1. A latinidade, vocábulo sintético para aclarar tudo
que o mundo ocidental produziu desde o surgimento do império romano, é um dos
tesouros da humanidade; mas, este tesouro tem suas problemáticas; assim como os
tesouros amaldiçoados das histórias fantásticas, a latinidade traz imbuída os
elementos de sua própria desfiguração; pois, o mundo latino emergiu da barbárie;
por isso, toda vez que a cultura latina é assolada pela barbárie, seja ela de
qual espécie for, então o tesouro da latinidade passa desintegrar-se e a
degenera-se. Este é o peso que ronda a latinidade, que a assola desde o início
e que permanecerá assolando-a até o fim dos tempos.
2. Deste modo, a cristandade latina também se defronta
com esta problemática; o princípio latino, que surge desde emergir da barbárie,
cristalizado na obra de Tertuliano, se defronta as mais das vezes com o mesmo
problema; por isso, a cristandade latina sempre estará em profunda tensão
quando a cultura se atinar aos grimórios da barbárie; pois, a cultura é o
elemento aferidor de medida do estado da cristandade latina; não que o
cristianismo seja pura e simplesmente algo a mais na cultura, mas a
inter-relação é tão profunda na cristandade latina, que a corrupção da cultura
afeta diretamente a vida intra-eclesial.
3. Ora, o próprio Tertuliano constatara o problema da
relação com a cultura, ao afirmar que com o mudar das épocas, muda-se as
vestimentas e muda-se alguns costumes (cf. De Pallio, cap. I); e esta
proposição atesta justamente o problema da latinidade, que com o passar as
épocas, ao se defrontar com a degeneração da cultura, busca mudar algumas
práticas a fim de aplacar alguns problemas; todavia, a degeneração da cultura
não se soluciona com a mudança de algumas práticas e costumes; a mudança de
práticas e costumes apenas atrasa um pouco os graus mais terríveis de
degeneração; ora, isso se constata na cristandade latina principalmente no
tocante a liturgia; pois, os respectivos graus de abuso litúrgico demonstram o
estado de degeneração da cultura.
4. Todavia, isso pode ser melhor aclarado através de
uma elucidação literária; sabe-se que a maestria e genialidade de Dostoiévski é
indiscutível; o gênio das letras russas conseguiu como ninguém descrever as
consequências da degeneração cultural; embora, tendo estado numa cultura que
não foi formada pela latinidade, ele descreveu a própria degeneração da
latinidade, que havia permeado a Rússia de seu tempo através do iluminismo e do
marxismo; e a obra que melhor denota esta análise é o imorredouro romance “Os
Demônios”, uma das obras máximas da literatura mundial. Nesta obra,
Dostoiévski descreve a degeneração da latinidade a partir de elementos comuns
de sua época, mas que é uma descrição dos efeitos de quando a cultura se
degenera, seja em qual época for.
5. Os demônios que passam a dominar e a exercer este
domínio de quando da degeneração da cultura, na verdade, são os instrumentos de
Satanás para gerar a subversão dos povos; e, quanto a isso, se pode voltar a
uma descrição ainda mais antiga, que concerne a própria glória da latinidade;
pois, Virgílio, poeta máximo da latinidade, estabelece que a subversão dos
povos é efeito da comoção do Aqueronte (cf. Eneida, VII, 325); ora, o
Aqueronte é o reino dos demônios; então, o que gera a comoção do Aqueronte,
passa a atinar e a emanar os demônios a todos os aspectos da vida social; por
isso, a comoção do Aqueronte tem como consequência a subversão dos povos. Ou,
dito em outros termos, a degeneração plena da cultura só ocorre quando os
demônios não tem os impedimentos para suas ações.
6. Ora, três são os impedimentos para que os seres do
Aqueronte dominem e degenerem totalmente a cultura, a saber: primeiro, as
verdades eternas; segundo, a firmeza da personalidade; terceiro, a religião
verdadeira.
Quanto ao primeiro, as verdades eternas - liberdade,
verdade, religião, moral, etc. -, são um freio para a corrupção moral porque
preservam a ordem, a disciplina e os bons costumes, elementos fundamentais que
impedem a subversão e a degradação intelectual e moral.
Quanto ao segundo, a firmeza da personalidade, porque
a personalidade é a maior força que o indivíduo possui; a primazia ontológica
do indivíduo enquanto pessoa se manifesta na força da personalidade; logo, se
se enfraquece e/ou desfigura a personalidade, então, não haverá força no
indivíduo para suportar e/ou resistir à subversão da sociedade, o que fará com
os indivíduos despersonalizados se tornem em instrumento da subversão causada
pela comoção do Aqueronte.
