum modo existir”, pois, somente existe per se Aquele que é
simples per se, isto é, o ser auto-existente; logo, as coisas não
poderiam existir, “a não ser que Aquele que é simplesmente bom quisesse que
elas existissem”, ou seja, a não ser que o Ser Superior quisesse que as
mesmas existissem, já que a existência é conferida apenas por Aquele que existe
per se; portanto, ao serem existentes pela vontade do Primeiro Bem,
tomam suas essências do fato de serem existentes a partir do Primeiro Bem;
donde, “por este motivo elas se dizem boas, já que o ser delas procede da
vontade do Bem”, isto é, procedem do Sumo-Bem.
Esta é a conclusão racional óbvia
que emerge do raciocínio proposto por Boécio. Assim, as coisas existentes tem
sua existência, e, consequentemente, suas essências, provenientes da vontade do
Primeiro Bem, que aos chamar a existência, lhes conferiu a essência e o bem que
convém a cada ente enquanto ente existente.
117. [v] Quinto, resolve a
redução e apresenta a proposição para a solução, onde diz: “De fato, o
Primeiro Bem é bom naquilo que é. Todavia, o segundo bem, pelo fato de fluir
daquele cujo mesmo ser é bom, ele próprio também é bom. Além disso, o mesmo ser
de todas as coisas fluiu daquele que é o Primeiro Bem e que é tão bom que
propriamente se diz que é bom naquilo que é. Logo o mesmo ser delas é bom.
Então, neste caso, não seriam boas naquilo que são, se de nenhum modo tivessem
procedido do primeiro bem”; ora, tendo apresentado as consequências
racionais que emergem dessa redução proposta, Boécio resolve a redução e
apresenta a proposição direta para a solução da questão, já que todas as
possibilidades possíveis que emergem esta redução foram analisadas e
parcialmente solucionadas, tanto de maneira direta, quanto nos filosofemas
imbuídos no texto.
118. E, a respeito disso, Boécio
faz três coisas: primeiro, demonstra a natureza do Primeiro Bem, quando diz: “De
fato, o Primeiro Bem é bom naquilo que é”; pois, o Primeiro Bem, é o único
que é absolutamente bom naquilo que é, já que seu Ser é totalmente bom e
absolutamente simples.
Segundo, demonstra o modo da
processão da bondade das coisas existentes, quando diz: “Todavia, o segundo
bem, pelo fato de fluir daquele cujo mesmo ser é bom, ele próprio também é bom”;
pois, o segundo bem, ou o bem que concerne as coisas existentes, só são bem,
porque fluem do Primeiro Bem, isto é, dAquele que cujo mesmo ser é bom, sendo
Ele próprio sumamente bom.
Terceiro, explica que as coisas
boas são o que são porque procedem do Primeiro Bem, quando diz: “Além disso,
o mesmo ser de todas as coisas fluiu daquele que é o Primeiro Bem e que é tão
bom que propriamente se diz que é bom naquilo que é. Logo o mesmo ser delas é
bom. Então, neste caso, não seriam boas naquilo que são, se de nenhum modo
tivessem procedido do primeiro bem”; pois, as coisas boas fluem do Primeiro
Bem, o qual tem por característica indiscutível, que “é bom naquilo que é”,
já que é o que é (cf. Êx 3.14a); portanto, as coisas que derivam do Primeiro
Bem são boas no que são; por isso, “o mesmo ser delas é bom”.
Logo, se chega a conclusão de que
“não seriam boas naquilo que são, se de nenhum modo tivessem procedido do
primeiro bem”, isto é, não seriam boas naquilo que são se não fossem
provenientes do Primeiro Bem; portanto, as coisas são boas naquilo que são
porque provêm do Primeiro Bem, o qual é a fonte de todo bem.
119. Deste modo, Boécio soluciona
a questão proposta, ao demonstrar que as coisas boas procedem da fonte de todo
bem; pois, se são boas, emanam da fonte de todo bem; logo, as coisas boas são
boas naquilo que são, porque procedem da vontade do Primeiro Bem. Portanto, fora
solucionada a questão deste modo, demonstrando que as coisas boas
necessariamente procedem da fonte de todo bem, pois, do contrário nem sequer
existiriam; na verdade, se não fosse pela vontade do Primeiro Bem nada
existiria (cf. Ap 4.11).
Lição 7
Analisa-se a solução da questão a respeito de como as coisas boas procedem do Primeiro Bem.
A. Texto de Boécio (De
Hebdomadibus, cap. V).
Nisto resolve-se a questão: pois
ainda que sejam boas naquilo que são, no entanto não são semelhantes ao
Primeiro Bem, uma vez que as coisas não são de qualquer modo. O mesmo ser delas
é bom, porém pelo motivo que o mesmo ser das coisas não pode existir, a não ser
que tenha procedido do Primeiro Ser, ou seja, do Bem. Assim o mesmo ser é bom e
não é semelhante Àquele do qual é. Porém Aquele é absolutamente bom naquilo que
é, pois não é nada mais que bom. Enquanto este talvez pudesse ser bom, mas não
poderia ser bom naquilo que é, a não ser que fosse por Aquele. Pois então,
talvez, participariam do bem. Mas, em verdade, não poderiam ter o mesmo ser -
que elas não teriam pelo bem - como bom.
