Prefácio.
Este
ensaio procura elucidar um aspecto da teologia de Dietrich Bonhoeffer, o
pastor-mártir que enfrentou Hitler e o nazismo; a vida e a obra de Bonhoeffer
continuarão a inspirar e a servir de exemplo pelo decorrer das épocas e dos
tempos para cristãos, pastores, teólogos, estudiosos em geral, pela coragem,
ousadia, firmeza, sinceridade de propósito e vida piedosa; pois, a teologia de
Bonhoeffer se desenvolve, em sua maior parte, no período da luta da Igreja (Kirchenkampf);
é uma teologia formada e estabelecida num dos momentos mais escuros da
história.
Como
se sabe, infelizmente Bonhoeffer foi martirizado em 1945 aos 39 anos; e,
infelizmente, ele não pode desenvolver sua teologia, que pelos insights
demonstrados nos escritos fragmentários e nos livros publicados, certamente,
teria um significativo desenvolvimento; talvez alguém possa algum dia levar
adiante os insights e perspectivas de Bonhoeffer, e desenvolvê-los de maneira
mais pungente e aprofundá-los, algo de fundamental importância para a teologia
do terceiro milênio.
Os
escritos de Bonhoeffer, alguns dos quais, verdadeiros clássicos da teologia,
chamam a atenção pela simplicidade somada a uma profundidade espiritual, que
poder-se-ia chamá-lo de místico do séc. XX; a simplicidade bíblica, o fervor
evangélico, a profundidade e agudeza de análise, a aguçada percepção sobre a
situação sócio-cultural, tornam os escritos de Bonhoeffer verdadeiras pérolas
de significativo valor sobre a teologia, particularmente, em relação a
eclesiologia, a vida cristã e a teologia pastoral; e, entre estes escritos, um
chama a atenção, o livro de 1937, “Nachfolge” (Discipulado).
Este
livro é o mais conhecido e o mais influente de Bonhoeffer, e um dos textos mais
impressionantes da história da cristandade, embora não sem a problemática
teológica da época em que foi escrito; pois, a profundidade do texto, com a
clareza e a sinceridade bíblica, açambarcam uma exortação e uma repreensão a
todas as épocas onde a Igreja cristã deixa de ser Igreja de Jesus Cristo e
passa a ser qualquer outro tipo de “igreja”; a teologia do discipulado de
Bonhoeffer é um chamado a consciência e a razão para os cristãos, para que
sempre permaneçam como cristãos fundamentados no evangelho, em suas doutrinas e
em suas vidas, diante de tempos caóticos e mesmo diante das mais terríveis
épocas de apostasia.
Mas,
este livro não somente foi desenvolvido de acordo com o contexto da época, que
aliás é a chave hermenêutica principal para se entender a ideia de discipulado
proposta por Bonhoeffer como um todo e o encargo do discipulado como tema
teológico; mas as proposições de Bonhoeffer desenvolvidas a medida que via a
subserviência dos cristãos e da Igreja para com Hitler e o nazismo, se
cristalizaram e se desenvolveram a partir da aguçada percepção do que é a
Igreja, da natureza da Igreja como communio sanctorum; logo, o
discipulado de Bonhoeffer não somente é um chamado para os cristãos seguirem
verdadeiramente a Jesus Cristo, mas também uma repreensão profética à Igreja
quando suas práticas se tornam contrárias a revelação de Deus.
Entretanto,
a teologia do discipulado também tem sérios problemas; embora Bonhoeffer tenha
sido um piedoso pastor e teólogo, a ideia geral do discipulado que propugna,
tem imbuído em si o liberalismo teológico de Adolf von Harnack, o lendário
teólogo alemão; pouco se menciona sobre a influência de Harnack em Bonhoeffer,
mas é incisiva; e, mesmo que Bonhoeffer tenha rejeitado alguns pontos
fundamentais da teologia de Harnack e de sua escola teológica, algumas
proposições de Harnack, como encarnadas no clássico “Das Wesen des
Christentums” (em tradução brasileira como “O que é Cristianismo?”),
se mostram evidentes em Bonhoeffer, e são o pano de fundo diante do qual a
ideia de discipulado se desenvolve; na verdade, em sua compreensão do
cristianismo e da religião, Bonhoeffer tem muito da influência de Harnack, já
que o próprio Bonhoeffer fora aluno de Harnack; e uma história interessante do
relacionamento entre os dois, pois, o próprio Harnack ficou muito impressionado
com o jovem Bonhoeffer e quis fazê-lo um historiador eclesiástico, certamente,
para torná-lo seu substituto; isso, por si, diz muito da grandeza de Bonhoeffer
como teólogo, e da influência de Harnack em sua teologia.
No
entanto, mesmo diante destas e de muitas outras problemáticas, o discipulado
propugnado por Bonhoeffer fora um chamado profético para os cristãos acordarem
da sonolência espiritual, e assim, voltarem a viver como verdadeiros discípulos
de Cristo; por isso, o verdadeiro discipulado só é evocado em tempos onde a
Igreja se desvia de seu propósito e de sua missão, ou em termos mais duros,
quando num geral as Igrejas entram em estado de apostasia; salvo nesta
condição, não se faz necessário falar de discipulado; todavia, em tempos de
perseguição, ou em tempos que antecedem a perseguição, ou em tempos onde a
Igreja cristã é dominada por ideologias nefastas, ou práticas anti-bíblicas, é
sempre oportuno e necessário lembrar e estudar de maneira renovada a invectiva
de Bonhoeffer sobre o discipulado, mas também se compreender os problemas
inerentes ao se evocar este tema teológico.
Soli Deo Gloria!
In Nomine Iesus!
04 de maio de 2024.
I. O
Legado de Dietrich Bonhoeffer.
1. A
teologia de Dietrich Bonhoeffer sempre chama a atenção; não somente pelo fato
das contribuições teológicas de Bonhoeffer, que apesar de não serem muitas, são
excelentes; mas, principalmente pelas contribuições pastorais, algumas das
quais se constituem alguns dos textos mais belos de toda a história da
cristandade. Além disso, o testemunho da vida de Bonhoeffer, principalmente nos
10 últimos anos de vida, constituem um testemunho sem igual de uma vida digna
do evangelho vivida em meio a um dos momentos mais tenebrosos da história. Não
somente os teólogos ou os cristãos admiram Bonhoeffer, mas todas as pessoas de
bem, ao ouvirem sobre a história de vida deste pastor luterano são tomadas pelo
senso de admiração.
2. A
posição de Bonhoeffer na história da cristandade é indiscutível; seja como
místico, ou como pastor, ou como teólogo, Bonhoeffer ocupa um lugar de suma
importância na história; mas não somente na história eclesiástica, mas
particularmente, na história da teologia do séc. XX; Bonhoeffer, que não foi um
teólogo dogmático como Barth, ou um exegeta neotestamentário como Bultmann, ou
um teólogo-filósofo da cultura como Tillich, mas, mesmo assim deixou sua marca
indelével na história da teologia do séc. XX, estando ao pé de igualdade com
estes famosos e grandes eruditos da ciência teológica.
3. O
legado de Bonhoeffer, perpassa várias das áreas da ciência teológica; questões
relacionadas a ética, a comunhão dos santos, a leitura orante da Bíblia, bem
como as noções de revelação, testemunho, vida prática, a vivência ministerial,
etc., demonstram um Bonhoeffer preocupado com a resposta cristã e evangélica às
questões difíceis de sua época; Bonhoeffer ensinou na Universidade, pregou e
exerceu as funções pastorais na Igreja, e encorajou e instruiu jovens pastores
no exercício do ministério; foi pastor, professor, pregador, e pastor de
pastores; e isto, durante o ignominioso período onde a Igreja Evangélica na
Alemanha e os cristãos eram vigiados pelos nazistas; e, particularmente, a
Igreja onde Bonhoeffer pregava, e o seminário onde lecionava, eram alvos das
buscas e da vigilância constante da Gestapo.
