01/10/2024

Comentário ao Sobre as Hebdômadas de Boécio

Prefácio.

 

A vida e a obra de Boécio não deixam de impressionar, mesmo depois de séculos após sua morte; pois, sua obra intelectual, somada ao testemunho de sua vida, tornaram-no um ponto de inflexão, tanto na história da filosofia quanto na história da cristandade latina; Boécio é o último intelectual do mundo antigo, e o primeiro dos medievais; Boécio, literalmente se empenhou para promover o encontro das culturas, a filosófica e a teológica, tal como Bento XVI afirmara: “Neste âmbito, ou seja, no empenho de promoção do encontro das culturas, utilizou as categorias da filosofia grega para propor a fé cristã, também aqui em busca de uma síntese entre o património greco-romano e a mensagem evangélica”.

E os escritos de Boécio são magistrais, tanto os escritos maiores, quanto os escritos menores; e entre os escritos menores de Boécio, chamam a atenção alguns pequenos tratados, mais propriamente chamados de opúsculos; dois deles são icônicos, a saber, o De Hebdomadibus e o De Trinitate; estes dois opúsculos estão entre os textos mais importantes da história da filosofia e da teologia; e, tanto um quanto o outro são sínteses extraordinárias, entre o pensamento teológico e a utilização de categorias filosóficas para explicar os mistérios da fé; e, ambos, igualmente, concernem tanto ao assunto específico que os compõem, quanto são permeados por uma ampla gama de princípios teoréticos que permeiam não só o assunto que versam, mas também versam sobre os preceitos básicos que concernem ao estudo da sabedoria.

Por isso, explicar e comentar Boécio, não somente é uma tarefa trabalhosa, mas também uma tarefa extremamente necessária; pois, Boécio não somente versa sobre problemas e temas teológicos, mas ao fazê-lo, estabelece uma série de preceitos fundamentais, que se extraídos e burilados com cuidado e esmero, contribuem não somente para o assunto específico destes textos, mas também para todos aqueles que buscam a verdade e se dedicam ao estudo da sabedoria.

Portanto, os textos de Boécio não somente são pérolas teológicas e filosóficas, mas também são como que conselhos direcionados àqueles que buscam o Bem através do encontro com Verdade.

E o legado de Boécio, por estas e outras razões, é imorredouro; e, justamente por este legado, e pela proximidade da rememoração dos 15 séculos de sua morte em 23 de outubro de 2024, se faz necessário retomar Boécio e colocá-lo no lugar de honra, como um dos maiores intelectuais da história; e, para isso, de início, se vai fazer um comentário ao De Hebdomadibus, a fim de explicar e expor este difícil opúsculo, que versa sobre o tema do bem nas coisas.

Pois, este ilustre livro de Boécio, foi um dos textos mais bem quistos na escolástica, e foi comentado por muitos dos grandes teólogos escolásticos, tais como Erigena, Porretanus, Tomás de Aquino, etc.; além do que versa sobre um dos temas filosóficos fundamentais, o modo da existência dos entes enquanto entes, isto é, o modo como existem naquilo que são, a saber, como provenientes do Primeiro Bem; e, por isso, são bons naquilo que são.

Portanto, na esteira da lembrança dos 1.500 anos da morte de Boécio, filósofo e mártir da fé, se apresenta este comentário ao De Hebdomadibus, tanto para investigar as noções de bem, ser, participação, etc., concernentes a este livro, mas também para elucidar que Boécio, ao mesmo tempo em que magistralmente elucubrara sobre estes conceitos, também elucubrara sobre a sabedoria, pois, era algo que lhe era inerente, e, por isso, pode falar dos preceitos da sabedoria de maneira tão incisiva e grandiloquente, a ponto de seu testemunho continuar a ecoar mesmo no séc. XXI, o qual certamente continuará a ecoar até a consumação dos séculos.  

Pois, a excelência da sabedoria não é sua medida na ordem do tempo, se é antiga ou nova, mas a profundidade em que penetrou no seio da eternidade; tal como o Pe. Sertillanges aconselhara: “a sabedoria consiste em dirigir-se a quem, não importa quando, conseguiu mergulhar mais profundamente no seio da eternidade”.

Boécio manteve os olhos na eternidade, mesmo em meio as tormentas da época em que viveu, e por isso, a mestria de suas palavras continuará a encantar, a deleitar e a comover os espíritos superiores em todas as épocas.

Soli Deo Gloria!

In Nomine Iesus!

30 de setembro de 2024.

 

Proêmio.

 

i. “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança, nem sombra de variação” (Tg 1.17); ora, todo bem procede da fonte de todo bem; por isso, a Escritura afirma que toda boa dádiva vem do alto, do Pai das luzes; os bens, tal como luzes, são provenientes do Primeiro Bem, o Pai da luzes; e tudo o que o Primeiro Bem faz, tem algo do bem e algo de Sua luz; donde, o cronista da criação ter descrito a avaliação de Deus de sua própria obra, de modo hexaplo, com as seguintes palavras: “e viu Deus que era bom” (Gn 1.10b, 12b, 18b, 21b, 25b, 31a).

O bem nas criaturas e nas coisas são proveniência da obra do Sumo Bem, e são como que sua assinatura, demonstrando donde são provenientes (cf. Sb 13.5). Pois, se as coisas são boas, necessariamente são provenientes de uma fonte que possui maior bem do que o que as coisas possuem.

ii. Deste modo, as coisas são boas, mesmo que não sejam o Bem; pois, as coisas são boas porque provêm do Primeiro Bem, embora não sejam o Bem; ora, isto demonstra a necessidade de se elucubrar sobre o modo como as coisas são boas; por isso, Boécio, em seu livro De Hebdomadibus se pôs a investigar “como as substâncias são boas naquilo que são, ainda que não sejam bens substanciais”.

E, embora o termo Hebdomadibus seja uma descrição genérica para o que Boécio se propõe a analisar, a indicar o modo e a forma que se seguirá em determinada análise, naquilo que propriamente dito investiga faz uma análise de como as coisas são boas, mesmo que não sejam bens substanciais; isto é, as coisas são boas porque procedem da fonte de todo bem, o Primeiro Bem, embora não sejam bens, isto é, não são transmissoras do bem na mesma ordem que o Primeiro Bem, embora comuniquem algo do bem enquanto entes existentes.

iii. E, tal como Boécio fizera em suas investigações, a análise sobre o bem conduz-se sob os princípios da sabedoria; e a sabedoria tem sua casa bem firmada: “A sabedoria já edificou sua casa, já lavrou as suas setes colunas” (Pv 9.1); as setes colunas da sabedoria, abalizam a compreensão sobre o bem, isto é, a perfeita sabedoria abaliza a compreensão sobre o bem, porque funda-se no Primeiro Bem; na verdade, o Primeiro Bem, fizera todas as coisas em sabedoria, tal como Sirach afirma: “O Senhor em pessoa a criou, a conheceu e a mediu, e a derramou sobre todas as suas obras” (Eclo. 1.9); logo, é evidente que para se compreender as coisas é necessário a sabedoria, a qual está em certa medida nas próprias coisas tal como o Primeiro Bem as criou.

iv. Por isso, ao se compreender a pressuposição de Boécio, de “como as substâncias são boas naquilo que são, ainda que não sejam bens substanciais”, se consegue compreender o porquê o estudo deste assunto coaduna-se com a sabedoria já que naquilo em que as coisas são boas, se tem nestas o influir do Primeiro Bem, e compreender o modo e a forma deste influir se estabelece como parte do estudo que concerne a sabedoria; além do que, ao estudo da sabedoria ser suficiente, pois, o estudo da sabedoria, “é o mais perfeito, o mais sublime, o mais útil e o mais alegre[1], então, o mesmo sendo efetuado, se terá no mesmo o privilégio deste estudo, que ainda que possa advir de diversos modos e de diversas maneiras, é suficiente em si mesmo; tal como diz o Teólogo: “O estudo da sabedoria tem este privilégio, que ela mesma lhe é mais que suficiente para expor sua atividade[2].

v. Portanto, compreender as Hebdômadas de Boécio, é uma excelente forma para se entender um modo de se adentrar no estudo de como as coisas boas são boas naquilo que são, e no modo como esta compreensão, amalgama de princípios teológicos e filosóficos, está presente no âmbito do estudo da sabedoria, o qual por ser o mais perfeito, o mais sublime, o mais útil e o mais alegre, por isso mesmo, afere aos vários aspectos que compõem o estudo da sabedoria também algo desta perfeição, desta sublimidade, desta utilidade e desta alegria; logo, compreender o que significa a proposição de Boécio, em suas Hebdômadas, se estabelece no escopo do estudo da sabedoria, e por isso, também é açambarcado nas características fundamentais do que constitui o estudo da sabedoria.

vi. Mas, não somente isso; pois, as Hebdômadas de Boécio, analisam propriamente dito o modo como as coisas boas são boas naquilo que são, isto é, analisa a natureza ontológica das coisas  e dos seres enquanto qualificativos primordiais dos entes reais enquanto entes existentes, sob uma ordem, sob uma processão e sob uma ordenação; sob uma ordem, porque fazem parte da ordem cósmica estabelecida pelo Sumo Bem; sob uma processão, porque tem suas existências e essências provenientes do Primeiro Bem; sob uma ordenação porque no modo como existem demonstram que são provenientes do Primeiro Bem e que estão em ordem sob sua prescrição criacional (cf. Eclo. 16.26s; De An. 432b20).

vii. Ora, as coisas são boas naquilo que são justamente porque procedem do Sumo Bem, donde se lhes confere o modo da processão, isto é, a medida de bem, e a ordenação necessária como entes reais na ordem da realidade, isto é, na condução ao devido fim das coisas; logo, nestes dois aspectos se compreende que as coisas boas são boas naquilo que são, pois, como diz Tomás, se afirma que algo é bom porque conduz ao fim (cf. De Ver., q. 21, a. 1, co.). Logo, os entes, tanto são bons, quanto são ordenados ao devido fim, pelo Primeiro Bem. E isto, por si, demonstra a natureza ontológica dos entes.

viii. Deste modo, os entes reais são subsistentes a partir do Primeiro Bem; e isto se prova tanto pela luz interior quanto pela luz superior; pela luz interior, pois, as coisas são boas e permanecem boas porque subsistem a partir do Primeiro Bem, ou Ser Superior, que as move e neste movimento as mantêm boas; pela luz superior, pois, como o diz o Apóstolo: “porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17.28); logo, etc.

Portanto, sendo os entes reais subsistentes no modo ora descrito, cumpre investigar o modo como são subsistentes, ou como Boécio propusera: “como as substâncias são boas naquilo que são, ainda que não sejam bens substanciais”.

 

Lição 1

Analisa-se o conceito de Hebdômadas.

A. Texto de Boécio (De Hebdomadibus, prol.).

Tu me pedes que, por meio de nossas Hebdômadas, mostre mais claramente e disperse a obscuridade daquela questão que concerne o modo como as substâncias são boas naquilo que são, ainda que não sejam bens substanciais.

E dizes que isso deve ser feito assim porque o estilo destes escritos não é conhecido por todos.

 

B. Comentário.

1. Boécio inicia falando sobre as Hebdômadas[3]; e, realmente é um termo singular, não somente pela complexidade que traz imbuído em si, pois que mais de 14 séculos de vários debates ainda não conseguiram aclarar totalmente este termo enigmático; todavia, o termo Hebdômadas, diz respeito não tanto a um conteúdo, mas a um método; ou mais propriamente, uma forma de resolver um problema teorético a partir do emprego de um meio de análise, que pode ser entendido de quatro modos: primeiro, estabelecendo a questão; segundo, apresentando os axiomas principais desta questão; terceiro, resolvendo a questão; quarto, apresentando a solução para as objeções a esta questão.

2. Este modo quadrilátero de se resolver um problema, que as Hebdômadas delineiam, podem ser entendidas como a base primeira do que depois se desenvolverá de maneira mais rigorosa na escolástica medieval, da qual Boécio é o precursor; além disso, as Hebdômadas, precursora da quaestio, singular exercício daqueles que amam e buscam a sabedoria, também demonstra uma maneira de se seguir no estudo e na compreensão sobre determinado objeto de estudo; Boécio, especificamente, estabelece suas Hebdômadas a partir da “questão que concerne o modo como as substâncias são boas naquilo que são, ainda que não sejam bens substanciais”, mas os princípios estruturais que ele delineia são fundamentais e aplicáveis a qualquer objeto de estudo.

3. E o termo Hebdômadas tem uma estrutura não somente metodológica, mas etimológica, que a ajuda a compreender a razão da proposição acima descrita; o que, além de designar as Hebdômadas como método da busca pelo saber, também designa as Hebdômadas como modo de se alcançar a sabedoria, porque é imbuída nos princípios sapenciais; e sobre isso três aspectos se discutem[4]: primeiro, porque a sabedoria exige esmero e dedicação; segundo, porque na sabedoria se encontra deleite; terceiro, porque através da sabedoria o ser humano adquire o conhecimento da verdade.

4. Assim sendo, pode-se afirmar que as Hebdômadas são empregadas em sentido duplo: primeiro, num sentido alegórico; segundo, num sentido filosófico.

5. Primeiro, num sentido alegórico; o sentido alegórico, neste quesito, pode ser definido a partir de se tomar as Hebdômadas como se fossem servidas na mesa do banquete da sabedoria; em meio a enormidades de iguarias e deleites do banquete da sabedoria, se tem as Hebdômadas, das quais se pode afirmar que são as concepções que o texto sapencial traz imbuídos em si: “ocupa-te das tuas concepções”; e as Hebdômadas estão imbuídas entre as sete colunas da sabedoria (cf. Pv 9.1), pois, na verdade, compreendem algo do que concerne as setes colunas da sabedoria, isto é, do que concerne a sabedoria perfeita; por isso, também o termo Hebdômadas são tidos como semanas e são oriundos da designação de setes semanas do texto sagrado da Festa das Trombetas (cf. Lv 23.23-25)[5].

E, do mesmo como como se tem um significado teológico-alegórico na Festa das Trombetas[6], assim também se tem um significado alegórico na descrição boeciana das Hebdômadas; e este significado alegórico é o que aponta para a excelência das Hebdômadas diante do convite para o banquete da sabedoria.

6. Segundo, num sentido filosófico; o sentido filosófico, neste quesito, pode ser definido como a descrição filosófica do que fora afirmado sobre as Hebdômadas no sentido alegórico; na verdade, o sentido filosófico das Hebdômadas está, guardadas as devidas proporções, como a maiêutica nos diálogos platônicos; embora sejam métodos distintos, o propósito se coaduna; pois, as Hebdômadas buscam chegar ao cerne da questão, embora com brevidade; no entanto, não com as obscuridades do não-conhecimento, ou os erros dos sofismas, mas com a “obscuridade” da sapiência que atinge seu grau de engenhosidade na simplicidade; logo, as Hebdômadas, no sentido filosófico pleno, atingem sua excelência e vigor, justamente porque versam sobre assuntos que tem em si a luz do conhecimento interior, a luz do saber filosófico, pois, como diz Boécio, “o estilo destes escritos não é conhecido por todos”.

7. Com isso, se compreende o que se quer dizer propriamente com o termo Hebdômadas; portanto, o termo traz imbuído tanto um significado sapencial, já que é um modo de se buscar a sabedoria através da solução de problemas teoréticos, bem como é um modo de se compreender a filosofia e de desenvolver o saber filosófico; tanto o é, que Boécio afirma: “Tu me pedes que, por meio de nossas Hebdômadas, mostre mais claramente e disperse a obscuridade...”, no que demonstra que a prática das Hebdômadas era um costume, para “mostrar mais claramente”, isto é, proporcionar um entendimento mais claro, e para “dispersar a obscuridade”, isto é, para tornar o assunto mais simples e sem as obscuridades filosóficas; logo, as Hebdômadas são um excelente meio para se evocar e solucionar um problema teorético, e isto de maneira mais fácil e simples, pelo menos, na simples acepção do entendimento do problema teorético analisado e de sua solução.

8. Deste modo, o conceito de Hebdômadas apresenta um método singular para o desenvolvimento do conhecimento, que proporciona os meios para um frutuoso estudo sobre a sabedoria; Boécio apresenta suas Hebdômadas - pelo menos a que se chegou escrita, já que a frase inicial de Boécio indica que houveram outras Hebdômadas -, na busca pelo conhecimento de como as coisas são boas naquilo que são, e ao mesmo tempo, forneceu instrumentos adequados para se desenvolver o saber; portanto, as Hebdômadas servem tanto para o propósito de Boécio em explicar o assunto que se propõem, quanto serve de método para os estudiosos posteriores, que desenvolverão este método e elevá-lo-ão, ao ponto de, séculos depois, se chegar ao rigor teorético da questão (quaestio).

9. Certamente, no status quaestiones do saber hodierno, dificilmente se conseguirá de início subir ao topo novamente e evocar o método da quaestio (salvo um ou outro estudioso), mas, de maneira contundente, se pode evocar o método das Hebdômadas, como uma forma de novamente abalizar o saber e resolver as obscuridades sobre determinado tema, mas principalmente para se solucionar as obscuridades que rondam o saber e a busca pelo saber.

10. Pois, Boécio, demonstrara sua contemplação da sabedoria, a partir de suas Hebdômadas, ou, a partir de suas declarações sobre a sabedoria; Hebdômadas também pode ser traduzido do grego como declaração (este é o sentido empregado por Tomás de Aquino); as declarações de Boécio sobre o saber, ou mais propriamente, sobre as coisas enquanto são boas, forneceu um instrumento à sabedoria filosófica; as declarações de Boécio, por se formularem de acordo com a sabedoria filosófica, são chamadas de Hebdômadas, porque versam sobre as concepções; donde, Tomás de Aquino as evocar inicialmente a partir do conselho do texto sapencial: “sê o primeiro a correr para casa, e ocupa-te de tuas concepções. Invoca-as e deleita-te nelas” (Eclo. 32.15-16); as concepções, ou Hebdômadas, são as concepções da sabedoria, que ao serem evocadas, pelo simples fato de participarem em algo da sabedoria, trazem também algo do deleite e do prazer da sabedoria; e isso demonstra a excelência da sabedoria, a respeito do que afirma o Pregador: “a excelência da sabedoria é que ela dá vida ao seu possuidor” (Ec 7.12b).

11. Assim sendo, através das declarações de Boécio, de suas Hebdômadas, se discerne entre o que são concepções e o que são concepções comuns; a primeira, recebe o nome de Hebdômadas; a segunda, recebe o nome de entimemas. Sobre isso, Gilbertus Porretanus afirma: “Porque a inteligência superior percebe essas coisas, elas são chamadas de Hebdômadas, isto é, concepções em virtude de sua excelência: elas são, é claro, muito diferentes daquelas concepções que são chamadas de entimemas[7]; logo, a expressão de Porretanus demonstra a diferença entre a simples concepção e a concepção simples, ou, respectivamente, entre a concepção comum e a concepção; e a inteligência superior percebe as coisas concernentes as Hebdômadas, pois, somente a inteligência superior se encontra aberta aos preceitos da sabedoria. E, nisto também se encontra a diferença entre o verdadeiro saber e o saber aparente, ou, em outros termos, entre a busca e o amor pelo saber (filosofia), e o amor pela opinião (filodoxia).

12. A pressuposição de Porretanus, da diferença entre Hebdômadas e entimemas, é assaz significativa; pois, segundo o Filósofo, os entimemas são um silogismo que baseia-se em premissas ocultas; e para o Filósofo existem dois tipos de entimemas: os demonstrativos e os refutativos; os demonstrativos, de algo que é ou não é, e os refutativos, as conclusões que o adversário não aceita (cf. Ret. 1396b25-29); os entimemas, podem ser úteis em questões gerais, nas generalidades, que só são válidas se não se perderem em verborreias; no entanto, os entimemas não são a estrutura para se resolver uma questão de acordo com a sabedoria; donde, a diferença entre um simples entimema e as Hebdômadas; o entimema até pode ser utilizado como ponte de partida da solução de um problema, mas que não se constitui-se de um modo apropriado para a análise de um problema no âmbito do estudo da sabedoria; por isso, o modo escolhido por Boécio são as Hebdômadas, que podem abarcar os entimemas, mas não se esvaem de significado filosófico tal como um entimema, que ao ter em si algo da retórica sempre decai em verborreias através dos sofismas da não-sabedoria.

13. Portanto, os Hebdômadas não são um simples modo de analisar e resolver um problema filosófico; na verdade, constituem-se um modo excelente, realmente filosófico, de se analisar um problema, que se estabelece muito além dos sofismas, as mais das vezes, impregnado com entimemas; pois, as Hebdômadas são açambarcadas pelos princípios da sabedoria, a qual é a luz interior, a do conhecimento filosófico, a qual só é superada pela luz superior, a do conhecimento das coisas reveladas[8].

Logo, as Hebdômadas são expressão do conhecimento filosófico, da plena luz interior, em seu exercício de “deleitar-se” no banquete da sabedoria (cf. Pv 9.1); somente quem possui esta luz interior, é que pode adentrar a este banquete, porque somente com esta luz é que se entende e compreende o convite a este banquete; e Boécio muito bem o sabe, e por isso, estabelece, através de suas Hebdômadas, os exercícios do verdadeiro jogo da filosofia[9]. 

14. Aliás, também parece ser esta a razão do porque um certo diácono João pedira a Boécio para lhe responder a questão sobre como as coisas boas são boas naquilo que são através das Hebdômadas e não através de outro modo, o que se confirma na expressão do próprio Boécio no prólogo: “E dizes que isso deve ser feito assim porque o estilo destes escritos não é conhecido por todos”. “E dizes”, no caso quem pedira esta solução a Boécio, o diácono João; “que isso deve ser feito assim”, isto é, através das Hebdômadas; “porque o estilo destes escritos não é conhecido por todos”, isto é, somente por aqueles que buscam a sabedoria e não por aqueles que não buscam e não se interessam pelo verdadeiro saber. Isto, é o que significa basicamente o conceito de Hebdômadas evocado e utilizado magistralmente por Boécio na análise de como as coisas são boas naquilo que são.

 

Lição 2

Investiga-se a natureza e o propósito das Hebdômadas.

A. Texto de Boécio (De Hebdomadibus, prol.).

Tu me pedes que, por meio de nossas Hebdômadas, mostre mais claramente e disperse a obscuridade daquela questão que concerne o modo como as substâncias são boas naquilo que são, ainda que não sejam bens substanciais.

E dizes que isso deve ser feito assim porque o estilo destes escritos não é conhecido por todos. Inclusive eu mesmo sou testemunha do modo tão vivaz que tens abraçado estes [temas] anteriormente.

