14/10/2024

Comentário a Epístola IV de Pseudo-Dionísio

Prefácio.

 

Depois da epístola III, onde analisa a questão da possibilidade e da necessidade da Encarnação, se adentra a epístola IV, onde se analisa a Encarnação propriamente dita; pois, este mistério da fé, inicia-se na elucubração quanto ao vir-a-ser, e depois, adentra-se na reflexão sobre o mistério da Encarnação em si mesmo; e, nesta epístola, Pseudo-Dionísio novamente sobressai-se de maneira peculiar, pois, apresenta reflexões sobre a Encarnação, de um modo em que conseguira sintetizar em poucas palavras quase tudo quanto concerne a este singular mistério da fé.

Deste modo, esta epístola, que complementa a anterior, pode ser tida como um pequeno tratado teológico a respeito da Encarnação; portanto, compete analisar o que compete a mesma, a fim de aclarar as perspectivas dionísicas sobre este tópico teológico; pois, o que Pseudo-Dionísio houvera afirmado sobre o mistério da Encarnação, continua sendo um dos mais belos e singulares textos teológicos a respeito deste assunto, mesmo que dispostos em uma pequena epístola.

Pois, fundamentalmente, o mistério da Encarnação é um mistério do amor de Deus, tal Georges Florovsky afirma: “O mistério da Encarnação foi um mistério do amor divino”; por isso, o que concerne a Encarnação diz respeito a manifestação do amor de Deus, que pela proposição bíblica, é talhado pela expressão “de tal maneira” (cf. Jo 3.16); portanto, a Encarnação diz respeito ao grande amor de Deus pela humanidade ao ponto de outorgar Seu Filho para morrer no lugar dos pecadores. Por isso, o mistério da Encarnação é um mistério do Amor.

Assim, na explicação desta epístola se consegue aperceber de algumas distinções fundamentais na elucubração sobre a Encarnação, as quais estão imbuídas na pressuposição fundamental desse mistério como mistério do Amor; portanto, o que emerge da explicação desta epístola e da solução das dúbias, demonstra os preciosos insights e as perspectivas que surgem da pena de Pseudo-Dionísio no que concerne a este tópico, e que estão em ordem ao preceito revelacional quanto a Encarnação do Verbo.

Soli Deo Gloria!

In Nomine Iesus!

13 de outubro de 2024.


Texto de Pseudo-Dionísio (Epist. IV).

“Como”, dizes, “Jesus, que está acima de todas as coisas, é coordenado essencialmente junto a todos os homens?” Pois não é dito aqui homem como causa dos homens, mas enquanto sendo em toda substância verdadeiramente homem. Nós, porém, não definimos Jesus humanamente, pois não é só homem, e nem seria supersubstancial se fosse só homem, mas é verdadeiramente homem Aquele que, sendo exímio amante dos homens, foi, acima dos homens e segundo os homens, substanciado a partir dos homens, embora fosse super-substancial – nada obstante, não é menos super-pleno de substancialidade Aquele que é sempre abundância supersubstancial de super-substancialidade. E, advindo verdadeiramente à substância, é substanciado super-substancialmente e opera as coisas humanas sobre-humanamente. E isso é demonstrado por uma virgem ter sobrenaturalmente dado à luz (cf. Mt 1.18-25; Lc 1.27-31; DN II, 9), e uma instável água não ter cedido quando sustentava o peso de pés materiais e terrenos (cf. Mt 14.25-33; Mc 6.45-52; Jo 6.16-21), mas permanecia reunida por certa virtude sobrenatural – e haverá quem recorde de todas as outras coisas, que são numerosíssimas? Através delas, se alguém as vir divinamente acima da mente, conhecerá também que aquelas coisas que são afirmadas daquela filantropia de Jesus possuem virtude de negação excelente (cf. CH IV, 4). Com efeito, para falarmos brevemente, nem era homem, nem não homem, mas, vindo dos homens, era além dos homens, e sendo superior aos homens, foi feito verdadeiramente homem. Além disso, não perfazia as coisas divinas como Deus, nem as humanas enquanto homem, mas, sendo Deus feito homem, demonstrava para conosco uma certa nova operação teândrica.


A. Proêmio.

1. “Muitas coisas escondidas são ainda maiores, pois vimos apenas poucas das suas obras” (Eclo. 43.36); ora, estas palavras competem à matéria e ao assunto desta epístola; pois, a Encarnação do Verbo, mistério altissonante da fé, mostra o Deus que se humanou, mas também evidencia quão grandes mistérios ainda permaneceram ocultos; ora, segundo a Escritura, se fossem contadas todas as coisas que Cristo fez, nem no mundo inteiro caberiam os livros (cf. Jo 20.30-31), e isto quanto as Suas obras, isto é, as coisas que foram manifestadas; agora, quanto ao Seu Ser, Sua deidade, são velados muitos aspectos, que se fossem possíveis de serem descritos, transcenderiam infinitamente a contagem de Suas obras.

2. Portanto, “muitas coisas escondidas são ainda maiores”, isto é, são ainda mais excelsas e gloriosas; pois, os mistérios concernentes a Encarnação, possui sua glória peculiar na manifestação, mas possuem glória ainda maior no que está velado; pois, a Encarnação é manifestação e ocultação; manifestação em carne, do Deus humanamente substanciando (cf. 1Tm 3.16); e ocultação na carne da substância divina (cf. Cl 2.9); pois, Ele que é super-substancial, fora humanamente substanciado; logo, em Cristo, o Verbo Encarnado, se tornam conhecidos os mistérios tanto que concernem a manifestação quanto os que concernem a ocultação, isto é, tanto em relação a substanciação humana, quanto em relação a Sua super-substancialidade.

3. Deste modo, a Encarnação, considerada em si mesmo, diz respeito primordialmente a humilhação; e, a respeito disso dois aspectos são salientados: primeiro, quanto ao preceito da humilhação de Cristo. “porque já sabeis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, por amor de vós se fez pobre, para que, pela sua pobreza, enriquecêsseis” (2Co 8.9). “De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus” (Fp 2.5-6). Segundo, quanto ao modo da humilhação de Cristo. “mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei” (Gl 4.4). “Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte e morte de cruz” (Fp 2.7-8).

4. Ora, Pseudo-Dionísio evoca a consideração da Encarnação considerada em si mesmo, justamente sob este prisma; pois, o mistério da Encarnação é o mistério da auto-destituição, o mistério do esvaziamento (cf. Fp 2.7); pois, Ele passara pela humilhação, justamente para como homem, redimir o homem e o cosmos, e com isso, ser o perfeito redentor dos fiéis. “Porque nos convinha tal sumo sacerdote, santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores e feito mais sublime do que os céus, que não necessitasse, como os sumos sacerdotes, de oferecer cada dia sacrifícios, primeiramente, por seus próprios pecados e, depois, pelos do povo; porque isso fez ele, uma vez, oferecendo-se a si mesmo. Porque a lei constitui sumos sacerdotes a homens fracos, mas a palavra do juramento, que veio depois da lei, constitui ao Filho, perfeito para sempre(Hb 7.26-28).