Portanto, tendo suprimido o
Primeiro Bem destes com a mente e com o pensamento, ainda assim seriam bons,
porém não poderiam ser bons naquilo que são. E porque não poderiam existir em
ato a não ser que Aquele que é verdadeiramente bom as produzisse, assim o ser
delas – o qual procede do bem substancial - é bom e não lhe é semelhante. Se
não procedessem dele e ainda fossem boas, todavia não poderiam ser boas naquilo
que são, pois por um lado estariam fora do bem e ao mesmo tempo não seriam a
partir dele. Sendo aquele mesmo Primeiro Bem tanto o mesmo ser como o mesmo bem
e o mesmo ser bom.
[Primeira Objeção].
E não seria também conveniente que
aquelas coisas que são brancas sejam brancas naquilo que são brancas, já que,
para serem brancas, procederam da vontade de Deus?
[Resposta à Primeira Objeção].
De modo algum. Uma coisa é ser e
outra ser branco. Isso é assim porque quem fez com que elas existissem, é
certamente bom, mas de maneira alguma é branco. Logo, foi determinado pela
vontade do Bem que fossem boas naquilo que são. Mas certamente não lhes foi
determinado pela vontade de [algo] não branco esta propriedade de maneira que
fossem brancas naquilo que são, pois tampouco procederam da vontade do branco.
Assim, porque quis que elas fossem brancas quem não era branco, são somente
brancas. No entanto, porque quis que elas fossem boas quem era bom, são boas
também naquilo que são.
[Segunda Objeção].
Logo, segundo essa razão convém que
todas as coisas sejam justas porque o mesmo Justo é quem quis que elas
existissem?
[Resposta à Segunda Objeção].
Nem sequer isso. Pois ser bom
concerne à essência, enquanto ser justo concerne à ação. Porém nEle é a mesma
coisa ser e agir. Por consequência, [é] a mesma coisa ser bom e justo. No
entanto para nós não é a mesma coisa ser e agir, pois não somos simples.
Portanto, para nós não é o mesmo ser bons e ser justos, mas para todos nós é o
mesmo ser naquilo que somos. Assim, todas as coisas são boas; porém nem todas
são justas.
Mais ainda, o bem é algo geral. A
justiça, porém, especial e a espécie não descende a todas as coisas. Por isso,
sem dúvida, algumas coisas [são] justas, outras algo mais. Porém todas são
boas.
B. Comentário.
120. Após apresentar as
proposições para a solução da questão proposta, Boécio prossegue e resolve a
questão (cap. V); e, sobre isso, faz duas coisas: primeiro, apresenta a solução
da questão; segundo, apresenta duas objeções e as resolve.
121. Em relação ao primeiro, faz
sete coisas: primeiro, estabelece a proposição da resolução da questão;
segundo, evoca que o ser das coisas procede do Primeiro Bem; terceiro,
demonstra a diferença entre as coisas boas e o Primeiro Bem; quarto, estabelece
que as coisas só são boas naquilo que são a partir do Primeiro Bem; quinto,
evoca novamente a proposição da redução teorética; sexto, demonstra que as
coisas não poderiam existir em ato se não fosse pelo Primeiro Bem; sétimo,
descreve o modo da processão das coisas boas do Primeiro Bem.
122. Primeiro, estabelece a
proposição da resolução da questão, onde diz: “Nisto resolve-se a questão:
pois ainda que sejam boas naquilo que são, no entanto não são semelhantes ao
Primeiro Bem, uma vez que as coisas não são de qualquer modo”; e, Boécio
propugna a solução da questão, ao evocar a raiz e o fundamento do modo como as
coisas são boas, a saber, não como semelhantes ao Primeiro Bem, isto é, as
coisas são boas não porque são o Primeiro Bem, o que, per se, é
impossível; por isso, “não são semelhantes ao Primeiro Bem”; no entanto,
as coisas tem um modo ser, o que, ao se ter excluído a proposição de serem o
próprio Primeiro Bem, é evocada a partir da natureza das próprias coisas, “uma
vez que as coisas não são de qualquer modo”, isto é, uma vez que as coisas
possuem um modo de ser, ou seja, uma natureza e uma essência específica que
está em ordem ao Primeiro Bem, conquanto não seja o Primeiro Bem.
123. Segundo, evoca que o ser das
coisas procede do Primeiro Bem, onde diz: “O mesmo ser delas é bom, porém
pelo motivo que o mesmo ser das coisas não pode existir, a não ser que tenha
procedido do Primeiro Ser, ou seja, do Bem”; ora, após ter evocado que as
coisas não são semelhantes ao Primeiro Bem, passa a evocar o modo como o ser
das coisas são, a saber, como procedentes do Primeiro Bem; pois, “o mesmo
ser delas é bom”, isto é, o ser das coisas possui algo de bom, mas não
porque são semelhantes ao Primeiro Bem, ou seja, não porque são do mesmo modo
que o Primeiro Bem, mas porque dEle procedem; por isso, “pelo motivo que o
mesmo ser das coisas não pode existir”, isto é, do mesmo modo como o ser
das coisas não é auto-existente per se, assim também as coisas não são
boas per se, mas enquanto provenientes do Primeiro Bem, ou seja, “a
não ser que tenha procedido do Primeiro Ser, ou seja, do Bem”. Somente
sendo provenientes do Primeiro Bem, as coisas são boas, mas são boas enquanto
procedem dEle, e não enquanto o próprio Bem. Deste modo, se pontua a distinção
entre o ser das coisas e o Primeiro Bem.