De fato, eu mesmo pondero as Hebdômadas e conservo essas considerações na minha memória em vez de compartilhá-las com qualquer um daqueles que o desenfreio e a insolência não permitem que nada seja enlaçado sem jogo e risadas.

Portanto, não sejas desfavorável às obscuridades da brevidade. Pois sendo misteriosas, têm a vantagem de serem fiéis guardiãs [de um segredo], já que elas dialogam somente com aqueles que são dignos. Assim, como se costuma fazer na matemática e demais disciplinas, propus termos e regras dos quais demonstrarei todas as coisas que se derivam.

 

B. Comentário.

15. Boécio propugna suas Hebdômadas em um escrito; e subdivide este escrito de dois modos[10]: primeiro, em prólogo; segundo, em tratado. No prólogo trabalha dois aspectos gerais; já o tratado se subdivide em cinco partes. De início, compete analisar o prólogo; depois, o tratado e suas cinco partes. Em relação ao prólogo, o apresenta em dois aspectos gerais, os quais açambarcam a natureza e o propósito das Hebdômadas; no primeiro, descreve a razão e a necessidade das Hebdômadas; no segundo, o objetivo das Hebdômadas.

16. Primeiro, a natureza das Hebdômadas; o primeiro aspecto que Boécio apresenta no prólogo é sobre a natureza das Hebdômadas; pois, o vocábulo Hebdômadas não somente representa um conceito que serve de método para o estudo da sabedoria; na verdade, as Hebdômadas, em si mesmas, são parte do que concerne ao estudo da sabedoria, bem como de um modo de se adentrar no estudo da sabedoria; por isso, o diácono João, ao pedir a Boécio para que lhe sanasse certa dúvida, o fez declaradamente com o propósito de que Boécio o fizesse através das Hebdômadas: “Tu me pedes que, por meio de nossas Hebdômadas...”.

17. E, a razão da escolha das Hebdômadas, é pela própria natureza das Hebdômadas; pois, Boécio diz: “por meio de nossas Hebdômadas, mostre mais claramente e disperse a obscuridade daquela questão...”; o pedido do diácono João a Boécio, para se utilizar das Hebdômadas, é com um propósito duplo, a saber: primeiro, mostrar mais claramente, ou mostrar de maneira clarividente; segundo, dispersar a obscuridade de determinada questão.

No primeiro, se demonstra e evidencia a questão e a resolve de maneira direta, simples e profunda; no segundo, se dispersa as dificuldades mais comuns da questão analisada, e assim, se abaliza o entendimento e a compreensão sobre a solução desta questão. Portanto, a natureza das Hebdômadas, tem por função mostrar mais claramente e dispersar as obscuridades no que concerne a determinada questão posta à análise.

18. E, tendo compreendido isso, algo aliás, proposto na pergunta do diácono João, e que Boécio descreve logo no início do prólogo, se prossegue para se demonstrar o conteúdo destas Hebdômadas: “que concerne o modo como as substâncias são boas naquilo que são, ainda que não sejam bens substanciais”; e justamente esta é uma das questões filosóficas das mais importantes; porque versa sobre o ser, sobre a essência, sobre a subsistência e sobre a participação; temas fundamentais da filosofia e da reflexão ontológica; mais propriamente, o que Boécio soluciona com suas Hebdômadas, é o que concerne ao modo como as substâncias são boas (existência) naquilo que são (essência), ainda que não sejam bens substanciais (participação); pois, se as coisas são boas, mas não são bens substanciais, então, necessariamente, estas coisas participam do Bem Substancial; já na proposição da questão, se tem a solução da dificuldade básica que inere a própria questão.

19. Depois, Boécio diz: “E dizes que isso deve ser feito assim porque o estilo destes escritos não é conhecido por todos”; evidentemente, mesmo que o objetivo das Hebdômadas seja o de mostrar mais claramente e o de dispersar as obscuridades, pelo próprio assunto e por ser concernente ao estudo da sabedoria, nem todos conseguirão compreender este assunto; por isso, o próprio diácono João pede que seja feito por este método porque não é conhecido de todos, isto é, não é conhecido daqueles que não buscam o verdadeiro saber; é acessível a todos, mas não é conhecido por todos, pois, nem todos buscam a sabedoria; mas, o próprio diácono João ao fazer este pedido a Boécio, e ao descrevê-lo deste modo por essa razão, também se demonstrou exercitado nos assuntos que concernem a sabedoria, como o próprio Boécio declara: “Inclusive eu mesmo sou testemunha do modo tão vivaz que tens abraçado estes [temas] anteriormente”; ora, a proposição é evidente: somente aqueles que estão exercitados na sabedoria é que conseguem compreender as coisas concernentes a sabedoria.

20. E o próprio pedido do diácono João, se coaduna com as pressuposições do mestre que está sendo indagado; Boécio afirma o que as Hebdômadas eram para ele: “De fato, eu mesmo pondero as Hebdômadas e conservo essas considerações na minha memória”; e o faz desta maneira para evitar que aqueles que não buscam o saber não possam entendê-las adequadamente; por isso, diz: “em vez de compartilhá-las com qualquer um daqueles que o desenfreio e a insolência não permitem que nada seja enlaçado sem jogo e risadas”; aqueles que com “desenfreio” e “insolência” se colocam diante da sabedoria, acabam por decair diante destas questões, pois, as obscuridades que provêm do desenfreio e da insolência tornam os assuntos concernentes a sabedoria tão obscuros que parecem impossíveis de serem entendidos; pois, o desenfreio (cf. Sl 32.9), o espírito esvoaçado na reflexão teorética, e a insolência (cf. Pv 21.24), o desrespeito aos preceitos e aos modos de se buscar a sabedoria, formam uma nuvem opaca sobre a inteligência, velando à esta as benesses e deleites da sabedoria. Por isso, quando diz: “em vez de compartilhá-las com qualquer um...”, diz respeito àqueles que “não eram influenciados pelo mesmo desejo que ele tinha para com elas[11].

21. E Boécio procede desta maneira, porque quer tratar deste assunto de modo claro e de modo obscuro; é a dialética inerente as Hebdômadas; de modo claro, a fim de que, através das declarações, os verdadeiros amantes da sabedoria possam entendê-la, donde afirmar no início: “mostre mais claramente e disperse a obscuridade”; mas também de modo obscuro, de modo àqueles que não são influenciados pelo mesmo desejo da busca da sabedoria, não as possam compreender, donde Boécio afirmar: “De fato, eu mesmo pondero as Hebdômadas e conservo essas considerações na minha memória em vez de compartilhá-las com qualquer um daqueles que o desenfreio e a insolência não permitem que nada seja enlaçado sem jogo e risadas”; o desenfreio e a insolência, tomados por Tomás de Aquino, respectivamente, como luxúria e superficialidade, castificam a inteligência e a percepção nos enlaces do jogo e das risadas; não do verdadeiro jogo da filosofia - tomado em sentido alegórico como o banquete da sabedoria -, mas os enlaces dos jogos falsos, ou em sentido alegórico, os jogos viciantes; mas também aqueles que são desenfreados e insolentes, dão risadas, e como se sabe, riso e sorriso são diferentes; o primeiro, é expressão de vício, de luxúria e de superficialidade; o segundo, de verdadeira alegria e de virtude.

Por isso, aqueles que amam os falsos jogos do falso saber e amam as risadas que destes provêm, são na verdade, desenfreados e luxuriosos, insolentes e superficiais. Pois, ao invés de se deixarem ensinar pela sabedoria, buscam os prazeres passageiros e escarnecem do saber, formando uma roda de escarnecedores, que na descrição do Pregador possuem as seguintes características: amam a necedade, desejam o escárnio e aborrecem o conhecimento, e por isso, são chamados, respectivamente, de néscios, de escarnecedores e de loucos (cf. Pv 1.22). E, certamente, as risadas daqueles que são desenfreados e insolentes, são risadas que acutilam com as setas da luxúria e que castificam com o cimento da superficialidade.

22. Depois, Boécio diz: “Portanto, não sejas desfavorável às obscuridades da brevidade”; diante destas descrições dos desenfreados e insolentes, a única maneira de se privar dos enlaces malditos que destes provêm é por meio da brevidade; as almas esvoaçadas e luxuriosas que dizem tudo preferir de maneira mais prática, possuem ódio e rancor contra a brevidade, isto é, contra o verdadeiro saber expresso em obscuridade; enquanto que para os amantes da sabedoria, a brevidade contém muito saber e muito conhecimento, para os desenfreados e insolentes, a brevidade possui obscuridade desnecessária; por isso, Boécio pede ao diácono João que este não seja desfavorável as obscuridades, isto é, que não rejeite as dificuldades da brevidade, mas que antes, as aceite de bom grado, pois, somente assim, as Hebdômadas, isto é, aquilo que expressam as Hebdômadas, são guardadas como tesouro dos salteadores do saber e do conhecimento, a saber, os desenfreados e insolentes.

23. Pois, a brevidade possui uma inestimável utilidade. Boécio afirma: “Pois sendo misteriosas, têm a vantagem de serem fiéis guardiãs [de um segredo], já que elas dialogam somente com aqueles que são dignos”; pois, as brevidades, sendo misteriosas, por si mesmas, encerram o falso ímpeto dos desenfreados e insolentes com relação ao saber e ao conhecimento; por isso, as brevidades, “têm a vantagem de serem fiéis guardiãs”, isto é, de servirem de guardiãs do templo da sabedoria, não permitindo que desenfreados e insolentes adentrem aos mistérios sapenciais e irrompam contra o verdadeiro saber; como diz Tomás de Aquino: “a obscuridade, ao guardar fielmente um segredo, traz isto de utilidade: ‘que fala somente com aqueles que são dignos’, a saber, com os inteligentes e dedicados, que são dignos de serem admitidos aos segredos da sabedoria[12].

Pois, somente aqueles que são dignos de serem admitidos aos segredos da sabedoria, é que compreendem o que concerne as Hebdômadas; e para isso, tanto o diácono João em seu pedido, quanto o próprio Boécio em sua resposta, demonstram a razão das Hebdômadas para a análise do tema proposto, quanto descrevem o modo como se seguirá nestas Hebdômadas, isto é, com as obscuridades das brevidades; pois, para aqueles que são dignos, estas servem de instrumento para crescer ainda mais em saber e conhecimento, mas para os desenfreados e insolentes são obscuridades instransponíveis, porque nestes não há verdade e sinceridade para buscar aprender na mesa do banquete da sabedoria.

24. E, depois de haver demonstrado a natureza e o propósito das Hebdômadas, isto é, a razão e a necessidade, bem como o objetivo das Hebdômadas, Boécio descreve o modo inicial como vai proceder em sua análise; ou seja, Boécio apresenta a ordem em que vai proceder na análise, ou mais propriamente, as duas partes iniciais que compõem o tratado (caps. I e II); Boécio afirma: “Assim, como se costuma fazer na matemática e demais disciplinas, propus termos e regras dos quais demonstrarei todas as coisas que se derivam”; Boécio descreve que o método pelo qual vai seguir em sua análise é o mesmo da matemática e das demais disciplinas, a saber, o da demonstração; Boécio estabelece a demonstração como base de sua análise, e isto por dois motivos: primeiro, porque a demonstração pressupõem o saber e o conhecimento comuns a toda demonstração; segundo, porque a partir da demonstração os princípios evidentes ficam mais claros e se tornam mais perceptíveis.

Ora, no primeiro, se estabelece que para compreender algo de uma demonstração são necessários conhecimentos prévios necessários que se antepõem a toda instrução intelectual (cf. Anal. Post. 71a1); e em relação ao segundo, se demonstra, que ao se compreender as proposições referidas na demonstração, se pode adentrar ao estudo da questão sem nenhuma dificuldade da ordem de demonstração e da ordem do conhecimento demonstrativo.

25. Portanto, Boécio propõem termos e regras; e esta é a base axiomática de qualquer demonstração, tal como por exemplo, se encontra em “Os Elementos” de Euclides; e a invectiva de Boécio se estabelece tendo em vista a chave hermenêutica principal de sua invectiva no que concerne a analisar as coisas boas naquilo que são, a saber, “dos quais demonstrarei todas as coisas que se derivam”, isto é, o modo como as coisas são derivadas duma fonte de bem, da qual emanam como bens, embora não sejam bens substanciais, isto é, embora não sejam os primeiros princípios; a base e a forma da análise de Boécio tem o conceito de participação como eixo analítico principal, e o Primeiro Bem, como proposição apodítica de tudo quanto diz respeito a participação, ao bem, a existência e a essência; donde, ser corretamente aferida a proposição de que neste tratado Boécio apresenta o binômio ser-participação, ou a partir da leitura albertiana, de essência-participação[13].

26. E a demonstração de Boécio, do modo como “todas as coisas que se derivam”, é imbuída na ideia de essência-participação; as coisas essencialmente boas participam da bondade, porque em suas essências, tem algo de uma essência donde procedem, tanto como existentes, quanto como boas; isto é, a existência e a essência das coisas, provêm de uma fonte, tanto que lhes abaliza a existência quanto que lhes confere a essência; esta fonte, como Boécio mesmo demonstrará, é o Primeiro Bem; logo, todas as coisas derivam e se derivam a partir do Primeiro Bem; e os termos e regras que Boécio demonstra (nos caps. I e II), são por si mesmas necessárias para aclarar este fato e são suficientes para adentrar ao estudo da solução do problema que concerne ao “modo como as substâncias são boas naquilo que são, ainda que não sejam bens substanciais”.

27. Mas, além destes aspectos mencionados e analisados, o prólogo de Boécio também apresenta vários insights e perspectivas sobre o que é e no que concerne o estudo da sabedoria; e a partir da descrição de Boécio se pode elencar estes princípios sobre o estudo da sabedoria de três modos: primeiro, o que é o estudo da sabedoria; segundo, no que concerne o estudo da sabedoria; terceiro, das atitudes necessárias daqueles que se colocam no estudo da sabedoria.

Estes três aspectos, estão delineados de forma embrionária no prólogo de Boécio, pois, tanto a atitude do diácono João em pedir a solução de uma questão através das Hebdômadas, quanto a atitude de Boécio em responder este pedido, demonstram que a sabedoria possui uma natureza, um propósito e um modo, os quais, estão interligados e são indissolúveis. Por isso, os insolentes e luxuriosos não conseguem compreender o que concerne a sabedoria. Mas, vejamos estes três aspectos elencados.

28. Primeiro, o que é o estudo da sabedoria; o estudo da sabedoria é o estudo que não é feito por todos, embora, a sabedoria clame nas praças buscando a quem possa ensinar (cf. Pv 1.20); pois, a sabedoria não é conhecida de todos, então, as coisas que concernem ao estudo da sabedoria também não serão conhecidos de todos e nem entendíveis por todos; os mistérios da sabedoria só são entendidos a medida da dedicação a este estudo, distante dos desenfreados e insolentes; portanto, o estudo da sabedoria é uma coisa excelente, sendo em si mesmo suficiente, mas que não é conhecidos de todos, e não é entendido por aqueles que por palavras e ações declaradamente são contra a sabedoria; por isso, o estilo dos escritos e estudos sobre a sabedoria não são conhecidos por todos. Aliás, conhece-se quem rejeita a sabedoria pela não-compreensão destes dos assuntos concernentes a sabedoria; e, pelo contrário, conhece-se quem ama e é amigo da sabedoria pela compreensão destes dos assuntos concernentes a sabedoria.

29. Segundo, no que concerne o estudo da sabedoria; a sabedoria consiste em demonstrar mais claramente e dispersar as obscuridades e dificuldades de determinada questão; e justamente nisso está a utilidade sempre necessária da sabedoria, a saber, o dispersar questões obscuras, que sendo resolvidas, contribuem não só com o desenvolvimento do saber, mas com o próprio desenvolvimento do indivíduo que busca a sabedoria; o caminho do estudo da sabedoria é árduo, mas sempre benéfico com aqueles que enfrentam suas agruras (cf. Sl 126.5-6); pois, o estudo da sabedoria, também consiste em ponderar e conservar na memória; ponderar, porque sem ponderar não há a compreensão do assunto estudado; conservar na memória, porque sem memória não há aprendizado e saber. E só quem ama a sabedoria é que pondera e guarda na memória seus frutos palatáveis e agradáveis. 

E Boécio, as pondera e as conserva na memória, porque o ato de ponderar e o ato de conservar na memória são amalgamados, e impedem que o saber e a sabedoria sejam utilizados por pessoas insolentes, bem como demonstram que realmente houvera o estudo da sabedoria; a meditação e a memória são elementos imprescindíveis no estudo da sabedoria, pois, tanto ensinam a quem aprende (cf. Pv 2.10), quanto disciplina estes diante daqueles que não são dignos de apreenderem da verdade e não são dignos de serem ensinados na sabedoria (cf. Pv 2.12-19).

30. Terceiro, das atitudes necessárias daqueles que se colocam no estudo da sabedoria; e sobre isso, cinco aspectos são necessários: primeiro, a vivacidade na busca pela sabedoria, como Boécio diz: “Inclusive eu mesmo sou testemunha do modo tão vivaz que tens abraçado estes [temas] anteriormente”; segundo, os vícios a serem evitados no estudo da sabedoria, como Boécio diz: “De fato, eu mesmo pondero as Hebdômadas e conservo essas considerações na minha memória em vez de compartilhá-las com qualquer um daqueles que o desenfreio e a insolência não permitem que nada seja enlaçado sem jogo e risadas”; terceiro, o modo de se enfrentar as dificuldades que advêm do estudo da sabedoria, como Boécio diz: “Portanto, não sejas desfavorável às obscuridades da brevidade”; quarto, que todas as dificuldades do estudo da sabedoria são recompensadas pela própria sabedoria, como Boécio diz: “Pois sendo misteriosas, têm a vantagem de serem fiéis guardiãs [de um segredo], já que elas dialogam somente com aqueles que são dignos”; quinto, o estudo da sabedoria contribui nos estudos das outras disciplinas, como Boécio diz: “Assim, como se costuma fazer na matemática e demais disciplinas, propus termos e regras dos quais demonstrarei todas as coisas que se derivam”.

E, este estudo, como dissera Tomás de Aquino, se enche de utilidade, porque o estudo da sabedoria é o sustentáculo de todas as artes; tal como Cícero afirmara: “o interesse e o conhecimento de todas as artes, que se referem ao modo correto de viver, são mantidos pela dedicação à sabedoria, que se denomina filosofia[14]; logo, etc.

31. Deste modo, no prólogo, Boécio fizera três coisas: primeiro, descrevera seu propósito e objetivo em suas Hebdômadas; segundo, apresentara os preceitos e ditames que o guiarão em suas Hebdômadas; terceiro, apresentara os preceitos fundamentais do que constitui o estudo da sabedoria. E, isto, tanto diz respeito as próprias Hebdômadas, quanto a outros aspectos do saber, que por serem feitos a partir e/ou em consonância com o estudo da sabedoria, também são permeados pelos princípios imorredouros que guiam Boécio em suas Hebdômadas; extrair o significado da solução do problema que concerne ao modo como as coisas boas são boas naquilo que são, mas também apresentar os preceitos do verdadeiro saber e da busca do verdadeiro saber, eis a natureza e o propósito de Boécio em suas Hebdômadas.

 

Lição 3

Elucubra-se sobre a concepção comum da mente.

A. Texto de Boécio (De Hebdomadibus, cap. I).

Uma concepção comum da mente é uma enunciação que, tendo ouvido, qualquer um aprova.

Dessas existem dois tipos: de fato, uma delas é tão comum que é própria de todos os homens como, por exemplo, quando propões isto: ‘se de duas coisas iguais diminuis porções iguais, o que sobrará serão coisas iguais’. Ninguém que entenda o negará. Porém há outras que pertencem somente aos instruídos, ainda que procedam de tais concepções comuns da mente como é esta: ‘aquelas coisas que são incorpóreas não estão em um lugar’, e outras que os instruídos comprovam, mas não a plebe.

 

B. Comentário.

32. Após descrever no prólogo a natureza e o propósito das Hebdômadas, Boécio prossegue para o tratado; e inicia apresentando sua primeira parte (cap. I), onde demonstra a primeira proposição que delineara no prólogo sobre o objetivo de suas Hebdômadas; e Boécio enuncia dois aspectos: primeiro, apresenta a pressuposição dos princípios auto-evidentes da demonstração; segundo, apresenta os dois tipos destes princípios.

No primeiro, Boécio prossegue em sua afirmação no prólogo e prossegue apresentando os termos, pois, “efetivamente, em tais princípios encontra-se a resolução de todas as demonstrações[15]; no segundo, apresenta o modo como estes termos são predicados, a saber, de dois modos, formando dois tipos de termos.

33. Depois Boécio diz: “Uma concepção comum da mente é uma enunciação que, tendo ouvido, qualquer um aprova”; e, nesta definição Boécio faz três coisas: primeiro, designa a concepção comum da mente; segundo, afirma o que é uma concepção comum da mente; terceiro, demonstra a natureza da concepção comum da mente.

34. No primeiro, faz-se duas coisas: uma é a designação de “concepção”, outra é a designação de “comum”; a designação de concepção (conceptio), tem dois sentidos: formal e alegórico; o formal, é o sentido propriamente dito de conceito; o alegórico, é o conceito entendido como uma espécie de “fórmula” para algo ou que expressa algo; por isso, se toma conceito como um termo que expressa o sentido de algo, seja tal como uma fórmula matemática, ou então como uma definição precisa a partir da razão do nome. Já a designação de “comum”, qualifica a forma do conceito; é um conceito comum, isto é, é um conceito que expressa algo comum tal como numa fórmula que todos conhecem e reconhecem.

35. No segundo, apresenta propriamente o que quer dizer com concepção comum da mente, a saber, que é uma enunciação; uma concepção comum da mente é mais do que apenas um conceito, é uma enunciação; e toda enunciação possui sujeito e predicado, ou pelo menos, pressupõem sujeito e predicado, mesmo uma enunciação simples; por isso, a concepção comum da mente, é uma enunciação a medida que é a razão de algo, e que demonstra a essência deste algo; portanto, a concepção comum da mente é sempre uma enunciação, a qual, sempre requer a presença de um verbo ou de uma flexão verbal (cf. Da Inter. 17a9); mas, às vezes, a concepção comum da mente só vem expressa no conceito, mas um conceito que reclama um verbo, ou então sendo o próprio um verbo, reclama uma flexão verbal.