Portanto, em Sua vida e obra, operou tanto como homem, naquilo que manifestou aos homens, quanto operou como Deus, em Seus prodígios gloriosos para dar eficácia naquilo que manifestou aos homens; e evidentemente, isso é feito sob a proposição de que ele “demonstrava para conosco uma certa nova operação teândrica”; e isto, é o que concerne a esta epístola, pois, a Encarnação, ao ser considerada em si mesma, demonstra a operação teândrica de Cristo para com os homens; logo, etc. 

 

B. Comentário.

1. Após na epístola III analisar a questão do vir-a-ser da Encarnação, Pseudo-Dionísio prossegue, e na epístola IV, analisa a Encarnação propriamente dito, sobre o Cristo encarnado, o termo da Encarnação; Alberto afirma que a dúvida de Gaio surgiu a partir das palavras de Pseudo-Dionísio nos livros De Divinis Hypotyposibus” e “De Divinis Nominibus (cf. DN II), a respeito da afirmação de que Cristo, enquanto homem, está coordenado a nós[1], isto é, em relação a nossa humanidade.

2. E isso, pois que a reflexão sobre a Encarnação ao refletir sobre a humanidade de Deus, necessariamente volve-se também à compreensão do que isto infere a respeito da nossa humanidade; por isso, sobre esta questão, Pseudo-Dionísio apresenta sete aspectos: primeiro, estabelece a questão; segundo, estabelece a razão de se referir a humanidade de Cristo; terceiro, apresenta a razão da humanidade de Cristo; quarto, evoca a demonstração da humanidade de Cristo; quinto, evoca a virtude da humanidade de Cristo; sexto, apresenta a relação entre a divindade e a humanidade de Cristo; sétimo, evoca a operação teândrica de Cristo para com os homens.

3. Primeiro, estabelece a questão, onde diz: “‘Como’, dizes, ‘Jesus, que está acima de todas as coisas, é coordenado essencialmente junto a todos os homens?’”; ora, aqui se estabelece a dúbia, em consonância com algo que fora afirmado na epístola II; pois, se Deus está acima de todas as coisas, e é Super-Teárquico e Super-Bonárquico, então, ao se afirmar que o próprio Deus, ao ser “humanamente substanciado” e que está coordenado aos homens, parece surgir uma incongruência; pois, se Ele está acima de todos homens, então, como pode estar junto a todos os homens? E, esta é a dúvida de Gaio; e, Pseudo-Dionísio, prossegue para explicá-la, e ao fazê-lo versa sobre dois aspectos: primeiro, da relação entre o mistério da divindade e o mistério da encarnação, tal fora delineado na epístola III; segundo, evoca a necessidade de se compreender a relação entre a natureza perfeitíssima de Deus, acima de toda e qualquer compreensão e definição, e a humanidade de Deus, onde Deus em Seu Filho, se torna plenamente conhecido, o que é o assunto da epístola IV. Logo, ao se compreender sobre a humanidade de Deus, logicamente, há de se prosseguir a compreender sobre o modo como Deus “humanamente substanciado” está relacionado a nossa humanidade.

4. Segundo, estabelece a razão de se referir a humanidade de Cristo, onde diz: “Pois não é dito aqui homem como causa dos homens, mas enquanto sendo em toda substância verdadeiramente homem”; ora, o primeiro aspecto evocado por Pseudo-Dionísio diz respeito a razão de se referir a humanidade de Cristo, ao afirmar: “Pois não é dito aqui homem como causa dos homens”, isto é, ao se referir a humanidade de Cristo, Pseudo-Dionísio não se refere a causa, a criação dos homens, mas sim a redenção, donde asseverar: “mas enquanto sendo em toda substância verdadeiramente homem”, isto é, ao fato de que Cristo em sua humanidade é totalmente homem, é verdadeiro homem. A Encarnação do Verbo, isto é, quando Deus se humanou, refere-se a redenção da humanidade e não a criação da humanidade. Logo, não se refere a “causa dos homens”, mas “enquanto sendo em toda substância verdadeiramente homem”, isto é, em Sua obra como redentor.

5. Assim, se estabelecem três aspectos, os quais se tornam evidentes ao Pseudo-Dionísio se referir a humanidade de Cristo (cf. Fp 2.6-8): primeiro, Ele se esvaziou, como está escrito: “Mas, aniquilou-se a si mesmo” (Fp 2.7). Segundo, Ele assumiu a forma de servo, como diz a Escritura: “tomando a forma de servo” (Fp 2.7); e tal como o próprio Senhor Jesus afirma: “Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc 10.45). Terceiro, Ele a si mesmo si humilhou, tal como o Apóstolo diz: “e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até a morte e morte de cruz” (Fp 2.8); bem como, no que diz em outro lugar: “porque já sabeis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, por amor de vós se fez pobre, para que, pela sua pobreza, enriquecêsseis” (2Co 8.9). Logo, a humanidade de Cristo se refere a Sua humilhação, a qual, demonstra seu esvaziamento (kenosis), sua obra em servir, e sua humilhação inominável. E, isto, para redimir e resgatar o gênero humano e todo o cosmos do Pecado e do poder do Diabo (cf. 2Co 5.19; 1Jo 3.8b).

6. Terceiro, apresenta a razão da humanidade de Cristo, onde diz: “Nós, porém, não definimos Jesus humanamente, pois não é só homem, e nem seria super-substancial se fosse só homem, mas é verdadeiramente homem Aquele que, sendo exímio amante dos homens, foi, acima dos homens e segundo os homens, substanciado a partir dos homens, embora fosse super-substancial – nada obstante, não é menos super-pleno de substancialidade Aquele que é sempre abundância super-substancial de super-substancialidade”; ora, após estabelecer a razão de se referir a humanidade de Cristo, apresenta a razão da humanidade de Cristo, isto é, apresenta as razões do porque se fala da humanidade de Cristo nos termos evocados.

7. E, sobre isso, faz quatro coisas: primeiro, delineia o aspecto fundamental de se falar sobre a humanidade de Cristo; segundo, apresenta a razão de não se definir Cristo somente como homem; terceiro, explica a razão de se falar de Cristo como verdadeiro homem e como verdadeiro Deus; quarto, evoca a divindade de Cristo ao se falar sobre sua humanidade.

Quanto ao primeiro, onde diz: “Nós, porém, não definimos Jesus humanamente, pois não é só homem”, isto é, ao se falar de Jesus como Homem, não se o define apenas como homem; pois, embora sendo verdadeiro homem, também é verdadeiro Deus.