124. Terceiro, demonstra a
diferença entre as coisas boas e o Primeiro Bem, onde diz: “Assim o mesmo
ser é bom e não é semelhante Àquele do qual é. Porém Aquele é absolutamente bom
naquilo que é, pois não é nada mais que bom”; ora, tendo compreendido que
as coisas boas procedem do Primeiro Bem, tanto em relação ao ser quanto em
relação aquilo que são, nisto mesmo propõe a diferença entre as coisas boas e o
Primeiro Bem; pois, “o mesmo ser é bom e não é semelhante Àquele do qual é”,
isto é, o ser é proveniente do Ser e o bem do Primeiro Bem, mas não são a mesma
coisa, são distintos. E, isto se demonstra por um simples raciocínio
lógico-metafísico, pois, “Aquele é absolutamente bom naquilo que é, pois não
é nada mais que bom”, enquanto que as coisas são boas naquilo que são
porque procedem do Primeiro Bem.
Ora, a processão do bem nas
coisas, demonstra a dependência das coisas do Primeiro Bem enquanto são boas, e
do ser das coisas enquanto existentes a partir do Ser. Portanto, a distinção
entre as coisas boas e o Primeiro Bem, é algo evidente e apodítico, tanto na
realidade como no pensamento.
125. Quarto, estabelece que as
coisas só são boas naquilo que são a partir do Primeiro Bem, onde diz: “Enquanto
este talvez pudesse ser bom, mas não poderia ser bom naquilo que é, a não ser
que fosse por Aquele. Pois então, talvez, participariam do bem. Mas, em
verdade, não poderiam ter o mesmo ser - que elas não teriam pelo bem - como bom”;
ora, tendo compreendido a distinção entre as coisas boas e o Primeiro Bem,
estabelece um preceito fundamental, a saber, que as coisas só são boas naquilo
que são a partir do Primeiro Bem; pois, “enquanto este talvez pudesse ser
bom, mas não poderia ser bom naquilo que é”, isto é, se as coisas pudessem
por si ser boas somente seriam boas, mas não seriam o que são, o que geraria a
separação entre aquilo que são e o ser bom, o que é uma impossibilidade; logo,
só são boas naquilo que são, “a não ser que fosse por Aquele”, isto é,
somente por causa do Primeiro Bem.
Por isso, se não fosse deste
modo, “então, talvez, participariam do bem”, isto é, teriam algo do bem,
mas, “em verdade, não poderiam ter o mesmo ser - que eles não teriam pelo
bem - como bom”, ou seja, não seriam algo e seriam boas naquilo que são, o
que, como já fora elucubrado, é algo impossível de ocorrer na realidade já que
é impossível de ocorrer no próprio pensamento.
126. Quinto, evoca novamente a
proposição da redução teorética, onde diz: “Portanto, tendo suprimido o
Primeiro Bem destes com a mente e com o pensamento, ainda assim seriam bons,
porém não poderiam ser bons naquilo que são”; ora, ao ter demonstrado que
as coisas só são boas naquilo que são a partir do Primeiro Bem, evoca novamente
a proposição da redução teorética feita anteriormente, pois, “tendo
suprimido o Primeiro Bem destes com a mente e com o pensamento”, se
demonstra que mesmo assim as coisas seriam boas; no entanto, “não poderiam
ser bons naquilo que são”, isto é, poderiam ser boas, mas uma coisa seria o
ser e outra o ser boas naquilo que são; logo, não se pode suprimir o Primeiro
Bem na realidade, pois, as coisas são boas naquilo que são, isto é, o ser das
coisas e a bondade nas coisas, que existem conjuntamente e de maneira
indissolúvel, já que o ato de ser é o que confere as coisas o serem boas, são
procedentes do Primeiro Bem.
127. Sexto, demonstra que as
coisas não poderiam existir em ato se não fosse pelo Primeiro Bem, onde diz: “E
porque não poderiam existir em ato a não ser que Aquele que é verdadeiramente
bom as produzisse, assim o ser delas – o qual procede do bem substancial - é
bom e não lhe é semelhante”; ora, após ter novamente evocado a redução
teorética e sua impossibilidade real, passa a demonstrar que as coisas não
poderiam existir se não fosse pelo Primeiro Bem; pois, “não poderiam existir
em ato a não ser que Aquele que é verdadeiramente bom as produzisse”, isto
é, a não ser que fossem provenientes do Primeiro Bem, ao passo que, por serem
provenientes dEle, “o ser delas - o qual procede do bem substancial - é bom
e não lhe é semelhante”, ou seja, o ser das coisas procede do Bem
Substancial, ao mesmo tempo que ao serem boas, demonstram esta processão,
embora também demonstrem que distam infinitamente do Bem Substancial.