36. No terceiro, demonstra a natureza da concepção comum da mente, a saber, “que é uma enunciação que, tendo ouvido, qualquer um aprova”; a concepção comum da mente é uma enunciação que ao se ouvi-la qualquer um a aprova; pois, é auto-evidente, e, por isso, apodítica; e uma concepção comum da mente só é ouvida como tal através de um enunciado, demonstrado que o enunciado é o meio pelo qual a concepção comum da mente é expressa e é mais facilmente entendida; logo, o enunciado tendo sido proferido ou anunciado, se compreende que a concepção comum da mente é inegável, e por isso, qualquer um que a ouve, a aprova.

37. Depois, Boécio prossegue para elencar os dois tipos de concepção comum da mente, ao afirmar: “Dessas existem dois tipos”; e, sobre isso, duas coisas são evidentes: primeiro, que as concepções comuns da mente são predicáveis; segundo, que ao serem predicáveis, são demonstráveis a partir do sujeito e/ou do predicado.

38. Em relação ao primeiro, as concepções comuns da mente são predicáveis, porque são comuns, e sendo comuns, ou são gerais ou são específicas; o primeiro tipo são as gerais, o segundo tipo as específicas; Boécio apresenta o primeiro tipo, as concepções comuns gerais e entendíveis de maneira geral por todos os homens, instruídos e não instruídos; e, estas concepções são predicáveis, porque são comuns e todos as reconhecem; mas, são predicáveis, porque são parte do primeiro saber que o ser humano desenvolve a partir de seu próprio desenvolvimento e do contato com a realidade. Na verdade, são estas concepções as que primeiro são predicadas pelo intelecto na ordem da predicação das coisas, e que as mais das vezes, ao não serem expressas num enunciado, defronta-se com uma das categorias, como o Filósofo demonstra no livro dos Predicamentos.

39. E, em relação ao segundo, as concepções comuns, ao serem predicáveis, são demonstráveis a partir do sujeito e/ou do predicado; e, o são, porque tendo sido predicadas, são aferidas a partir de um sujeito ou em um sujeito; se aferidas a partir de um sujeito, podem estar ou não no sujeito, embora não sejam afirmadas de um sujeito conhecido (isto é, no sujeito num enunciado); e, se aferidas em um sujeito, são designadas e demonstradas na razão do nome pelo predicado deste sujeito; por isso, as concepções comuns são as que primeiro são expressas em linguagem e as que de início são parte do ato predicativo do ser humano em relação ao saber e ao desenvolvimento da vida na realidade.

Pois, o saber se desenvolve primeiro a partir das coisas mais evidentes, ou mais comuns, para depois se ir as coisas menos evidentes ou mais difíceis de serem compreendidas.

40. Depois, Boécio avança e apresenta o primeiro tipo de concepção comum da mente, ao asseverar: “de fato, uma delas é tão comum que é própria de todos os homens como, por exemplo, quando propões isto: ‘e de duas coisas iguais diminuis porções iguais, o que sobrará serão coisas iguais’. Ninguém que entenda o negará”; no primeiro tipo de concepção comum, Boécio apresenta duas características gerais: primeiro, que é própria de todos os homens; segundo, que não podem ser negadas; a primeira característica designa que a concepção comum é própria de todos os homens, isto é, está presente em todos os homens de maneira indistinta, o que também demonstra a universalidade da concepção comum da mente que é própria de todos os homens; a segunda característica, é que esta concepção comum da mente ninguém a pode negar.

41. E, para provar isso, Boécio elenca um exemplo que demonstra a primeira característica e que por isso mesmo comprova a segunda característica; Boécio afirma: “por exemplo, quando propões isto: ‘e de duas coisas iguais diminuis porções iguais, o que sobrará serão coisas iguais’”; ora, o exemplo fornecido por Boécio é algo auto-evidente, pois, seria igual afirmar: dois vezes dois (2x2) são quatro (4); ou então, se afirmar que o cruzamento entre um galo e uma galinha vai nascer um pintinho; ou qualquer outra verdade auto-evidente por natureza e por demonstração; por isso, Boécio afirma: “ninguém que entende o negará”, isto é, qualquer um que possa entender basicamente esta demonstração auto-evidente não a pode negar.

A concepção comum da mente, em seu primeiro tipo, possui universalidade, isto é, está presente em todos os homens, e é apodítica, isto é, não pode ser negada. Logo, se compreende o porquê Boécio diz que na análise que se propõem a fazer, procederá por termos e regras, isto é, tal como na matemática e outras disciplinas, a fim de demonstrar os princípios auto-evidentes e que não podem ser negados.

42. Depois, Boécio prossegue e apresenta o segundo tipo de concepção comum da mente, ao afirmar: “Porém há outras que pertencem somente aos instruídos, ainda que procedam de tais concepções comuns da mente como é esta: ‘aquelas coisas que são incorpóreas, não estão em um lugar’ e outras que os instruídos comprovam, mas não a plebe”; e neste segundo tipo, duas coisas ficam clarividentes: primeiro, que o segundo tipo de concepção comum da mente não é acessível a todos; segundo, que há coisas só entendíveis a partir da instrução intelectual.

43. No primeiro aspecto, a segunda concepção comum da mente, só se torna entendível a partir do entendimento de outros conhecimentos e de outros saberes, pois que, há conhecimentos que só se conhecem a partir de outros conhecimentos; logo, se entende o porquê há outras coisas que pertencem somente aos instruídos, que são as verdades que se estabelecem a partir das verdades mais evidentes, embora não sejam verdades acessíveis somente ao senso comum, pois, estão guardadas como um tesouro, que tal como as pedras preciosas, somente quem escava com esmero as pode encontrar.

44. Além disso, as coisas que só os instruídos conseguem compreender, procedem das concepções comuns (o primeiro tipo de concepção comum da mente); pois, naturalmente, o intelecto opera o conhecimento a partir do que já é conhecido, a fim de conhecer o que é desconhecido; e a mente busca conhecer o que é desconhecido a partir do já conhecido, por aproximações e afirmações (ou, nos termos de Piaget, por assimilação e acomodação); e, segundo Alberto, isto se dá através do conhecimento das coisas incomplexas e das coisas complexas[16], isto é, as coisas que os homens desejam conhecer quando as desconhecem, e que as conhecem a partir das coisas incomplexas e das coisas complexas, a saber, a partir das coisas que não possuem combinação, ou as simples concepções da mente, e as coisas que possuem combinação, ou as concepções que vem ou estão dispostas num enunciado.

45. Assim sendo, a partir do primeiro tipo de concepção comum da mente, se evoca dois pressupostos, os quais são: primeiro, a universalidade da concepção comum se estabelece a partir da realidade, pois o real não pode ser negado por ninguém que o conheça e o perceba (a não ser nos casos da recusa em se aperceber da realidade[17]); segundo, a concepção comum é apodítica, e por isso, preceitual ao conhecimento sensível, pois, todo conhecimento sensível vem imbuído de concepções comuns e é expresso através do primeiro tipo de concepção comum da mente, donde, “são chamadas de concepções comuns da mente e geralmente caem no entendimento de qualquer intelecto. A explicação disto é que o predicado está contido na razão do sujeito[18]. 

46. E, a partir do segundo tipo de concepção comum da mente, se evoca dois pressupostos: primeiro, toda concepção provêm de outra concepção ou de outras concepções, pois, o segundo tipo de concepção comum da mente não é conhecível por todos; segundo, toda concepção tem sua predicação; por isso, o Teólogo fala sobre o modo da predicação das concepções comuns, o qual se estabelece de modo duplo[19]; ora, as concepções comuns, filosoficamente, se estabelecem como as primeiras a serem predicadas; por isso, são parte da primeira das operações do intelecto, a apreensão dos indivisíveis (cf. De An. 430a26); logo, são as primeiras a serem apreendidas na predicação; por isso, são concepções que estão ou de maneira unívoca, ou de maneira equívoca ou de maneira cognominada em relação as coisas predicadas (cf. Cat. 1a1-15); entretanto, existe uma distinção entre a predicação das concepções comuns da mente, e o modo como estas são predicadas no aspecto central da simples apreensão do intelecto.

Pois, a predicação das concepções comuns que primeiro ocorre na predicação, é a parte mais rudimentar da predicação. Logo, são a parte da predicação que se demonstra de maneira auto-evidente, e por isso, conhecidas por todos, e que abaliza a compreensão de outras coisas não tão evidentes, e por isso, conhecidas somente por aqueles que buscam a sabedoria.

47. Ora, o que é concebido de maneira comum, o é porque fora parte do que primeiro é concebido pelo intelecto; as concepções comuns da mente são parte das coisas mais comuns que o intelecto concebe e conhece; ou, dito em outros termos, daquilo que primeiro o intelecto concebe; e, segundo Tomás, a partir da proposição de Avicena, se afirma que “o ente e a essência são o que é concebido primeiro pelo intelecto[20]; logo, aquilo que é concebido de maneira comum pelo intelecto, é ente, conhecido pelo intelecto na apreensão dos indivisíveis como objeto adequador; por isso, Tomás afirma: “aquelas coisas que caem em qualquer intelecto são as mais comuns, a saber: ente, uno e bem[21].

Portanto, o que primeiro o intelecto concebe são as concepções comuns mais gerais, ou as concepções comuns que açambarcam todas as demais, as quais são: ente, uno e bem - os transcendentais. E, estes três aspectos são delineados por Boécio na segunda parte do tratado (cap. II), onde se propõe os axiomas ou regras fundamentais de suas Hebdômadas.

48. Além de descrever estes dois aspectos, e se compreender suas nuances, cada um dos dois tipos de concepção comum da mente possui suas características, as quais, Boécio evoca a partir de exemplos; e os exemplos evocados por Boécio, são em si mesmos suficientes para delinear o escopo fundamental da concepção comum da mente. E sobre isso, e em consonância com os dois tipos de concepção comum da mente, se estabelecem dois aspectos: primeiro, a natureza demonstrativa do primeiro tipo de concepção comum da mente; segundo, a natureza especulativa do segundo tipo de concepção comum da mente.

49. Primeiro, a natureza demonstrativa do primeiro tipo de concepção comum da mente, sobre o qual Boécio afirma: “uma delas é tão comum que é própria de todos os homens como, por exemplo, quando propões isto: ‘se de duas coisas iguais diminuis porções iguais, o que sobrará serão coisas iguais’. Ninguém que entenda o negará”; ora, o primeiro tipo de concepção comum da mente, se estabelece a partir da racionalidade inerente ao ser humano; pois, é própria de todos os homens, isto é, é a mesma a todos os homens, e é entendível facilmente por todos os homens, tal como as verdades mais simples, que Boécio evoca exemplo a partir da proporção matemática.

Logo, existem concepções que são comuns tanto em si mesmas, quanto à compreensão humana, que independem da aceitação ou não, pois, por si, são evidentíssimas; por isso, ninguém que realmente entenda as negará, isto é, somente quem estiver com o entendimento obscurecido as negará.

Deste modo, o primeiro tipo de concepção comum da mente possui uma natureza demonstrativa comum; ou seja, todos que possuem o entendimento a compreenderão; pois, está disponível a todos. E, esta natureza demonstrativa comum, é o que abaliza inclusive o sujeito da lógica, pois, os dois tipos de concepção comum da mente, são açambarcados na lógica já que esta é uma ciência comum.

50. Segundo, a natureza especulativa do segundo tipo de concepção comum da mente, sobre o qual Boécio afirma: “Porém há outras que pertencem somente aos instruídos, ainda que procedam de tais concepções comuns da mente como é esta: ‘aquelas coisas que são incorpóreas, não estão em um lugar’ e outras que os instruídos comprovam, mas não a plebe”; ora, o segundo tipo de concepção comum da mente, se estabelece através do ato de raciocinar; pois, o ser humano, sendo um ser racional, raciocina sobre as coisas existentes, de tal modo que em algumas destas, encontra algumas coisas que são de difícil compreensão e acesso, pois, são entendidas e compreendidas somente com aqueles que possuem instrução nas coisas referentes ao conhecimento.

Logo, do mesmo modo como existem verdades que são por si mesmas evidentes, também existem verdades que não são; as que são mais evidentes, são comuns; as que são menos evidentes, são as menos comuns, e, por isso, são de natureza mais especulativa; e requerem uma reflexão mais apurada e que são embasadas muitas vezes pela procedência das concepções comuns da mente; mas, como versam sobre assuntos mais difíceis, requerem certa instrução intelectual para a compreensão.

51. Deste modo, o segundo tipo de concepção comum da mente, pertence somente aos instruídos, tal como o exemplo evocado por Boécio demonstra, das coisas que são incorpóreas; para se alcançar tal compreensão são necessários outros conhecimentos; assim sendo, a natureza especulativa do segundo tipo de concepção comum da mente pressupõe aquilo que o Filósofo delineara no livro I dos Analíticos Posteriores, de que todo ensino e toda instrução intelectual procedem de conhecimento pré-existente (cf. Anal. Post. 71a1).

52. Com isso, se compreende que a concepção comum da mente, está presente tanto na lógica quanto nas ciências reais; na lógica, enquanto parte do sujeito da lógica; nas ciências reais, como parte do conhecimento das mesmas e das análises que concerne a cada uma destas ciências. Assim sendo, se compreende que a universalidade da concepção comum da mente tem duas formas: a primeira, a da generalidade, no primeiro tipo de concepção comum da mente; a segunda, a da especificidade, no segundo tipo de concepção comum da mente. A primeira, disponível a todos que entendam; a segunda, disponível para a compreensão apenas para aqueles que, segundo o Filósofo, possuem instrução intelectual[22].

E a partir disto se compreende a razão do porque Boécio se utiliza da designação das concepções comuns da mente ao solucionar um problema teórico em ordem a sabedoria, e do porque as Hebdômadas estarem fundamentadas a partir dos princípios da demonstração.

 

C. Dúbias[23].

Em relação as pressuposições estabelecidas nesta lição, surgiram duas dúbias: (1) se é necessário existirem dois tipos de concepção comum da mente; e (2), se os dois tipos de concepção comum da mente se relacionam com os modos de predicar.

 

<Dúbia I>

 

Acerca da primeira, procede-se assim: se é necessário existirem dois tipos de concepção comum da mente.

E parece que não.

I. [Argumentos].

1. A mente não lida com conceitos, mas com realidades; logo, não é necessário existirem concepções da mente, mesmo as tidas como comuns, pois, a mente lida com as realidades; portanto, não é necessário existirem concepções comuns da mente.

2. Ademais, as concepções referem-se apenas a signos e a significados, enquanto que a mente trabalha com signo, significado e referente, tal como a coisa está na realidade; portanto, não se fazem necessário as concepções da mente, pois estas não versam sobre algum referente; logo, não é necessário existirem concepções comuns da mente.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, Sirach diz: “sê o primeiro a correr para casa, e ocupa-te de tuas concepções. Invoca-as e deleita-te nelas” (Eclo. 32.15-16); ora, se se deve ocupar com as concepções, então, as mesmas concernem a mente; e, como as mesmas são deleitáveis, então, são necessárias, já que tudo o que é deleitável para o intelecto é necessário; e se sabe que existem dois tipos de deleite: um pelo conhecimento do que é comum, o outro pelo entendimento do que está além do que é comum; ora, isto concerne aos dois tipos de concepção comum da mente; portanto, são necessários dois tipos de concepção comum da mente.

III. [Solução].

1. A concepção da mente, necessariamente, deve ser uma concepção comum, tanto em função da apreensão, quanto da própria compreensão; pois, uma concepção comum refere-se a algo facilmente entendido e reconhecido por todos; logo, diz respeito a algo tido por verdadeiro por todos, de modo a sua demonstração ser conhecida por todos.

2. E a concepção comum da mente se dá em dois tipos; pois, tudo o que é conhecido, o é de forma a se entender o que é conhecido e a se entender o que é desconhecido; portanto, um tipo de concepção comum da mente versa sobre o que é plenamente conhecido, e o outro tipo sobre aquilo que não é facilmente conhecido; ou, para se utilizar dos termos predicamentais, o primeiro tipo de concepção comum da mente diz respeito a algo incomplexo, enquanto que o segundo tipo diz respeito a algo complexo. Portanto, se compreende a razão de existirem dois tipos de concepção comum da mente, tanto em ordem a compreensão quanto em ordem a predicação, e vice-versa.

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro argumento se responde que a mente lida com a realidade a partir de sua própria natureza, mas expressa este lidar a partir de conceitos que designam coisas reais, que tanto podem estar dispostos em algum símbolo quando em alguma definição, e ainda em ambos os modos; pois, ao lidar com realidades, a mente formula conceitos que expressam o real e a essência das coisas existentes; portanto, a mente lida com conceito, donde se formarem concepções; logo, é necessário que existam concepções comuns da mente, tanto na realidade quanto na razão, a qual nada mais é do que expressão do que está na própria realidade.

2. Quanto ao segundo argumento se responde que as concepções comuns da mente, ao surgirem do real, não se referem a apenas signos e a significados, mas também a referentes; pois, toda concepção comum da mente, tem necessariamente estes três aspectos, pois, senão não se forma uma concepção de um ente real, o que se não tivesse estes três aspectos poderia apenas se imaginar um ente de razão, que mesmo assim seria incompleto pois não seria real, nem mesmo no pensamento; portanto, a mente trabalha com a realidade, e ao conhecer algo da realidade, passa a designar seu significado a partir da própria realidade, donde também se conduz a construção de um signo ou símbolo a respeito da coisa real significada. E as concepções comuns da mente surgem em consonância com estes aspectos, na ordem ora mencionada, com signo, significado e referente.

 

<Dúbia II>

 

Acerca da segunda, procede-se assim: se os dois tipos de concepção comum da mente se relacionam com os modos de predicar.

E parece que não.

I. [Argumentos].

1. A predicação refere-se a predicação das coisas, tal como feita pelo intelecto ao se defrontar com as coisas na realidade; enquanto que a concepção comum da mente refere-se a algo já predicado; portanto, os dois tipos de concepção comum da mente não se relacionam com os modos de predicar.

2. Ademais, os modos de predicar são três, como o Filósofo demonstra no cap. I das Categorias; logo, se são três os modos de predicar, ao passo que são dois os tipos de concepção comum da mente, é evidente que não se relacionam; portanto, os dois tipos de concepção comum da mente não se relacionam com os modos de predicar.

3. Ademais, os modos de predicar referem-se a simples apreensão do intelecto, enquanto que as concepções comuns da mente se referem as coisas conhecidas por todos; portanto, não se referem ao mesmo aspecto; logo, os dois tipos de concepção comum da mente não se relacionam com os modos de predicar.

4. Ademais, o ato predicativo refere-se as realidades mais simples apreendidas pelo intelecto; ora, estas diferem da concepção comum da mente; portanto, os dois tipos de concepção comum da mente não se relacionam com os modos de predicar.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, Tomás afirma que há dois modos de predicação[24]; logo, se há dois modos de predicar, isso parece indicar que os modos de predicar se relacionam mais com os dois tipos de concepção comum da mente.

2. Além disso, Scotus afirma que só há dois modos de predicar[25]; ora, isso também parece indicar que os modos de predicar se relacionam com os dois tipos de concepção comum da mente.

III. [Solução].

1. Ora, a predicação refere-se a apreensão dos indivisíveis; e, a mesma se dá em duas partes: a primeira, com os dois tipos de concepção comum da mente, e, com isso, se tem dois modos de predicar, os quais, Scotus confirma ao demonstrar sobre os dois modos primeiros de predicar[26]; a segunda, a qual o Filósofo demonstra no cap. I das Categorias, ao apresentar três modos de predicar.

E isso está em conformidade, pois, os dois tipos de concepção comum da mente, se estabelecem antes da predicação como preceito anti-predicamental; pois, para se predicar algo, há de se ter conhecido algo antes, o qual, evidentemente, se dá através dos dois tipos de concepção comum da mente, mais propriamente a partir da relação dialógica dos tipos de concepção comum da mente, as quais também inferem nas coisas predicamentais.

2. Portanto, se tem duas formas para se entender os modos de predicar, as quais, são subsequentes e complementares: uma em relação a concepção comum da mente, outra em relação a predicação enquanto intenção lógica; pois, a concepção comum da mente é o que existe na realidade, enquanto que os modos de predicar anti-predicamentais referem-se primeiramente as intenções lógicas; logo, se relacionam a medida que os modos de predicar anti-predicamentais se demonstram na realidade e não apenas com intenções lógicas; portanto, enquanto os dois modos de predicar a partir dos dois tipos de concepção comum da mente referem-se a apenas a possibilidade da lógica enquanto ciência instrumental, os três modos de predicar anti-predicamentais referem-se a lógica, mas com o pano de fundo metafísico, embora o modo de predicar na lógica seja de um modo e o da metafísica seja de outro, a partir do que efetivamente se demonstra a lógica como ciência instrumental.

Por isso, os três modos estão delineados no livro dos Predicamentos, enquanto que os dois modos não, embora estejam imbuídos nas entrelinhas. No entanto, os dois modos de concepção comum da mente, são anteriores aos três modos de predicar dispostos pelo Filósofo.

IV. [Resposta aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro se responde que, embora a predicação se refira a predicação dos entes, o que per se é evidente, todo ato predicatório refere-se necessariamente ao intelecto se defrontar com os entes na realidade, pois, somente assim a percepção se torna percepção consciente, e a inteligência se desenvolve; todavia, em se tratando da predicação, se refere a algo predicado facilmente perceptível, a saber, o primeiro tipo de concepção comum da mente; mas, como o segundo tipo não é conhecido por todos, mas apenas por aqueles que possuem instrução intelectual, então, os dois tipos de concepção comum da mente se relacionam com os modos de predicar, embora de maneira diversa. Pois, uma concepção comum da mente, necessariamente, se refere a algo da realidade, e os modos de predicar, neste sentido, só se estabelecem porque se coadunam com o real e não apenas com o possível.

Logo, tanto os dois tipos de concepção comum da mente, quanto os modos de predicar se referem a realidade, as coisas na realidade, e tanto um quanto o outro, se referem aos entes predicáveis, enquanto aferíveis pela ciência comum: os dois tipos de concepção comum da mente, em relação àquilo que é comum e que não pode ser negado, os modos de predicar em relação ao ente predicável, conquanto o segundo tipo de concepção comum da mente também se relaciona com o ente predicado interpretável.

2. Quanto ao segundo se responde que os três modos de predicar que o Filósofo evoca, se relacionam com os dois tipos de concepção comum da mente, pois, se referem a mesma operação do intelecto; mas, se relacionam não de maneira unitária, mas de maneira complementar e subsequente: enquanto os dois tipos de concepção comum da mente advêm primeiro, os modos de predicar necessariamente advêm logo após. Portanto, é evidente que se relacionam em ordem e isto, de maneira dialógica e complementar. No entanto, os dois tipos de concepção comum da mente não concernem ao livro dos Predicamentos, embora estejam pressupostos nos anti-predicamentos.