4.
Mas, o legado de Bonhoeffer não se estabelece somente pelo testemunho e pela
fidelidade diante das opressões e perseguições cruéis; os escritos de
Bonhoeffer, são de igual modo incisivos e impactantes; pois, são fruto desta
resposta proveniente do testemunho; e ao mesmo tempo em que testemunhava de
Cristo, Bonhoeffer vivia a existência eclesial na liturgia e desenvolvia-se na
tarefa científica da teologia; por isso, a teologia de Bonhoeffer orbita nestes
três aspectos fundamentais: o do testemunho, o da existência eclesial e o da
tarefa científica da teologia. Bonhoeffer foi exemplo na existência teológica
como teólogo do testemunho diante das gentes; foi exemplo na existência
teológica como communio sanctorum, da verdadeira comunhão dos santos na
verdadeira Igreja de Jesus Cristo, sob o senhorio e os mandamentos somente de
Jesus Cristo; e foi exemplo na existência teológica cristalizada na reflexão
acadêmica e rigorosa da teologia enquanto ciência, do primor científico da
reflexão teológica.
5. E,
ao se aperceber que Bonhoeffer conseguira produzir algo de valor num período
tão sombrio; muito embora devido as dificuldades deste período não tenha podido
ter a calma e a paciência necessárias para desenvolver seus insights de maneira
mais aprofundada e científica, é um fato de capitular importância compreender
que Bonhoeffer conseguira produzir excelentes reflexões teológicas neste
período; algumas das quais, verdadeiros tesouros de sabedoria espiritual e de
teologia prática; e a produção de Bonhoeffer encontrou a “maturidade”
justamente neste período, embora não sua total expressão e organização que
poderiam ter alcançado se não fora um período tão tenebroso, e se tivesse
vivido mais; por isso, para se entender Bonhoeffer, há de se levar em conta o
desenvolvimento de sua teologia a luz dos acontecimentos históricos que o
cercaram.
6.
Portanto, três aspectos chamam a atenção na teologia de Bonhoeffer: primeiro,
foi uma teologia de resposta; segundo, foi uma teologia no contexto do
“reavivamento” da existência teológica; terceiro, foi uma teologia com enfoque
pastoral mesmo diante de terríveis atrocidades.
Primeiro,
foi uma teologia de resposta; a teologia de Bonhoeffer foi estabelecida, em sua
maior parte, como uma teologia de resposta às questões de seu tempo; pois,
diante da terrível apostasia de sua época, se fez necessário que sua teologia
se formasse e se construísse em resposta às questões que surgiam como
necessidade urgente diante das inomináveis práticas que surgiam da apostasia
total que tomou conta de sua nação; mas, não somente de uma teologia de
resposta, que procura demonstrar os argumentos bíblicos e as pressuposições da
existência teológica, mas de uma resposta centrada, completa, totalmente
cristocêntrica, em que os problemas da época e os problemas eclesiais são
enfrentados com o enfoque bíblico-cristológico.
Segundo,
foi uma teologia no contexto do “reavivamento” da existência teológica; a
teologia de Bonhoeffer, se estabeleceu como teologia de resposta, de quando do
“reavivamento” da existência teológica; pois, diante da séria situação em que
se encontra a sociedade, a Igreja e os cristãos, os teólogos principalmente, se
encontravam apáticos e desfibrados; a existência teológica foi um brado para
que a Igreja, os cristãos, os teólogos, acordassem do sono e tornassem-se
novamente vigilantes; e a teologia de Bonhoeffer enquanto uma teologia de
resposta se torna evidente justamente no contexto deste “reavivamento”; no
entanto, a teologia de Bonhoeffer não somente foi mais uma perspectiva que
surgiu durante esse tempo, mas a teologia de Bonhoeffer, certamente, é um dos
mais belos e efusivos exemplos do que realmente é e significa a existência
teológica, em seu fulgor na teologia pastoral.
Terceiro,
foi uma teologia com enfoque pastoral mesmo diante de terríveis atrocidades; a
teologia de Bonhoeffer, como uma teologia de resposta que surgiu em meio a
retomada da existência teológica, manteve-se totalmente com o enfoque pastoral
diante de terríveis atrocidades; Bonhoeffer manteve o encargo do testemunho
cristão, mesmo diante das terríveis e cruéis atitudes do partido nazista;
porque estava diante Deus, Bonhoeffer pode testemunhar sobre Deus diante da
negra escuridão que assolou sua época; porque estava diante da fonte da luz,
pode ser iluminado por esta luz para ser um fanal diante das mais densas trevas
que assolavam a sociedade; portanto, a teologia de Bonhoeffer se manteve com o
enfoque pastoral, como o enfoque do testemunho bíblico, do discipulado
verdadeiro, mesmo diante das terríveis e inomináveis crueldades que sua época e
sua sociedade testemunharam.
7.
Além destes aspectos, os quais, ao se compreender o contexto histórico onde se
desenvolveu a teologia de Bonhoeffer, se consegue perceber que a teologia do
pastor-mártir tem uma posição singular em meio ao desenvolvimento da teologia
do séc. XX; ainda não houve ninguém que fizera uma análise da teologia
protestante do séc. XX de maneira completa e englobante, tal, como por exemplo,
Barth fizera sobre a teologia protestante do séc. XIX; na verdade, ao se pensar
na posição de Bonhoeffer na teologia do séc. XX, talvez ele possa ser ofuscado
no sentido de produção acadêmica e intelectual por nomes como Paul Tillich,
Emil Brunner, e o próprio Barth; e, realmente, em relação a produção teológica,
o velho Barth ocupa a primeira fileira; todavia, a teologia de Bonhoeffer não
foi uma teologia como a de Barth, isto é, o propósito que Bonhoeffer
estabeleceu para si não era o mesmo que Barth estabelecera para si; a teologia
de Bonhoeffer não é uma teologia de resolução de problemas teológicos, mas a
teologia de Bonhoeffer é uma teologia do testemunho, uma teologia “mística”,
que por ser mística, acopla os aspectos da existencialidade humana; mas, um
“místico”, e afirme-se isso de maneira contundente, protestante, totalmente
protestante.
8.
Por estes e outros fatores, a teologia de Bonhoeffer tem gerado inúmeros
desafios, e entre os mais agudos críticos de Bonhoeffer, e até mesmo de muitos
de seus simpatizantes, tem sido declarada como a precursora da “teologia da
morte de Deus”; embora os arautos da “teologia da morte de Deus” tenham se
utilizado de Bonhoeffer, a teologia de Bonhoeffer de maneira nenhuma é
“teologia da morte de Deus”; antes, é uma teologia do Deus vivo diante de uma
Igreja morta espiritualmente e esclerosada biblicamente em sua organização
eclesiástica; embora os teólogos da morte de Deus tenham tentado se basear em
Bonhoeffer, nada seria mais injusto com Bonhoeffer e sua teologia, do que
colocá-lo como precursor ou formador de uma “teologia da morte de Deus”.
Na
verdade, como afirma Battista Mondin, a teologia de Bonhoffer pode ser definida
como um “cristocentrismo a-religioso”, pois, “o conteúdo do pensamento de
Bonhoeffer é Cristo. Ele é um defensor convicto de um cristocentrismo
apaixonado, exigente, absoluto, completo. Para nenhum outro teólogo moderno
Cristo é uma realidade tão viva, próxima, real e transformadora como para ele.
