02/07/2025

A Latinidade, a Cristandade e os Demônios

1. A latinidade, vocábulo sintético para aclarar tudo que o mundo ocidental produziu desde o surgimento do império romano, é um dos tesouros da humanidade; mas, este tesouro tem suas problemáticas; assim como os tesouros amaldiçoados das histórias fantásticas, a latinidade traz imbuída os elementos de sua própria desfiguração; pois, o mundo latino emergiu da barbárie; por isso, toda vez que a cultura latina é assolada pela barbárie, seja ela de qual espécie for, então o tesouro da latinidade passa desintegrar-se e a degenera-se. Este é o peso que ronda a latinidade, que a assola desde o início e que permanecerá assolando-a até o fim dos tempos.

2. Deste modo, a cristandade latina também se defronta com esta problemática; o princípio latino, que surge desde emergir da barbárie, cristalizado na obra de Tertuliano, se defronta as mais das vezes com o mesmo problema; por isso, a cristandade latina sempre estará em profunda tensão quando a cultura se atinar aos grimórios da barbárie; pois, a cultura é o elemento aferidor de medida do estado da cristandade latina; não que o cristianismo seja pura e simplesmente algo a mais na cultura, mas a inter-relação é tão profunda na cristandade latina, que a corrupção da cultura afeta diretamente a vida intra-eclesial.

3. Ora, o próprio Tertuliano constatara o problema da relação com a cultura, ao afirmar que com o mudar das épocas, muda-se as vestimentas e muda-se alguns costumes (cf. De Pallio, cap. I); e esta proposição atesta justamente o problema da latinidade, que com o passar as épocas, ao se defrontar com a degeneração da cultura, busca mudar algumas práticas a fim de aplacar alguns problemas; todavia, a degeneração da cultura não se soluciona com a mudança de algumas práticas e costumes; a mudança de práticas e costumes apenas atrasa um pouco os graus mais terríveis de degeneração; ora, isso se constata na cristandade latina principalmente no tocante a liturgia; pois, os respectivos graus de abuso litúrgico demonstram o estado de degeneração da cultura.

4. Todavia, isso pode ser melhor aclarado através de uma elucidação literária; sabe-se que a maestria e genialidade de Dostoiévski é indiscutível; o gênio das letras russas conseguiu como ninguém descrever as consequências da degeneração cultural; embora, tendo estado numa cultura que não foi formada pela latinidade, ele descreveu a própria degeneração da latinidade, que havia permeado a Rússia de seu tempo através do iluminismo e do marxismo; e a obra que melhor denota esta análise é o imorredouro romance “Os Demônios”, uma das obras máximas da literatura mundial. Nesta obra, Dostoiévski descreve a degeneração da latinidade a partir de elementos comuns de sua época, mas que é uma descrição dos efeitos de quando a cultura se degenera, seja em qual época for.

5. Os demônios que passam a dominar e a exercer este domínio de quando da degeneração da cultura, na verdade, são os instrumentos de Satanás para gerar a subversão dos povos; e, quanto a isso, se pode voltar a uma descrição ainda mais antiga, que concerne a própria glória da latinidade; pois, Virgílio, poeta máximo da latinidade, estabelece que a subversão dos povos é efeito da comoção do Aqueronte (cf. Eneida, VII, 325); ora, o Aqueronte é o reino dos demônios; então, o que gera a comoção do Aqueronte, passa a atinar e a emanar os demônios a todos os aspectos da vida social; por isso, a comoção do Aqueronte tem como consequência a subversão dos povos. Ou, dito em outros termos, a degeneração plena da cultura só ocorre quando os demônios não tem os impedimentos para suas ações.

6. Ora, três são os impedimentos para que os seres do Aqueronte dominem e degenerem totalmente a cultura, a saber: primeiro, as verdades eternas; segundo, a firmeza da personalidade; terceiro, a religião verdadeira.

Quanto ao primeiro, as verdades eternas - liberdade, verdade, religião, moral, etc. -, são um freio para a corrupção moral porque preservam a ordem, a disciplina e os bons costumes, elementos fundamentais que impedem a subversão e a degradação intelectual e moral.

Quanto ao segundo, a firmeza da personalidade, porque a personalidade é a maior força que o indivíduo possui; a primazia ontológica do indivíduo enquanto pessoa se manifesta na força da personalidade; logo, se se enfraquece e/ou desfigura a personalidade, então, não haverá força no indivíduo para suportar e/ou resistir à subversão da sociedade, o que fará com os indivíduos despersonalizados se tornem em instrumento da subversão causada pela comoção do Aqueronte.