3. Quanto ao terceiro se responde que, tanto os modos de predicar quanto os dois tipos de concepção comum da mente, se referem a primeira operação do intelecto, já que evocam a apreensão dos indivisíveis, isto é, aquelas coisas que são conhecidas por todos; pois, enquanto o primeiro tipo de concepção comum da mente se refere aos dois primeiros aspectos do modo de predicar tal como o Filósofo os delineia no cap. I das Categorias, o segundo tipo de concepção geralmente se estabelece a partir do terceiro aspecto dos modos de predicar e o que neste está imbuído. Logo, se referem a aspectos distintos da mesma operação do intelecto, conquanto o segundo tipo de concepção comum da mente também infere algo da operação do intelecto de compor e dividir.

4. Donde se resulta clara a resposta ao quarto argumento.

V. [Respostas aos Argumentos Em Contrário].

1. A proposição do Teólogo refere-se a interpretação da designação de Boécio sobre os dois tipos de concepção comum da mente, as quais, referem-se, evidentemente, ao aspecto evocado sobre a primeira parte da apreensão dos indivisíveis, isto é, ao aspecto mais elementar e geral do conhecimento sensível e da compreensão sobre o mesmo; donde, Tomás afirmar sobre dois modos de predicação; o que não tolhe a unidade da ciência predicamental e nem os preceitos metafísicos.

2. E a proposição de Scotus, de igual modo, também evoca dois modos de predicar, mas de modo diverso ao proposto pelo Teólogo, conquanto se refiram basicamente a mesma coisa; pois, enquanto o Teólogo refere-se a apenas a primeira parte da apreensão dos indivisíveis, Scotus evoca os dois modos de predicação do “ente”, para que o mesmo açambarque o necessário para se tornar o primeiro objeto adequado ao nosso intelecto[27]; o, que, evidentemente, só se compreende na Metafísica e não na lógica, isto é, somente na ciência real e não na ciência instrumental.

Pois, na ciência instrumental o ente é objeto adequador, enquanto que na ciência real o ente é objeto adequado. E, disto, percebe-se a distinção entre a estrutura dos modos de predicar concernentes a ciência instrumental e a estrutura dos modos de predicar dispostos na ciência real. Enquanto que o primeiro tipo de concepção comum da mente perfaz plenamente a ciência dos predicamentos, o segundo tipo de concepção comum da mente é demonstrado mais especificamente a partir ciência da interpretação. Por isso, se compreende o modo desta inter-relação e que a mesma está em ordem aos preceitos da ciência instrumental.

 

Lição 4

Analisa-se os princípios das coisas que são.

A. Texto de Boécio (De Hebdomadibus, cap. II).

1. (I) Diverso é o ser e aquilo que é. (II) Pois o mesmo ser ainda não é, porém aquilo que é, tendo recebido a forma de ser, é e consiste. (III) O que é pode participar de algo, mas o mesmo ser de nenhum modo participa de algo. A participação se dá quando algo já é. Por outro lado, é algo quando tenha recebido o ser. (IV) Aquilo que é pode ter algo além do que ele mesmo é. Mas o mesmo ser não tem nada mais misturado além de si. Diverso é, no entanto, ser algo e ser algo naquilo que é. (V) Pois aquele significa o acidente, este, a substância. Tudo o que é participa daquilo que é o ser para que seja. (VI) Entretanto, participa de outra coisa para que seja algo. E, por isso, aquilo que é participa daquilo que é o ser para que seja. Por outro lado, é para que participe de qualquer outra coisa.

2. (I) Em todo composto, uma coisa é o ser e outra coisa é ele mesmo. (II) Todo aquele que é simples tem o seu ser e aquilo que é como uma só coisa.

3. (I) Toda diversidade é discordante; a semelhança, em vez, deve ser desejada. (II) E aquele que deseja outro mostra que ele mesmo é por natureza tal como é aquilo mesmo que apetece.

4. Em conclusão, são suficientes [os princípios] que preestabelecemos, pois, cada uma dessas noções será aplicada aos argumentos pelo intérprete prudente.

 

B. Comentário.

53. Depois de iniciar o tratado apresentando os termos, Boécio prossegue à segunda parte (cap. II), para apresentar as regras, ou axiomas; e esta é a ordem descrita por Boécio no prólogo: primeiro, apresentar os termos (cap. I); segundo, apresentar as regras (cap. II). E, nas regras, estão delineados dois aspectos: primeiro, o modo de proceder; segundo, a tríplice estrutura metodológica.

No primeiro, procede de três modos: primeiro, apresenta as regras ou axiomas dos sábios; segundo, nestas regras apresenta os aspectos principais da natureza do que é concebido primeiro pelo intelecto; terceiro, demonstra a fonte donde deriva as coisas enquanto possuintes de essência.

No segundo, apresenta uma tríplice estrutura metodológica, que açambarca a base da reflexão filosófica, em consonância com os preceitos dos sábios e com os princípios da ciência demonstrativa; por isso, nestas regras faz três coisas: primeiro, apresenta o ente; segundo, apresenta o uno; terceiro, apresenta o bem.

54. Analisemos o primeiro aspecto. No primeiro modo, Boécio faz três coisas: primeiro, apresenta as regras ou axiomas dos sábios; os oito axiomas evocados por Boécio são baseados nos preceitos do sábios e são parte do banquete da sabedoria; assim sendo, estes axiomas estão em consonância com o propósito dos sábios e com o propósito do próprio Boécio ao estabelecer em suas Hebdômadas, de as ponderar e meditar, “em vez de compartilhá-las com qualquer um daqueles que o desenfreio e a insolência não permitem que nada seja enlaçado sem jogo e risadas”; os axiomas apresentados por Boécio são as regras dos sábios, porque aqueles que são desenfreados e insolentes não conseguem compreender estes axiomas, e, velam este fato tentando coibir os sábios e propugnar os mistérios da sabedoria através dos enlaces dos jogos e das risadas, na roda dos insolentes e dos tolos (cf. Pv 1.10).

55. Segundo, nestas regras apresenta os aspectos principais da natureza do que é concebido primeiro pelo intelecto; pois, se estas regras são os preceitos dos sábios, então, estas serão a base para a compreensão do que primeiro é necessário se compreender, a saber, aquilo que é concebido primeiro pelo intelecto; os preceitos dos sábios tem ordenação a partir do real, e com isso, estabelecem a ordem do conhecimento de acordo com a própria realidade; e, a partir disso, se compreende a necessidade do saber já que os homens tendem ao saber (cf. Met. 980a22); e a necessidade primeira do saber é, evidentemente, o entendimento sobre o próprio saber; donde, ser necessário, de início, e para que se evite erros em relação ao saber, compreender o que primeiro é concebido pelo intelecto; e, é isto necessário, de acordo com Tomás de Aquino, pois o desconhecimento desses conceitos conduz ao erro[28].

Este preceito de Tomás se estabelece em consonância com o pressuposto das regras que Boécio delineia em suas Hebdômadas, pois, o pressuposto evocado pelo aquinate demonstra a base e a importância da reflexão sobre o que é concebido primeiro pelo intelecto, ao passo que Boécio apresenta estas regras já pressupostas como parte do estudo da sabedoria.

56. Terceiro, demonstra a fonte donde deriva as coisas enquanto possuintes de essência; ora, se estas regras evocadas estão em consonância com os preceitos dos sábios, e nestas regras está delineado aquilo que é concebido primeiro pelo intelecto, então, nestas regras está pressuposto o aspecto mais importante de toda reflexão racional, a saber, o ser; pois, a própria proposição da sabedoria e da reflexão dos sábios tem o ser como pressuposto apodítico; mas, ao se falar do ser em relação as coisas, não se fala da natureza propriamente dita do ser em si mesmo, mas o modo como ser está nas coisas, ou mais especificamente, o modo como as coisas participam do ser; a dignidade das coisas se evidencia a partir de sua participação no ser e naquilo que são a partir do ser.

57. Dito isso, prossigamos para analisar o segundo aspecto. Pois, no segundo modo, em consonância ao primeiro aspecto, Boécio apresenta uma tríplice estrutura metodológica; e esta estrutura é haurida a partir dos axiomas apresentados por Boécio; os quais, açambarcam tanto os preceitos dos sábios quanto os princípios da ciência demonstrativa; pois, esta estrutura, em si mesma e em relação ao que significa, é uma estrutura transcendental; e na verdade, em se tratando do assunto disposto e dos pressupostos evocados por Boécio no prólogo, estes axiomas só poderiam ser evocados sob uma estrutura transcendental; e esta estrutura transcendental constitui-se da base da reflexão sobre os princípios das coisas que são; pois, se uma coisa é, então, ao ser, esta coisa é uma coisa que é a partir de sua existência e de sua essência, as quais, por sua vez, derivam e são derivadas do ser. Por isso, nestas regras se refere a três coisas: (i) primeiro, se refere ao ente; (ii) segundo, se refere ao uno; (iii) terceiro, se refere ao bem.

58. [i] Primeiro, se refere ao ente; e, ente, na proposição aviceniana, é aquilo que primeiro é concebido pelo intelecto; o Cardeal Caetano afirma que “ente significa algo comum a tudo o que é existente[29]. Portanto, ao se referir ao ente, Boécio se refere àquela característica comum de tudo o que é existente, que, por ser existente, é ente.

E, sobre isso, Boécio evoca seis coisas: primeiro, estabelece a diversidade entre as intenções lógicas; segundo, estabelece a distinção formal entre ser e aquilo que é; terceiro, evoca a definição de que a participação só ocorre em algo que é; quarto, introduz a diferença entre ser algo e ser algo naquilo que é; quinto, demonstra que desta diferença se estabelece a distinção entre acidente e substância; sexto, evoca que a participação confere a coisa que existe o ser algo como coisa existente.

59. Primeiro, estabelece a diversidade entre as intenções lógicas, onde diz: “(I) Diverso é o ser e aquilo que é”; ora, este axioma estabelece algo fundamental em relação as noções lógicas, pois, evoca a diferença entre o que é o ser e aquilo que é; logo, uma coisa é o ser de algo, outra é aquilo que é; pois, o ser, aqui, refere-se a existência de algo, e aquilo que é, refere-se a essência deste algo.

Ora, uma coisa é algo ser realmente algo existente, pois, pode-se afirmar algo sobre um ser não-existente (ente de razão); outra coisa é este algo realmente ser algo que é (ente real). Além disso, a diversidade entre as possibilidades das intenções lógicas demonstra a diferença entre a ideia de algo a partir da percepção lógico-formal e a partir da percepção predicamental; em relação a percepção lógico-formal, se pode elucubrar sobre coisas abstratas, apenas em noções e/ou definições, que as mais das vezes concernem a apreensão dos indivisíveis; mas, em relação a percepção predicamental, se elucubra somente sobre aquilo que realmente fora predicado da realidade a partir das regras predicamentais, os entes reais, os quais são demonstrados como tais.

E o ente, evidentemente, se estabelece destes dois modos na lógica: primeiro, enquanto possibilidade lógica-formal, ou ente predicável interpretável, o que o Filósofo analisa em parte no livro dos Predicamentos (caps. I-III); segundo, enquanto realidade predicamental, que se dá de dois modos: um com as coisas incomplexas, o ente predicável, passível de ser definido, o que o Filósofo também analisa no livro dos Predicamentos; o outro com as coisas complexas, o ente predicado interpretável, passível de ser demonstrado, o que o Filósofo analisa no Sobre a Interpretação.

60. Segundo, estabelece a distinção formal entre ser e aquilo que é, onde diz: “(II) Pois o mesmo ser ainda não é, porém aquilo que é, tendo recebido a forma de ser, é e consiste”; ora, ser e aquilo que é são diversos, embora um abalize o outro; pois, “o mesmo ser que ainda não é”, isto é, o ser que ainda não fora predicamentado como coisa existente; mas, “aquilo que é”, isto é, a coisa existente que é por essência, “tendo recebido a forma de ser”, isto é, participado no ser possuindo algo do ser, de acordo com a forma do ser e de acordo com as qualidades do ser; pois, “sem dúvida a forma, produzindo o ser, constitui a essência da coisa[30].

Por isso, esta coisa “é e consiste”, isto é, se estabelece como uma coisa existente e se mantém por si mesma enquanto possuinte de uma essência, tanto em si mesma se é algo existente, quanto se a possui como algo participante; pois, a consistência de uma coisa existente se dá de acordo com o modo de sua essência, assim como, por exemplo, a consistência do cimento se dá a partir da medida certa de seus elementos constitutivos.

61. Terceiro, evoca a definição de que a participação só ocorre em algo que é, onde diz: “(III) O que é pode participar de algo, mas o mesmo ser de nenhum modo participa de algo. A participação se dá quando algo já é. Por outro lado, é algo quando tenha recebido o ser”; ora, a participação se dá quando algo é; pois, a coisa existente, como algo que é, pode participar de algo, já que a coisa que existe, enquanto algo que pode ser, não pode participar de algo na realidade; por isso, a coisa existente como participante, recebe algo do objeto participado; portanto, “a participação se dá quando algo já é”, isto é, quando é uma coisa existente, donde, se afirmar que esta coisa enquanto é, pode participar de algo, pois, para ser algo, é necessário que esta coisa tenha recebido o ser, embora não seja o próprio ser. A participação torna o objeto participado em semelhança do objeto do qual participa, mas não o torna neste objeto. Por isso, “o mesmo ser de nenhum modo participa de algo”, embora este algo participe do ser.

62. Quarto, introduz a diferença entre ser algo e ser algo naquilo que é, onde diz: “(IV) Aquilo que é pode ter algo além do que ele mesmo é. Mas o mesmo ser não tem nada mais misturado além de si. Diverso é, no entanto, ser algo e ser algo naquilo que é”; ora, esta diferença, é definida, respectivamente, como a essência formal e a essência real; ou dito em outros termos, entre aquilo que tem uma essência mas não está descrito como existente, e aquilo que realmente é algo existente.

Por isso, “aquilo que é”, isto é, o algo que possui uma essência formal, “pode ter algo além do que ele mesmo é”, isto é, algo que possui uma essência real; pois, mesmo que “aquilo que é” seja descrito como uma essência real, sendo algo que é, pode a partir de si se tornar outro algo além do que o mesmo é, participando ou sendo participado de algo além do que é.

Pois, o “ser não tem nada mais misturado além de si”, isto é, o ser não tem nada além de si; portanto, diverso é ser algo, ou seja, ser algo enquanto possuinte de uma essência formal como coisa que existe, e diverso é ser algo naquilo que é, ou seja, ser algo enquanto possuinte de uma essência real como coisa existente. As coisas podem ser simplesmente algo, isto é, como coisa que existe, ou podem ser algo naquilo que é, isto é, como coisa existente.

63. Quinto, demonstra que desta diferença se estabelece a distinção entre acidente e substância, onde diz: “(V) Pois aquele significa o acidente, este, a substância. Tudo o que é participa daquilo que é o ser para que seja”; ora, da distinção entre a essência formal e a essência real, surge a distinção entre acidente e substância; pois, acidente, segundo Porfírio, “é o que pode aparecer e desaparecer sem provocar a destruição do sujeito[31]; e, substância, “é aquilo que não é nem dito de um sujeito nem em um sujeito” (Cat. 2a13); logo, o ser, tomado aqui como se fosse um “sujeito”, pode ser entendido de dois modos: primeiro, como não tendo nada mais misturado além de si, isto é, como substância; segundo, como aquilo que é e que pode ter algo além de si, isto é, como acidente, pois, “acidente é aquilo que pode pertencer ou não pertencer à mesma coisa[32].

Pois, esta distinção, estabelece-se a partir do cap. II das Categorias, respectivamente, como “estar em um sujeito” e “ser dito de um sujeito”; pois, “tudo o que é”, isto é, tudo que é existente, “participa daquilo que é”, isto é, do ser, e o faz, “para que seja”, isto é, para seja uma coisa existente que tanto pode ser em si mesma (substância), quanto pode pertencer ou não à mesma coisa existente (acidente).

Por isso, de acordo com Alberto, a substância é o ente que por si é passível de ser predicado, enquanto que o acidente é o ente que não é por si passível de ser predicado[33]. Ora, a substância, a partir dos comentaristas antigos, é tida como matéria; enquanto que o acidente, como forma. Portanto, como acidente é forma, e não é por si passível de ser predicado, então, o acidente se predica em nove categorias distintas, a partir das quais se consegue aclarar a natureza de uma coisa incomplexa a partir das definições categóricas; pois, a definição de algo é o que primeiro há de mais indivisível ao se realizar a simples operação do intelecto.

64. Sexto, evoca que a participação confere a coisa que existe o ser algo como coisa existente, onde diz: “(VI) Entretanto, participa de outra coisa para que seja algo. E, por isso, aquilo que é participa daquilo que é o ser para que seja. Por outro lado, é para que participe de qualquer outra coisa”; ora, a participação, confere ao ser algo como uma coisa existente, pois, pode ser algo como coisa que existe; com isso, a coisa que existe, “participa de outra coisa para que seja algo”, isto é, para que, ontologicamente, se torne algo que é, diverso de apenas ser algo. Logo, “aquilo que é participa daquilo que é o ser para que seja”, isto é, a coisa que existe participa de algo do que é o ser, para que seja uma coisa existente, isto é, seja algo na realidade a partir do próprio ser. Pois, “primeiramente convém que se entenda que algo simplesmente é; depois que é algo[34]. 

Entretanto, participa do que é o ser, não para que se torne o ser, mas para que se torne algo a partir do ser; logo, participa do que é o ser, com um propósito específico, a saber, “para que participe de qualquer outra coisa”, isto é, para que possa participar de outra coisa existente, sem com isso perder sua essência e sem se tornar nesta outra coisa, a não ser naquilo que na própria coisa é perfectível, como por exemplo na teologia, na questão de que pela fé o fiel se torna participante na natureza da divindade (cf. 2Pe 1.4); ou em relação ao conhecimento que os seres humanos podem ter de Deus; etc.

65. Ora, todos estes seis aspectos, se referem ao ente e as características do ente; mais propriamente, das nuances que concerne ao ente finito ante o ente infinito. Pois, o ente finito tem sua existência e essência provenientes do ente infinito, do qual também tem sua consistência; portanto, o ente infinito, ou primeiro princípio, é a fonte dos valores constituintes que os princípios das coisas existentes têm em si e a partir de si. Mas, isso concerne a outra investigação, e não propriamente ao que Boécio analisa em suas Hebdômadas.

66. [ii] Segundo, se refere ao uno; o Filósofo, no livro V da Metafísica, afirma que a maiorias das coisas são chamadas de unas pois produzem alguma outra coisa una, ou participam da mesma, ou sofrem alguma ação dela, ou de algum modo estão relacionada a ela (cf. Met. 1016b7-8). E, o sentido evocado por Boécio sobre o uno através dos axiomas, está em consonância com aquilo que o Filósofo afirmara sobre o uno. Logo, a compreensão sobre o uno abaliza o modo de entendimento de como aquilo que é participa ou é participante do ser. E, sobre isso, Boécio evoca duas coisas: primeiro, demonstra a ordem real das coisas existentes a partir das coisas compostas; segundo, demonstra a ordem real das coisas existentes a partir das coisas simples.

67. Primeiro, demonstra a ordem real das coisas existentes a partir das coisas compostas, onde diz: “(I) Em todo composto, uma coisa é o ser e outra coisa é ele mesmo”; ora, ao demonstrar a ordem real das coisas existentes, Boécio evoca o uno a partir do entendimento das coisas compostas; pois, as coisas unas, são aferidas a partir das coisas compostas, já que as coisas simples podem apenas se referir as intenções lógicas, enquanto que as coisas compostas se referem a algo realmente; Tomás afirma: “deve-se considerar primeiramente que assim como o ser e aquilo que é diferem nas coisas simples segundo as intenções, assim nas compostas diferem realmente[35]. Portanto, ao se afirmar sobre o uno, evoca a compreensão mais fácil sobre o uno, através das coisas compostas, e o faz com o intuito de sair da esfera puramente intencional, das intenções lógicas, para ir à esfera real, das coisas existentes enquanto existentes.

Assim sendo, “em todo composto”, isto é, em tudo aquilo que mostra o uno, “uma coisa é o ser”, isto é, o uno por sua própria natureza, e “outra coisa é ele mesmo”, isto é, o uno por acidente. Pois, uma coisa é o ser em si mesmo, outra coisa é o ser acidental (cf. Met. 1017b8); logo, através das coisas compostas se mostra a diferença entre as intenções lógicas e a ordem real das coisas existentes, já que estas, ao serem compostas, o são a partir do ser, mas o próprio Ser não é composto; donde, após ter evocado as coisas compostas, evoca as coisas simples; as quais, a seu modo, estão em ordem ao uno.

68. Segundo, demonstra a ordem real das coisas existentes a partir das coisas simples, onde diz: “(II) Todo aquele que é simples tem o seu ser e aquilo que é como uma só coisa”; ora, as coisas simples diferem das compostas, porque as compostas o mesmo ser e aquilo que é são diferentes, já nas simples a mesma coisa é o ser e aquilo é. Todavia, a diferença entre as coisas simples e compostas, demonstra-se de dois modos: primeiro, através da própria coisa; segundo, através da coisa em relação a ordem ontológica.

Pois, uma coisa simples, ao ser simples, é uma coisa que tem o mesmo ser e aquilo que é, embora em si mesmo não seja coisa simplíssima, já que não são em si mesmas por si mesmas, o que somente Deus é, e, por isso é chamado de Ser simplíssimo ou absolutamente simples.

E, em consonância a isso, se afirma também que as coisas simples, ao serem afirmadas de tal modo que “todo aquele que é simples tem o ser”, isto é, sua essência, “e aquele que é”, isto é, sua essência como coisa existente; o que em consonância uma com as outras demonstra que são “uma só coisa”. Logo, neste sentido, a compreensão sobre as coisas simples, só pode ser efetivada na teologia, tal como Porretanus afirma, já que Deus é absolutamente simples[36]; pois, o ser simples, não tem causa, mas é a causa primeira (cf. STh Ia, q. 3, a. 7, co.), ou a causa de todas as coisas; portanto, as coisas que provêm do Ser absolutamente simples, são coisas compostas, pois, “as coisas que vêm de Deus imitam Deus como sendo causadas pela causa primeira. Ora, isto é da razão do causado, que ele seja de alguma forma composto, porque pelo menos o seu ser é diferente do que é” (STh Ia, q. 3, a. 7, ad. 1); ora, as coisas causadas são, em ordem a causa primeira, coisas compostas, já que a causa primeira é simples.