Baseia em Cristo toda a realidade e toda a espiritualidade. E desenvolve a
doutrina da Igreja particularmente no que se refere a Cristo”[1]. Mas, como diz Mondin, a
forma desta teologia é a-religiosa.
9. Um
cristocentrismo ainda mais radical do que o de Barth; certamente, Bonhoeffer é
o mais significativo cristocêntrico desde Zinzendorf; conquanto Bonhoeffer
tenha sido influenciado por Harnack, por Barth, por Lutero, por outros teólogos
luteranos, sua teologia lembra mais a Zinzendorf, pelo amor a Cristo, um amor
quase que exclusivo; também neste quesito Bonhoeffer está bem próximo de
Schleiermacher, que tinha uma reverência tamanha por Cristo, que viveu para
honrar e servir a Palavra, a saber, a Cristo; conquanto Bonhoeffer tenha sido
influenciado pelo cristocentrismo recuperado por Herrmann e tornado novamente
palavra do dia por Barth, este cristocentrismo possui uma riqueza tão grande,
que Bonhoeffer quase chega a ser um “herrnhutter”; portanto, isso o
coloca na mesma linha de Zinzendorf e de Schleiermacher; e isso em sinal da
grandeza de Bonhoeffer como teólogo; certamente, pode-se chamar Bonhoeffer de o
maior cristocêntrico do séc. XX.
E,
sua teologia, reflete totalmente isso; um cristocentrismo centrado, exigente,
completo, absoluto, e por consequência, a rejeição de tudo aquilo que desfigura
e/ou vitupera este cristocentrismo, no caso de sua época, a “religiosidade”, ou
mais propriamente, a transmutação da teologia em antropologia (como Feuerbach
houvera afirmado que era a obra dos tempos modernos!); é essa religiosidade que
transforma a teologia em antropologia que Bonhoeffer rejeita veementemente, de
maneira mais radical até do que Barth, pois, era essa religiosidade que tinha
tomado conta da Igreja em sua época e tornado os “cristãos” sujeitos a Hitler e
ao nacional-socialismo. Os “cristãos alemães”, como esse movimento ficou
conhecido, era um sincretismo desta religiosidade antropológica, da teologia
que é transmogrifada em antropologia, com a ideologia nacional-socialista. A
religiosidade que surgiu deste sincretismo foi o que Bonhoeffer veementemente
rejeitou.
10. A
teologia de Bonhoeffer ergue-se como resposta a estas questões; e seu
cristocentrismo radical, é em vista a corrupção moral e doutrinária da Igreja
Evangélica; diante de uma Igreja corrompida e tornada sujeita a poderes de
mando humanos, a única atitude é um cristocentrismo radical; épocas de
apostasia generalizada e contínua, requerem um remédio radical e veemente; a
teologia de Bonhoeffer foi um dos remédios para tentar curar os males de sua
época, e seu cristocentrismo radical foi um brado “cósmico” para a Igreja
acordar do sono e se arrepender do pecado de “abandonar a Cristo” e de se
tornar subserviente a homens e a poderes de mando humanos. Mas, infelizmente,
Bonhoeffer não foi ouvido; todavia, seu testemunho reluz e permanece, mesmo que
sua época tenha “tapado” os ouvidos para lhe ouvir; sua época não o ouviu, e
pode-se dizer até que foi rejeitado; mas após sua morte, todos o ouviram,
continuam a ouvir e continuarão a ouvi-lo enquanto este mundo existir.
11.
Portanto, se pode afirma de maneira resoluta que Bonhoeffer foi um dos poucos
cristãos verdadeiros em meio a apostasia total que tomou conta da sociedade em
que vivia; foi um dos poucos a levantar a voz na Igreja em defesa da verdadeira
Igreja; foi um quase solitário defensor de Cristo e de sua soberania sobre a
Igreja diante de uma Igreja que se rendia a ordenanças humanas como base de sua
proclamação e de sua mensagem. Contra isso, Bonhoeffer se vociferou; contra a
corrupção moral, doutrinária, litúrgica, eclesiológica, Bonhoeffer se
posicionou em honra a Cristo e em defesa de Sua Palavra; e, por isso, seu
testemunho continuará a ecoar nos quarteirões da história.
A
piedade, a simplicidade, a firmeza, o vigor teológico, fazem de Bonhoeffer um
dos mais significativos teólogos da história; mas, principalmente, o
cristocentrismo, é o que o torna Bonhoeffer um dos mais interessantes teólogos
da história.
12. O
cristocentrismo que apreendera de Barth, o tornara um cristocêntrico ainda mais
radical do que o próprio Barth. Certamente, para Barth, o único cristocêntrico
verdadeiro dos tempos modernos fora Zinzendorf[2] - e, Barth está
corretíssimo neste quesito; mas, nesta descrição, acrescenta-se Bonhoeffer; na
verdade, em tempos modernos, Zinzendorf e Bonhoeffer, são os dois únicos
verdadeiramente cristocêntricos. E isso, em honra ao legado do próprio
Bonhoeffer ser equiparado teologicamente a Zinzendorf, fato esse pouco
percebido, mas que é uma chave hermenêutica fundamental para se entender a
teologia de Bonhoeffer, pois, embora não seja um “discípulo” de Zinzendorf,
equipará-lo a Zinzendorf é um modo de se aclarar a grandeza de Bonhoeffer como
teólogo a partir do encargo fundamental de sua teologia. Portanto, o legado de
Bonhoeffer é esse: um cristocentrismo radical, completo, absoluto, bíblico,
a-religioso, contra a transformação da teologia em antropologia, contra os
falsos cristãos, contra os movimentos “eclesiais” inventados pelo Diabo, contra
a corrupção da vida cristã, contra a desfiguração da communio sanctorum;
etc.
II.
Bonhoeffer e o Discipulado.
13.
Todavia, a descrição básica da teologia de Bonhoeffer, e o caractere pelo qual
ele é mais conhecido, provêm do livro “Discipulado”; certamente, a
invectiva de Bonhoeffer em se tratando do discipulado, e em outras coisas do
mesmo período, são frutos da chamada de consciência aos teólogos e aos
cristãos, à Igreja em geral, que Karl Barth e outros fizeram através do que o
próprio Barth chamara de “existência teológica hoje”; a teologia do discipulado
de Bonhoeffer é um dos frutos da atitude corajosa e extremamente oportuna de
Karl Barth e daqueles que escreveram em função de alertar a Igreja do perigo da
subserviência ao nacional-socialismo, bem como para alertar do falso e vil
cristianismo daqueles que dizendo-se “cristãos” apoiavam e promoviam uma
ideologia nefasta, aqueles que na época eram chamados de “Deutschen Christen”
(cristãos alemães), os cristãos da Igreja do Reich.
14. A
teologia do discipulado é um dos mais belos e dignos frutos, de um daqueles que
realmente entendeu o que é a existência teológica, e que a aplicou de maneira
contundente na teologia pastoral; certamente, Bonhoeffer conseguira entender a
real “consequência” da existência teológica; ou nos termos que ele mesmo
desenvolvera, o real custo de ser cristão; a designação de Bonhoeffer para os “cristãos
alemães” que Barth rejeitara veementemente como um movimento do Diabo, era a de
que viviam a “graça barata”; por isso, de Bonhoeffer advêm a famosa fórmula: a
graça é de graça, mas custa caro; a graça de Deus é dada de graça a todos
quantos creem em Jesus Cristo como único e suficiente salvador, mas viver esta
graça, como servos de Deus, custa muito; esta é a fórmula bonhoeferiana da
teologia do discipulado. Por isso, se fazem necessárias algumas considerações
sobre o livro de Bonhoeffer; pois, conquanto os insights sobre o discipulado
que Bonhoeffer desenvolve sejam de inestimável valor, e de uma profunda piedade,
são reflexos do liberalismo teológico de Adolf von Harnack (ícone do
liberalismo teológico ritschliano).