Quanto ao segundo, onde diz: “e nem seria super-substancial se fosse só homem”, isto é, se Cristo fosse só homem, não seria super-substancial, isto é, não estaria além de toda substância, mas sendo “humanamente substanciado”, é homem, mas sendo super-substancial, também é Deus.

8. Quanto ao terceiro, onde diz: “mas é verdadeiramente homem Aquele que, sendo exímio amante dos homens, foi, acima dos homens e segundo os homens, substanciado a partir dos homens, embora fosse super-substancial”; pois, ao se falar de Cristo como homem, evidentemente, se há de falar de Cristo como Deus, pois, somente sendo Deus e Homem, é “humanamente substanciado”, embora fosse super-substancial; pois, somente sendo homem, Ele pode realizar a obra que realizou; e somente sendo Deus, pode dar a eficácia absoluta a esta obra.

E, sobre isso, dois aspectos são salientados: primeiro, de noção de Cristo como verdadeiro homem, onde diz: “mas é verdadeiramente homem Aquele que, sendo exímio amante dos homens”, isto é, Cristo é verdadeiro homem, pois é o exímio amante dos homens, ou seja, em seu insondável amor pelos homens, pois, somente assim é verdadeiro homem, pois provou da mesma humanidade que os homens e dos mesmos sofrimentos, tal como diz o autor aos Hebreus: “E, visto como os filhos participam da carne e do sangue, também ele participou das mesmas coisas, para que, pela morte, aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo, e livrasse todos os que, com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à servidão” (Hb 2.14-15).

Segundo, a proposição fundamental da humanidade de Cristo, onde diz: “foi, acima dos homens e segundo os homens, substanciado a partir dos homens, embora fosse super-substancial”, isto é, Cristo, como verdadeiro homem, foi segundo os homens e acima dos homens, ou seja, está coordenado aos homens em relação a humanidade destes, mas está acima destes porque não tem Pecado, tal como diz a Escritura: “Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado” (Hb 4.15).

Logo, Cristo é segundo os homens, como verdadeiro homem, mas Cristo também está acima dos homens, como verdadeiro Deus. Pois, fora “substanciado a partir dos homens”, isto é, de maneira igual a todos os homens, embora fosse super-substancial, isto é, embora estivesse acima dos homens pois é Deus, tal como diz o autor aos Hebreus: “vemos, porém, coroado de glória e de honra aquele Jesus que fora feito um pouco menor do que os anjos, por causa da paixão da morte, para que, pela graça de Deus, provasse a morte por todos. Porque convinha que aquele, para quem são todas as coisas e mediante quem tudo existe, trazendo muitos filhos à glória, consagrasse, pelas aflições, o Príncipe da salvação deles” (Hb 2.9-10).

9. Quanto ao quarto, onde diz: “nada obstante, não é menos super-pleno de substancialidade Aquele que é sempre abundância super-substancial de super-substancialidade”; ora, após ter evocado aspectos sobre a razão da humanidade de Cristo, evoca novamente o aspecto sobre sua divindade, pois, embora Cristo tenha se tornado homem, Ele continua sendo Deus, já que enquanto homem, “não é menos super-pleno de substancialidade”, isto é, de Sua natureza divina; mas, ao se tornar homem, “Aquele que é sempre abundância super-substancial de super-substancialidade”, isto é, mesmo como homem, Ele conserva a plenitude da divindade, mais plena do que toda plenitude já que se refere a Sua super-substancialidade. Logo, em Cristo, como homem, também está demonstrado Sua divindade, tal como diz o Apóstolo: “porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse” (Cl 1.19), pois, “nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9). Portanto, em sua humanidade, Cristo também demonstrou sua divindade, embora velada corporalmente, mas plena em todos os sentidos.

10. Quarto, evoca a demonstração da humanidade de Cristo, onde diz: “E, advindo verdadeiramente à substância, é substanciado super-substancialmente e opera as coisas humanas sobre-humanamente. E isso é demonstrado por uma virgem ter sobrenaturalmente dado à luz (cf. Mt 1.18-25; Lc 1.27-31), e uma instável água não ter cedido quando sustentava o peso de pés materiais e terrenos (cf. Mt 14.25-33; Mc 6.45-52; Jo 6.16-21), mas permanecia reunida por certa virtude sobrenatural – e haverá quem recorde de todas as outras coisas, que são numerosíssimas?”; ora, após ter apresentação a razão da humanidade de Cristo, e isto em ordem a dupla natureza de Cristo, Pseudo-Dionísio passa a demonstrar a humanidade de Cristo a partir de características bíblicas que demonstram isso, bem como na demonstração de que em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade. Logo, como Cristo é verdadeiro homem, então, em sua humanidade se tem as características de Sua divindade, e isto se demonstra principalmente nas obras que Cristo realizara.

11. E, sobre isso, faz três coisas: primeiro, em sua obra em operar as coisas humanas sobre-humanamente; segundo, evoca exemplos sobre o poder de Cristo; terceiro, evoca a virtude de Cristo.

Quanto ao primeiro, onde diz: “E, advindo verdadeiramente à substância, é substanciado super-substancialmente e opera as coisas humanas sobre-humanamente”; ora, tendo Cristo sido feito homem, isto é, ter “advindo verdadeira à substância”, ou seja, ao ser “humanamente substanciado”, ao mesmo tempo em que também “é substanciado super-substancialmente”, e, assim, opera as obras que o Pai lhe deu para realizar, como o próprio Senhor Jesus diz: “Mas eu tenho maior testemunho do que o de João, porque as obras que o Pai me deu para realizar, as mesmas obras que eu faço testificam de mim, de que o Pai me enviou” (Jo 5.36). Por isso, em Seu operar, Cristo demonstra seu poder, pois, “opera as coisas humanas sobre-humanamente”, isto é, com poder além do poder humano, demonstrando assim sua divindade, ao ponto de os homens ao verem a demonstração de Seu poder, exclamarem: “Que homem é este, que até os ventos e o mar lhe obedecem?” (Mt 8.27).

Quanto ao segundo, onde diz: “E isso é demonstrado por uma virgem ter sobrenaturalmente dado à luz (cf. Mt 1.18-25; Lc 1.27-31; DN II, 9), e uma instável água não ter cedido quando sustentava o peso de pés materiais e terrenos (cf. Mt 14.25-33; Mc 6.45-52; Jo 6.16-21)”; ora, ao ter afirmado que Cristo opera as coisas humanas de maneira sobre-humana, Pseudo-Dionísio prossegue e evoca dois exemplos, entre vários, que demonstram esta verdade: o primeiro exemplo, é o fato de ter sido concebido por uma virgem de maneira sobre-humana, pois, a Virgem santa ficou grávida pela obra da Virtude do Altíssimo (cf. Lc 1.35), e concebeu em seu ventre o Filho de Deus; e este é, segundo Pseudo-Dionísio, o mistério mais manifesto de toda a teologia (cf. DN, § 9), pois, demonstra de maneira excelsa o maior dos milagres e o maior dos acontecimentos. E, o segundo exemplo, é de quando o Senhor Jesus caminhara por sobre as águas (cf. Mt 14.25), o que demonstra Seu poder, pois, a água que é instável suportou o peso de pés materiais e terrenos sem ter cedido; e isto é algo que somente Deus pode fazer, isto é, demonstrar o domínio absoluto sobre os elementos da natureza. Logo, se evoca dois grandes exemplos do poder de Cristo, para demonstrar sua divindade.