E todas as coisas que são causadas pela causa primeira como substância primeiras, estão em ordem a alguma simplicidade, mas não de modo simplíssimo; por isso, por exemplo, se fala da substância do orbe, uma substância primária, que é simples, mas não é simplíssima; etc.

Logo, Boécio evoca a simplicidade das coisas não para analisá-las em si mesmas, mas, para demonstrar a fonte donde provêm as coisas, a saber, do Ser absolutamente simples, isto é, Deus, que por ser assim, também é o Sumo-Bem, a fonte de todo bem. Por isso, neste sentido, se compreende a diferença entre as puras intenções lógicas para as coisas concretas, reais, já que lida com a realidade mesma e com o ponto de sustentação da própria realidade, o Ser absolutamente simples, do que provêm todas as coisas simples (substâncias primeiras, substâncias primárias) e todas as coisas compostas (substâncias secundárias, acidentes, etc.), as quais de algum modo demonstram a natureza simplíssima da qual são provenientes (cf. Sb 13.5).

69. [iii] Terceiro, se refere ao bem; ora, ao ter evocado o uno, prossegue para analisar o bem; pois, o bem, segundo Tomás, se dá de três formas: pelo modo, pela espécie e pela ordem (cf. STh Ia, q. 5, art. 5, co.). Logo, a partir do bem se conhece a medida do bem nas coisas (o modo); a partir do bem se caracteriza a coisa a partir de sua forma em relação ao bem, isto é, de acordo com sua espécie (a espécie); e, a partir do bem se compreende o fim para o qual as coisas tendem, isto é, ao que as coisas estão ordenadas (a ordem).

Assim, a partir do bem, se compreende o modo como as coisas são boas, a forma como são boas, e o fim para o qual tendem enquanto são boas. Pois, as coisas compostas, enquanto são coisas causadas, participam no ser, que é bem, a partir destes três modos, que açambarcam a descrição das coisas enquanto possuem algo de bem. E, sobre isso, Boécio evoca dois axiomas: primeiro, estabelece a distinção entre diversidade e semelhança; segundo, estabelece a proposição do tender natural a semelhança.

70. Primeiro, estabelece a distinção entre diversidade e semelhança, onde diz: “(I) Toda diversidade é discordante; a semelhança, em vez, deve ser desejada”; ora, ao estabelecer que as coisas compostas são diferentes das simples, passa a evocar o modo desta diferença, a saber, por semelhança e dessemelhança; e, só pode haver semelhança e dessemelhança em relação as coisas causadas, já que estas tem uma causa primeira, a partir da qual possuem algo de semelhança e algo de dessemelhança (donde surge a noção de analogia).

Por isso, “toda diversidade é discordante”, isto é, toda diversidade tem algo de discordância daquilo em que diverge, seja por essência seja por natureza; portanto, as coisas existentes, diferem em essência da causa primeira, já que são causadas, enquanto que a causa primeira é incausada e subsiste per se; logo, há dessemelhança em relação a natureza das coisas causadas e a natureza da causa primeira.

Mas, “a semelhança, em vez, deve ser desejada”, isto é, apesar desta dessemelhança e diversidade, se tem algo de semelhança, pois, o ser das coisas existentes participa de algo do ser da causa primeira; e esta participação se averigua pela medida da compreensão do bem nas coisas existentes, seja por modo, seja pela espécie, seja pela ordem. Portanto, ainda que haja dessemelhança em sentido absoluto, as coisas existentes, hão naturalmente de desejar alguma semelhança; e, segundo o Filósofo no livro I de Ética a Nicômaco, o que todas as coisas desejam é o bem (cf. Et. Nic. 1094a2). Logo, qualquer semelhança desejada pelas coisas se dá em relação ao bem, e, isto, em relação aos três aspectos evocados sobre o bem, os quais, por sua vez, também estão em ordem ao ente e ao uno.

71. Segundo, estabelece a proposição do tender natural a semelhança, onde diz: “(II) E aquele que deseja outro mostra que ele mesmo é por natureza tal como é aquilo mesmo que apetece”; ora, se a semelhança desejada pelas coisas causadas diz respeito ao bem, então, as coisas causadas como são coisas existentes, devem sua existência a causa primeira; por isso, naturalmente tendem a alguma semelhança com a causa primeira, embora, a causa primeira difira absolutamente das coisas existentes, por lhes ser a causa primeira. Portanto, o bem das coisas existentes, demonstra que estas tendem a alguma semelhança com a fonte do bem que possuem.

Pois, “aquele que deseja outro”, isto é, a coisa existente que tende ao bem, “mostra que ele mesmo”, isto é, que em sua essência, “é por natureza”, isto é, possui em sua natureza um tender para o que deseja, já que é “tal como é aquilo mesmo que apetece”, isto é, tende para a fonte do que provêm pois apetece a este mesmo algo. Ora, se as coisas existentes tendem ao bem, então, necessariamente a causa das coisas existentes é a fonte do bem das coisas; pois, algo só tende a alguma coisa que possui uma virtude maior do que o bem que possui. Então, as coisas existentes, ao tenderem para o bem, tendem porque provêm da fonte de todo bem. A diferença está apenas no entendimento sobre o modo, a espécie e a ordem em que participam do bem que emana, de diversos modos e em diversos graus, do Sumo Bem.

72. Deste modo, se pode elucubrar sobre a estrutura transcendental das regras hebdomadárias, as quais, de maneira precisa são colocadas antes de se adentrar ao problema em questão, o qual é abalizado pelas regras ou axiomas evocados por Boécio nestas três classes distintas de pressuposições que foram analisadas; na verdade, é quase como que uma pressuposição apodítica para tudo quanto concerne ao estudo da sabedoria e suas diversas formas nos assuntos filosóficos, a saber, iniciar refletindo sobre a estrutura transcendental da realidade, que por sua vez delineia a estrutura transcendental do conhecimento.

Além disso, estes axiomas de Boécio, são em si mesmos suficientes para confutar uma série de erros filosóficos sobre os transcendentais que, quase em exceção, é um caractere indiscutível da filosofia moderna; certamente, muitos dos filósofos modernos quiseram adentrar a reflexão filosófica sem antes terem seguidos os preceitos da sabedoria, donde terem errado no início, e os erros destes, terem se tornado grandes no final, confirmando a proposição do Filósofo de que um erro pequeno no início se torna grande no final (cf. De Cael. 271b8-10).

73. Assim sendo, a estrutura transcendental das regras hebdomadárias, são de uma limpidez e preciosidade efusivas; pois, pela forma da brevidade com que são envoltas as fazem encerrar vários preceitos amalgamados, que se analisados com cuidado e esmero, se vê sobressair não só os três transcendentais evocados, mas todos os transcendentais - os quais, por sua vez, são a base das elucubrações metafísicas.

Logo, nas regras hebdomadárias, se encontram não somente os preceitos para a solução do problema apresentado a Boécio, mas também princípios para a solução de vários problemas que se apresentam na ordem do saber; pois, estas regras, tal como as definições (cap. I), açambarcam aspectos lógicos e metafísicos fundamentais, que delineiam pressuposições fundamentais sobre que estão presentes tanto na ciência instrumental (a lógica) quanto nas ciências reais (as ciências matemáticas, a física e metafísica [cf. Met. 1026a19-20]).

74. Por isso, Boécio, em seus axiomas, ao se referir ao ente (ens), evoca os preceitos que reclamam o entendimento sobre tudo aquilo que existe e é existente, o que, por si, delineia aspectos lógicos e metafísicos, da ontologia formal a ontologia real; ao se referir ao uno (unum), evoca os preceitos que reclamam o núcleo de sentido das coisas compostas, das coisas existentes enquanto participam de algo do ser absolutamente simples; e, ao se referir ao bem (bonum), evoca os preceitos que reclamam a natureza das coisas existentes, a partir da fonte de todo bem, ou seja, enquanto possuem algo de bom em suas naturezas que reflete algo do Sumo Bem.

 

Lição 5

Elucubra-se a respeito da controvérsia sobre se as coisas que são realmente são boas.

A. Texto de Boécio (De Hebdomadibus, cap. III).

Assim sendo, a controvérsia se apresenta da seguinte maneira: Aquelas coisas que são, são boas. Em verdade, a opinião de todos os instruídos sustém que tudo que é tende ao bem. Por outro lado, tudo tende a algo semelhante. Logo os que tendem ao bem são, eles mesmos, bons.

Mas deve-se perguntar de que modo as coisas são boas: se por participação ou por substância.

Se por participação, de nenhum modo elas são boas por si mesmas, pois o que é branco por participação, não o é por si, ou seja, naquilo que ele mesmo é e o mesmo diga-se das demais qualidades deste tipo. Assim, se são boas por participação, de nenhuma maneira são boas por si mesmas. Consequentemente, não tendem ao bem. Mas foi concedido que tendem ao bem. Logo, não são boas por participação, mas substancialmente.

Assim de fato, sendo a substância delas boa, aquilo que elas são, é bom. No entanto, aquilo que elas são, elas o têm daquilo que é o ser. Por conseguinte, o seu mesmo ser é bom e o mesmo ser de todas as coisas também é bom. Mas se o ser é bom, aquelas coisas que são, são boas naquilo que são e assim para elas, ser é a mesma coisa que ser bom. Portanto são bens substanciais, porque não participam da bondade. E por isto, se nelas o mesmo ser é bom, não há dúvida que sendo bens substanciais, são semelhantes ao primeiro bem. Consequentemente são este mesmo bem, pois nada lhe é semelhante além de seu mesmo ser. Do qual se conclui que todas as coisas que são, são Deus, o que é um sacrilégio dizê-lo. Logo não são bens substanciais e por isto, nessas coisas, o bem não é o ser. Assim, não são boas naquilo que são. Mas se tampouco participam da bondade, de nenhum modo tenderiam ao bem e, portanto, de modo algum são boas.

 

B. Comentário.

75. Após apresentar o propósito de suas Hebdômadas, e de apresentar os termos (cap. I) e o axiomas (cap. II) que o guiarão em sua análise, os quais constituem-se dos preceitos fundamentais de toda e qualquer análise racional, Boécio prossegue e coloca em pauta a questão propriamente dita a ser elucubrada, tal como demonstrara no início do prólogo. Evidentemente, ao colocar a controvérsia tal como a mesma é, e isto logo após apresentar os axiomas, descreve que o princípio preponderante para o entendimento desta controvérsia, que Boécio faz no cap. III, bem como a solução desta controvérsia, está delineado nos axiomas, que tanto prescrevem preceitos fundamentais quanto delineiam a atitude fundamental daquele que busca a sabedoria, embasado nos preceitos dos sábios.

76. E, ao apresentar a questão no cap. III, em consonância ao que fizera no cap. II, Boécio subdivide a proposição sobre a questão em três aspectos: primeiro, apresenta a questão; segundo, propõe o termo médio desta questão; terceiro, estabelece as linhas de argumentação básica entre a proposição da questão e o termo médio da mesma.

77. No primeiro aspecto, Boécio apresenta a questão ao estabelecer os aspectos fundamentais e basilares da mesma; não somente no sentido do assunto a ser elucubrado, mas também como um pressuposto metodológico, que através das Hebdômadas, estabelece algumas pressuposições fundamentais no que concernem ao estudo da sabedoria e no modo deste estudo na solução de questões teoréticas.

78. No segundo aspecto, Boécio propõe o termo médio desta questão, isto é, o termo que está entre a proposição da questão e a argumentação básica da mesma; este termo médio estabelece a base interrogativa da questão, e a abaliza a partir de uma dialética específica, que ao se estabelecer, evoca uma dialógica estrutural no assunto analisado; a partir desta dialética, estabelece-se a diferença nos princípios do termo médio, a diferença entre o modo como as coisas são boas naquilo que são: se por participação ou por substância; e a partir da dialógica estrutural, se estabelece a inter-relação e o modo desta inter-relação, a partir dos princípios do termo médio, isto é, a relação entre participação e substância.

79. No terceiro aspecto, Boécio apresenta a solução parcial para o problema da questão, a partir da descrição interrogativa do termo médio da própria questão; ora, se se investiga o modo como as coisas são boas naquilo que são, e se se apresenta o termo médio desta investigação, então, se evoca necessariamente a primeira forma de argumentação deste problema, a saber, a proposição da possibilidade se a resposta ao termo médio é “por participação” ou se é “por substância”. E ao elencar os principais aspectos sobre estas duas possibilidades, Boécio então pode prosseguir para a solução da questão, o que fará no cap. IV.

80. Em relação ao primeiro aspecto, Boécio faz cinco coisas: primeiro, estabelece a ordem da questão, ao afirmar: “Assim sendo, a controvérsia se apresenta da seguinte maneira”; segundo, apresenta a pressuposição fundamental da questão, ao afirmar: “Aquelas coisas que são, são boas”; terceiro, estabelece um princípio auto-evidente sobre a questão, ao afirmar: “Em verdade, a opinião de todos os instruídos sustém que tudo que é tende ao bem”; quarto, apresenta um aspecto em contrapartida ao princípio auto-evidente sobre a questão, ao afirmar: “Por outro lado, tudo tende a algo semelhante”; quinto, estabelece uma breve solução parcial sobre a ordem da questão estabelecida, ao afirmar: “Logo os que tendem ao bem são, eles mesmos, bons”.

81. Em relação ao segundo aspecto, Boécio faz duas coisas: primeiro, estabelece a pergunta fundamental a partir da proposição da questão, ao afirmar: “Mas deve-se perguntar de que modo as coisas são boas”; segundo, estabelece a dialética da questão, ao afirmar: “se por participação ou por substância”.

Pois, se este é o termo médio da questão, isto é, o termo que está entre a proposição da questão e entre a apresentação dos argumentos possíveis e prováveis, então, necessariamente, este termo médio deverá conter a base donde se poderá solucionar a questão e se resolver as objeções a esta questão, o que de fato ocorre na asseveração de Boécio; portanto, ao ter uma pergunta fundamental, se estabelece o caminho de uma resposta contundente e apodítica, de acordo com os princípios da ciência demonstrativa, e assim, para se chegar a esta resposta se estabelece uma dialética fundamental entre os princípios fundacionais da proposição da questão.

82. Em relação ao terceiro aspecto, Boécio o subdivide em dois aspectos: primeiro, estabelece o modo como as coisas que são realmente são boas; segundo, apresenta a relação entre o ser e a essência.

Em relação ao primeiro, estabelece o modo como a questão deve ser estabelecida; por isso, diz no início: “Mas deve-se perguntar de que modo as coisas são boas”; depois, apresenta a proposição fundamental da questão, onde diz: “se por participação ou por substância”; e, por fim, ao apresentar a proposição da questão estabelece uma regra predicamental, também onde diz: “se por participação ou por substância”; logo, em relação ao primeiro, se estabelece o modo como as coisas que são realmente são boas; pois, deste modo, se estabelece o pressuposto predicativo de como se entende se as coisas que são realmente são boas.

83. Por isso, ao se predicar alguma coisa, se compreende que uma coisa que é, realmente é boa; ora, isto se dá de dois modos, tal como Boécio evidencia, ou por participação ou por substância; logo, a questão se estabelece a partir desta proposição; donde, o Teólogo afirmar: “A questão é, portanto, se os entes são bons por essência ou por participação[37]; assim, a questão se estabelece na pergunta se os entes são bons por participação ou por substância; ora, nisto se estabelece um qualificativo comum dos entes, a saber, que são bons; e, assim, se elucubra o modo como são bons,  ou que tipo de bens são, tal como propugna Porretanus: “é preciso investigar que tipo de bens são: se são particípios ou substâncias[38]. 

84. Com isso, se estabelece duas pressuposições: primeiro, que a essência dos entes possui algo em comum; segundo, que a essência dos entes ao serem consideradas em seus modos, há algo de oposto.

Em relação ao primeiro, a essência dos entes possui em comum algo do bem; pois, o Primeiro-Bem, o que lhes confere a existência, dá-lhes algo do bem; logo, todos os entes possuem algo do bem. Ora, o ente existente, tem algo em sua essência que demonstra sua existência e a fonte donde provêm enquanto ente existente.

Em relação ao segundo, se observa que há maneira opostas de se considerar o modo como as coisas são boas; pois, assim, se observa a diferença entre a forma que as coisas possuem a partir do modo que estão no bem; se por participação, se estabelece um modo; se por substância, se estabelece outro modo; embora a essência que provêm da existência demonstre que todos os entes provêm do Primeiro-Bem, na existência que convém a cada ente, os mesmos podem se relacionar de maneira diversa com o bem, donde, a partir disso, se inferir que “ser algo por essência e por participação são coisas opostas[39]. 

85. E a respeito disso, ao se analisar o modo como os entes estão em ordem ao bem, se observa que a existência dos entes demonstra o modo como estes estão em relação ao bem; e, sobre isso, Boécio faz duas coisas: primeiro, analisa o modo de “se por participação”; segundo, analisa o modo de “se por substância”.

86. Em relação ao primeiro, Boécio faz três coisas: primeiro, analisa a proposição inicial; segundo, confronta a proposição inicial com a proposição da essência geral dos entes; terceiro, evoca a contradição geral da questão.

87. Primeiro, analisa a proposição inicial, onde diz: “Se por participação, de nenhum modo elas são boas por si mesmas, pois o que é branco por participação, não o é por si, ou seja, naquilo que ele mesmo é e o mesmo diga-se das demais qualidades deste tipo”; o que primeiro Boécio faz é evocar a possibilidade de se as coisas são boas por participação; ora, isto indica um modo pelo qual as coisas podem se relacionar com o bem; mas, tudo que participa de algo ou é porque tende a este algo, ou por que este algo a açambarca de maneira inescapável; ora, no que concerne as coisas serem boas, parece que os dois aspectos concorrem conjuntamente; no entanto, em relação ao que as coisas são, isto é, o que a coisa é enquanto é, a mesma é um bem, porque tende ao que é semelhante (isto é, a um Bem maior), tal como diz Tomás: “convém que o bem se encontre naquilo que todo apetite tende[40]. Logo, se as coisas são boas, então, as mesmas tendem ao Bem, ou seja, tem o apetite pelo Bem.

Por isso, Boécio, ao afirmar a questão do se “por participação”, então conclui que, “de nenhum modo elas são boas por si mesmas”; pois, o bem por si mesmo não necessita de outro bem; e a respeito disto evoca um exemplo: “o que é branco por participação, não o é por si, naquilo que ele mesmo é e o mesmo diga-se das demais qualidades deste tipo”; ora, em relação ao bem enquanto qualificativo, realmente, se as coisas são boas por participação, seus qualificativos se tornam expressão daquilo em que participa e não por si mesmas; mas, o qualificativo ou qualidade não é um bem substancial, mas um bem acidental; logo, se as coisas participam de um bem acidental, isto torna clarividente que neste bem de que participam não é um bem que a coisa possua em si mesma, mas um bem no qual participa ou no qual é participada, o que segundo Boécio se aplica a todas as qualidades deste tipo ou espécie.

88. Segundo, confronta a proposição inicial com a proposição da essência geral dos entes, onde diz: “Assim, se são boas por participação, de nenhuma maneira são boas por si mesmas. Consequentemente, não tendem ao bem”; ora, após evocar a possibilidade do “se por participação”, e descrever a proposição que concerne a este aspecto, Boécio evoca outro aspecto importante, sobre a essência geral dos entes, pois, se as coisas são boas por participação, “de maneira nenhuma são boas por si mesmas”, isto é, não são bens substanciais; logo, se os entes não são bons por si mesmos, tampouco eles tendem ao bem, tal como diz Boécio: “consequentemente, não tendem ao bem”; no entanto, ao evocar a questão do “se por participação” com a proposição da essência geral dos entes, Boécio chega a uma conclusão negativa, pois, se algo é bem por participação, então, não é bem em si mesmo, e como só o bem em si mesmo tende ao bem, logo, se são boas por participação, não podem tender ao bem.

89. Portanto, se indaga não se são por participação, mas em que modo de participação; pois, a participação se dá a partir da essência de algo; ora, o ente em sua essência tende ao Bem Substancial, e por isso, pode participar de algum bem acidental sem com isso impugnar sua essência, pois todo bem emana do Primeiro Bem ou está em ordem ao mesmo; logo, todo ente tende ao Bem, mesmo que participe de algo em algum bem acidental, o qual também é proveniente do Primeiro Bem.

90. Pois, esta confrontação que Boécio faz demonstra que um ente, ao participar de algum bem, não tem sua essência enquanto ente mudada em relação ao bem substancial, embora possa ter algo mudado enquanto em participação de algum bem acidental. Por exemplo, ao se afirmar que algo é, se afirma algo sobre a essência deste algo, bem como se descreve o tipo de bem que é; mas, ao se acrescentar que este algo é branco, então, não somente se demonstra o que este algo é, mas também em algo que participa enquanto bem, embora não seja um bem substancial; logo, um algo tanto pode ser um bem em si, mas não per se, em relação a sua proveniência do Primeiro Bem, quanto possuir um bem por participação, em relação ao modo de sua existência.

91. Terceiro, evoca a contradição geral que a questão sobre a participação evoca, onde diz: “Mas foi concedido que tendem ao bem. Logo, não são boas por participação, mas substancialmente”; assim, após ter feito essa confrontação, Boécio chega a conclusão razoável a partir da linha de argumento proposto, a saber, se fora concedido que as coisas tendem ao bem, as mesmas não podem ser boas por participação, mas substancialmente; ora, quanto a isso se sabe que as coisas tendem ao bem porque são entes, e o ente, possui três aspectos primordiais e apodíticos, a saber, a verdade, o belo e o bem; logo, todo ente tende a estes três aspectos.

Por isso, ao se chegar a uma conclusão parcial que a questão sobre a participação evoca, se pode compreender que só se fala que tende ao bem em relação ao bem substancial, e se fala que se participa de um bem, se for um bem acidental.

Portanto, enquanto são bens substanciais, as coisas boas tendem ao bem, o que per se é clarividente; mas, enquanto participa de algum bem acidental, não tendem a este bem – o bem substancial -, mas participam deste tipo de bem, sem com isso impugnar a essência se for bem substancial, o que não tolhe a unidade do ente enquanto coisa existente.

Pois, a natureza dos entes é tender ao bem; mas, se algum ente participa de algum bem acidental, não perde seu tender ao bem substancial, e nem se torna por isso, na participação de um bem acidental, um bem substancial, já que a participação em algo acidental não o torna algo substancial, embora o que é acidental esteja prescrito a partir do que é substancial. Logo, o modo da participação infere o tipo de bem que um ente participa ou no qual é participado.

92. E, em relação ao segundo (n. 85), ao analisar o modo de “se por substância”, Boécio faz duas coisas: primeiro, analisa o modo como as coisas são boas por substância; segundo, analisa se as coisas que são boas por substância são bens substanciais.