Ora, o Ser, o Bem Substancial,
está muito acima dos entes finitos (sejam coisas, sejam seres); logo, as coisas
são boas naquilo que são, porque procedem dEle, ao passo que as coisas boas não
tem semelhança substancial para com Aquele de que procedem, isto é, não se
tornam o Primeiro Bem; pois, semelhança substancial seria terem a mesma
substância; ora, como isso é impossível, então as coisas boas não tem
semelhança substancial com o Bem Substancial. Pois, a Substância Primeira é una
e indivisa, e nenhuma das substâncias primárias ou secundárias se torna ou é
semelhante a Substância Primeira, pois são sempre divisas e múltiplas.
Pois, quanto a processão se pode
ter semelhança ou dessemelhança com relação ao procedente; no caso da processão
dos entes finitos do ente infinito, há tanto semelhança quanto dessemelhança;
embora, a semelhança se dê apenas porque são boas, não porque são o Bem; e a
dessemelhança se dá pela comparação da perfeição da substância, pois, enquanto
nas coisas boas a substância é imperfeita e dependente, no Primeiro Bem a
substância é perfeitíssima absolutamente independente.
128. Sétimo, descreve o modo da
processão das coisas boas do Primeiro Bem, onde diz: “Se não procedessem
dele e ainda fossem boas, todavia não poderiam ser boas naquilo que são, pois
por um lado estariam fora do bem e ao mesmo tempo não seriam a partir dele.
Sendo aquele mesmo Primeiro Bem tanto o mesmo ser como o mesmo bem e o mesmo
ser bom”; ora, após demonstrar que as coisas não poderiam existir em ato se
não fosse pelo Primeiro Bem, ao afirmar que as coisas são boas naquilo que são
porque procedem do Bem Substancial, passa a descrever o modo da processão das
coisas boas do Primeiro Bem; pois, “se não procedesse dele e ainda fosse
boas, todavia não poderiam ser boas naquilo que são”, já que isto é uma
impossibilidade real, já que para ser e ser boa, é necessário proceder do
Primeiro Bem; portanto, se assim fosse, não poderiam ser boas naquilo que são,
já que “por um lado estariam fora do bem”, isto é, não participariam do
bem, e por outro lado “não seriam a partir dele”, isto é, não teriam
procedência do Primeiro Bem, o que faria pensar que são o Bem Substancial, o
que é algo absurdo; por isso, as coisas boas procedem do Primeiro Bem, porque
tanto o ser como o ser bem procedem dEle; pois, tanto um aspecto quanto o outro
dependem do Primeiro Bem, logo, dEle procede “tanto o mesmo ser como o mesmo
bem e o mesmo ser bem”. As coisas boas procedem do Primeiro Bem, tanto na
ordem do ser quanto na ordem da bondade.
129. Assim, Boécio apresenta a
solução da questão de maneira singular; e propugna a proposição verdadeira e
apodítica de que as coisas que são, são e são boas, porque procedem do Primeiro
Bem, tanto no ser quanto no bem. E, conquanto a resposta tenha sido formulada
de modo completo e eficaz, ainda surgem algumas dúvidas e objeções a respeito
do modo da processão.
130. Por isso, após apresentar a
solução da questão, Boécio prossegue para o segundo aspecto, onde apresenta
duas objeções e as resolve (n. 120). Ora, estas duas objeções estão em ordem a
solução propugnada, pois, estabelecem aspectos concernentes ao entendimento
daquilo que Boécio argumentara sobre o assunto; portanto, nestas duas objeções
se mostram dúbias com respeito a solução da questão, em dois aspectos que
ficaram ainda um pouco ambíguos ou que podem gerar ambiguidades. Logo, se põe
estas duas objeções para solucionar estes aspectos, e concluir plenamente a
solução da questão.
131. Por isso, na primeira
objeção, formula a seguinte indagação: “E não seria também conveniente que
aquelas coisas que são brancas sejam brancas naquilo que são brancas, já que,
para serem brancas, procederam da vontade de Deus?”; ora, nesta objeção,
Boécio indaga se as coisas que são serem brancas são da vontade de Deus do
mesmo modo como o fato de serem boas.
E, evidentemente, Boécio põe a
indagação e a responde; e, ao responder faz quatro coisas: primeiro, responde a
objeção; segundo, estabelece a distinção entre o qualificativo da existência e
os qualificativos na existência; terceiro, demonstra a diferença entre a
processão do bem e a processão da cor; quarto, evoca o qualificativo primordial
das coisas existentes tanto em relação ao ser quanto em relação as qualidades.
132. Primeiro, responde a
objeção, onde diz: “De modo algum”; ora, a resposta de Boécio é direta;
pois, não é conveniente que as coisas que são brancas sejam brancas naquilo que
são brancas, senão isto seria procedência da vontade de Deus quanto ao ser das
coisas; logo, em relação a qualificativos secundários das coisas, tal como
expresso por alguma das propriedades categóricas, na verdade, são assim de
acordo com as coisas boas naquilo que são, mas não são assim porque procedem da
vontade de Deus, mas porque procedem do fato de serem boas e assim terem alguns
qualificativos que são próprios das coisas, tal como a cor.