Quanto ao terceiro, onde diz: “mas permanecia reunida por certa virtude sobrenatural – e haverá quem recorde de todas as outras coisas, que são numerosíssimas?”; e, tendo demonstrado o poder de Cristo, evoca a virtude de Cristo, isto é, a compreensão sobre Seu poder; pois, Cristo em Suas obras, naquilo que Ele viera para realizar, permaneceu reunido “por certa virtude sobrenatural”, isto é, por certa virtude que está além da natureza; e esta virtude, é demonstrada em Suas obras que demonstram Seu poder; e estas, são inúmeras; donde, ao ter evocado dois exemplos, pode esclarecer de maneira contundente este exemplo; donde, Pseudo-Dionísio afirmar: “e haverá quem recorde de todas as outras coisas, que são numerosíssimas?”, isto é, haverá quem consiga enumerar todas as coisas que Cristo fez, para compreender as maravilhas de Seu poder; e, sobre isso, diz a Escritura: “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e, se cada uma  das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem” (Jo 21.25). Portanto, ao evocar os exemplos sobre o poder de Cristo, demonstra Sua virtude, isto é, Sua deidade.

12. Quinto, evoca a virtude da humanidade de Cristo, onde diz: “Através delas, se alguém as vir divinamente acima da mente, conhecerá também que aquelas coisas que são afirmadas daquela filantropia de Jesus possuem virtude de negação excelente”; ora, após demonstrar a humanidade de Cristo, Pseudo-Dionísio passa a evocar a virtude da humanidade de Cristo; pois, se se demonstrara exemplos do poder de Cristo, então, através destas demonstrações, “se alguém as vir divinamente acima da mente”, isto é, se alguém compreender que são obras feitas por Deus, então, se “conhecerá também aquelas coisas que são afirmadas daquela filantropia de Jesus”, isto é, conhecerá plenamente o que é afirmado da filantropia de Jesus, de seu amor insondável para com os homens.

13. E, esta é a virtude da humanidade de Cristo, através da qual se demonstra Seu grande amor para com os homens, a qual se manifesta de maneira total na Encarnação; logo, esta virtude de Cristo, possui o que Pseudo-Dionísio chama de “virtude de negação excelente” (cf. CH IV, 4), isto é, o sentido de uma negação por transcendência, ou seja, um não-conhecimento transcendente, que por ser transcendente, transcende a toda compreensão, e, por isso é a negação de todo conhecimento (um dos preceitos da teologia apofática[2]). Ora, tal negação é excelente, portanto, por esta negação adentra-se ao verdadeiro conhecimento, atingido não pela elucubração racional, mas pela experiência com Deus em meio a caligine divina, tal como acontecera com Moisés (cf. Êx 20.21b).

Pois, ao mesmo tempo em que parece ser não-conhecível, se torna conhecível através de sua “filantropia”; e, ao mesmo tempo em realiza obras sobre-humanas, que estão além do poder humano, as faz como ser humano, como no caso de ter andado sobre as águas: o ato de andar, é algo humano; mas o andar sobre as águas, sem submergir, é obra divina[3]. 

Portanto, a filantropia de Cristo possui virtude de negação excelente, pois, está além de toda afirmação, e por isso, é verdadeiramente uma afirmação, e se torna positivamente assertiva em relação a Seu amor para com os homens demonstrado em Sua Encarnação, em Suas obras e em Seu sacrifício vicário.  

14. Sexto, apresenta a relação entre a divindade e a humanidade de Cristo, onde diz: “Com efeito, para falarmos brevemente, nem era homem, nem não homem, mas, vindo dos homens, era além dos homens, e sendo superior aos homens, foi feito verdadeiramente homem”; ora, após apresenta a virtude da humanidade de Cristo, uma “virtude de negação excelente”, Pseudo-Dionísio passa a apresentar a relação entre a divindade e a humanidade de Cristo; pois, se a virtude da filantropia de Cristo é essa, então, necessariamente, a mesma apresenta a relação entre a divindade e a humanidade de Cristo, a partir da qual, se compreende essa negação por transcendência. Por isso, diz: “Com efeito, para falarmos brevemente”, isto é, sobre a virtude de negação excelente, e então expõe a doutrina que concerne a esta proposição (a qual é parte da teologia apofática).

15. Deste modo, apresenta o aspecto que concerne a humanidade de Cristo e o aspecto que concerne a sua divindade. Pois, “nem era homem, nem não homem”, isto é, não era somente homem, mas era homem; por isso, “vindo dos homens, era além dos homens”, isto é, sendo verdadeiramente homem, era além dos homens, ou seja, também tem uma natureza além da humana; e, assim, “sendo superior aos homens, foi feito verdadeiramente homem”, isto é, sendo além dos homens, ou seja, tendo uma natureza além da natureza humana, por isso mesmo, foi feito verdadeiramente homem, isto é, foi humanamente substanciado, para que como homem, pudesse mostrar Seu poder em redimir a humanidade, o que só fizera eficazmente estando além dos homens, isto é, sendo verdadeiro Deus. Por isso, Cristo é homem e é Deus; é o homem-Deus, e é o Deus-homem, com o propósito específico de redimir a humanidade como homem, isto é, para salvar o homem, e como Deus para poder realizar esta obra como homem de maneira eficaz e completa. Esta é a dialógica da virtude de negação excelente do amor de Cristo pelos homens.

16. Sétimo, evoca a operação teândrica de Cristo para com os homens, onde diz: “Além disso, não perfazia as coisas divinas como Deus, nem as humanas enquanto homem, mas, sendo Deus feito homem, demonstrava para conosco uma certa nova operação teândrica”; ora, a relação entre a humanidade e a divindade de Cristo demonstra essa virtude de negação excelente, a qual, por sua vez, atesta a operação teândrica de Cristo para com os homens, isto é, sua operação humano-divino para com os homens, ou seja, Seu operar como homem e como Deus para com os homens.