93. Em relação ao primeiro, faz duas coisas: primeiro, verifica se a substância das coisas é o mesmo do que elas são; segundo, analisa se as coisas naquilo que elas são tem algo do ser.

94. Primeiro, verifica se a substância das coisas é o mesmo do que elas são, onde diz: “Assim de fato, sendo a substância delas boa, aquilo que elas são, é bom”; ora, uma coisa ao ser boa, de fato, é algo bom; pois, “sendo a substância delas boas”, isto é, algo que elas são substancialmente, então, “aquilo que elas são, é bom”; mas, isto se refere ao bem substancial; ora, todo ente tende ao bem em sua essência; logo, todo ente tende ao bem substancial, e pode participar de algum bem acidental; portanto, se algo é bom em sua substância, isto é, naquilo que este algo é, então, o que este algo é, é necessariamente bom.

Deste modo, se compreende que a substância da coisa designa o que a mesma é; mas o modo como Boécio evoca a substância aqui, diz respeito ao próprio ser; pois, a substância de algo, é o que esta coisa é, é seu ser, tal como diz Porretanus: “Aqui ele quer que a substância seja entendida, não aquilo que é, mas o próprio ser, isto é, aquilo que não subsiste, mas aquela própria subsistência[41]; logo, o ser de algo é o que este algo é, o que fica claro a partir da definição da essência, que designa o que este algo é, tanto em si mesmo, quanto naquilo em que participa se for afirmado algum predicado que indique algum tipo de participação acidental.

95. Segundo, analisa se as coisas naquilo que elas são tem algo do ser, onde diz: “No entanto, aquilo que elas são, elas o têm daquilo que é o ser. Por conseguinte, o seu mesmo ser é bom e o mesmo ser de todas as coisas também é bom”; ora, ao se compreender que o ser de algo é aquilo que este algo é, se pode entender se as coisas naquilo que são tem algo do ser; pois, se são algo, como realmente o são, então, tem algo do ser, tal como Boécio afirma: “no entanto, aquilo que elas são, elas o têm daquilo que é o ser”, pois, fora afirmado numa das regras hebdomadárias, que o que é o têm daquilo que é o ser; por isso, “segue, então, que o mesmo ser das coisas que são boas segundo o sujeito é bom[42]. 

Deste modo, se algo é tem algo do ser, pois, ser algo, significa que é; logo, tem semelhança com o Ser, o Primeiro Bem, já que nas regras o próprio Boécio afirma que a semelhança deve ser desejada; logo, algo que é, só pode desejar semelhança com aquilo que é superior, a saber, o Primeiro Bem; então, o ser dos entes, necessariamente tende ao bem do ente infinito, pois, são boas a partir deste que é o Bem.

E se são bens substanciais, o são a partir do Bem Substancial; ou para se utilizar dos termos categóricos, são substâncias secundárias que emanam da substância primária absoluta ou substância primeira. E isto também confere o fundamento para a própria participação, como Boécio assevera: “A participação se dá quando algo já é”. Ora, somente algo que é, isto é, que tem algo aquilo que é o ser, pode receber algo de participação, ou seja, pode participar de algum tipo de bem.

96. Em relação ao segundo (n. 92), faz cinco coisas: primeiro, analisa se as coisas que por substância são boas são bens substanciais; segundo, analisa se as coisas que são boas por substância são semelhantes ao primeiro bem; terceiro, analisa se as coisas que são semelhantes ao primeiro bem são Deus; quarto, se analisa se o bem é o mesmo que o ser; quinto, analisa se as coisas que não participam da bondade são boas.

97. Primeiro, analisa se as coisas que por substância são boas são bens substanciais, onde diz: “Mas se o ser é bom, aquelas coisas que são, são boas naquilo que são e assim para elas, ser é a mesma coisa que ser bom. Portanto são bens substanciais, porque não participam da bondade”; ora, sendo que o ser é bom, o que per se é evidente, então, “aquelas coisas que são”, hão de ser boas no que são; logo, parece que “ser é a mesma coisa que ser bom”; pois, nesta linha de pensamento, subscreve-se que se algo é, então, porque é, necessariamente é bom; pois, uma das propriedades do ser é o bem. Por isso, acopla-se que “são bens substanciais, porque não participam da bondade”.

No entanto, uma coisa é ser algo que é, outra coisa é ser algo que é bom; embora, o ser algo que é indique que é bom, o ser algo que é, necessariamente, demonstra que se é; enquanto que ser bom, tanto pode ser devido ao que se é, quanto por participação em algo bom; logo, ser bom, significa que enquanto é, é bom; mas, ser e ser bom são coisa distintas, já que o modo do bem em algo que é, pode ser distinto do bem enquanto é.

Portanto, as coisas que por substância são boas, demonstram que substancialmente participam de algum bem substancial, mas em si mesmas, não são bens substanciais; pois, as coisas que por substância são boas o podem ser de dois modos: um enquanto substâncias primárias, as que por si são bens substanciais; ou enquanto substâncias secundárias, as que por si participam de algum bem substancial. Logo, nem todas as coisas que por substância são boas são bens substanciais.

98. Segundo, analisa se as coisas que são boas por substância são semelhantes ao Primeiro Bem, onde diz: “E por isto, se nelas o mesmo ser é bom, não há dúvida que sendo bens substanciais, são semelhantes ao primeiro bem”; ora, ao se evocar se as coisas que são boas por substância são bens substanciais, parece que isso obviamente evoca que se estas coisas são semelhantes ao primeiro bem; pois, sendo bens substanciais, logo, devem ser semelhantes ao Primeiro Bem, isto é, devem estar na mesma ordem de bem que o Sumo Bem.

Ora, isto estabelece uma aporia; pois, se as coisas que são boas por substância são bens substanciais, então, parece que são semelhantes ao primeiro bem; no entanto, em relação ao Primeiro Bem, ou se tem semelhança a ele, ou se é semelhante a ele; são duas coisas distintas: o ser ter semelhança ao primeiro bem, significa que emana dele de alguma forma; o ser semelhante ao Primeiro Bem, significa que se é da mesma forma que o mesmo e que possui a mesma substância que o mesmo; ora, se as coisas que são boas por substância são bens substanciais, e isto por sua vez, demonstram que tem a mesma forma que o Primeiro Bem, então, chega-se a conclusão de que são a mesma coisa que o Primeiro Bem; então, se isso for verdadeiro se chega a conclusão de que as coisas boas são “deus”; no entanto, isto evidentemente não é verdadeiro, tanto porque o Primeiro Bem dista absolutamente das criaturas e das coisas, quanto porque o Primeiro Bem não tem forma, já que é o ser absolutamente simples; logo, se as coisas que são boas por substância são bens substanciais, somente podem ter semelhança com o Primeiro Bem.

99. Terceiro, analisa se as coisas que são semelhantes ao Primeiro Bem são “deus”, onde diz: “Consequentemente são este mesmo bem, pois nada lhe é semelhante além de seu mesmo ser. Do qual se conclui que todas as coisas que são, são Deus, o que é um sacrilégio dizê-lo”; ora, a conclusão da proposição de que as coisas que são boas por substância são bens substanciais, demonstra que são semelhantes ao Primeiro Bem; e, como o Primeiro Bem é “deus”, então, conclui-se que as coisas que são boas por substância são bens substanciais são semelhantes em substância ao Primeiro Bem, isto é, têm a mesma substância que o Primeiro Bem; logo, são “deus”, “pois nada lhe é semelhante além de seu mesmo ser”.

Mas, esta proposição é sacrílega; pois, teria de se concluir, “que todas as coisas que são, são Deus”, e, tal como Boécio afirma, “é um sacrilégio dizê-lo”; logo, as coisas que são, ao serem boas, podem ser algum bem substancial, mas não são o Bem Substancial ou Primeiro Bem; na verdade, mesmo se forem bens substanciais, participam de algo do Primeiro Bem, ou derivam alguma semelhança do mesmo, mas não são o Primeiro Bem.

Pois, uma coisa é as coisas que são serem bens substanciais, outra coisa seria as próprias coisas que são serem o Bem Substancial; e isto é algo que por si é evidentíssimo. Logo, se conclui que o modo de participação não torna as coisas participadas no próprio Bem, embora a medida da participação indiquem certa semelhança com o Bem, mas semelhança do sentido de espelharem imperfeitamente o Bem, não de se tornarem da mesma substância que o Bem.

Assim, se conclui que a participação muda o objeto participado a semelhança do que participa, mas não torna propriamente o objeto participado a mesma coisa do que naquilo em que participa.

100. Quarto, se analisa se o bem é o mesmo que o ser, onde diz: “Logo não são bens substanciais e por isto, nessas coisas, o bem não é o ser. Assim, não são boas naquilo que são”; ora, após ter mostrado a incongruência da conclusão anterior, Boécio prossegue para indagar se o bem é o mesmo que o ser; portanto, se deve distinguir entre o bem enquanto se é, que é bem ontológico; e o bem enquanto se é algo que é, ou seja, o bem enquanto qualidade; por isso, as coisas que são “não são bens substanciais”, isto é, não são bem enquanto o bem ontológico, logo, “nessas coisas, o bem não é o ser”; portanto, neste sentido, “não são boas naquilo que são”, mas só podem ser boas enquanto são alguma coisa, isto é, enquanto tem alguma participação na bondade em relação a alguma qualidade.

Logo, se conclui que uma coisa que é, só é boa, enquanto o ser boa o é de alguma qualidade, já que se afere que são boas naquilo que são através de alguma qualidade e não através daquilo que são, embora naquilo que são, tenha algo do bem, mas não são o próprio Bem. Pois, o ser bem em sentido absoluto é próprio apenas do Primeiro Bem, enquanto tudo o que é bom tem algo do bem por algum modo de participação e por alguma forma de manifestação da bondade, mesmo que seja na substância da coisa, já que mesmo as substâncias primárias distam infinitamente do esplendor do bem da Substância Primeira.

10. Quinto, analisa se as coisas que não participam da bondade são boas, onde diz: “Mas se tampouco participam da bondade, de nenhum modo tenderiam ao bem e, portanto, de modo algum são boas”; ora, se as coisas não são boas naquilo que são, isso parece designar que não participam da bondade; portanto, “se tampouco participam da bondade”, isto é, se não são boas naquilo que são, “de nenhum modo tenderiam ao bem”, ou seja, não tendem a semelhança com o bem; e se não tendem a semelhança ao bem, não podem ser boas; mas, algo ao ser o que é, tende ao bem, pelo fato de ser; por isso, participam de algum modo da bondade; logo, possuem algo de bom, embora naquilo que são não sejam boas enquanto o Bem Substancial.

Pois, tudo o que é, participa do bem, mas não são o próprio Bem; já que tudo o que há é bom, mas nem tudo que é, é bem substancial, além do que, ainda que uma coisa que é seja um bem substancial, ainda sim não é o Bem Substancial.

102. Assim sendo, Boécio demonstrara a natureza e o escopo da controvérsia a respeito de que tudo que é tende ao bem, e apresentara as nuances que concernem a este aspecto, bem como analisou as possibilidades que emergiram destas nuances, as quais, evocaram vários aspectos diversos, que por si já demonstraram as aporias desta questão, abalizando o caminho para a solução da mesma, que Boécio fará no cap. IV.

 

Lição 6

Elucubra-se sobre a fonte donde emana todo bem.

A. Texto de Boécio (De Hebdomadibus, cap. IV).

Pode-se oferecer a seguinte solução para esta questão: há muitas coisas que, apesar de não poderem separar-se em ato, contudo, separam-se na alma e no pensamento. Pois ninguém separa em ato um triângulo ou outras coisas do gênero sujeitas à matéria. Não obstante, segregando o mesmo triângulo e sua propriedade, observa com a mente além da matéria.

Agora, removamos por um breve tempo de nosso pensamento a presença do Primeiro Bem o qual, sem dúvida, consta que existe e ainda mais pode conhecer-se pela opinião de todos os instruídos e não instruídos, assim como das religiões dos povos bárbaros.

Tendo desta maneira removido Este por um breve tempo, sustenhamos que todas as coisas que são sejam boas e as consideremos de que modo possam ser boas, se não derivassem de nenhuma maneira do Primeiro Bem. Desta perspectiva, observo que, nelas, uma coisa é que são boas e outra coisa diferente o que são. Suponha-se, então, que uma e a mesma substância boa seja branca, pesada e redonda. Então uma coisa seria aquela mesma substância e outra sua redondeza, outra a cor, outra a bondade. Pois se cada uma destas coisas fosse o mesmo que a própria substância, o peso seria a mesma coisa que a cor, que o bem, e o bem seria o mesmo que o peso, o qual a natureza não permite que [isso] se faça. Então uma coisa, nelas, seria ser e outra ser algo. E agora certamente seriam boas, mas de nenhuma maneira teriam o mesmo ser como algo bom. Logo se de algum modo fossem sem [proceder] do Bem, certamente seriam boas, mas não seriam idênticas com as coisas boas, mas para elas uma coisa seria ser e outra ser boas.

E, por isso, se não fossem absolutamente nada mais que boas, não haveria nelas nem peso, nem cor, nem extensão pela dimensão do espaço, nem qualidade alguma, senão que somente seriam boas. Agora elas não pareceriam que são coisas, mas o princípio das coisas. E não só pareceriam, mas pareceria, pois uma coisa, e somente uma, é assim: a que é simplesmente boa e nada mais.

Como aquelas coisas não são simples, não poderiam de nenhum modo existir, a não ser que Aquele que é simplesmente é bom quisesse que elas existissem. Por esse motivo elas se dizem boas, já que o ser delas procede da vontade do Bem. De fato, o Primeiro Bem é bom naquilo que é. Todavia, o segundo bem, pelo fato de fluir daquele cujo mesmo ser é bom, ele próprio também é bom. Além disso, o mesmo ser de todas as coisas fluiu daquele que é o Primeiro Bem e que é tão bom que propriamente se diz que é bom naquilo que é. Logo o mesmo ser delas é bom. Então, neste caso, não seriam boas naquilo que são, se de nenhum modo tivessem procedido do primeiro bem.

 

B. Comentário.

103. Após apresentar a controvérsia sobre o assunto, Boécio apresenta a solução para a questão proposta (cap. IV); pois, se constatara que as coisas enquanto são boas naquilo que são, o são apenas por que são existentes; logo, como Porretanus afirma: “os bens não são determinados pela participação, mas sim pela substância, isto é, pela subsistência[43]; assim, as coisas são apenas porque subsistem, isto é, porque se mantém como existentes, porque foram estabelecidas deste modo pelo Sumo Bem e assim são mantidas por Ele (cf. Eclo. 16.27).

104. Com isso, Boécio prossegue para apresentar a solução da questão proposta. E ao apresentar a solução para a questão, Boécio faz duas coisas: primeiro, analisa a fonte donde emana todo bem; segundo, analisa se as coisas boas procedem do Primeiro Bem.

105. Ora, quanto ao primeiro, Boécio faz duas coisas: primeiro, estabelece a base do argumento a partir de uma redução teorética; segundo, estabelece a resolução desta redução.

106. Em relação ao primeiro, Boécio faz quatro coisas: (i) primeiro, estabelece a pressuposição básica para a solução da questão; (ii) segundo, estabelece uma redução teorética; (iii) terceiro, prossegue com as argumentações a partir desta redução teorética; (iv) quarto, apresenta uma suposição a partir da redução.

107. [i] Primeiro, estabelece a pressuposição básica para a solução da questão, onde diz: “Pode-se oferecer a seguinte solução para esta questão: há muitas coisas que, apesar de não poderem separar-se em ato, contudo, separam-se na alma e no pensamento. Pois ninguém separa em ato um triângulo ou outras coisas do gênero sujeitas à matéria. Não obstante, segregando o mesmo triângulo e sua propriedade, observa com a mente além da matéria”; ora, a pressuposição básica que Boécio evoca estabelece duas coisas: primeiro, uma pressuposição, a respeito do modo como as coisas podem se separar, onde diz: “há muitas coisas que, apesar de não poderem separar-se em ato, contudo, separam-se na alma e no pensamento”; ora, quanto a isso, se compreende que existe uma distinção entre o que está em ato e o que está na mente, ou na alma e no pensamento; pois, o que está em ato não se separa, mas o que está na mente, pode se separar enquanto objeto elucubrável.

Assim, se pode aclarar o seguinte pressuposto: já que há coisas que podem se separar na mente, mas não no ato, se consegue raciocinar sobre o que compõem as coisas em ato, embora não se consiga na realidade separá-los; e isto se dá deste modo, para que se possa compreender as coisas através da operação intelectiva do compor e do dividir; logo, mesmo que as coisas enquanto são boas, isto é, enquanto são substância, ou seja, enquanto subsistem, não se pode separar o que elas são do bem, se pode na mente raciocinar sobre o modo como estas coisas são boas, isto é, o que as compõem ou o que as compusera a fim de que sejam boas naquilo que são. E, a razão desta separação, segundo Tomás, é porque “de um modo estão as coisas na alma e de outro modo na matéria[44]. 

108. E o segundo aspecto é uma exemplificação, que Boécio faz a partir dos princípios matemáticos, onde diz: “Pois ninguém separa em ato um triângulo ou outras coisas do gênero sujeitas à matéria. Não obstante, segregando o mesmo triângulo e sua propriedade, observa com a mente além da matéria”; ora, após delinear que as coisas podem estar de um modo na alma e do outro modo na matéria, Boécio elenca um exemplo, a saber, o triângulo; pois, o triângulo, enquanto matéria não é separado, mas pode ser separado na mente; enquanto na matéria o triângulo é um polígono de três lados; agora, enquanto na mente, pode ser separado nestes três lados; portanto, se compreende que, ao se segregar o triângulo, isto é, ao se pensá-lo, se pode compreendê-lo além da matéria; ora, tal exemplo evoca uma suposição, a qual, como o próprio Boécio afirma, estão em outras coisas do gênero sujeitas à matéria.

Logo, isto designa que ao se compreender as coisas que estão na matéria, de acordo com o pensamento, se pode compreender além da aparência das coisas, e se chegar a essência das mesmas, ou a composição da essência e da natureza de determinada coisa; e assim, se observa que um algo na realidade não pode ser separado senão deixa de ser este algo, tal como no caso do triângulo que se for separado na realidade deixa de ser triângulo; etc.

109. [ii] Segundo, estabelece uma redução teorética, onde diz: “Agora, removamos por um breve tempo de nosso pensamento a presença do Primeiro Bem o qual, sem dúvida, consta que existe e ainda mais pode conhecer-se pela opinião de todos os instruídos e não instruídos, assim como das religiões dos povos bárbaros”; ora, tendo demonstrado que as coisas estão de um modo na alma e de outro modo na matéria, e que para se compreendê-las além da matéria se faz necessário segregá-las, isto é, separá-las no pensamento, para se melhor entendê-las, Boécio então aplica este princípio e faz uma redução teorética no tema que propusera.

E, Boécio propõem a redução do Primeiro Bem no pensamento, isto é, a fonte de todo o bem, o qual, como diz Boécio, “sem dúvida, consta que existe”, o que se demonstra de vários modos, tanto “pela opinião dos instruídos e não instruídos, assim como das religiões dos povos bárbaros”, pois, a compreensão sobre o Primeiro Bem, ou Ser Superior, é naturalmente ínsita em todos os homens, como diz Damasceno (cf. De Fid. Orth., I, 1), e é demonstrado nas mais variadas manifestações religiosas.

Com isso, a redução consiste em num momento retirar ou não-pensar na presença do Primeiro Bem; o que, na realidade, é algo impossível, mas é estabelecido como possibilidade de se pensar para se chegar a alguma conclusão sobre a natureza das coisas, quanto ao modo de bem que as mesmas possuem.

110. [iii] Terceiro, prossegue com as argumentações a partir desta redução teorética, onde diz: “Tendo desta maneira removido Este por um breve tempo, sustenhamos que todas as coisas que são sejam boas e as consideremos de que modo possam ser boas, se não derivassem de nenhuma maneira do Primeiro Bem”; ora, ao ter removido o Primeiro Bem, Boécio então evoca o pressuposto das coisas boas e o modo como são boas; pois, se se retirou a presença do Primeiro Bem, o qual em si já designa que todas as coisas são boas porque derivam da fonte de todo bem, então, se pode elucubrar se existe alguma possibilidade de as coisas serem boas sem serem provenientes do Primeiro Bem. Por isso, após fazer a redução, Boécio prossegue com a argumentação nesta linha de raciocínio. E, tal redução só pode ser feita por um “breve tempo”, isto é, de maneira parcial na realidade; pois, não se pode deixar de pensar naquilo de maior que pode ser pensado.

111. [iv] Quarto, apresenta uma suposição a partir da redução, onde diz: “Desta perspectiva, observo que, nelas, uma coisa é que são boas e outra coisa diferente o que são. Suponha-se, então, que uma e a mesma substância boa seja branca, pesada e redonda. Então uma coisa seria aquela mesma substância e outra sua redondeza, outra a cor, outra a bondade”; assim, se pode observar algumas conclusões, as quais, então, se estabelecem sob o princípio de que “uma coisa é que são boas e outra coisa diferente o que são”; pois, se se retira o Primeiro Bem, então, as coisas serão compreendidas naquilo que são de dois modos inter-ligados: primeiro, que são boas; segundo, o que são; e, com isso, se estabelece que as coisas seriam definíveis de um modo homonímico, já que uma coisa que são boas e outra o que realmente são,  dando a entender, que nestas, a partir da redução teorética evocada, uma coisa é o ser e outra coisa é que são boas.

E, para exemplificar isso, Boécio propõe que uma mesma substância tenha três aspectos: seja branca, pesada e redonda; se tal coisa é entendida a partir da redução proposta por um breve tempo, então, “uma coisa seria aquela mesma substância e outra sua redondeza, outra a coisa a cor, outra a bondade”; logo, se teria nesta substância, quatro coisas diversas: uma coisa seria o seu ser, outra a sua redondeza, outra a sua cor, e outra a sua bondade; logo, uma coisa, seria essencialmente quadrilátera enquanto algo existente. E, isto, evidentemente, é uma impossibilidade real e lógica.

Pois, o que uma coisa é, é o seu ser, e não outras coisas que a caracterizam, as quais, por sua vez, estão em ordem a seu ser. Logo, na própria redução do Primeiro Bem, se mostra que seria impossível que as coisas sejam boas sem a fonte de todo bem, mesmo numa redução hipotética feita na mente.

112. Quanto ao segundo (n. 105) - isto é, a resolução da redução -, Boécio faz cinco coisas: (i) primeiro, estabelece uma base de argumentação a partir desta suposição; (ii) segundo, estabelece a partir desta redução um axioma; (iii) terceiro, confronta a suposição com a realidade; (iv) quarto, estabelece a conclusão racional; (v) quinto, resolve a redução e apresenta a proposição para a solução.