133. Segundo, estabelece a
distinção entre o qualificativo da existência e os qualificativos na
existência, onde diz: “Uma coisa é ser e outra ser branco. Isso é assim
porque quem fez com que elas existissem, é certamente bom, mas de maneira
alguma é branco”; ora, após responder, Boécio explica a resposta, e
estabelece uma distinção, pois, “uma coisa é ser e outra ser branco”,
isto é, quanto ao ser, as coisas procedem do Primeiro Bem, mas quanto a cor,
não; pois, a existência das coisas é conferida pela vontade de Deus, mas o fato
de possuírem determinada cor é qualificativo que possuem enquanto ente
existente; e, “isso é assim porque quem fez com que elas existissem, é
certamente bom”, ou seja, enquanto são existentes as coisas procedem do Bem
Substancial, o qual é Bem, “mas de maneira alguma é branco”, isto é, não
é parte dos qualificativos de cor.
Logo, as coisas são boas porque
procedem do Primeiro Bem, mas se possuem cor, é qualificativo que possuem
enquanto entes existentes na realidade; ou seja, o serem bens é parte da
essência das coisas, enquanto o serem brancas é parte da existência das coisas
no que concerne as próprias coisas e de acordo com as inter-relação das coisas
naturais.
134. Terceiro, demonstra a
diferença entre a processão do bem e a processão da cor, onde diz: “Logo,
foi determinado pela vontade do Bem que fossem boas naquilo que são. Mas
certamente não lhes foi determinado pela vontade de [algo] não branco esta
propriedade de maneira que fossem brancas naquilo que são, pois tampouco
procederam da vontade do branco”; ora, tendo descrito a diferença entre
serem boas e serem brancas, passa a demonstrar a diferença entre a processão do
bem e a processão da cor.
Pois, em relação a processão do
bem, “foi determinado pela vontade do Bem que fossem boas naquilo que são”;
logo, são boas porque procedem dEle; agora, em relação a processão da cor, “certamente
não lhes foi determinado pela vontade de [algo] não branco esta propriedade de
maneira que fossem brancas naquilo que são”, já que a cor não possui
vontade, e assim, “tampouco procederam da vontade do branco”.
Assim, se distingue entre a
processão do bem, que é algo proveniente da vontade de Deus; e a processão da
cor, que é algo natural, pelo contato das coisas com a luz na realidade.
E mesmo que todas as coisas
dependam da vontade de Deus, isto é, estejam sob Sua soberania, mesmo as cores,
no entanto, quanto a cor de determinada coisa, a mesma é definida em relação a
um processo natural na realidade, e não tanto quanto a vontade de Deus para a
essência das coisas.
Por isso, se fala que as coisas
ao serem boas procedem da vontade de Deus, isto é, procedem da vontade de Deus
quanto a essência, enquanto que ao serem de determinada cor não se afirma que
procedem da vontade de Deus, já que a cor não indica a essência das coisas
enquanto são boas.
135. Quarto, evoca o
qualificativo primordial das coisas existentes tanto em relação ao ser quanto
em relação as qualidades, onde diz: “Assim, porque quis que elas fossem
brancas quem não era branco, são somente brancas. No entanto, porque quis que
elas fossem boas quem era bom, são boas também naquilo que são”; ora, tendo
feito a distinção entre a processão do bem e a processão da cor, prossegue e
evoca o qualificativo primordial das coisas existentes, dividido em dois
aspectos: primeiro, em relação ao ser, já que são porque procedem da vontade de
Deus; segundo em relação as qualidades, já que existem como entes existentes.
Logo, “porque quis que elas
fossem brancas quem não era branco, são somente brancas”, isto é, porque
são brancas por um efeito natural, são somente brancas; mas, “porque quis
que elas fossem boas quem era bom, são boas também naquilo que são”, isto
é, porque procedem da vontade do Primeiro Bem, são boas naquilo que são.
Portanto, as coisas existentes tem sua processão do Primeiro Bem, enquanto são
coisas boas naquilo que são, mas enquanto são brancas, apenas são brancas. O
ser das coisas difere das qualidades que são inerentes ao modo como as coisas
são e dos aspectos da geração e da corrupção inerente as coisas neste mundo,
como, por exemplo, na questão da cor.
136. Ora, tendo compreendido a
razão da primeira objeção, e os aspectos que concernem a explicação da mesma,
cumpre compreender os mesmos aspectos concernentes a segunda objeção.
E na segunda objeção, formula a
seguinte indagação: “Logo, segundo essa razão convém que todas as coisas
sejam justas, porque o mesmo Justo é quem quis que elas existissem?”; ora,
nesta objeção, Boécio indaga que se as coisas ao serem justas são assim porque
procedem do Justo.
E, de igual modo a primeira
objeção, Boécio põe a indagação e a responde; e, ao responder, faz cinco
coisas: primeiro, responde a segunda objeção; segundo, evoca a distinção entre
o que concerne a essência e o que concerne à ação; terceiro, demonstra que no
Primeiro Bem ser e agir são a mesma coisa; quarto, estabelece a diferença entre
as coisas e o Primeiro Bem; quinto, evoca a diferença entre a bondade e a
justiça com relação as coisas.