Pois, Cristo, “não perfazia as coisas divinas como Deus”, isto é, enquanto verdadeiro Deus em sua humanidade não tinha por usurpação o ser igual a Deus (cf. Fp 2.6); do mesmo modo, “nem as humanas enquanto homem”, isto é, enquanto verdadeiro homem não operava somente como homem, mas fazias as obras que o Pai lhe dera para fazer (cf. Jo 5.39), isto é, como Deus. Mas, operava as obras de cada natureza conjuntamente, sem deixar de ser homem e sem deixar de ser Deus; por isso, “sendo Deus feito homem, demonstrava para conosco uma certa nova operação teândrica”, isto é, enquanto Deus-homem em Suas obras demonstrava Seu poder, e enquanto homem-Deus operava as coisas humanas como homem, mas com o poder divino.

Logo, é clarividente que Cristo - como se constatara nos dois exemplos evocados na demonstração de Sua humanidade -, operava as coisas humanas acima da natureza humana, isto é, operava as coisas humanas sobre-humanamente, donde, sua operação ser dita teândrica (theos-andrós), isto é, Cristo operava de modo divino e de modo humano a uma só vez, ou seja, de maneira humana-divina.

17. Assim, Pseudo-Dionísio soluciona a dúvida de Gaio no que concerne a afirmação de que Cristo enquanto homem está coordenado a nossa humanidade, embora seja Deus; e a epístola IV, em ordem a epístola anterior, evoca o aspecto central do mistério da teologia, a questão sobre a Encarnação; logo, a questão sobre o Cristo Encarnado evoca o pressuposto da operação teândrica de Cristo, isto é, o agir e o atuar de Cristo como Deus feito homem; ou seja, Cristo age ao mesmo tempo como homem e como Deus, sem misturar as propriedades de cada natureza, e sem enquanto homem ter por usurpação o ser igual a Deus (cf. Fp 2.6).

E, isto, constitui-se um dos mais belos e efusivos mistérios da fé, o qual Pseudo-Dionísio descreveu com límpidas e cristalinas palavras; o qual, constitui-se do mistério da revelação de Deus em Jesus Cristo, que segundo Barth: “consiste no fato de que o eterno Verbo de Deus escolheu, santificou e assumiu a natureza e a existência humana em unidade consigo mesmo, para assim, como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, tornar-se o Verbo de reconciliação falada por Deus ao homem. O sinal deste mistério revelado na ressurreição de Jesus Cristo é o milagre do Seu nascimento, que Ele foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria[4].

Ora, quanto a este mistério da fé, o mistério mais manifesto da teologia, o milagre dos milagres, o acontecimento dos acontecimentos, tal como engendrado a partir de dúvida de Gaio, e que fica bem explicado na epístola IV, basta o que fora dito.

18. E, com isso, conclui-se as epístolas direcionadas a Gaio.


C. Dúbias.

Em relação as pressuposições estabelecidas ao se explicar a epístola IV, surgiram quatro dúbias:

Primeiro, se Cristo está coordenado essencialmente junto de todos os homens.

Segundo, se Cristo, substanciado super-substancialmente, opera as coisas humanas sobre-humanamente.

Terceiro, se ter nascido de uma virgem, demonstra que Cristo opera as coisas humanas sobre-humanamente.

Quarto, se Cristo, em seu operar para com os homens, opera ao mesmo tempo como Deus e como homem.

 

<Dúbia I>

Acerca da primeira, procede-se assim: se Cristo está coordenado essencialmente junto de todos os homens.

E parece que não.

I. [Argumentos].

1. A Encarnação mostra que Cristo está coordenado juntos dos homens; mas, especificamente, este está coordenado, se refere aos eleitos; pois, aqueles que não o aceitam já estão condenados, como diz a Escritura (cf. Jo 3.18); portanto, Cristo não está coordenado essencialmente junto de todos os homens.

2. Ademais, diz o evangelista dos segredos de Deus: “veio para o que era seu, mas os seus não o receberam” (Jo 1.11); logo, Cristo, como homem, veio para o que era seu, a saber, a vinha do Senhor, Israel; portanto, ele está coordenado como homem ao que é seu, isto é, ao povo eleito; portanto, Cristo não está coordenado essencialmente junto de todos os homens.

3. Ademais, o Apóstolo diz: “como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor” (Ef 1.4); logo, se elegeu alguns, então, a estes está coordenado, pois, o propósito da eleição é a santidade e a idoneidade diante de Deus, nesta vida e na pátria celeste; portanto, Cristo está coordenado aos eleitos e não junto de todos os homens.

4. Ademais, o hábito da coordenação se manifesta em conformidade a quem está coordenado; ora, o hábito dos eleitos é a vida na graça, enquanto o dos ímpios é a vida dominada pelo Pecado; logo, Cristo, a fonte da graça, está coordenado apenas aos eleitos, pois estes vivem de acordo com a Sua graça; portanto, não está coordenado junto de todos os homens.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, diz o Apóstolo: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados, e pôs em nós a palavra da reconciliação” (2Co 5.19); portanto, ao reconciliar consigo todo o mundo, demonstra que está coordenado, enquanto Salvador, junto de todos os homens, a saber, para redimi-los e salvá-los; logo, Cristo está coordenado essencialmente junto de todos os homens.

III. [Solução].

1. A encarnação de Cristo, demonstra que Ele, ao ser humanamente substanciado, tornou-se homem, a fim de redimir aos homens do Pecado; somente sendo homem, poderia se oferecer como sacrifício em lugar dos homens pecadores; e, somente sendo Deus poderia dar eficácia em Sua obra vicária; portanto, Cristo, enquanto homem, está coordenado essencialmente junto de todos os homens, tanto em Sua natureza humana, quanto em Sua obra vicária. Em Sua natureza humana, pois não era um anjo ou fantasma, mas porque era verdadeiramente homem; em Sua obra vicária, porque veio para dar a sua vida em resgate de muitos (cf. Mc 10.45).

2. Portanto, Cristo está essencialmente, isto é, em Sua natureza, coordenado junto dos homens, ou seja, em favor dos homens; em Sua natureza divina, movido com entranhas de misericórdia pelos homens, a ponto de se humanar, o que demonstra o insondável amor de Deus pela humanidade (cf. Jo 3.16); em Sua natureza humana, movido em amor compassivo e sacrificial em favor da humanidade decaída no Pecado, pois, convinha que em tudo Ele fosse semelhante aos homens (cf. Hb 2.17). Logo, Cristo, está coordenado essencialmente junto de todos os homens.

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro se responde que Cristo enquanto humanamente substanciado, está coordenado junto de todos os homens, pois, também é homem, e em relação a Sua obra vicária, pois, morreu em favor de todos os homens; mas, como a eficácia de Seu sacrifício só é efetiva naqueles que creem, então, os que creem, ao serem feitos filhos de Deus (cf. Jo 1.12), se tornam eleitos; logo, Cristo, não está coordenado somente aos eleitos, mas a todos os homens, pois, Cristo morreu por todos. Portanto, como o está coordenado refere-se primeiramente, a extensão da obra vicária, então, corretamente se afirma que Cristo está coordenado a todos os homens.

