26/04/2024

O Múnus da Teologia do Terceiro Artigo

I

 

A reflexão sobre a teologia do terceiro artigo, assim como qualquer outra elucubração, requer a ponderação sobre o múnus de tal reflexão; no caso em específico, sobre o múnus da teologia do terceiro artigo; se na proposição da ideia da teologia do terceiro artigo, a teologia está delineada em sua natureza e propósito, então, no múnus da teologia do terceiro artigo está descrito a aplicabilidade da teologia e os princípios práticos da teologia pneumática; no múnus da teologia do terceiro artigo, se orienta a reflexão teológica partir dos princípios do terceiro artigo, que fornece os pressupostos básicos dos aspectos que se concretizam e se desenvolvem a partir da teologia do Espírito Santo; ou dito em outros termos, os aspectos que provêm da teologia pneumática são expressão do múnus da teologia do terceiro artigo.

E o encargo da teologia do terceiro artigo é estabelecido em tríplice perspectiva: primeiro, em relação a existência eclesial; segundo, em relação a existência extra-eclesial; terceiro, em relação as verdades eternas.

1. Primeiro, em relação a existência eclesial; o primeiro aspecto do encargo da teologia do terceiro artigo é em relação a existência eclesial; pois, sendo a Igreja uma comunidade pneumática, existe e é fortificada sob o poder do Espírito; a existencialidade da Igreja é uma existencialidade pneumatológica; a Igreja vive sob o Poder do Espírito; a existência eclesial, da liturgia a proclamação do Evangelho, é permeada pela atuação do Espírito; a liturgia, das orações aos cânticos, os elementos de culto, tudo tem de ser guiado pelo Espírito segundo as normas que Ele estabelecera na Revelação; e a proclamação do Evangelho só encontra eficácia quando feita sob o poder do Espírito, pois é o Espírito quem convence os pecadores e os mostra Cristo como o Salvador (cf. Jo 16.8-11). Logo, a existência eclesial viva, dinâmica, sóbria, é uma existência pneumática.

2. Segundo, em relação a existência extra-eclesial; o segundo aspecto do encargo da teologia do terceiro artigo é em relação a existência extra-eclesial; pois, na medida em que o Espírito age naqueles que creem, e o faz quando estes estão reunidos como communio sanctorum, os fiéis ainda estão neste mundo, e, por isso, a teologia do terceiro artigo também diz respeito a forma bíblica de se viver neste mundo; o próprio Senhor Jesus orara: “Não peço que os tire do mundo, mas que os livre do mal” (Jo 17.15); no conhecido lugar comum da doutrina da vida cristã se afirma que o cristão é alguém que está no mundo, mas não é do mundo; vive no mundo criado por Deus para glorificar a Deus, mas não faz parte do sistema maligno dominado por Satanás.

Portanto, a teologia do terceiro artigo também diz respeito a forma como o cristão deve viver em relação a esfera extra-eclesial, em relação a existência extra-eclesial, como sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5.13-16), isto é, com suas obrigações naturais com relação a terra, como sal para preservar e cuidar, e com suas obrigações espirituais diante do mundo, como luz para iluminar este mundo tenebroso que jaz no maligno (cf. 1Jo 5.19).

3. Terceiro, em relação as verdades eternas; o terceiro aspecto do encargo da teologia do terceiro artigo é em relação as verdades eternas; o Espírito estabeleceu verdades eternas imbuídas na criação, para servirem de princípios para a vida humana, tanto para preservar a vida humana da completa corrupção do Pecado quanto para que a vida humana possa se desenvolver; estes princípios são chamados de verdades eternas, as quais, em sua Obra na Graça Comum, o Espírito Santo concede e edifica em benefício de todos os homens; e as verdades eternas são: Liberdade, Justiça, Bondade, Beleza, Verdade, Moral, etc.; estas são as verdades eternas, as quais, o Espírito Santo cultiva na ordem das coisas naturais para servirem de instrumento e de sementes para o desenvolvimento da vida humana.

Portanto, a teologia do terceiro artigo também tem um encargo em relação as verdades eternas, pois, estas são amalgamadas com o desenvolvimento cultural do ser humano, já que o ser humano como ser cultural a medida que se desenvolve o faz porque em suas ações tem imbuído algo das verdades eternas (por isso, das verdades eternas se estabelece a reflexão sobre a teologia da cultura e a própria teologia da cultura é estruturada com e a partir das verdades eternas).

 

II

 

Este tríplice encargo, demonstra de maneira específica o que é a teologia do terceiro artigo em seu propósito e escopo; pois, a partir deste tríplice encargo, delineia-se os princípios do múnus da teologia do terceiro artigo; logo, deste tríplice encargo, se estabelece uma orientação teológica quadrilátera, um quadrilátero teológico que é embasado e se desenvolve com e a partir da teologia do terceiro artigo; assim sendo, se estabelece quatro princípios em relação ao múnus da teologia do terceiro artigo, os quais estão em estreita conexão de continuidade-complementariedade com a tríplice perspectiva do encargo da teologia do terceiro artigo, e que constituem-se de quatro amplos aspectos teológicos, que constituem-se de um quadrilátero teológico; e estes aspectos são: (i) primeiro, em relação a Igreja; (ii) segundo, em relação a existência humana; (iii) terceiro, em relação ao testemunho; (iv) quarto, em relação a vida.