15. E
o livro “Discipulado”, é um livro de reflexões e meditações simples e
profundas; simples, porque são reflexões facilmente entendíveis; profundas,
porque reúnem sob o manto da simplicidade o cerne da mensagem evangélica, o
âmago do que significa ser cristão. E, este livro, um marco da teologia no séc.
XX, é composto de duas partes: a primeira parte, onde Bonhoeffer analisa a
proposição sobre o discipulado; a segunda parte, onde Bonhoeffer analisa a
relação da Igreja de Jesus Cristo com o discipulado; na primeira parte,
Bonhoeffer faz uma exposição do sermão do monte; na segunda parte, a aplicação
do sermão do monte e suas descrições para a eclesiologia, ou mais propriamente,
suas prescrições para a vivência eclesiástica, para a existência eclesial; (i)
na primeira parte, Bonhoeffer traça os ditames do que é ser discípulo de
Cristo; (ii) na segunda parte, apresenta a concreção destes ditames na communio
sanctorum.
16.
[i] Na primeira parte, Bonhoeffer faz uma apresentação do “chamado” de Deus à
salvação, à obra graciosa de Deus, e medita sobre o significado desta graça, a “graça
preciosa”; e, por consequência, do chamado desta graça para a obediência e para
o “carregar a cruz” (cf. Lc 9.23); o chamado da graça preciosa, conduz a vida
responsável sob esta graça; a graça outorgada de graça, é vivida com
responsabilidade, “carregando a cruz”, e negando-se a si mesmo; viver sob esta
graça custa muito, na verdade, custa tudo; e, na compreensão sobre esta graça,
Bonhoeffer apresenta o cerne da vida responsável sob a graça recebida de graça;
ele assevera: “A graça preciosa é o tesouro oculto no campo, pelo qual o ser
humano vende feliz tudo que possui; é a pérola preciosa, pela qual o mercador
oferece todos os seus bens; é o domínio do reino de Cristo, pelo qual o ser
humano arranca o olho que o faz tropeçar; é o chamado de Jesus Cristo, pelo
qual o discípulo deixa suas redes para trás e o segue. A graça preciosa é o
evangelho que sempre se deve procurar, a dádiva que se deve pedir, a porta à
qual se tem de bater. Essa graça é preciosa porque chama ao discipulado; é
graça porque chama ao discipulado de Jesus Cristo; é preciosa por custar a vida
ao ser humano; é graça pois só assim dá vida ao ser humano; é preciosa porque
condena o pecado; é graça porque justifica, perdoa o pecador. É preciosa
sobretudo porque foi preciosa para Deus, porque lhe custou a vida de seu Filho
— ‘Porque fostes comprados por preço’ (ICo 6.20) — e portanto não pode ser
barato para nós o que custou caro para Deus. É graça, sobretudo, porque Deus
não considerou que seu próprio Filho custasse caro demais para pagar por nossa
vida, e assim o deu por nós. A graça preciosa é a Encarnação de Deus. A graça
preciosa é a graça como templo de Deus, que deve ser protegido do mundo, que
não pode ser lançado aos cães. Por isso, é graça como palavra viva, a Palavra
de Deus, por ele próprio proferida, conforme lhe agrada. Chega até nós como o
gracioso chamado ao discipulado de Jesus, como mensagem de perdão ao espírito
angustiado e ao coração despedaçado. É preciosa porque submete o ser humano ao
jugo do discipulado de Jesus Cristo; é graça porque Jesus afirma: ‘Meu jugo é
suave, e meu fardo é leve’”[3]. Esta é a proposição de Bonhoeffer sobre a
graça cara, a graça que evoca o discipulado, em contrariedade ao que Bonhoeffer
chama de graça barata.
17.
Assim sendo, ao apresentar a base do chamado ao discipulado, do chamado
misericordioso e gracioso de Jesus Cristo para que os homens o sigam,
Bonhoeffer passa a apresentar o que realmente significa o “seguir a Cristo”,
isto é, o que significa ser discípulo de Cristo; e para isso, Bonhoeffer se
utiliza do “sermão do monte” (cf. Mt 5-7), para aclarar e explicar qual é o
verdadeiro caminho que os discípulos de Cristo devem tomar para testemunharem
de Cristo e de Seu evangelho; e Bonhoeffer delineia o “sermão do monte” em três
aspectos, respectivamente, um cada para capítulo do “sermão do monte”:
primeiro, o extraordinário da vida cristã (cf. Mt 5); segundo, a abscondicidade
da vida cristã (cf. Mt 6); terceiro, a separação da comunidade dos discípulos
(cf. Mt 7).
18. E
justamente nestes três aspectos, além de fornecer uma explicação do sermão do
monte, estabelecem três princípios básicos do que significa ser cristão; do que
significa testemunhar de Cristo no mundo; do que significa ser discípulo de
Cristo.
Primeiro,
o extraordinário da vida cristã (cf. Mt 5); isto é, aqueles elementos que
constituem a diferença absoluta entre o cristão e o não-cristão, a saber, o
caminho de amar os inimigos, de orar por aqueles que os perseguem (cf. Mt
5.44-45); este é o extraordinário da vida cristã.
Segundo,
a abscondicidade da vida cristã (cf. Mt 6); isto é, aquela vida em testemunho,
que mais propriamente é vivida diante da abscondicidade, da vida em oração e
piedade que não aparece diante do mundo, mas que agrada a Deus, da vida em
abscondicidade que pode orar “pai”, e o Senhor Todo-Poderoso ouvir e habitar
com aquele que o ama e que se relaciona com Ele; esta é a abscondicidade da
vida cristã, do testemunho que faz algo de bom e de meritório e que prefere nem
saber que realmente o fez, como diz o Senhor Jesus: “quando tu deres esmola,
não saiba a tua mão esquerda o que faz a tuda direita” (Mt 6.3).
Terceiro,
a separação da comunidade dos discípulos (cf. Mt 7); isto é, da separação em
relação a santidade, dos princípios diversos que guiam aqueles que seguem a
Cristo que divergem totalmente dos princípios mundanos; pois, aqueles que
seguem a Cristo vivem sob a bondade de Deus, a qual ensina aqueles que creem a
viverem segundo a lei e os profetas, como ensina o Senhor Jesus: “Portanto,
tudo o que vós quereis que os homens vos faça, fazei-lho também vós, porque
esta é a lei e os profetas” (Mt 7.12). Este princípio, separa a comunidade
dos discípulos dos homens naturais, porque os homens naturais não vivem para
agradar a Deus, enquanto que os discípulos vivem sob a bondade de Deus, em
responsabilidade diante de Deus, no caminho da porta estreita (cf. Mt 7.13-14);
esta é a separação da comunidade dos discípulos.
19. A
tríplice descrição de Bonhoeffer sobre o “sermão do monte” açambarca de maneira
contundente e magistral os princípios básicos do reino de Deus manifesto na
vida dos cristãos; e, em continuidade a isso, Bonhoeffer trabalha a questão
sobre os “mensageiros” do reino de Deus, os mensageiros da mensagem do “sermão
do monte” (cf. Mt 9.35-10.42); a tríplice descrição do “sermão do monte”, é
seguida por uma análise sobre os mensageiros do evangelho; certamente, uma
análise daqueles que são chamados a transmitir o evangelho; pois, se o Senhor
Jesus outorga aos seus discípulos seus mandamentos, então, também os envia para
proclamar esta mensagem, e dá-lhes as diretivas de como eles devem proceder na
proclamação do evangelho, bem como avisa de antemão sobre as vicissitudes que
vão enfrentar.