113. [i] Primeiro, estabelece uma base de argumentação a partir desta suposição, onde diz: “Pois se cada uma destas coisas fosse o mesmo que a própria substância, o peso seria a mesma coisa que a cor, que o bem, e o bem seria o mesmo que o peso, o qual a natureza não permite que isso se faça. Então uma coisa, nelas, seria ser e outra ser algo. E agora certamente seriam boas, mas de nenhuma maneira teriam o mesmo ser como algo bom. Logo se de algum modo fossem sem [proceder] do Bem, certamente seriam boas, mas não seriam idênticas com as coisas boas, mas para elas uma coisa seria ser e outra ser boas”; ora, após ter feito a redução e chegado a uma conclusão mais do que absurda, Boécio estabelece a base de argumentação a partir desta suposição, mesmo que em si mesma seja absurda.

Assim, Boécio estabelece que, “se cada uma destas coisas fosse o mesmo que a própria substância, o peso seria a mesma coisa que a cor, que o bem, e o bem seria o mesmo que o peso, o qual a natureza não permite que isso se faça”; pois, se uma coisa é o mesmo que a substância, então, seriam o mesmo que são, e tanto o peso, quanto a cor, quanto o bem, seriam misturados substancialmente, de modo a não ser discernidos, e isto, evidentemente, é algo contrário a natureza; por isso, a própria natureza não permite que isto se dê deste modo. Pois, senão, “uma coisa, nelas, seria ser e outra ser algo”, isto é, uma coisa seria o que são e outra coisa totalmente distinta seria o algo que são, dando a entender que as coisas possuem dualidade ontológica em suas existências, o que seria proveniente de uma dupla ordenação metafisica - o que per se é algo impossível -, tal como nas metafísicas orientais (o que em si é algo aporético e contrário tanto a razão quanto contrário a revelação).

E, neste sentido, ainda se pode afirmar que seriam boas, como Boécio afirma: “e agora certamente seria boas, mas de nenhuma maneira teriam o mesmo ser como algo bom”; no entanto, se fossem boas a partir dessa redução, seriam boas, mas não teriam o mesmo ser como algo bom; então, nessas coisas uma coisa seria o ser boas e outra coisa o que são; isto, evidentemente, geraria um dualismo na ordem do ser, já que se evocaria que uma mesma coisa pode ser algo bom e ser outra coisa em seu ser[45].

114. [ii] Segundo, estabelece a partir desta redução um axioma, onde diz: “E, por isso, se não fossem absolutamente nada mais que boas, não haveria nelas nem peso, nem cor, nem extensão pela dimensão do espaço, nem qualidade alguma, senão que somente seriam boas”; ora, se a partir da redução proposta, as coisas não fossem nada mais que boas, pois, uma coisa nestas seria o ser e outra o serem boas, o que designa que seriam apenas boas, pois, uma coisa somente pode ser o que é e não outra coisa, então, nestas coisas não haveria nada além do serem boas; logo, “não haveria nelas nem peso, nem cor, nem extensão pela dimensão do espaço, nem qualidade alguma”, isto é, se fossem apenas boas, não poderiam ter nenhuma outra qualidade, já que o ser das mesmas seria apenas o serem boas; por isso, não poderia ser pesadas, nem brancas nem de qualquer outra cor, nem seriam medíveis no espaço, etc., ou seja, seriam coisas materiais sem estarem materiadas, o que, em si, é impossível de ocorrer na realidade. Logo, seriam existentes apenas como possibilidade (como ente de razão), tal como a redução ora propugnada para o entendimento da questão.

115. [iii] Terceiro, confronta a suposição com a realidade, onde diz: “Agora elas não pareceriam que são coisas, mas o princípio das coisas. E não só pareceriam, mas pareceria, pois uma coisa, e somente uma, é assim: a que é simplesmente boa e nada mais”; ora, se tal redução tem o axioma evocado acima, então, tais coisas não seriam apenas coisas, pois, seriam algo imateriado; por isso, “elas não pareceriam que são coisas”, isto é, que são algo materiado, mas sim, que são “o princípio das coisas”; ora, se retira o primeiro bem, o que resta é tornar as próprias coisas ou outro algo qualquer da ordem das coisas temporais, como se fosse o Ser Superior; pois, “uma coisa, e somente uma, é assim”, isto é, somente uma coisa é o princípio das coisas, a saber, o Primeiro Bem. Logo, somente uma coisa é o princípio das coisas, “a que é simplesmente boa e nada mais”, isto é, a que é absolutamente boa e nada mais, ou seja, a que possui a simplicidade perfeita e absoluta, a qual somente pode ser Deus, o Primeiro Bem.

E, assim, se conclui que, se as coisas são o princípio das coisas, então, não só pareceriam que são assim, mas pereceriam, pois, se auto-destruiriam, já que esta característica é atributo exclusivo e único do Primeiro Bem, Aquele que é simplesmente bom. Logo, se as coisas fossem assim, as mesmas deixariam de existir, e nem as próprias coisas poderiam ser elucubradas; e isto demonstra que a própria designação de não se pensar no Primeiro Bem, tornaria as próprias coisas impensáveis de serem pensadas, porque não existiriam se não fosse pelo Primeiro Bem. Pois, se se retira o fundamento da ordem tudo desaba em desordem.

116. [iv] Quarto, estabelece a conclusão racional, onde diz: “Como aquelas coisas não são simples, não poderiam de nenhum modo existir, a não ser que Aquele que é simplesmente é bom quisesse que elas existissem. Por esse motivo elas se dizem boas, já que o ser delas procede da vontade do Bem”; ora, tendo confrontado a suposição que emerge da redução ora feita, e demonstrado que de acordo com a realidade tal suposição é impossível, Boécio prossegue para estabelecer uma conclusão racional e óbvia; pois, “como aquelas coisas não são simples”, isto é, como as coisas não possuem a simplicidade perfeita, as mesmas “não poderiam de nenhum modo existir”, pois, somente existe per se Aquele que é simples per se, isto é, o ser auto-existente; logo, as coisas não poderiam existir, “a não ser que Aquele que é simplesmente bom quisesse que elas existissem”, ou seja, a não ser que o Ser Superior quisesse que as mesmas existissem, já que a existência é conferida apenas por Aquele que existe per se; portanto, ao serem existentes pela vontade do Primeiro Bem, tomam suas essências do fato de serem existentes a partir do Primeiro Bem; donde, “por este motivo elas se dizem boas, já que o ser delas procede da vontade do Bem”, isto é, procedem do Sumo-Bem.

Esta é a conclusão racional óbvia que emerge do raciocínio proposto por Boécio. Assim, as coisas existentes tem sua existência, e, consequentemente, suas essências, provenientes da vontade do Primeiro Bem, que aos chamar a existência, lhes conferiu a essência e o bem que convém a cada ente enquanto ente existente.

117. [v] Quinto, resolve a redução e apresenta a proposição para a solução, onde diz: “De fato, o Primeiro Bem é bom naquilo que é. Todavia, o segundo bem, pelo fato de fluir daquele cujo mesmo ser é bom, ele próprio também é bom. Além disso, o mesmo ser de todas as coisas fluiu daquele que é o Primeiro Bem e que é tão bom que propriamente se diz que é bom naquilo que é. Logo o mesmo ser delas é bom. Então, neste caso, não seriam boas naquilo que são, se de nenhum modo tivessem procedido do primeiro bem”; ora, tendo apresentado as consequências racionais que emergem dessa redução proposta, Boécio resolve a redução e apresenta a proposição direta para a solução da questão, já que todas as possibilidades possíveis que emergem esta redução foram analisadas e parcialmente solucionadas, tanto de maneira direta, quanto nos filosofemas imbuídos no texto.

118. E, a respeito disso, Boécio faz três coisas: primeiro, demonstra a natureza do Primeiro Bem, quando diz: “De fato, o Primeiro Bem é bom naquilo que é”; pois, o Primeiro Bem, é o único que é absolutamente bom naquilo que é, já que seu Ser é totalmente bom e absolutamente simples.

Segundo, demonstra o modo da processão da bondade das coisas existentes, quando diz: “Todavia, o segundo bem, pelo fato de fluir daquele cujo mesmo ser é bom, ele próprio também é bom”; pois, o segundo bem, ou o bem que concerne as coisas existentes, só são bem, porque fluem do Primeiro Bem, isto é, dAquele que cujo mesmo ser é bom, sendo Ele próprio sumamente bom.

Terceiro, explica que as coisas boas são o que são porque procedem do Primeiro Bem, quando diz: “Além disso, o mesmo ser de todas as coisas fluiu daquele que é o Primeiro Bem e que é tão bom que propriamente se diz que é bom naquilo que é. Logo o mesmo ser delas é bom. Então, neste caso, não seriam boas naquilo que são, se de nenhum modo tivessem procedido do primeiro bem”; pois, as coisas boas fluem do Primeiro Bem, o qual tem por característica indiscutível, que “é bom naquilo que é”, já que é o que é (cf. Êx 3.14a); portanto, as coisas que derivam do Primeiro Bem são boas no que são; por isso, “o mesmo ser delas é bom”.

Logo, se chega a conclusão de que “não seriam boas naquilo que são, se de nenhum modo tivessem procedido do primeiro bem”, isto é, não seriam boas naquilo que são se não fossem provenientes do Primeiro Bem; portanto, as coisas são boas naquilo que são porque provêm do Primeiro Bem, o qual é a fonte de todo bem.

119. Deste modo, Boécio soluciona a questão proposta, ao demonstrar que as coisas boas procedem da fonte de todo bem; pois, se são boas, emanam da fonte de todo bem; logo, as coisas boas são boas naquilo que são, porque procedem da vontade do Primeiro Bem. Portanto, fora solucionada a questão deste modo, demonstrando que as coisas boas necessariamente procedem da fonte de todo bem, pois, do contrário nem sequer existiriam; na verdade, se não fosse pela vontade do Primeiro Bem nada existiria (cf. Ap 4.11).

 

Lição 7

Analisa-se a solução da questão a respeito de como as coisas boas procedem do Primeiro Bem.

A. Texto de Boécio (De Hebdomadibus, cap. V).

Nisto resolve-se a questão: pois ainda que sejam boas naquilo que são, no entanto não são semelhantes ao Primeiro Bem, uma vez que as coisas não são de qualquer modo. O mesmo ser delas é bom, porém pelo motivo que o mesmo ser das coisas não pode existir, a não ser que tenha procedido do Primeiro Ser, ou seja, do Bem. Assim o mesmo ser é bom e não é semelhante Àquele do qual é. Porém Aquele é absolutamente bom naquilo que é, pois não é nada mais que bom. Enquanto este talvez pudesse ser bom, mas não poderia ser bom naquilo que é, a não ser que fosse por Aquele. Pois então, talvez, participariam do bem. Mas, em verdade, não poderiam ter o mesmo ser - que elas não teriam pelo bem - como bom.

Portanto, tendo suprimido o Primeiro Bem destes com a mente e com o pensamento, ainda assim seriam bons, porém não poderiam ser bons naquilo que são. E porque não poderiam existir em ato a não ser que Aquele que é verdadeiramente bom as produzisse, assim o ser delas – o qual procede do bem substancial - é bom e não lhe é semelhante. Se não procedessem dele e ainda fossem boas, todavia não poderiam ser boas naquilo que são, pois por um lado estariam fora do bem e ao mesmo tempo não seriam a partir dele. Sendo aquele mesmo Primeiro Bem tanto o mesmo ser como o mesmo bem e o mesmo ser bom.

[Primeira Objeção].

E não seria também conveniente que aquelas coisas que são brancas sejam brancas naquilo que são brancas, já que, para serem brancas, procederam da vontade de Deus?

[Resposta à Primeira Objeção].

De modo algum. Uma coisa é ser e outra ser branco. Isso é assim porque quem fez com que elas existissem, é certamente bom, mas de maneira alguma é branco. Logo, foi determinado pela vontade do Bem que fossem boas naquilo que são. Mas certamente não lhes foi determinado pela vontade de [algo] não branco esta propriedade de maneira que fossem brancas naquilo que são, pois tampouco procederam da vontade do branco. Assim, porque quis que elas fossem brancas quem não era branco, são somente brancas. No entanto, porque quis que elas fossem boas quem era bom, são boas também naquilo que são.

[Segunda Objeção].

Logo, segundo essa razão convém que todas as coisas sejam justas porque o mesmo Justo é quem quis que elas existissem?

[Resposta à Segunda Objeção].

Nem sequer isso. Pois ser bom concerne à essência, enquanto ser justo concerne à ação. Porém nEle é a mesma coisa ser e agir. Por consequência, [é] a mesma coisa ser bom e justo. No entanto para nós não é a mesma coisa ser e agir, pois não somos simples. Portanto, para nós não é o mesmo ser bons e ser justos, mas para todos nós é o mesmo ser naquilo que somos. Assim, todas as coisas são boas; porém nem todas são justas.

Mais ainda, o bem é algo geral. A justiça, porém, especial e a espécie não descende a todas as coisas. Por isso, sem dúvida, algumas coisas [são] justas, outras algo mais. Porém todas são boas.

 

B. Comentário.

120. Após apresentar as proposições para a solução da questão proposta, Boécio prossegue e resolve a questão (cap. V); e, sobre isso, faz duas coisas: primeiro, apresenta a solução da questão; segundo, apresenta duas objeções e as resolve.

121. Em relação ao primeiro, faz sete coisas: primeiro, estabelece a proposição da resolução da questão; segundo, evoca que o ser das coisas procede do Primeiro Bem; terceiro, demonstra a diferença entre as coisas boas e o Primeiro Bem; quarto, estabelece que as coisas só são boas naquilo que são a partir do Primeiro Bem; quinto, evoca novamente a proposição da redução teorética; sexto, demonstra que as coisas não poderiam existir em ato se não fosse pelo Primeiro Bem; sétimo, descreve o modo da processão das coisas boas do Primeiro Bem.

122. Primeiro, estabelece a proposição da resolução da questão, onde diz: “Nisto resolve-se a questão: pois ainda que sejam boas naquilo que são, no entanto não são semelhantes ao Primeiro Bem, uma vez que as coisas não são de qualquer modo”; e, Boécio propugna a solução da questão, ao evocar a raiz e o fundamento do modo como as coisas são boas, a saber, não como semelhantes ao Primeiro Bem, isto é, as coisas são boas não porque são o Primeiro Bem, o que, per se, é impossível; por isso, “não são semelhantes ao Primeiro Bem”; no entanto, as coisas tem um modo ser, o que, ao se ter excluído a proposição de serem o próprio Primeiro Bem, é evocada a partir da natureza das próprias coisas, “uma vez que as coisas não são de qualquer modo”, isto é, uma vez que as coisas possuem um modo de ser, ou seja, uma natureza e uma essência específica que está em ordem ao Primeiro Bem, conquanto não seja o Primeiro Bem.

123. Segundo, evoca que o ser das coisas procede do Primeiro Bem, onde diz: “O mesmo ser delas é bom, porém pelo motivo que o mesmo ser das coisas não pode existir, a não ser que tenha procedido do Primeiro Ser, ou seja, do Bem”; ora, após ter evocado que as coisas não são semelhantes ao Primeiro Bem, passa a evocar o modo como o ser das coisas são, a saber, como procedentes do Primeiro Bem; pois, “o mesmo ser delas é bom”, isto é, o ser das coisas possui algo de bom, mas não porque são semelhantes ao Primeiro Bem, ou seja, não porque são do mesmo modo que o Primeiro Bem, mas porque dEle procedem; por isso, “pelo motivo que o mesmo ser das coisas não pode existir”, isto é, do mesmo modo como o ser das coisas não é auto-existente per se, assim também as coisas não são boas per se, mas enquanto provenientes do Primeiro Bem, ou seja, “a não ser que tenha procedido do Primeiro Ser, ou seja, do Bem”. Somente sendo provenientes do Primeiro Bem, as coisas são boas, mas são boas enquanto procedem dEle, e não enquanto o próprio Bem. Deste modo, se pontua a distinção entre o ser das coisas e o Primeiro Bem.

124. Terceiro, demonstra a diferença entre as coisas boas e o Primeiro Bem, onde diz: “Assim o mesmo ser é bom e não é semelhante Àquele do qual é. Porém Aquele é absolutamente bom naquilo que é, pois não é nada mais que bom”; ora, tendo compreendido que as coisas boas procedem do Primeiro Bem, tanto em relação ao ser quanto em relação aquilo que são, nisto mesmo propõe a diferença entre as coisas boas e o Primeiro Bem; pois, “o mesmo ser é bom e não é semelhante Àquele do qual é”, isto é, o ser é proveniente do Ser e o bem do Primeiro Bem, mas não são a mesma coisa, são distintos. E, isto se demonstra por um simples raciocínio lógico-metafísico, pois, “Aquele é absolutamente bom naquilo que é, pois não é nada mais que bom”, enquanto que as coisas são boas naquilo que são porque procedem do Primeiro Bem.

Ora, a processão do bem nas coisas, demonstra a dependência das coisas do Primeiro Bem enquanto são boas, e do ser das coisas enquanto existentes a partir do Ser. Portanto, a distinção entre as coisas boas e o Primeiro Bem, é algo evidente e apodítico, tanto na realidade como no pensamento.

125. Quarto, estabelece que as coisas só são boas naquilo que são a partir do Primeiro Bem, onde diz: “Enquanto este talvez pudesse ser bom, mas não poderia ser bom naquilo que é, a não ser que fosse por Aquele. Pois então, talvez, participariam do bem. Mas, em verdade, não poderiam ter o mesmo ser - que elas não teriam pelo bem - como bom”; ora, tendo compreendido a distinção entre as coisas boas e o Primeiro Bem, estabelece um preceito fundamental, a saber, que as coisas só são boas naquilo que são a partir do Primeiro Bem; pois, “enquanto este talvez pudesse ser bom, mas não poderia ser bom naquilo que é”, isto é, se as coisas pudessem por si ser boas somente seriam boas, mas não seriam o que são, o que geraria a separação entre aquilo que são e o ser bom, o que é uma impossibilidade; logo, só são boas naquilo que são, “a não ser que fosse por Aquele”, isto é, somente por causa do Primeiro Bem.

Por isso, se não fosse deste modo, “então, talvez, participariam do bem”, isto é, teriam algo do bem, mas, “em verdade, não poderiam ter o mesmo ser - que eles não teriam pelo bem - como bom”, ou seja, não seriam algo e seriam boas naquilo que são, o que, como já fora elucubrado, é algo impossível de ocorrer na realidade já que é impossível de ocorrer no próprio pensamento.

126. Quinto, evoca novamente a proposição da redução teorética, onde diz: “Portanto, tendo suprimido o Primeiro Bem destes com a mente e com o pensamento, ainda assim seriam bons, porém não poderiam ser bons naquilo que são”; ora, ao ter demonstrado que as coisas só são boas naquilo que são a partir do Primeiro Bem, evoca novamente a proposição da redução teorética feita anteriormente, pois, “tendo suprimido o Primeiro Bem destes com a mente e com o pensamento”, se demonstra que mesmo assim as coisas seriam boas; no entanto, “não poderiam ser bons naquilo que são”, isto é, poderiam ser boas, mas uma coisa seria o ser e outra o ser boas naquilo que são; logo, não se pode suprimir o Primeiro Bem na realidade, pois, as coisas são boas naquilo que são, isto é, o ser das coisas e a bondade nas coisas, que existem conjuntamente e de maneira indissolúvel, já que o ato de ser é o que confere as coisas o serem boas, são procedentes do Primeiro Bem.

127. Sexto, demonstra que as coisas não poderiam existir em ato se não fosse pelo Primeiro Bem, onde diz: “E porque não poderiam existir em ato a não ser que Aquele que é verdadeiramente bom as produzisse, assim o ser delas – o qual procede do bem substancial - é bom e não lhe é semelhante”; ora, após ter novamente evocado a redução teorética e sua impossibilidade real, passa a demonstrar que as coisas não poderiam existir se não fosse pelo Primeiro Bem; pois, “não poderiam existir em ato a não ser que Aquele que é verdadeiramente bom as produzisse”, isto é, a não ser que fossem provenientes do Primeiro Bem, ao passo que, por serem provenientes dEle, “o ser delas - o qual procede do bem substancial - é bom e não lhe é semelhante”, ou seja, o ser das coisas procede do Bem Substancial, ao mesmo tempo que ao serem boas, demonstram esta processão, embora também demonstrem que distam infinitamente do Bem Substancial.

Ora, o Ser, o Bem Substancial, está muito acima dos entes finitos (sejam coisas, sejam seres); logo, as coisas são boas naquilo que são, porque procedem dEle, ao passo que as coisas boas não tem semelhança substancial para com Aquele de que procedem, isto é, não se tornam o Primeiro Bem; pois, semelhança substancial seria terem a mesma substância; ora, como isso é impossível, então as coisas boas não tem semelhança substancial com o Bem Substancial. Pois, a Substância Primeira é una e indivisa, e nenhuma das substâncias primárias ou secundárias se torna ou é semelhante a Substância Primeira, pois são sempre divisas e múltiplas.

Pois, quanto a processão se pode ter semelhança ou dessemelhança com relação ao procedente; no caso da processão dos entes finitos do ente infinito, há tanto semelhança quanto dessemelhança; embora, a semelhança se dê apenas porque são boas, não porque são o Bem; e a dessemelhança se dá pela comparação da perfeição da substância, pois, enquanto nas coisas boas a substância é imperfeita e dependente, no Primeiro Bem a substância é perfeitíssima absolutamente independente.

128. Sétimo, descreve o modo da processão das coisas boas do Primeiro Bem, onde diz: “Se não procedessem dele e ainda fossem boas, todavia não poderiam ser boas naquilo que são, pois por um lado estariam fora do bem e ao mesmo tempo não seriam a partir dele. Sendo aquele mesmo Primeiro Bem tanto o mesmo ser como o mesmo bem e o mesmo ser bom”; ora, após demonstrar que as coisas não poderiam existir em ato se não fosse pelo Primeiro Bem, ao afirmar que as coisas são boas naquilo que são porque procedem do Bem Substancial, passa a descrever o modo da processão das coisas boas do Primeiro Bem; pois, “se não procedesse dele e ainda fosse boas, todavia não poderiam ser boas naquilo que são”, já que isto é uma impossibilidade real, já que para ser e ser boa, é necessário proceder do Primeiro Bem; portanto, se assim fosse, não poderiam ser boas naquilo que são, já que “por um lado estariam fora do bem”, isto é, não participariam do bem, e por outro lado “não seriam a partir dele”, isto é, não teriam procedência do Primeiro Bem, o que faria pensar que são o Bem Substancial, o que é algo absurdo; por isso, as coisas boas procedem do Primeiro Bem, porque tanto o ser como o ser bem procedem dEle; pois, tanto um aspecto quanto o outro dependem do Primeiro Bem, logo, dEle procede “tanto o mesmo ser como o mesmo bem e o mesmo ser bem”. As coisas boas procedem do Primeiro Bem, tanto na ordem do ser quanto na ordem da bondade.