Quanto ao terceiro, a religião verdadeira, porque a religião revelada é o maior empecilho a completa subversão dos povos; pois, a religião verdadeira propaga o reinado social de Cristo, e os demônios não agem para a completa subversão quando os povos se submetem ao reinado social de Cristo; no entanto, quando a religião verdadeira é corrompida, principalmente através da desfiguração da liturgia, meio mais eficaz para enfraquecer e corromper a cristandade, então se perde a força da coluna e firmeza da verdade; ora, quando isso ocorre, a cristandade torna-se como Sansão ao ter seus cabelos cortados (cf. Jz 16.19-21). A incorruptibilidade litúrgica é o nazireado inviolável prescrito por Deus à cristandade.

7. Deste modo, as crises na cristandade latina estão em intima relação com a crise na cultura; na verdade, são expressão da mesma na vida intra-eclesial; portanto, quando os demônios dominam a cultura, não é de se assustar que na própria cristandade se tenha a ação dos demônios, posto que a subversão dos povos se estabelece justamente quando a cristandade também passa a ser instrumento da obra maligna; a peneira de Satanás, se assoma a cristandade quando esta se rende, consciente ou não, a vontade de poder e deixa de se estabelecer única e exclusivamente sob o senhorio de Cristo.

A falta de sujeição a Cristo torna os fiéis e a vida intra-eclesial sujeita a ação dos seres do Aqueronte; a degeneração cultural, quando chega a estágios de completa decadência intelectual e moral, é evidência que os seres aqueronticos já tomaram conta de muitas das expressões da vida eclesial - e a forma mais evidente de se perceber isso é através dos abusos litúrgicos.

E, infelizmente, este é o triste retrato que se faz da cristandade latina de tempos em tempos; isso se pode dizer de quando do saque de Constantinopla pela Igreja latina no séc. XIII; o mesmo se pode dizer da cristandade latina no séc. XV e nas primeiras décadas do XVI; ou com o protestantismo do séc. XIX e das primeiras décadas do séc. XX, ou então do protestantismo do séc. XXI; etc.

8. Ademais, como é mais do que evidente, toda comoção tem algo a ver com sentimento, mesmo a comoção do Aqueronte; pois, os seres aqueronticos não se manifestam primariamente na corrupção da doutrina, mas na perversão do sentimento; a destruição da ortopatia, gerando a heteropatia, é o meio mais eficaz que o demônio tem se utilizado para corromper a cristandade latina.

Assim, o excesso de afetividade traz imbuído não somente a sensualidade (cf. Os 4.11), mas também a corrupção da verdade e a própria degeneração da inteligência; aliás, todas as práticas e doutrinas estranhas que começaram a se assomar no catolicismo no segundo milênio tem por detrás este princípio - todas, sem nenhuma exceção, que toma forma no catolicismo com a proposição do dionisionismo afetivo.

Além disso, a afetividade em excesso depois de efetivada, tornará a vida intra-eclesial e seus representantes sujeitos a tudo, menos a verdade, seja na doutrina seja na moral; por isso, se observa tantos abusos litúrgicos hediondos, tal como ocorrera no Israel antigo; e os abusos litúrgicos, assim como outras degenerações da vida eclesial são abominação a Deus (cf. Am 5.21-23).

9. Deste modo, quando a latinidade está em estágios avançados de degeneração, o que está ocorrendo é que as forças do Aqueronte tomaram conta de basicamente tudo; então, o que resta fazer, não é se render as ondas das novidades e/ou apregoações afetivas, mas sim pura e simplesmente reestabelecer a ordem, a decência e o temor no culto a Deus, com reverência, silêncio e sem abusos litúrgicos, para pelo menos a vida eclesial não ser dominada pelos seres aqueronticos.

Pois, somente assim a cristandade latina não é completamente corrompida pela ação dos demônios; quando assim age, continua a servir como coluna e firmeza da verdade na parte latina do Ocidente; no entanto, quando isso não ocorre, a degradação é tão medonha, que até aqueles que deveriam ter responsabilidade de testemunhar da verdade se tornam aqueles que mais a vituperam.

Esta é uma simples radiografia da cristandade latina de quando da corrupção cultural; e quando isso ocorre, infelizmente, as Igrejas podem estar abarrotadas de pessoas, mas quase todos são falsos cristãos ou ímpios, ou pior, apóstatas. 

θεῷ χάρις


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