20. E
os ensinamentos do Senhor Jesus nesta parte do Evangelho elencada por
Bonhoeffer, demonstram o “apelo” do Senhor Jesus ao discipulado; um chamado a
vida digna do evangelho (cf. Fp 1.27); uma convocação real de Cristo aos seus
mensageiros, colocando-lhes como embaixadores do Reino de Deus (cf. 2Co 5.20);
quando Jesus Cristo chama seus discípulos, e os ensina no caminho que devem
seguir, o caminho da graça preciosa, o caminho da liberdade; como Karl Barth
afirmara: “Jesus Cristo apela ao discipulado, isto é, a uma vida humana no
caminho que abriu, a uma vida humana na liberdade que deu”[4].
Portanto,
o verdadeiro discipulado é viver em liberdade, na liberdade espiritual que
Jesus Cristo deu, de acordo com Seu evangelho; e o verdadeiro discipulado
sempre deve ser evocado, quando a lei da liberdade (cf. Tg 1.25, 2.12) deixa de
fazer parte da existência eclesial, seja pela desfiguração da liberdade pelos
poderes de mando humano, seja pela apostasia da própria Igreja. Por isso,
Bonhoeffer, ao falar sobre os mensageiros do Evangelho, isto é, aqueles que
Deus chama de maneira específica para proclamar Sua Palavra, se deve reafirmar
que o Senhor Jesus Cristo, ao os chamar, faz o “apelo” ao discipulado, ou como
Barth afirmara, “a uma vida humana na liberdade que deu”; o discipulado
é uma vida na liberdade, e que isto não seja esquecido por todos aqueles que
propugnam o discipulado. Não existe discipulado sem liberdade; na verdade, o
discipulado deve ser evocado quando os cristãos esquecem que na Igreja existe
uma lei perfeita, a perfeita lei da liberdade (cf. Tg 1.25).
21.
Este caminho aberto por Jesus Cristo, este caminho que Ele ensina aos seus
discípulos, e o caminho que Ele os ordena a prosseguirem é um caminho de lutas
e de vicissitudes. Como o Senhor diz: “pregai, dizendo: É chegado o Reino
dos céus” (Mt 10.7), ao mesmo tempo que em os comissiona a realizar suas
obras: “Curai os enfermos, limpai os leprosos, ressuscitai os mortos,
expulsai os demônios; de graça recebestes, de graça dai” (Mt 10.8); mas, ao
comissionar seus discípulos para realizar suas obras, o Senhor Jesus também
alerta aonde os está enviando e para que os está enviando: “Eis que vos
envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede prudentes como as serpentes
e símplices como as pombas” (Mt 10.16); por isso, o Senhor Jesus os manda
ter cautela e prudência diante daqueles que os perseguiriam: “Acautelai-vos,
porém, dos homens, porque eles vos entregarão aos sinédrios e vos açoitarão nas
suas sinagogas” (Mt 10.17); na verdade, o Senhor Jesus também afirma que os
seus discípulos, os mesmos que ele comissiona a irem pregando e anunciando o
Reino de Deus, por viverem na graça preciosa e por serem discípulos Seus, serão
odiados: “E odiados de todos sereis por causa do meu nome; mas aquele que
perseverar até ao fim será salvo” (Mt 10.22).
Este
é o caminho que espera aqueles que trilham o caminho que Jesus Cristo anuncia,
o caminho da graça e da liberdade, o caminho dos discípulos, o caminho dos
embaixadores do Reino de Deus, o caminho que fará com que os homens tenham ódio
da mensagem que transmitem; e assim, os perseguirão e os matarão, mas quem
perder a vida por causa de Cristo, acaba por achar a vida e a salvação eterna;
o Senhor Jesus assevera: “Quem achar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a
sua vida por amor de mim achá-la-á” (Mt 10.39).
22.
[ii] Na segunda parte, Bonhoeffer trabalha a noção da Igreja de Jesus Cristo e
o discipulado; ou mais propriamente, sobre as formas como o discipulado,
descrito no “sermão do monte”, é evidenciado na doutrina e na vida eclesial;
pois, se o “sermão do monte” é a descrição do que é ser discípulo de Cristo,
então, esta descrição açambarca os aspectos fundamentais da existência
eclesial; para compreender este aspecto, Bonhoeffer elenca seis pressupostos:
primeiro, as questões preliminares; segundo, o batismo; terceiro, o corpo de
Cristo; quarto, a Igreja visível; quinto, os santos; sexto, a imagem de Cristo.
Nestes
seis pressupostos, Bonhoeffer consegue açambarcar alguns aspectos daquilo que é
descrito como existência eclesial; pois, refletem sobre os princípios
fundamentais do que constitui-se ser cristão e do que constitui-se ser Igreja;
sem estes pressupostos, biblicamente fundamentados, não existe Igreja; a
verdadeira Igreja, a Igreja invisível, quando se torna evidenciada na Igreja
visível, tem em si estes pressupostos; mas, quando a Igreja visível é
desfigurada, então, estes princípios fundamentais são destonados; e, assim, se
tem a apostasia da Igreja. Logo, os discípulos de Cristo, ao se reunirem em
comunhão, a communio sanctorum, para se mostrarem ao mundo como Igreja,
para que o mundo creia (cf. Jo 17.20-21), terão necessariamente estas
características do que Bonhoeffer estabelece sob o pressuposto da “Igreja de
Jesus Cristo e o Discipulado”; é o signo teológico bonhoefferiano, para
demonstrar quando uma Igreja é realmente e verdadeiramente Igreja de Jesus
Cristo.
23.
Com isso, a proposição de Bonhoeffer se estabelece de maneira magistral; uma
análise básica, oriunda de reflexões e meditações no evangelho de Mateus, as
quais, testemunham do Cristo Rei que chama os homens a segui-Lo e a serem seus
discípulos, bem como traça e indica o caminho que estes devem seguir, outorga
os mandamentos do reino de Deus no “sermão do monte”, e assim, os institui para
levar esta mensagem aos confins da terra como seus embaixadores (cf. 2Co 5.20);
o discipulado é isso, viver como Cristo ensinou e testemunhá-Lo com palavras,
na proclamação do evangelho, mas principalmente com ações concretas que
demonstrem estas virtudes propagadas pelo reino de Deus, as quais indicam o
extraordinário da vida cristã, principalmente em épocas que as próprias Igrejas
se engendram nos caminhos da apostasia. O discipulado é um brado cósmico para
os cristãos voltarem a viver conforme o Evangelho.
24. E
a teologia do discipulado que se estabelece a partir da invectiva de
Bonhoeffer, tornara-se um ponto de inflexão da teologia no séc. XX; no entanto,
mesmo diante da importância singular deste livro e de seu conteúdo vigoroso, no
período posterior a luta da Igreja, após a Segunda Guerra, a perspectiva do
discipulado fora desfigurada, principalmente nas últimas duas décadas, ou mais
precisamente, das últimas três décadas do séc. XX, e do início do séc. XXI em
diante.
Na
verdade, houvera uma super-valorização sobre a questão do discipulado, quase
que uma “deificação” do discipulado, e isto de maneira desfigurada; criou-se
uma enorme variedade de formas de se aplicar o “discipulado”, desde pequeno
grupos e institutos eclesiásticos, etc.; no entanto, ao que parece, ninguém
compreendera realmente o que é o discipulado; a ênfase no discipulado, na
verdade, é feita a partir do atestado de óbito de morte espiritual das Igrejas;
o discipulado só deve ser reafirmado quando isso ocorre.