2. Quanto ao segundo se responde que, embora tenha vindo para os seus, isto é, para Israel, quando os seus não o receberam, a bênção então foi outorgada para todos os homens, como diz a Escritura (cf. Rm 11.11); logo, Cristo está coordenado aos seus, mas como os seus o rejeitaram, Sua obra foi estendida a todos os homens do mesmo como Cristo está coordenado aos seus; logo, Cristo está essencialmente coordenado junto de todos os homens: primeiro, a todos os homens indistintamente, pela rejeição de Israel, e, também de maneira mais específica aos eleitos, isto é, aos que nEle creem.

3. Quanto ao terceiro se responde que, como Deus elegeu os fiéis antes da fundação do mundo (cf. Ef 1.4), Ele o fez com o propósito de que a partir de Cristo, os eleitos vivessem em santidade e de maneira irrepreensível; isto mostra a paternidade de Deus em relação ao modo como Cristo está coordenado aos que nEle creem; logo, Cristo está coordenado aos que nEle creem, nesta vida, a fim de os conduzir a viver em santidade e idoneidade diante de Deus, e na pátria celeste, onde viverá juntamente com os fiéis para toda a eternidade; portanto, como isto diz respeito ao modo como Cristo está coordenado aos fiéis, não impugna o modo como está coordenado junto de todos os homens; logo, etc.

4. Quanto ao quarto se responde que, como Cristo está coordenado junto de todos os homens, o hábito de quem está coordenado deve ser de acordo com aquilo que o coordena; logo, como Cristo está coordenado junto de todos os homens, todos os homens deveriam estar coordenados a Cristo; no entanto, como nem todos os homens creem em Cristo, parece impugnar esta proposição; mas, o fato de Cristo está coordenado, diz respeito a Cristo e não aos homens; logo, se os homens não estão a Ele coordenados, isto não impugna que Ele está coordenado junto de todos os homens; por isso, o hábito dos eleitos é a vida na graça, isto é, a vida pela fé, ou seja, em ter a Cristo como Senhor e Salvador; enquanto que o hábito dos ímpios é a vida dominada pelo Pecado, isto é, em não acreditar em Cristo como Senhor e Salvador, ou seja, a vida na incredulidade; ora, os efeitos de Cristo está coordenado junto de todos os homens, tanto diz respeito aos eleitos quanto aos ímpios: aos eleitos para a salvação eterna, aos ímpios para a danação eterna; portanto, Cristo está coordenado junto de todos os homens: para os eleitos, a fim de levá-los ao céu (cf. Jo 14.1-3), para os ímpios para lançá-los no inferno (cf. Sl 9.17); logo, difere apenas o modo desta coordenação: de um modo aos eleitos, pois, estes aceitam e confessam a Cristo e se tornam participantes das bênçãos que Cristo outorga a partir de Seu sacrifício vicário; de outro modo aos ímpios, já que estes rejeitam a salvação propiciada no Filho de Deus; portanto, etc.

V. [Resposta ao Em Contrário].

E, realmente, Cristo está coordenado essencialmente junto de todos os homens, mas de dois modos diversos: um aos fiéis, aqueles que nEle creem, enquanto Senhor e Salvador, os quais, estão sob Seus cuidados amorosíssimos (cf. Jo 10.27-28); e, a estes Cristo está coordenado como irmão (cf. Hb 2.11). E, o outro aos infiéis, aqueles que não creem no Filho de Deus, os quais, Cristo ama, mas por rejeitá-lo não recebem da eficácia salvífica de Sua obra vicária e, por isso, estão sob a ira de Deus (cf. Jo 3.36); e, a estes Cristo está coordenado como justo juiz (cf. Jo 5.22-23).

 

<Dúbia II>

Acerca da segunda, procede-se assim: se Cristo, substanciado super-substancialmente, opera as coisas humanas sobre-humanamente.

E parece que não.

I. [Argumentos].

1. Se aquele que foi substanciado super-substancialmente, se tornou humanamente substanciado, então, necessariamente, opera as coisas humanas como homem; pois, o operar se dá de acordo com a substância daquele que opera; logo, se foi humanamente substanciado, opera as coisas humanas de modo humanamente substanciado; logo, Cristo não opera as coisas humanas sobre-humanamente.

2. Ademais, o texto sagrado atribui a Cristo coisas totalmente humanas, como: fome (cf. Mt 4.2), cansaço (Lc 8.23), tristeza (Jo 11.35), etc.; logo, se Ele passou por estas situações, significa que operou as coisas humanas como homem, pois, estas coisas são totalmente humanas; portanto, Cristo não operou as coisas humanas sobre-humanamente.

3. Ademais, diz o Apóstolo: “sendo em forma de Deus, não teve por usurpação o ser igual a Deus” (Fp 2.6); portanto, sendo igual a Deus, não teve por usurpação o ser igual a Deus enquanto homem; logo, não operou sobre-humanamente as coisas humanas; portanto, etc.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, diz a Escritura: “Jesus, disse-lhes: Ide e anunciai a João o que tendes visto e ouvido: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres anuncia-se o evangelho” (Lc 7.22); ora, somente quem opera as coisas humanas sobre-humanamente consegue realizar estas obras; logo, Cristo operou as coisas humanas sobre-humanamente.

III. [Solução].

1. A substância de algo demonstra o que este algo é; ora, quando se diz que Cristo foi substanciado super-substancialmente, isto designa que ele foi humanamente substanciado de modo super-substancial, isto é, de modo pleno e total; a fórmula teológica nicena afirma isso pela sentença: “verdadeiro homem”; logo, Cristo, foi humanamente substanciado de modo super-substancial, isto é, de modo miraculoso, ao ser concebido no ventre da Virgem santa; mas, ao ser humanamente substanciado, operou as coisas humanas, tanto como homem, quanto como Deus; pois, operou o que concerne a cada uma de suas duas naturezas de acordo com Seu tríplice ofício.

2. Portanto, Cristo operou de maneira humana e operou de maneira divina; operou de maneira humana, pois foi humanamente substanciado; mas, ao mesmo tempo, operou de maneira divina, pois, fora substanciado super-substancialmente, o que só poderia ocorrer sendo Deus; logo, opera as coisas humanas sobre-humanamente, como se demonstra em seus vários milagres e feitos poderosos, onde realiza tanto a obra concernente a natureza humana quanto a obra concernente a natureza divina; e, isto se demonstra de maneira mais grandiosa em Sua obra vicária: onde recebeu o peso dos pecados da humanidade como homem, para redimir o cosmos, e deu eficácia a Seu sacrifício como Deus, para suportar o peso da ira de Deus sobre o Pecado.