137. Primeiro, responde a segunda
objeção, onde diz: “Nem sequer isso”; ora, do mesmo modo como na
primeira objeção, a resposta é negativa; pois, nem todas as coisas que são, são
justas; mas, todas as coisas que são, são boas naquilo que são; portanto, é
evidente, que ao procederem do Primeiro Bem, são boas, mas não necessariamente
justas, mesmo que o Primeiro Bem também seja Justo (cf. Sl 11.7). Pois, aquilo
que são competem a bondade e não primeiramente a justiça; logo, o bem é uma
substância, enquanto que a justiça é uma ação. Embora, em Deus, Bem e Justiça
sejam parte de Sua substância.
138. Segundo, evoca a distinção
entre o que concerne a essência e o que concerne à ação, onde diz: “Pois ser
bom concerne à essência, enquanto ser justo concerne à ação”; ora, após ter
respondido a objeção, Boécio prossegue e evoca a distinção fundamental entre o
que concerne a essência e o que concerne à ação; pois, o bem concerne a
essência: “pois ser bom concerne a essência”, já que são boas naquilo
que são porque procedem do Primeiro Bem; e o ser justo concerne a ação: “enquanto
que ser justo concerne à ação”, isto é, as coisas enquanto são boas naquilo
que são, podem ser justas; pois, a justiça em relação as coisas está na
categoria da ação e não na substância da coisa, na qual está o bem.
139. Terceiro, demonstra que no
Primeiro Bem ser e agir são a mesma coisa, onde diz: “Porém nEle é a mesma
coisa ser e agir. Por consequência, [é] a mesma coisa ser bom e justo”;
ora, após evocar a distinção entre o que concerne a essência e o que concerne à
ação, demonstra que no Primeiro Bem ser e agir são a mesma coisa; pois, o ser
simples, o Bem Substancial, tem este qualificativo exclusivo; donde, “nEle é
a mesma coisa ser e agir”, pois, em Seu Ser não há distinção de atributos
segundo o acidente, mas existem substancialmente do mesmo modo; por isso, “por
consequência”, nEle, “[é] a mesma coisa
ser bom e justo”, pois, Ele é ao mesmo tempo bom e justo. Mas,
evidentemente, esta é uma característica apenas do Primeiro Bem e não das
coisas.
140. Quarto, estabelece a
diferença entre as coisas e o Primeiro Bem, onde diz: “No entanto para nós
não é a mesma coisa ser e agir, pois não somos simples. Portanto, para nós não
é o mesmo ser bons e ser justos, mas para todos nós é o mesmo ser naquilo que
somos. Assim, todas as coisas são boas; porém nem todas são justas”; ora,
após ter demonstrado uma característica exclusiva do Primeiro Bem,
evidentemente, passa a demonstrar a diferença entre as coisas e o Primeiro Bem;
pois, “para nós não é a mesma coisa ser e agir, pois não somos simples”,
isto é, para a coisas, ser e agir não estão coadunados como no Primeiro Bem,
pois, diferentemente do Bem Substancial, as coisas não são simples; logo, “para
nós não é o mesmo ser bons e ser justos”, pois, ser bom e ser justo
concerne a aspectos diferentes, o primeiro refere-se a essência, o segundo
refere-se a ação.
Com isso, conclui-se que, “para
todos nós é o mesmo ser naquilo que somos”, isto é, as coisas são aquilo
que são em suas essências, pela processão do Primeiro Bem em relação a
existência e em relação a essência; por isso, “todas as coisas são boas”,
já que emanam do Primeiro Bem naquilo que são; mas, “nem todas são justas”,
já que nem todas em suas ações necessitam de justiça naquilo que são, embora
necessitem do Bem. Pois, as coisas podem ser boas sem ser justas, embora as
coisas boas não sejam injustas; por isso, podem ser boas sem serem justas, mas
jamais serem justas sem serem boas. Nas coisas, o Bem antecede a justiça;
enquanto que em Deus, estão no mesmo patamar e em infinita e eterna igualdade,
pois nEle não há mudança nem sombra de variação (cf. Tg 1.17).
141. Quinto, evoca a diferença
entre a bondade e a justiça com relação as coisas, onde diz: “Mais ainda, o
bem é algo geral. A justiça, porém, especial e a espécie não descende a todas
as coisas. Por isso, sem dúvida, algumas coisas [são] justas, outras algo mais.
Porém todas são boas”; ora, após estabelecer a distinção entre as coisas e
o Primeiro Bem quanto ao ser e o agir, Boécio prossegue e evoca a diferença
entre a bondade e a justiça com relação as coisas; pois, “o bem é algo geral”,
isto é, é um gênero, ou no sentido ontológico, um transcendental; e, “a
justiça, porém especial”, isto é, é algo específico, e não sendo um gênero,
mas uma espécie, sabe-se que “a espécie não descende a todas as coisas”;
logo, se compreende, de maneira indubitável, que “algumas coisas [são]
justas”, pois, a espécie descende a apenas algumas coisas, o que se dá
também com outros qualificativos especiais ou espécies; logo, algumas coisas
são ainda algo mais, isto é, tem outros qualificativos que não descendem a
todas as coisas. No entanto, em relação a todas as coisas existentes, “todas
são boas”, pois, a bondade é um gênero que qualifica o ente real
independente das espécies participadas pelo próprio ente.