Então,
se há uma ênfase desmedida no discipulado, é porque as Igrejas estão mortes
espiritualmente e se enveredaram no caminho da apostasia, ou então porque são
dominadas por algum poder de mando humano ou porque ab-rogam para si alguma
forma de revelação que não a Revelação de Deus.
25.
Por isso, a evocação do discipulado, parte do princípio de que as Igrejas estão
desfiguradas enquanto instituição, tal como na época que Bonhoeffer
estabelecera sua contribuição inestimável sobre o discipulado; por isso, a
super-valorização do discipulado de maneira desmedida, das duas uma: ou então
não se sabe realmente do que trata o discipulado e se começou novamente a falar
disso porque se tornara “moda teológica”; ou então, as Igrejas realmente foram
desfiguradas e se tornaram em seitas.
Certamente,
um pouco das duas coisas; pois, tornara-se “moda teológica” falar em
discipulado, e isso porque realmente as Igrejas estão sendo desfiguradas
paulatinamente, pela subserviência a princípios provenientes da apostasia
cultural, e pela aceitação de práticas anti-bíblicas, a ordenação feminina e
outros males espirituais, o que torna estas Igrejas em seitas.
26.
Deste modo, o discipulado, se realmente for necessário de ser reafirmado, deve
ser reafirmado a partir dos princípios evocados por Bonhoeffer, e de quando do
desvio da verdade por parte das Igrejas, das diversas denominações cristãs; do
contrário, se reafirmar o discipulado tal como ele é, é afirmar que as
instituições eclesiais estão deformadas de seu propósito bíblico e deixaram de
ser evidência da Igreja enquanto organismo vivo; por isso, se elucubrar e se
evidenciar o discipulado, requer alguns cuidados e alguns princípios; não é
porque se tornara “moda teológica”, que se deve tornar parte da existência
eclesial; até mesmo porque o discipulado que Bonhoeffer propugnou vai contra
toda a onda de “novidades” que tem permeado a existência eclesial da Igreja
Evangélica na contemporaneidade (desde a formatos antropocêntricos de pregação
a quase totalidade das músicas gospel); certamente, Bonhoeffer seria até mais
radical do que fora contra a “Igreja antropocêntrica” de sua época, que
se rendeu aos ditames de uma ideologia nefasta e que se embasara em poderes de
mando humano para ter o conteúdo de sua mensagem - aliás, afirme-se, que as
Igrejas na época de Bonhoeffer eram Igrejas totalmente apostasiosas.
Por
isso, o verdadeiro discipulado, reafirma a existência teológica, e é um brado a
respeito da vida cristã e da existência eclesial fundamentadas no Evangelho; ou
mais propriamente, nos termos confessionais da época de Bonhoeffer, embasados
naquilo que a declaração de Barmen houvera afirmado: “Jesus Cristo, como nos
é atestado na Sagrada Escritura, é a única Palavra de Deus que devemos ouvir, e
em quem devemos confiar e a quem devemos obedecer na vida e na morte.
Rejeitamos a falsa doutrina de que a igreja teria o dever de reconhecer — além
e aparte da Palavra de Deus — ainda outros acontecimentos e poderes,
personagens e verdades como fontes da sua pregação e como revelação divina”[5].
O
verdadeiro discipulado é a confirmação e a comprovação desta verdade reafirmada
pelo § 1 da Declaração Teológica de Barmen, mas também feito de quando da mesma
necessidade que levou a se estabelece esta tese da referida declaração.
27.
Portanto, que o testemunho de Bonhoeffer, numa época de extrema dificuldade,
seja um baluarte eficaz para que se possa, através de sua vida e escritos,
principalmente do livro “Discipulado”, se aperceber dos males que rondam
a existência eclesial nestas últimas décadas; com isso, diante do cenário
hodierno, diante de Igrejas corrompidas em suas doutrinas, ações e práticas, se
compreende qual deve ser o testemunho cristão, o testemunho da existência
teológica, a saber, o testemunho de fidelidade absoluta, até nos mínimos
aspectos, para com a Palavra de Deus; é a revelação de Deus a fonte de
conhecimento para as práticas e as ações da Igreja, tanto em sua existência
como esposa de Cristo, quanto em sua existência como coluna e firmeza da
verdade. A palavra de Deus é a fonte donde emana a vontade de Deus para a
Igreja, tanto na liturgia, quanto no testemunho, e ainda em sua
existencialidade diante dos homens como coluna da verdade, como guardiã da
liberdade e como mãe da caridade.
28.
Com isso, se percebe que a ênfase desmedida no discipulado, de maneira
desfigurada e longe do verdadeiro propósito de se falar e refletir sobre o
discipulado, gerou uma série de problemas às Igrejas; pois, a super-valorização
do discipulado é uma das raízes que criou o movimento dos “desigrejados”;
ora, se as Igrejas enquanto instituições estão desfiguradas, o que a afirmação
do discipulado pressupõe, então, não se tem motivo e nem razões bíblicas para
fazer parte destas instituições; por isso, existe aqueles que, mantendo as
disciplinas espirituais, os meios de graça particulares, são mais fiéis a Deus
do que aqueles que fazem parte dos arraiais eclesiais contaminados e
desfigurados; o movimento dos “desigrejados”, é uma prova indiscutível
da falência espiritual das Igrejas, as quais, com raras exceções enveredaram
pelas modas do discipulado, sem sequer se aperceber que a proposição a respeito
do discipulado é o que confirma que estas Igrejas estão desfiguradas e se
tornaram em seitas.
29.
Além disso, a necessidade premente de novidades, e a manipulação na esfera
eclesial - que se tornara caractere indiscutível em muitas Igrejas - tão
hedionda quanto a manipulação dos partidos comunistas, são testemunho mais do
que evidente da falência espiritual e moral das diversas Igrejas. É basicamente
o mesmo cenário de corrupção que Bonhoeffer viu em sua época, com a diferença
do modo em que ocorrera esta corrupção. Certamente, diante deste cenário, a
afirmação de Barth volve-se a mente: “A Igreja Protestante já está cercada
por uma nuvem negra de desconfiança. Qualquer pessoa que não seja cega pode
ver. Mas os seus líderes são cegos e não veem isso. Eles se regozijam com a
confiança que um pequeno grupo de ‘pessoas da igreja’ parece depositar neles,
sentando-se a seus pés com expectativa repetidas vezes aos domingos e feriados
- e eles não veem que este é também e especialmente o caso com este o bom ‘povo
da igreja’ pequeno-burguês. É um resquício de confiança que pode e irá
desaparecer se a insignificância de toda a questão eclesiástica for provada.
Mas isso será provado se a igreja continuar a falar assim por algum tempo,
impunemente e sem ser perturbada. A pequena burguesia, que ainda dá consolação
aos pastores, um dia lhes agradecerá este ópio. E mesmo que não o fizessem
imediatamente e que esta atividade continuasse impunemente por mais 100 anos,
ainda assim seria verdade que esta igreja - a igreja que deveria ser
legitimamente representada por esta voz - está abandonada por Deus e todos são
traidores da Igreja (e não apenas da Igreja) que os ‘conduziram’ até lá”[6].
E a
descrição de Barth, feita a quase cem anos atrás, continua a ser atual; e,
diante de um cenário que as Igrejas estão desfiguradas, diante da crescente e
desmedida afirmação sobre o discipulado, se apercebe o estado real das Igrejas,
a saber, que a Igreja “está abandonada por Deus”. Com isso, a evocação
do discipulado, demonstra a “insignificância de toda a questão eclesiástica”;
portanto, que o entendimento sobre o verdadeiro discipulado e sua evocação,
sirva de auto-análise do estado das Igrejas, bem como para que se compreenda
que quando o discipulado é evocado, é porque a Igreja, para utilizar as
palavras da crítica de Barth, “está abandonada por Deus”. A descrição de
Barth é de quase uma década antes da invectiva de Bonhoeffer sobre o
discipulado, mas é a descrição que demonstra o estado da Igreja diante da qual
Bonhoeffer teve de lutar para reafirmar o verdadeiro cristianismo.