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro se responde que sendo Cristo substanciado super-substancialmente, ao se tornar homem, opera as coisas humanas como homem; mas, por ser substanciado super-sunstancialmente, continua sendo Deus, pois, somente Deus poderia ser deste modo substanciado e permanecer com as naturezas de homem e Deus; portanto, como o operar se dá de acordo com a substância daquele que opera, Cristo, ao ser humanamente substanciado opera como homem; e ao ter sido substanciado super-substancialmente, ao se tornar humanamente substanciado, opera como Deus, pois, somente Deus pode se substanciar super-substancialmente, tornando-se homem; logo, Cristo, enquanto homem, no que convinha, operou as coisas humanas sobre-humanamente.

2. Quanto ao segundo se responde que, embora o texto sagrado atribua coisas humanas a Cristo, tais como as referidas, isto, evidentemente, se refere a Sua humanidade; mas, o texto sagrado não somente atribui coisas humanas a Cristo, mas também coisas divinas, tais como: curar enfermos (Mt 9.18-22), andar sobre as águas (Mt 14.22-26), ressuscitar mortos (Lc 8.49-56) e ressuscitar da morte (Jo 10.18), etc.; logo, Cristo opera as coisas humanas sobre-humanamente, pois, realiza Suas obras enquanto homem, mas com o poder de Sua deidade velada em Sua carne.

3. Quanto ao terceiro se responde que, Cristo, enquanto homem, não teve por usurpação o ser igual a Deus, isto é, enquanto homem, não mostrou toda sua glória enquanto verdadeiro Deus, mas submeteu-se a vontade de Deus Pai, e foi submisso em tudo, tal como o próprio Apóstolo afirma (cf. Gl 4.4): nasceu de mulher e sob a lei, ou seja, viveu e experienciou os aspectos todos da vida humana e o fez debaixo da lei; portanto, enquanto homem não teve por usurpação o ser igual a Deus, mas enquanto Deus, mostrou Sua glória mesmo como homem, pois operou as coisas humanas sobre-humanamente, já que foi concebido sem Pecado e cumpriu cabalmente a lei, o que somente Deus poderia fazer; logo, etc.

 

<Dúbia III>

Acerca da terceira, procede-se assim: se ter nascido de uma virgem, demonstra que Cristo opera as coisas humanas sobre-humanamente.

E parece que não.

I. [Argumentos].

1. A concepção de Cristo no ventre da Virgem, pela Virtude do altíssimo demonstra que Cristo, ao ser concebido, o foi por obra do Espírito Santo, e, por isso, nasceu como homem; portanto, não operou seu nascimento de maneira sobre-humana; ora, se não operou seu nascimento de maneira sobre-humana, tampouco opera as coisas humanas sobre-humanamente.

2. Ademais, o operar é de acordo com a natureza, isto é, de acordo com a existência; ora, a existência na carne se dá na concepção; então, de acordo com o modo como é concebido, se dará o modo de operar; logo, como foi concebido por obra do Espírito e nasceu da Virgem, vai operar de acordo com o seu nascimento, isto é, como homem e de acordo com sua natureza humana; portanto, não opera as coisas humanas sobre-humanamente.

3. Ademais, o operar as coisas humanas compete aos homens, tal como diz o salmista: “Os céus são os céus do SENHOR; mas a terra, deu-a ele aos filhos dos homens” (Sl 115.16); logo, como o próprio Deus outorgou o operar as coisas humanas aos homens, para que as operem humanamente, não convém que alguém as opere, mesmo com o poder de Deus, de maneira sobre-humana; pois, isto tolheria a palavra de Deus, que não erra e não mente; logo, Cristo, enquanto homem, não opera as coisas humanas sobre-humanamente.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, diz o símbolo niceno: “foi feito carne pelo Espírito Santo da Virgem Maria e foi feito homem”; logo, Cristo, foi feito carne pela obra do Espírito ao fazer a Virgem Maria concebê-Lo como homem; ora, isto é operar as coisas humanas sobre-humanamente, pois, o fazer conceber no ventre da Virgem é obra divina e o ser concebido é obra humana; portanto, Cristo, em Sua concepção e nascimento, demonstra operar as coisas humanas sobre-humanamente.

2. Além disso, o Apóstolo diz: “Aquele que se manifestou em carne, etc.” (1Tm 3.16); logo, se se manifestou foi por Sua vontade (cf. Jo 10.18); portanto, como Sua concepção e nascimento demonstra o operar divino e humano, e o operar das coisas humanas sobre-humanamente, então, o próprio Cristo, ao operar como homem, o faz sobre-humanamente.

III. [Solução].

1. O fato de Cristo ter nascido da Virgem por obra do Espírito Santo demonstra que opera as coisas humanas tanto de maneira humana quanto de maneira divina; pois, ser concebido numa Virgem, é obra divina; e, ser gestado, nascer e crescer, é obra humana, pois é o que compete a natureza; logo, em Sua concepção e nascimento, Cristo opera as coisas humanas sobre-humanamente, pois, nascer é algo humano, agora nascer sem Pecado, é obra divina. Portanto, em Sua concepção, gestação, nascimento e vida, Cristo opera as coisas humanas sobre-humanamente, pois, nestes aspectos se compreende tanto o que compete a natureza humana quanto o que compete a natureza divina.

2. Pois, o ser concebido de uma Virgem, demonstra a obra divina; agora o estar concebido no ventre de uma mulher, demonstra a obra humana; logo, ser filho de Maria, compete à obra humana; e, ser Filho de Deus, compete à obra divina; portanto, o fato de Cristo ter nascido da Virgem demonstra que Ele opera as coisas humanas de maneira humana, bem como sobre-humanamente nas coisas que somente Deus pode realizar e fazer, tais como: ser concebido numa Virgem, nascer sem Pecado, etc.

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro se responde que, Cristo ao ser concebido no ventre da Virgem, o foi por obra do Espírito Santo, e, assim, foi humanamente substanciado; portanto, mesmo em Sua humanidade, por ter sido eternamente gerado no seio do Pai, ao nascer, tendo sido humanamente substanciado, o foi de forma super-substancial; ora, isto concerne a obra divina; portanto, mesmo em Sua concepção e nascimento, operou de maneira sobre-humana; ora, se operou Seu nascimento de maneira sobre-humana, permanecendo homem, também opera as coisas humanas sobre-humanamente; pois, é isto a que se refere o Apóstolo ao afirma: “Aquele que se manifestou em carne, etc.” (1Tm 3.16).