Quanto ao terceiro, a religião verdadeira, porque a
religião revelada é o maior empecilho a completa subversão dos povos; pois, a
religião verdadeira propaga o reinado social de Cristo, e os demônios não agem
para a completa subversão quando os povos se submetem ao reinado social de
Cristo; no entanto, quando a religião verdadeira é corrompida, principalmente
através da desfiguração da liturgia, meio mais eficaz para enfraquecer e
corromper a cristandade, então se perde a força da coluna e firmeza da verdade;
ora, quando isso ocorre, a cristandade torna-se como Sansão ao ter seus cabelos
cortados (cf. Jz 16.19-21). A incorruptibilidade litúrgica é o nazireado
inviolável prescrito por Deus à cristandade.
7. Deste modo, as crises na cristandade latina estão
em intima relação com a crise na cultura; na verdade, são expressão da mesma na
vida intra-eclesial; portanto, quando os demônios dominam a cultura, não é de
se assustar que na própria cristandade se tenha a ação dos demônios, posto que
a subversão dos povos se estabelece justamente quando a cristandade também
passa a ser instrumento da obra maligna; a peneira de Satanás, se assoma a
cristandade quando esta se rende, consciente ou não, a vontade de poder e deixa
de se estabelecer única e exclusivamente sob o senhorio de Cristo.
A falta de sujeição a Cristo torna os fiéis e a vida
intra-eclesial sujeita a ação dos seres do Aqueronte; a degeneração cultural,
quando chega a estágios de completa decadência intelectual e moral, é evidência
que os seres aqueronticos já tomaram conta de muitas das expressões da vida
eclesial - e a forma mais evidente de se perceber isso é através dos abusos
litúrgicos.
E, infelizmente, este é o triste retrato que se faz da
cristandade latina de tempos em tempos; isso se pode dizer de quando do saque
de Constantinopla pela Igreja latina no séc. XIII; o mesmo se pode dizer da
cristandade latina no séc. XV e nas primeiras décadas do XVI; ou com o
protestantismo do séc. XIX e das primeiras décadas do séc. XX, ou então do
protestantismo do séc. XXI; etc.
8. Ademais, como é mais do que evidente, toda comoção
tem algo a ver com sentimento, mesmo a comoção do Aqueronte; pois, os seres
aqueronticos não se manifestam primariamente na corrupção da doutrina, mas na
perversão do sentimento; a destruição da ortopatia, gerando a heteropatia, é o
meio mais eficaz que o demônio tem se utilizado para corromper a cristandade
latina.
Assim, o excesso de afetividade traz imbuído não
somente a sensualidade (cf. Os 4.11), mas também a corrupção da verdade e a
própria degeneração da inteligência; aliás, todas as práticas e doutrinas
estranhas que começaram a se assomar no catolicismo no segundo milênio tem por
detrás este princípio - todas, sem nenhuma exceção, que toma forma no
catolicismo com a proposição do dionisionismo afetivo.
Além disso, a afetividade em excesso depois de
efetivada, tornará a vida intra-eclesial e seus representantes sujeitos a tudo,
menos a verdade, seja na doutrina seja na moral; por isso, se observa tantos
abusos litúrgicos hediondos, tal como ocorrera no Israel antigo; e os abusos
litúrgicos, assim como outras degenerações da vida eclesial são abominação a
Deus (cf. Am 5.21-23).
9. Deste modo, quando a latinidade está em estágios
avançados de degeneração, o que está ocorrendo é que as forças do Aqueronte
tomaram conta de basicamente tudo; então, o que resta fazer, não é se render as
ondas das novidades e/ou apregoações afetivas, mas sim pura e simplesmente
reestabelecer a ordem, a decência e o temor no culto a Deus, com reverência,
silêncio e sem abusos litúrgicos, para pelo menos a vida eclesial não ser
dominada pelos seres aqueronticos.
Pois, somente assim a cristandade latina não é
completamente corrompida pela ação dos demônios; quando assim age, continua a
servir como coluna e firmeza da verdade na parte latina do Ocidente; no
entanto, quando isso não ocorre, a degradação é tão medonha, que até aqueles
que deveriam ter responsabilidade de testemunhar da verdade se tornam aqueles
que mais a vituperam.
Esta é uma simples radiografia da cristandade latina
de quando da corrupção cultural; e quando isso ocorre, infelizmente, as Igrejas
podem estar abarrotadas de pessoas, mas quase todos são falsos cristãos ou
ímpios, ou pior, apóstatas.
θεῷ χάρις!
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