30. O
evocar o discipulado não é somente elaborar e analisar as formas para se
ensinar o como se deve seguir a Jesus Cristo; o termo discipulado fora evocado
como signo teológico para quando a Igreja estiver nos caminhos da apostasia, e
de quando a Igreja “está abandonada por Deus”. Pois, o seguir a Jesus
Cristo fora talhado na teologia medieval como a teologia da imitação de Cristo,
e após a Reforma como doutrina da vida cristã; a volta ao discipulado, é quando
ocorre a apostasia da Igreja e dos cristãos, quando a “insignificância de
toda a questão eclesiástica”, está mais do que evidente; portanto, que se
lembre destas verdades ao se afirmar e se evocar o discipulado, pois, somente
nestas condições, é o que discipulado deve ser reafirmado; pois, do contrário,
eis o caos eclesiástico, como a existência da Igreja Evangélica no Brasil e no
mundo testemunha de maneira clarividente nas últimas décadas.
III. Uma
Avaliação Crítica.
31.
Deste modo, tendo compreendido alguns aspectos sobre o “Discipulado” de
Bonhoeffer, pode-se, conjuntamente com análise destes aspectos, se evocar uma
avaliação crítica da linha teológica fundamental que serve como pano de fundo
para a invectiva de Bonhoeffer; pois, sobre isso, quase não se foi falado; na
verdade, é um dos aspectos mais importantes para se compreender a proposição de
Bonhoeffer sobre a teologia do discipulado; pois, conquanto a teologia do
discipulado tenha muitos aspectos salutares, também não deixa de ter aspectos
problemáticos e aporéticos; compreender estes aspectos problemáticos deve
perfazer toda e qualquer análise séria sobre a teologia do discipulado.
32.
No início do livro, Bonhoeffer afirma: “A graça barata é graça como
doutrina, como princípio, como sistema”[7]; nesta expressão, se
compreende donde advêm a influência primordial do discipulado de Bonhoeffer;
pois, ao designar a graça barata - para Bonhoeffer a perversão e apostasia do
evangelho -, como doutrina, princípio, sistema, Bonhoeffer está seguindo a linha
da crítica teológica de Harnack e da escola teológica que ele representava;
Harnack, criticara a helenização do cristianismo, e por consequência, das
formulações racionais que são provenientes da influência grega; logo, em
Harnack, se tem a desvalorização e rejeição da reflexão teológica-sistemática;
Paul Tillich, reconheceu este problema e asseverou: “Minha crítica à
teologia liberal como um todo, e a Harnack em particular, é sua ausência de
teologia sistemática. Aceitavam os resultados da pesquisa histórica
erradamente. Diante disso, seus pronunciamentos sistemáticos eram
comparativamente pobres. Mas faziam sentido para muita gente, na época”[8]. Logo, desta afirmação de
Tillich se consegue compreender um dos problemas do liberalismo teológico de
Harnack, o qual, infelizmente influencia decisivamente Bonhoeffer em sua
invectiva sobre o discipulado.
33.
Pois, a crítica de Bonhoeffer, logo no primeiro capítulo de seu livro, sobre a
doutrina, o princípio, o sistema, é uma crítica ao princípio dogmático do
cristianismo; pois, Bonhoeffer não critica um sistema humano apenas, como a
Igreja em sua época havia se tornado em Igreja do Reich (uma Igreja com o
sistema nazista); mas a crítica de Bonhoeffer também é em relação a proposição
do sistema doutrinário, ou melhor, a sua possibilidade e necessidade; neste
sentido, a crítica de Bonhoeffer é a mesma que resulta dos estudos da escola
teológica que Harnack representava; logo, a crítica de Bonhoeffer não deixa de
ser enviesada com o liberalismo teológico de Harnack; deste modo, a invectiva
de Bonhoeffer sobre o discipulado, embora tenha significativos e preciosos
aspectos, é uma outra formulação, mais bem feita e com uma percepção pastoral
aguçadíssima, daquilo que Harnack houvera proposto em “Das Wesen des
Christentums”.
34. A
invectiva de Bonhoeffer em se voltar a vida cristã pura e simples, de acordo
com o Evangelho, a qual, certamente sempre deve ser ouvida, tem a influência do
que Harnack propugnara como a simplicidade da mensagem de Jesus Cristo. Harnack
assevera: “A grandeza e o poder da mensagem de Jesus Cristo decorrem do fato
de ser tão simples e, ao mesmo tempo, tão rica. Tão simples, a ponto de caber
em cada um dos pensamentos apresentados. Tão rica, que cada um desses
pensamentos mostra-se inesgotável, indo muito além do que podemos apreender nos
seus ditos e parábolas. Mas, além disso, sua pessoa permanece viva em tudo o
que disse. Suas palavras falam a nós ao longo dos séculos como se pertencessem
ao presente. É nisto que a verdade desta sentença se verifica: ‘Fala, para que
eu te possa ver’”[9]. A expressão de Harnack é
formidável, e se fosse apenas esta expressão seria totalmente aceitável; o
problema é que esta expressão não é pura e simplesmente a descrição da beleza
da simplicidade da mensagem de Jesus Cristo, mas é parte do programa de deshelenização
do cristianismo; o desenvolvimento da teologia de Bonhoeffer segue o mesmo
caminho; pois, a crítica de Bonhoeffer de que a graça (a mensagem de Jesus
Cristo, o Evangelho), tornara-se em graça barata (corrupção e desfiguração do
Evangelho), e ao estabelecer esta crítica da graça barata tendo a mesma como
doutrina, princípio, sistema, é ao mesmo tempo uma crítica a todo o
desenvolvimento teológico sóbrio e saudável da patrística e da escolástica
(donde provêm o desenvolvimento das ideias de doutrina, princípio, sistema em
relação ao desenvolvimento teológico).
35.
E, compreendendo-se isto mais a fundo, afirma-se as seguintes proposições, com
evidências históricas: a ideia de doutrina está disposta nas primeiras gerações
após o período apostólico, principalmente a partir de Tertuliano; a ideia de
princípio, fora estabelecida por Orígenes, dos princípios teológicos
fundamentais à reflexão teológica; e a ideia de sistema, aplicada a reflexão
teológica-sistemática provêm da escolástica; então, a teologia do discipulado,
como crítica a graça barata, a graça barata que Bonhoeffer identifica também
como doutrina, princípio, sistema, passa a ser uma crítica a tudo quanto
representam os conceitos de doutrina, princípio, sistema, em relação ao todo da
teologia cristã. Donde, ao se efetivar a teologia do discipulado, logo, se terá
a rejeição ao que estes conceitos significam; se terá a rejeição a doutrina; se
terá a rejeição aos princípios teológicos; e se terá a rejeição ao sistema
teológico (ou mais propriamente, a rejeição a teologia sistemática ou
dogmática).
36.