142. Ora, tudo aquilo que é, tem
algo do bem, pois o Sumo Bem faz com que sejam o que são; por isso, “concluímos
que o que todos desejam é, precisamente, o bem”, então, “é inevitável
reconhecer que o bem é o fim universal de todas as coisas”[46];
logo, é o bem o princípio e o fim de todas as coisas; portanto, se constata que
todas as coisas são boas porque o princípio das mesmas é bom, bem como porque o
fim universal de todas as coisas é o bem, a saber, o próprio Sumo Bem; por
isso, todas as coisas que são, são boas; etc.
143. E termina aqui o comentário a este livro. Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém.
[1] cf. Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios [2ª ed. Campinas, SP: Ecclesiae,
2017], livro I, cap. II, n. 1, pág. 48.
[2] Tomás de Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra
Errores, 2023], prol., pág. 126.
[3] Alguns optam por empregar o termo Hebdomadibus
como Hebdomadários; aqui opta-se por Hebdômadas, tal como na tradução
utilizada.
[4] Estes três aspectos estão em conformidade aos princípios estabelecidos pelo
aquinate no prólogo de seu comentário ao De Hebdomadibus (cf. Tomás de
Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra Errores, 2023],
prol., pág. 126-128).
[5] O termo hebraico para Hebdômada é הַשְּׁבִיעִ֜י, ao passo que o termo grego é ἑβδόμου, que também aparece em outros locais na Escritura,
principalmente onde se aparece o termo sete, e em alguns casos em seus
correlatos cardinais e ordinais (cf. Ap 10.7).
[6] A partir da analogia
fidei, se pode entender a Festa das Trombetas como o anúncio garrafal da
benevolência de Deus para com todos os homens, já sinalizado de maneira natural
e cósmica através do arco-íris (cf. Gn 9.12-15); mas esta benevolência
universal de Deus, também é benevolência e misericórdia especial com aqueles
que o temem e que o buscam (cf. Sl 25.10; 103.17-18). Por isso, a mensagem da
misericórdia de Deus, o evangelho, é a trombeta de Deus, que anuncia esta
misericórdia e instrui os homens para viverem de acordo com esta misericórdia,
nos privilégios e deveres dos filhos de Deus (cf. Jo 1.12; Ef. 1.3ss; Hb
12.14-15).
[7] Gilbertus Porretanus, Expositio in Boethii Librum
De Bonorum Hebdomade, prol., n. 10.
[8] Sobre a distinções das luzes pela razão natural, consultar
a proposição de Boaventura (cf. Boaventura, De Reductione Artium ad
Theologiam, n. 1).
[9] A ideia da filosofia como jogo é
mais propriamente evocado a partir dos filósofos modernos; mas, encontra um
duplo escopo nesta proposição: pois, há um aspecto correto, já identificado,
por exemplo, por Nietzsche, e há um aspecto negativo, da destruição da
verdadeira filosofia tornando-a um jogo anti-sabedoria, como Boécio já houvera
alertado; no entanto, a verdadeira filosofia pode ser entendida como parte do
verdadeiro jogo da sabedoria, enquanto que a falsa filosofia, a anti-filosofia,
é parte do falso jogo que tem nome de sabedoria, mas que sabedoria não é; esta
distinção, fica mais entendível, a partir do modo como se entende aqueles que
buscam a sabedoria, com esmero, dedicação e perseverança, e aqueles que
rejeitam a sabedoria, definidos por Boécio como desenfreados e insolentes, ou,
na proposição do aquinate, os luxuriosos e superficiais.
[10] O aquinate apresenta o escrito de Boécio subdividido
em duas partes: proêmio e discussão da obra (cf. Tomás de Aquino, Comentário
ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra Errores, 2023], cap. I, pág. 132).
[11] Ibidem. Pág. 132.
[12] Ibidem. Pág. 134.
[13] A leitura de Alberto Magno sobre a proposição de Boécio,
define o termo ser que Boécio emprega no sentido de essência (cf. Alberto
Magno, Quaestio de Quiditate et Esse, n. 75, In: Alberto Magno, O Ser
e a Inteligência [Porto Alegre, RS: Concreta, 2017], pág. 167). E, este
também é o sentido empregado por Tomás de Aquino em sua análise do De
Hebdomadibus, bem como compõem parte do eixo fundamental da doutrina do
aquinate, a saber: no opúsculo De Ente et Essentia, o aquinate analisa o
ente e a essência, ou mais especificamente, as noções de ente, existência e
essência, enquanto que no comentário ao De Hebdomadibus, o aquinate
analisa o ser e a participação, ou mais propriamente, a essência e a
participação. São textos que, num escopo geral, se complementam no âmbito da
doutrina do aquinate; mas não somente no âmbito da doutrina tomasiana, mas
também no âmbito da reflexão sobre o ser e sobre a ontologia em geral. Alguns
dos preceitos fundamentais da filosofia estão imbuídos nas díades ente-essência
e essência-participação, subsequentes e auto-complementares.
[14] Cícero, Discussões Tusculanas
[Uberlândia: EDUFU, 2014], livro I, cap. I,
n. 1, pág. 19.
[15] cf. Tomás de Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra
Errores, 2023], cap. I, pág. 134.