2. Quanto ao segundo se responde que, como Cristo foi concebido pelo Espírito Santo, seu operar será de modo a ser guiado pelo Espírito Santo; mas, como fora concebido por uma mulher, seu operar será de acordo com a natureza humana; logo, opera como homem e como Deus, o que se entende a partir de Sua concepção e nascimento; pois, como o operar é de acordo com a natureza, já que Cristo possui duas naturezas - uma divina e a outra humana -, logo, em Seu operar, o fará tanto como homem quanto como Deus; portanto, quando lhe convém opera as coisas humanas sobre-humanamente.

3. Quanto ao terceiro se responde que, conquanto o operar as coisas humanas compete aos homens, pois é esta a ordenança divina, como Cristo foi humanamente substanciado, Ele opera como homem as coisas humanas sobre-humanamente; portanto, como Cristo fora humanamente substanciado, foi para operar as coisas humanas sobre-humanamente, pois, como homem opera as coisas humanas e como Deus, as opera sobre-humanamente; portanto, isto não tolhe a palavra de Deus, pois, Cristo opera como homem, cumprindo a ordenança divina que Deus deu as coisas humanas aos homens; logo, Cristo, enquanto homem, opera as coisas humanas de maneira humana e sobre-humanamente.

 

<Dúbia IV>

Acerca da quarta, procede-se assim: se Cristo, em seu operar para com os homens, opera ao mesmo tempo como Deus e como homem.

E parece que não.

I. [Argumentos].

1. O operar se dá de acordo com a natureza; ora, enquanto Deus, Cristo opera como Deus; enquanto homem, opera como homem; e, como diz a fórmula teológica que em Cristo não se confundem as duas naturezas, então, Ele opera o que concerne a cada natureza de acordo com a mesma; logo, não opera as duas naturezas ao mesmo tempo; portanto, não opera ao mesmo tempo como Deus e como homem.

2. Ademais, Cristo em Seu operar, demonstra Sua filantropia para com os homens; ora, a filantropia verdadeira só se demonstra por Ele ser verdadeiro homem; portanto, no que concerne a Sua filantropia, Cristo opera como homem; ora, a filantropia humana não concerne a natureza divina; portanto, Cristo não opera enquanto homem como Deus; logo, não opera ao mesmo tempo como Deus e como homem.

II. [Em Contrário].

1. Mas, em contrário, diz a Escritura: “Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado(Hb 4.15); ora, o compadecer-se é um operar para com os homens; e, Cristo se compadece não somente como Deus, mas em ordem a que fora humanamente substanciado; mas, o permanecer sem pecado, é um operar de Deus, pois, somente Deus não tem pecado; portanto, Cristo, opera como homem e como Deus, ao se compadecer das fraquezas humanas, pois fizera isso humanamente substanciado, porém sem pecado.

III. [Solução].

1. O operar de Cristo, de acordo com suas duas naturezas, se dá de maneira integral, a saber: Cristo opera ao mesmo tempo como homem e Deus; opera as coisas humanas como homem, mas as faz sobre-humanamente; logo, em Seu operar para com os homens efetua o que concerne a cada uma das duas naturezas, como se demonstra em seus muitos milagres, nos quais, fica clarividente o operar humano, e o operar divino.

2. Pois, a operação de uma natureza se dá de acordo com o efeito desta natureza no operar; ora, se Cristo opera ao mesmo tempo como homem e como Deus, então, os efeitos de Sua operação são concernentes ao ato operativo; logo, ao operar ao mesmo tempo como homem e como Deus, opera o que concerne a cada natureza de maneira plena, cabal e distinta, tal como se demonstra do milagre de andar por sobre as águas (cf. Mt 14.22-25): o andar concerne ao operar humano, mas, o andar sobre as águas concerne ao operar divino, posto que o peso do corpo físico não submergiu na água, demonstrando o domínio sobre as grandezas físicas e a soberania sobre os elementos da natureza.

IV. [Respostas aos Argumentos].

1. Quanto ao primeiro se responde que, Cristo, enquanto possuinte de duas naturezas, opera de acordo com cada uma destas naturezas: como homem-Deus, e como Deus-homem; logo, opera como Deus e como homem, sem confundir as naturezas e de acordo com o que concerne a cada natureza; e isto, não tolhe a unidade destas naturezas e nem a sua distinção, mas antes demonstra Sua glória como Verbo encarnado, pois, antes era Verbo incriado. Pois, como Cristo fora feito carne pelo Espírito Santo, então, Ele opera com o Poder do Espírito; mas como fora feito homem, Ele opera humanamente substanciado. Portanto, opera o que concerne a cada natureza; logo, Cristo, enquanto homem, opera ao mesmo tempo como Deus e como homem.

2. Quanto ao segundo se responde que, a filantropia de Cristo diz respeito a Seu amor e a misericórdia compassiva para com todos os homens, o que primeiro se demonstra em Seu amor divino; e depois, em Sua Encarnação e vida; ora, a filantropia de Cristo realmente se demonstra em sua humanidade; entretanto, a mesma se demonstra em Sua humanidade, porque sustentada por Sua divindade; logo, a filantropia de Cristo concerne ao Seu operar como homem, sustentado pelo poder divino; pois, a filantropia de Cristo diz respeito ao Seu imenso amor e diz respeito a demonstração apodítica deste amor, a saber, a Encarnação e a obra vicária, como diz o Apóstolo (cf. Rm 5.8); logo, em Seu operar, Cristo, enquanto homem demonstra Sua filantropia para com os homens; mas, como Seu operar também demonstra Sua natureza divina, então, Cristo, em Sua filantropia, opera como homem - pois é o que concerne a filantropia -, e opera como Deus - donde sustém e dá eficácia a Sua filantropia -, para sustentar e dar eficácia a Sua obra redentora.



[1] cf. Alberto Magno, Commentari In Epistolas B. Dionysii Areopagitae, epist. IV, A, In: Op. Om., XIV, 884.

[2] A teologia apofática é que emerge do conhecimento apofático que se pode ter de Deus; e, a respeito do conhecimento apofático, o Pe. Dumitru Staniloae, afirma: “O conhecimento apofático é capaz de fazer isso, pois, para ele, os atributos de Deus não são meros objetos do pensamento, mas, em certa medida, experienciados diretamente. Por exemplo: no conhecimento apofático, a infinitude, a omnipotência ou o amor de Deus não se tratam apenas de uma noção intelectual, mas sim de uma questão de experiência direta. Através do conhecimento apofático, o sujeito humano experiencia, de um modo real, uma espécie de submersão na infinitude, na omnipotência e no amor de Deus. Por meio do conhecimento apofático, o sujeito humano não apenas conhece que Deus é infinito, omnipotente e amoroso, como também experiencia-o”. Esta é a base sob a qual se desenvolve a teologia apofática.

[3] cf. Alberto Magno, Op. Cit., epist. IV, F, In: Op. Om., XIV, 889.

[4] Karl Barth, Church Dogmatics I/2 [T. & T. Clark, 1956], § 15, pág. 122. 


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