129. Assim, Boécio apresenta a solução da questão de maneira singular; e propugna a proposição verdadeira e apodítica de que as coisas que são, são e são boas, porque procedem do Primeiro Bem, tanto no ser quanto no bem. E, conquanto a resposta tenha sido formulada de modo completo e eficaz, ainda surgem algumas dúvidas e objeções a respeito do modo da processão.

130. Por isso, após apresentar a solução da questão, Boécio prossegue para o segundo aspecto, onde apresenta duas objeções e as resolve (n. 120). Ora, estas duas objeções estão em ordem a solução propugnada, pois, estabelecem aspectos concernentes ao entendimento daquilo que Boécio argumentara sobre o assunto; portanto, nestas duas objeções se mostram dúbias com respeito a solução da questão, em dois aspectos que ficaram ainda um pouco ambíguos ou que podem gerar ambiguidades. Logo, se põe estas duas objeções para solucionar estes aspectos, e concluir plenamente a solução da questão.

131. Por isso, na primeira objeção, formula a seguinte indagação: “E não seria também conveniente que aquelas coisas que são brancas sejam brancas naquilo que são brancas, já que, para serem brancas, procederam da vontade de Deus?”; ora, nesta objeção, Boécio indaga se as coisas que são serem brancas são da vontade de Deus do mesmo modo como o fato de serem boas.

E, evidentemente, Boécio põe a indagação e a responde; e, ao responder faz quatro coisas: primeiro, responde a objeção; segundo, estabelece a distinção entre o qualificativo da existência e os qualificativos na existência; terceiro, demonstra a diferença entre a processão do bem e a processão da cor; quarto, evoca o qualificativo primordial das coisas existentes tanto em relação ao ser quanto em relação as qualidades.

132. Primeiro, responde a objeção, onde diz: “De modo algum”; ora, a resposta de Boécio é direta; pois, não é conveniente que as coisas que são brancas sejam brancas naquilo que são brancas, senão isto seria procedência da vontade de Deus quanto ao ser das coisas; logo, em relação a qualificativos secundários das coisas, tal como expresso por alguma das propriedades categóricas, na verdade, são assim de acordo com as coisas boas naquilo que são, mas não são assim porque procedem da vontade de Deus, mas porque procedem do fato de serem boas e assim terem alguns qualificativos que são próprios das coisas, tal como a cor.

133. Segundo, estabelece a distinção entre o qualificativo da existência e os qualificativos na existência, onde diz: “Uma coisa é ser e outra ser branco. Isso é assim porque quem fez com que elas existissem, é certamente bom, mas de maneira alguma é branco”; ora, após responder, Boécio explica a resposta, e estabelece uma distinção, pois, “uma coisa é ser e outra ser branco”, isto é, quanto ao ser, as coisas procedem do Primeiro Bem, mas quanto a cor, não; pois, a existência das coisas é conferida pela vontade de Deus, mas o fato de possuírem determinada cor é qualificativo que possuem enquanto ente existente; e, “isso é assim porque quem fez com que elas existissem, é certamente bom”, ou seja, enquanto são existentes as coisas procedem do Bem Substancial, o qual é Bem, “mas de maneira alguma é branco”, isto é, não é parte dos qualificativos de cor.

Logo, as coisas são boas porque procedem do Primeiro Bem, mas se possuem cor, é qualificativo que possuem enquanto entes existentes na realidade; ou seja, o serem bens é parte da essência das coisas, enquanto o serem brancas é parte da existência das coisas no que concerne as próprias coisas e de acordo com as inter-relação das coisas naturais.

134. Terceiro, demonstra a diferença entre a processão do bem e a processão da cor, onde diz: “Logo, foi determinado pela vontade do Bem que fossem boas naquilo que são. Mas certamente não lhes foi determinado pela vontade de [algo] não branco esta propriedade de maneira que fossem brancas naquilo que são, pois tampouco procederam da vontade do branco”; ora, tendo descrito a diferença entre serem boas e serem brancas, passa a demonstrar a diferença entre a processão do bem e a processão da cor.

Pois, em relação a processão do bem, “foi determinado pela vontade do Bem que fossem boas naquilo que são”; logo, são boas porque procedem dEle; agora, em relação a processão da cor, “certamente não lhes foi determinado pela vontade de [algo] não branco esta propriedade de maneira que fossem brancas naquilo que são”, já que a cor não possui vontade, e assim, “tampouco procederam da vontade do branco”.

Assim, se distingue entre a processão do bem, que é algo proveniente da vontade de Deus; e a processão da cor, que é algo natural, pelo contato das coisas com a luz na realidade.

E mesmo que todas as coisas dependam da vontade de Deus, isto é, estejam sob Sua soberania, mesmo as cores, no entanto, quanto a cor de determinada coisa, a mesma é definida em relação a um processo natural na realidade, e não tanto quanto a vontade de Deus para a essência das coisas.

Por isso, se fala que as coisas ao serem boas procedem da vontade de Deus, isto é, procedem da vontade de Deus quanto a essência, enquanto que ao serem de determinada cor não se afirma que procedem da vontade de Deus, já que a cor não indica a essência das coisas enquanto são boas.

135. Quarto, evoca o qualificativo primordial das coisas existentes tanto em relação ao ser quanto em relação as qualidades, onde diz: “Assim, porque quis que elas fossem brancas quem não era branco, são somente brancas. No entanto, porque quis que elas fossem boas quem era bom, são boas também naquilo que são”; ora, tendo feito a distinção entre a processão do bem e a processão da cor, prossegue e evoca o qualificativo primordial das coisas existentes, dividido em dois aspectos: primeiro, em relação ao ser, já que são porque procedem da vontade de Deus; segundo em relação as qualidades, já que existem como entes existentes.

Logo, “porque quis que elas fossem brancas quem não era branco, são somente brancas”, isto é, porque são brancas por um efeito natural, são somente brancas; mas, “porque quis que elas fossem boas quem era bom, são boas também naquilo que são”, isto é, porque procedem da vontade do Primeiro Bem, são boas naquilo que são. Portanto, as coisas existentes tem sua processão do Primeiro Bem, enquanto são coisas boas naquilo que são, mas enquanto são brancas, apenas são brancas. O ser das coisas difere das qualidades que são inerentes ao modo como as coisas são e dos aspectos da geração e da corrupção inerente as coisas neste mundo, como, por exemplo, na questão da cor.

136. Ora, tendo compreendido a razão da primeira objeção, e os aspectos que concernem a explicação da mesma, cumpre compreender os mesmos aspectos concernentes a segunda objeção.

E na segunda objeção, formula a seguinte indagação: “Logo, segundo essa razão convém que todas as coisas sejam justas, porque o mesmo Justo é quem quis que elas existissem?”; ora, nesta objeção, Boécio indaga que se as coisas ao serem justas são assim porque procedem do Justo.

E, de igual modo a primeira objeção, Boécio põe a indagação e a responde; e, ao responder, faz cinco coisas: primeiro, responde a segunda objeção; segundo, evoca a distinção entre o que concerne a essência e o que concerne à ação; terceiro, demonstra que no Primeiro Bem ser e agir são a mesma coisa; quarto, estabelece a diferença entre as coisas e o Primeiro Bem; quinto, evoca a diferença entre a bondade e a justiça com relação as coisas.

137. Primeiro, responde a segunda objeção, onde diz: “Nem sequer isso”; ora, do mesmo modo como na primeira objeção, a resposta é negativa; pois, nem todas as coisas que são, são justas; mas, todas as coisas que são, são boas naquilo que são; portanto, é evidente, que ao procederem do Primeiro Bem, são boas, mas não necessariamente justas, mesmo que o Primeiro Bem também seja Justo (cf. Sl 11.7). Pois, aquilo que são competem a bondade e não primeiramente a justiça; logo, o bem é uma substância, enquanto que a justiça é uma ação. Embora, em Deus, Bem e Justiça sejam parte de Sua substância.

138. Segundo, evoca a distinção entre o que concerne a essência e o que concerne à ação, onde diz: “Pois ser bom concerne à essência, enquanto ser justo concerne à ação”; ora, após ter respondido a objeção, Boécio prossegue e evoca a distinção fundamental entre o que concerne a essência e o que concerne à ação; pois, o bem concerne a essência: “pois ser bom concerne a essência”, já que são boas naquilo que são porque procedem do Primeiro Bem; e o ser justo concerne a ação: “enquanto que ser justo concerne à ação”, isto é, as coisas enquanto são boas naquilo que são, podem ser justas; pois, a justiça em relação as coisas está na categoria da ação e não na substância da coisa, na qual está o bem.

139. Terceiro, demonstra que no Primeiro Bem ser e agir são a mesma coisa, onde diz: “Porém nEle é a mesma coisa ser e agir. Por consequência, [é] a mesma coisa ser bom e justo”; ora, após evocar a distinção entre o que concerne a essência e o que concerne à ação, demonstra que no Primeiro Bem ser e agir são a mesma coisa; pois, o ser simples, o Bem Substancial, tem este qualificativo exclusivo; donde, “nEle é a mesma coisa ser e agir”, pois, em Seu Ser não há distinção de atributos segundo o acidente, mas existem substancialmente do mesmo modo; por isso, “por consequência”, nEle, “[é] a mesma coisa  ser bom e justo”, pois, Ele é ao mesmo tempo bom e justo. Mas, evidentemente, esta é uma característica apenas do Primeiro Bem e não das coisas.

140. Quarto, estabelece a diferença entre as coisas e o Primeiro Bem, onde diz: “No entanto para nós não é a mesma coisa ser e agir, pois não somos simples. Portanto, para nós não é o mesmo ser bons e ser justos, mas para todos nós é o mesmo ser naquilo que somos. Assim, todas as coisas são boas; porém nem todas são justas”; ora, após ter demonstrado uma característica exclusiva do Primeiro Bem, evidentemente, passa a demonstrar a diferença entre as coisas e o Primeiro Bem; pois, “para nós não é a mesma coisa ser e agir, pois não somos simples”, isto é, para a coisas, ser e agir não estão coadunados como no Primeiro Bem, pois, diferentemente do Bem Substancial, as coisas não são simples; logo, “para nós não é o mesmo ser bons e ser justos”, pois, ser bom e ser justo concerne a aspectos diferentes, o primeiro refere-se a essência, o segundo refere-se a ação.

Com isso, conclui-se que, “para todos nós é o mesmo ser naquilo que somos”, isto é, as coisas são aquilo que são em suas essências, pela processão do Primeiro Bem em relação a existência e em relação a essência; por isso, “todas as coisas são boas”, já que emanam do Primeiro Bem naquilo que são; mas, “nem todas são justas”, já que nem todas em suas ações necessitam de justiça naquilo que são, embora necessitem do Bem. Pois, as coisas podem ser boas sem ser justas, embora as coisas boas não sejam injustas; por isso, podem ser boas sem serem justas, mas jamais serem justas sem serem boas. Nas coisas, o Bem antecede a justiça; enquanto que em Deus, estão no mesmo patamar e em infinita e eterna igualdade, pois nEle não há mudança nem sombra de variação (cf. Tg 1.17).

141. Quinto, evoca a diferença entre a bondade e a justiça com relação as coisas, onde diz: “Mais ainda, o bem é algo geral. A justiça, porém, especial e a espécie não descende a todas as coisas. Por isso, sem dúvida, algumas coisas [são] justas, outras algo mais. Porém todas são boas”; ora, após estabelecer a distinção entre as coisas e o Primeiro Bem quanto ao ser e o agir, Boécio prossegue e evoca a diferença entre a bondade e a justiça com relação as coisas; pois, “o bem é algo geral”, isto é, é um gênero, ou no sentido ontológico, um transcendental; e, “a justiça, porém especial”, isto é, é algo específico, e não sendo um gênero, mas uma espécie, sabe-se que “a espécie não descende a todas as coisas”; logo, se compreende, de maneira indubitável, que “algumas coisas [são] justas”, pois, a espécie descende a apenas algumas coisas, o que se dá também com outros qualificativos especiais ou espécies; logo, algumas coisas são ainda algo mais, isto é, tem outros qualificativos que não descendem a todas as coisas. No entanto, em relação a todas as coisas existentes, “todas são boas”, pois, a bondade é um gênero que qualifica o ente real independente das espécies participadas pelo próprio ente.

142. Ora, tudo aquilo que é, tem algo do bem, pois o Sumo Bem faz com que sejam o que são; por isso, “concluímos que o que todos desejam é, precisamente, o bem”, então, “é inevitável reconhecer que o bem é o fim universal de todas as coisas[46]; logo, é o bem o princípio e o fim de todas as coisas; portanto, se constata que todas as coisas são boas porque o princípio das mesmas é bom, bem como porque o fim universal de todas as coisas é o bem, a saber, o próprio Sumo Bem; por isso, todas as coisas que são, são boas; etc.

143. E termina aqui o comentário a este livro. Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém. 



[1] cf. Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios [2ª ed. Campinas, SP: Ecclesiae, 2017], livro I, cap. II, n. 1, pág. 48.

[2] Tomás de Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra Errores, 2023], prol., pág. 126.

[3] Alguns optam por empregar o termo Hebdomadibus como Hebdomadários; aqui opta-se por Hebdômadas, tal como na tradução utilizada.

[4] Estes três aspectos estão em conformidade aos princípios estabelecidos pelo aquinate no prólogo de seu comentário ao De Hebdomadibus (cf. Tomás de Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra Errores, 2023], prol., pág. 126-128).

[5] O termo hebraico para Hebdômada é הַשְּׁבִיעִ֜י, ao passo que o termo grego é ἑβδόμου, que também aparece em outros locais na Escritura, principalmente onde se aparece o termo sete, e em alguns casos em seus correlatos cardinais e ordinais (cf. Ap 10.7).

[6] A partir da analogia fidei, se pode entender a Festa das Trombetas como o anúncio garrafal da benevolência de Deus para com todos os homens, já sinalizado de maneira natural e cósmica através do arco-íris (cf. Gn 9.12-15); mas esta benevolência universal de Deus, também é benevolência e misericórdia especial com aqueles que o temem e que o buscam (cf. Sl 25.10; 103.17-18). Por isso, a mensagem da misericórdia de Deus, o evangelho, é a trombeta de Deus, que anuncia esta misericórdia e instrui os homens para viverem de acordo com esta misericórdia, nos privilégios e deveres dos filhos de Deus (cf. Jo 1.12; Ef. 1.3ss; Hb 12.14-15).

[7] Gilbertus Porretanus, Expositio in Boethii Librum De Bonorum Hebdomade, prol., n. 10.

[8] Sobre a distinções das luzes pela razão natural, consultar a proposição de Boaventura (cf. Boaventura, De Reductione Artium ad Theologiam, n. 1).

[9] A ideia da filosofia como jogo é mais propriamente evocado a partir dos filósofos modernos; mas, encontra um duplo escopo nesta proposição: pois, há um aspecto correto, já identificado, por exemplo, por Nietzsche, e há um aspecto negativo, da destruição da verdadeira filosofia tornando-a um jogo anti-sabedoria, como Boécio já houvera alertado; no entanto, a verdadeira filosofia pode ser entendida como parte do verdadeiro jogo da sabedoria, enquanto que a falsa filosofia, a anti-filosofia, é parte do falso jogo que tem nome de sabedoria, mas que sabedoria não é; esta distinção, fica mais entendível, a partir do modo como se entende aqueles que buscam a sabedoria, com esmero, dedicação e perseverança, e aqueles que rejeitam a sabedoria, definidos por Boécio como desenfreados e insolentes, ou, na proposição do aquinate, os luxuriosos e superficiais.

[10] O aquinate apresenta o escrito de Boécio subdividido em duas partes: proêmio e discussão da obra (cf. Tomás de Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra Errores, 2023], cap. I, pág. 132).

[11] Ibidem. Pág. 132.

[12] Ibidem. Pág. 134.

[13] A leitura de Alberto Magno sobre a proposição de Boécio, define o termo ser que Boécio emprega no sentido de essência (cf. Alberto Magno, Quaestio de Quiditate et Esse, n. 75, In: Alberto Magno, O Ser e a Inteligência [Porto Alegre, RS: Concreta, 2017], pág. 167). E, este também é o sentido empregado por Tomás de Aquino em sua análise do De Hebdomadibus, bem como compõem parte do eixo fundamental da doutrina do aquinate, a saber: no opúsculo De Ente et Essentia, o aquinate analisa o ente e a essência, ou mais especificamente, as noções de ente, existência e essência, enquanto que no comentário ao De Hebdomadibus, o aquinate analisa o ser e a participação, ou mais propriamente, a essência e a participação. São textos que, num escopo geral, se complementam no âmbito da doutrina do aquinate; mas não somente no âmbito da doutrina tomasiana, mas também no âmbito da reflexão sobre o ser e sobre a ontologia em geral. Alguns dos preceitos fundamentais da filosofia estão imbuídos nas díades ente-essência e essência-participação, subsequentes e auto-complementares.

[14] Cícero, Discussões Tusculanas [Uberlândia: EDUFU, 2014], livro I, cap. I, n. 1, pág. 19.

[15] cf. Tomás de Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra Errores, 2023], cap. I, pág. 134.

[16] Alberto afirma: “as duas coisas que, quando são desconhecidas, desejamos conhecer, a saber, o incomplexo e o complexo” (Alberto Magno, De Praedicamentis, trat. I, cap. I).

[17] A recusa em se aperceber da realidade, fenômeno patológico pouco estudado, diz respeito a uma atitude de completa negação e rejeição a realidade; para Voegelin, a recusa em se aperceber da realidade, é “o cerne patológico na estrutura da consciência que permite ao sonhador desprezar o argumento racional contra sua interpretação” (Eric Voegelin, Ensaios Publicados 1966-1985 [São Paulo: É Realizações, 2019], pág. 392).

[18] Tomás de Aquino, Op. Cit., cap. I, pág. 134.

[19] Ibidem.

[20] Tomás de Aquino, O Ente e a Essência [2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014], prol., pág. 17.

[21] Tomás de Aquino, Op. Cit., 2023, cap. II, pág. 138.

[22] Isto é, a instrução necessária, o saber necessário, àqueles saberes que requerem conhecimentos prévios para serem entendidos, tal como disposto na sentença analítica do Filósofo.

[23] Em relação a esta lição surgiram duas dúbias, numa grande digressão, porque o que fora explicado a partir das proposições de Boécio, defrontam-se com um problema predicamental; logo, se faz necessário explicar estas dúbias sobre este problema, o que permeia não só as Hebdômadas, mas preceitos concernentes aos Predicamentos. Então, que se compare as nuances evocadas nestas dúbias e as respectivas soluções e respostas aos argumentos, com as proposições evocadas em nosso comentário ao livro das Categorias (especificamente em relação aos anti-predicamentos).

[24] cf. Tomás de Aquino, Op. Cit., 2023, cap. I, pág. 136.

[25] cf. Duns Scotus, Quaestiones in Libros Elenchorum, q. 15, n. 3.

[26] cf. Duns Scotus, Quaestiones in Librum Porphyrii Isagoge, q. 12, n. 15-18.

[27] cf. Duns Scotus, Ordinatio [ed. ingl.], livro I, d. 3, pars 1, q. 3, n. 151.

[28] cf. Tomás de Aquino, O Ente e a Essência [2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014], proem., n. 1, pág. 17.

[29] Cardeal Caetano de Vio, Comentário ao Do Ente e da Essência de Santo Tomás de Aquino [Contra Errores, 2022], cap. I, n. 10, pág. 115.

[30] Tomás de Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra Errores, 2023], cap. II, pág. 144.

[31] Porfírio, Isagoge: Introdução às Categorias de Aristóteles [São Paulo: Attar, 2002], V, n. 1, pág. 51.

[32] Ibidem, n. 4, pág. 51.

[33] cf. Alberto Magno, De Praedicamentis, trat. I, cap. 7.

[34] Tomás de Aquino, Op. Cit., 2023, cap. II, pág. 144.

[35] Ibidem.

[36] cf. Gilbertus Porretanus, Expositio in Boethii Librum De Bonorum Hebdomade, n. 57-58.

[37] Tomás de Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra Errores, 2023], cap. III, pág. 152.

[38] Gilbertus Porretanus, Expositio in Boethii Librum De Bonorum Hebdomade, n. 95.

[39] Tomás de Aquino, Op. Cit., cap. III, pág. 152.

[40] Ibidem.

[41] Porretanus, Op. Cit., n. 95.

[42] Tomás de Aquino, Op. Cit., cap. III, pág. 154.

[43] Gilbertus Porretanus, Expositio in Boethii Librum De Bonorum Hebdomade, n. 110.

[44] Tomás de Aquino, Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio [Contra Errores, 2023], cap. IV, pág. 160.

[45] Aliás, menciona-se o fato de que muitas das confusões teoréticas que são parte da modernidade são fundamentadas neste dualismo doentio, que impregnou quase tudo, e tornou as coisas existentes expressão deste dualismo, que permeia desde a lógica até a metafísica, a ética, a política, a economia, etc. E, como se sabe, este dualismo se inicia, pelo menos teoreticamente, na impugnação da distinção correta e precisa da teologia como ciência teórica e prática, quando Scotus passa a propugnar a teologia mais como ciência prática do que como ciência especulativa (cf. Ordinatio [ed. ingl.], prol., pars V, q. 1-2, n. 217-366). Portanto, este dualismo passa a impregnar desde a lógica, que toma forma na tese da impossibilidade de se conhecer os universais, até a metafísica, distinguido a mesma da teologia, isto é, da teologia atinente a filosofia; e, isto fez com que Scotus, muito provavelmente sem ter esta intenção, cavasse um abismo entre fé e razão, entre ser e conhecer, etc., que culmina no “primado” da vontade sobre o intelecto, isto é, no primado do que o “eu” deseja sobre o que o “eu” raciocina. Logo, assim se terá a vontade como aferidora de medida, ao invés da razão; o que, por si, ocasiona inúmeros problemas terríveis na ordem do ser e na ordem do conhecimento, os quais, são característica indiscutível da modernidade.

[46] Boécio, A Consolação da Filosofia [Campinas, SP: Vide Editorial, 2023], livro III, pros. 11, n. 41, pág. 129. 


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