[16] Alberto afirma: “as duas coisas que, quando são
desconhecidas, desejamos conhecer, a saber, o incomplexo e o complexo”
(Alberto Magno, De Praedicamentis, trat. I, cap. I).
[17] A recusa em se aperceber da realidade, fenômeno
patológico pouco estudado, diz respeito a uma atitude de completa negação e
rejeição a realidade; para Voegelin, a recusa em se aperceber da realidade, é “o
cerne patológico na estrutura da consciência que permite ao sonhador desprezar
o argumento racional contra sua interpretação” (Eric Voegelin, Ensaios
Publicados 1966-1985 [São Paulo: É Realizações, 2019], pág. 392).
[18] Tomás de Aquino, Op. Cit., cap. I, pág. 134.
[19] Ibidem.
[20] Tomás de Aquino, O Ente e a Essência [2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2014], prol., pág. 17.
[21] Tomás de Aquino, Op. Cit., 2023, cap. II, pág. 138.
[22] Isto é, a instrução necessária, o
saber necessário, àqueles saberes que requerem conhecimentos prévios para serem
entendidos, tal como disposto na sentença analítica do Filósofo.
[23] Em relação a esta lição surgiram
duas dúbias, numa grande digressão, porque o que fora explicado a partir das
proposições de Boécio, defrontam-se com um problema predicamental; logo, se faz
necessário explicar estas dúbias sobre este problema, o que permeia não só as
Hebdômadas, mas preceitos concernentes aos Predicamentos. Então, que se
compare as nuances evocadas nestas dúbias e as respectivas soluções e respostas
aos argumentos, com as proposições evocadas em nosso comentário ao livro das Categorias
(especificamente em relação aos anti-predicamentos).
[24] cf. Tomás de Aquino, Op. Cit., 2023, cap. I, pág. 136.
[25] cf. Duns
Scotus, Quaestiones in Libros Elenchorum, q. 15, n. 3.
[26] cf. Duns
Scotus, Quaestiones in Librum Porphyrii Isagoge, q. 12, n. 15-18.
[27] cf. Duns Scotus, Ordinatio
[ed. ingl.], livro I, d. 3, pars 1, q. 3, n. 151.
[28] cf. Tomás de Aquino, O Ente e a Essência
[2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014], proem., n. 1, pág. 17.
[29] Cardeal Caetano de Vio, Comentário ao Do Ente e da Essência de Santo
Tomás de Aquino [Contra Errores, 2022], cap. I, n. 10, pág. 115.
[30] Tomás de Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra
Errores, 2023], cap. II, pág. 144.
[31] Porfírio, Isagoge: Introdução às Categorias de Aristóteles [São
Paulo: Attar, 2002], V, n. 1, pág. 51.
[32] Ibidem, n. 4, pág. 51.
[33] cf. Alberto
Magno, De Praedicamentis, trat. I, cap. 7.
[34] Tomás de Aquino, Op. Cit., 2023, cap. II,
pág. 144.
[35] Ibidem.
[36] cf. Gilbertus Porretanus, Expositio in Boethii Librum De Bonorum
Hebdomade, n. 57-58.
[37] Tomás de Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra
Errores, 2023], cap. III, pág. 152.
[38] Gilbertus Porretanus, Expositio in Boethii Librum De Bonorum
Hebdomade, n. 95.
[39] Tomás de Aquino, Op. Cit., cap. III, pág. 152.
[40] Ibidem.
[41] Porretanus, Op. Cit., n. 95.
[42] Tomás de Aquino, Op. Cit., cap. III, pág. 154.
[43] Gilbertus Porretanus, Expositio in Boethii Librum De Bonorum
Hebdomade, n. 110.
[44] Tomás de Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra
Errores, 2023], cap. IV, pág. 160.
[45] Aliás, menciona-se o fato de que muitas das confusões teoréticas que são
parte da modernidade são fundamentadas neste dualismo doentio, que impregnou
quase tudo, e tornou as coisas existentes expressão deste dualismo, que permeia
desde a lógica até a metafísica, a ética, a política, a economia, etc. E, como
se sabe, este dualismo se inicia, pelo menos teoreticamente, na impugnação da
distinção correta e precisa da teologia como ciência teórica e prática, quando
Scotus passa a propugnar a teologia mais como ciência prática do que como
ciência especulativa (cf. Ordinatio [ed. ingl.], prol., pars V, q. 1-2,
n. 217-366). Portanto, este dualismo passa a impregnar desde a lógica, que toma
forma na tese da impossibilidade de se conhecer os universais, até a
metafísica, distinguido a mesma da teologia, isto é, da teologia atinente a
filosofia; e, isto fez com que Scotus, muito provavelmente sem ter esta
intenção, cavasse um abismo entre fé e razão, entre ser e conhecer, etc., que
culmina no “primado” da vontade sobre o intelecto, isto é, no primado do que o “eu”
deseja sobre o que o “eu” raciocina. Logo, assim se terá a vontade como
aferidora de medida, ao invés da razão; o que, por si, ocasiona inúmeros
problemas terríveis na ordem do ser e na ordem do conhecimento, os quais, são
característica indiscutível da modernidade.
[46] Boécio, A Consolação da
Filosofia [Campinas, SP: Vide Editorial, 2023], livro III, pros. 11, n. 41,
pág. 129.
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