Estas são algumas das consequências da efetivação da invectiva de Bonhoeffer
sobre o discipulado; pois, conquanto Bonhoeffer tenha acertado em muitos
aspectos, suas reflexões e proposições são de acordo com as necessidades de sua
época; a teologia do discipulado que Bonhoeffer recupera tem um contexto
específico, de quando da apostasia da Igreja; e, tem os princípios pelos quais
fora influenciado, a saber, o liberalismo teológico de Harnack; logo, a
invectiva de Bonhoeffer possui inúmeros aspectos salutares, e não deixa de ser
importante nos contextos onde se faz necessária, mas, se for aplicada de
maneira errônea, gerará uma crise eclesial terrível, pois, se gerará uma série
de críticas ferrenhas a tudo quanto diz respeito a existência eclesial e a existência
teológica. A teologia do discipulado, ou é uma bênção, no contexto onde se faz
necessária, tal como fora aplicada por Bonhoeffer, ou então, gerará inúmeras
aporias que demonstram aquilo que Barth chamara de “insignificância de toda
a questão eclesiástica”.
37.
Estas afirmações e descrições devem ser levadas em conta em qualquer proposição
sobre a teologia do discipulado, e devem servir de uma análise crítica da
aplicação desmedida que tal proposição tomou na Igreja hodierna. Agora, se as
Igrejas, os teólogos, persistirem na aplicação da teologia do discipulado sem
compreender sua necessidade e natureza, se terá ainda mais problemas do que se
encontram atualmente nos arraiais eclesiásticos, e como se constata a partir
das descrições anteriormente elencadas. O desvirtuamento da Igreja Evangélica,
e a permissividade de práticas anti-bíblicas nos arraiais eclesiais, também são
fruto da aplicação errada e sem necessidade da teologia do discipulado; e isso,
infelizmente, não há como negar.
38.
Além disso, a perspectiva de Bonhoeffer sobre o discipulado, assim como as
perspectivas que dela provêm, isto é, toda a iniciativa e invectiva em torno da
teologia do discipulado, embora tenha sido evocada com um propósito nobre e
piedoso, traz em si os ditames da deshelenização do cristianismo; pois, toda
invectiva do discipulado não é pura e simplesmente evocar o seguir a Jesus
Cristo; mas, é uma invectiva contra uma salutar influência na edificação do
cristianismo, que deu forma e base para que a Igreja se tornasse coluna e
firmeza da verdade. As significativas e muito pertinentes invectivas de
Harnack, devem ser estudadas, apenas se deve ter o cuidado com o programa da
deshelenização do cristianismo, que traz muitos problemas para a existência
teológica e para a existência eclesial.
39.
Deste modo, a invectiva de Bonhoeffer, diante de um cenário de apostasia total,
propôs uma volta ao discipulado; certamente, neste contexto, uma invectiva
assaz significativa e pertinente; mas, que também trazia imbuída o programa de
deshelenização do cristianismo; e, no contexto de Bonhoeffer, isso foi muito
necessário, porque demonstrou aquilo que Barth afirmara como a “insignificância
de toda a questão eclesiástica”; portanto, neste contexto não fazia muita
diferença a deshelenização ou não do cristianismo; era um brado cósmico para
que os cristãos se mantivessem fiéis ao Evangelho, mesmo que a Igreja
instituição tivesse apostatado, e que houvesse nesta própria invectiva todas as
aporias provenientes do programa da deshelenização do cristianismo.
40.
Entretanto, em outros contextos que não o de apostasia total, a teologia do
discipulado traz sérios problemas; pois, não somente proclama uma “ad fontes”
do Evangelho, mas também traz imbuída as noções da deshelenização do
cristianismo; e, ao mesmo tempo que traz uma volta as práticas do Evangelho, em
os cristãos serem discípulos de Cristo, a teologia do discipulado também traz
sérios problemas à existência eclesial; e, entres estes problemas os mais
comuns e aporéticos são:
O
primeiro e mais comum, é a desvalorização da questão doutrinária; e, por
consequência, a desvalorização da importância da firmeza doutrinária e a
negação da importância doutrinária; e isto traz todos os problemas que surgem
por falta da desvalorização doutrinária, já que sem a firmeza doutrinária,
qualquer vento de doutrina açambarca as Igrejas (cf. Ef 4.14).
O
segundo, é a rejeição para com os princípios e axiomas teológicos fundamentais;
e, por consequência, qualquer coisa tida como teologia é aceita mesmo que
esteja sem fundamentação bíblica e racional; logo, com a rejeição aos
princípios e axiomas teológicos fundamentais, qualquer poder de mando humano ou
qualquer um que se arrole alguma “autoridade espiritual” procurará implementar
práticas anti-bíblicas e anti-racionais como se fossem a vontade de Deus.
O
terceiro, é a rejeição e a negação da teologia sistemática; e,
consequentemente, da desfiguração da importância e da natureza da pregação;
pois, sem teologia sistemática, a pregação se torna ressequida e fraca; não que
a pregação seja aula de teologia sistemática, mas o Dr. Llyod-Jones afirmou que
para se ser um bom pregador, há de se conhecer muito bem a teologia
sistemática; então, a rejeição e a negação da teologia sistemática - aliás, um
dos principais aspectos da teologia de Harnack -, adentra aos arraiais
enfraquecendo a prática da pregação, e inoculando no lugar da proclamação da
Palavra de Deus outras mensagens, e, com isso, viciando as Igrejas em práticas
apostasiosas que surgem de mensagens que não são provenientes da Palavra de
Deus.
41.
Estes três aspectos, são algumas das mais comuns consequências do programa da
deshelenização do cristianismo; e, que vem imbuídos em toda e qualquer
invectiva sobre a teologia do discipulado; a desvalorização da questão
doutrinária, a rejeição para com os princípios e axiomas teológicos
fundamentais, a rejeição e a negação da teologia sistemática, e as
consequências que disto provêm, são o fruto da invectiva sobre a teologia do
discipulado na existência eclesial.
E
isto se demonstra na prática; todas as Igrejas que foram permeadas pela
teologia do discipulado, sem nenhuma exceção, foram dominadas por práticas que
são expressão ou da desvalorização da questão doutrinária, ou da rejeição para
com os princípios e axiomas teológicos fundamentais, ou então, da rejeição e
negação da teologia sistemática, e, em casos mais críticos, destes três
aspectos conjuntamente.
42.
Portanto, há de se levar em conta estes aspectos ao se querer evocar a teologia
do discipulado; pois, sem nenhuma exceção, todos se mostram clarividentes em
toda aplicação da teologia do discipulado; logo, a aplicação do discipulado,
sem que seja feita num contexto adequado, e tal como Bonhoeffer o aplicara e
que estabelecera como encargo fundamental do discipulado, tem de ser feita de
maneira sóbria e consciente; senão, como fora afirmado anteriormente, eis o
caos eclesiástico; e, esta é uma verdade aterradora que tomara conta da Igrejas
Evangélicas nos últimos decênios.
43. Termina aqui esta breve exposição. Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém.
[1] Battista Mondin, Os Grandes
Teólogos do Século Vinte [São Paulo: Editora Teológica, 2003], pág. 244.
[2] cf. Karl Barth, Kirchliche Dogmatik IV/1, § 62.2, pág. 763.
[3] Dietrich Bonhoeffer, Discipulado
[Edição Eletrônica. São Paulo: Mundo Cristão, 2016], pág. 14.
[4] Karl Barth, Christliche Ethik - Ein Vortrag [München: Chr. Kaiser, 1946], pág. 8.
[5] Declaração Teológica de Barmen,
§ 1.
[6] Karl Barth, Quousque tandem...? [1930], In: Karl Barth-Archiv
10010.
[7] Bonhoeffer, Op. Cit., pág.
13.
[8] Paul Tillich, Perspectivas da
Teologia Protestante nos Sécs. XIX e XX [4ª ed. São Paulo: ASTE, 2010],
pág. 228.
[9] Adolf von Harnack, O que é
Cristianismo? [1ª ed. São Paulo: Editora Reflexão, 2014], pág. 52-53.
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