1. [i] Primeiro, em relação a Igreja; evidentemente, a teologia do terceiro artigo diz respeito a Igreja; pois, a própria Igreja é açambarcada no símbolo credal sob o terceiro artigo: “Creio no Espírito Santo, e na Igreja”; portanto, o princípio fundamental da teologia do terceiro artigo, é em relação a Igreja; pois, a Igreja sendo a comunidade pneumática, em sua existência, é evidência visível do agir do Espírito; portanto, o Espírito age na Igreja de forma poderosa, principalmente na salvação dos pecadores e na santificação daqueles que creem; logo, a Igreja é lugar onde aqueles que creem se reúnem para glorificar a Deus, em culto lógico (cf. Rm 12.1) - e o Espírito só age em culto lógico (logike latreia) -, o qual, por vez é orientado pelo Espírito Santo, o iluminador da lógica e da logística divina.

Com isso, em relação a Igreja, se desenvolve a teologia do Espírito Santo; e, uma teologia do Espírito Santo, abaliza uma melhor compreensão sobre a eclesiologia; na verdade, é o princípio preponderante para um melhor desenvolvimento de uma eclesiologia bíblica e sem a influência do lixo da apostasia cultural; pois, as mais das vezes, mesmo entre aqueles que se dizem mais avivados, se tem o perigo da apostasia cultural, pois, muitas vezes o fervor espiritual não vem acompanhado com a mesma medida de conhecimento bíblico; então, quando isso ocorre, a eclesiologia se corrompe; a teologia do terceiro artigo, além de proporcionar um melhor entendimento sobre a eclesiologia, também verifica os perigos que rondam a eclesiologia e que as mais das vezes corrompem a eclesiologia bíblica e saudável; na verdade, uma eclesiologia que não é pneumática, acaba por se desfigurar em eclesiologia anti-bíblica. Portanto, a teologia do terceiro artigo infere uma proposição sobre a eclesiologia, e a própria eclesiologia se desenvolve a partir do terceiro artigo.

2. [ii] Segundo, em relação a existência humana; a teologia do terceiro artigo diz respeito ao ser humano, não como objeto central e primordial, mas como objeto secundário e importante; pois, aqueles que crê, não deixa de ser humano porque crê; na verdade, a verdadeira humanidade só é entendida a luz da fé; o verdadeiro humanismo é o humanismo bíblico.

Portanto, o Espírito Santo age no indivíduo moldando-o a imagem de Cristo, e assim passa a implementar os gérmens da santificação, a infundir as virtudes teologais, a conceder dons, e a agir de maneira poderosa no desenvolvimento da salvação do indivíduo; e, não somente em relação a santificação para o relacionamento com Deus, mas em relação a santificação para o relacionamento com o próximo e na vida em sociedade; o Espírito aperfeiçoa aqueles que creem à vida em sociedade, fazendo com que os fiéis semeiem as sementes do reino de Deus.

A teologia do terceiro artigo em relação a existência humana, é a teologia que foca na influência dos cristãos no mundo semeando os valores do reino de Deus; mas não somente isso, a teologia do terceiro artigo estabelece as proposições para uma teologia integral da vida, com todas as complexidades que isto pressupõe e exige.

Com isso, em relação a existência humana, se desenvolve a teologia da vida; a existência humana é uma existência em vida; pois, sem vida há morte; logo, a teologia do terceiro artigo ao se coadunar com a existência humana, possibilita o desenvolvimento de uma teologia integral da vida; pois, sendo o Espírito Santo a fonte da vida (fons vitae), então, evidentemente, no agir do Espírito haverá sempre vida.

Portanto, a teologia pneumática é uma teologia integral da vida, da vida por inteiro; e da vida como um todo, em todas as esferas da vida humana, com todas as complexidades e dilemas da vida humana; sofrimentos, guerra, doenças, catástrofes, desastres, todos os problemas que assolam a vida humana, são assunto da teologia da vida; e, para as quais, a teologia pneumática sempre procura fornecer um entendimento mais apurado e adequado, mesmo diante das contradições da própria vida.

Ora, como se afirmar a teologia da vida diante da guerra? Como se falar em vida diante da fome? Como se falar em vida em meio as doenças? Estes e muitos outros questionamentos existenciais se defrontam com a teologia da vida, e a teologia da vida procura encontrar uma resposta bíblica e racional para estes questionamentos e nestes questionamentos. Como diz o Dr. Moltmann: “é por isso que faz parte dessa mensagem da vida também consolar os tristes, curar os doentes e sanar as recordações, acolher estranhos e perdoar pecados, ou seja, salvar pecadores dos poderes da destruição a vida ameaçada e prejudicada[1].

3. [iii] Terceiro, em relação ao testemunho; a teologia do terceiro artigo diz respeito ao testemunho; é a parte da existência teológica, onde propriamente dito fica evidente a proposição de que todos os cristãos devem testemunhar (cf. At 1.8); na verdade, o testemunho é parte da tríade da existência teológica; e todos os cristãos estão inseridos nesta perspectiva, pois, existe um ministério teológico de todos os fiéis (como afirma Jürgen Moltmann!), embora isso deva ser entendido corretamente e sem os desvios das loucuras protestantes.

Portanto, a teologia do terceiro é uma teologia martirológica, uma teologia do testemunho, em todos os aspectos e modos do testemunho; do ato de evangelismo pessoal, a proclamação do evangelho, a apologia da fé, até mesmo diante do martírio, a teologia pneumática é uma teologia do testemunho, do testemunho com a vida e com as obras, do testemunho que faz reluzir a bendita mensagem do evangelho através daquele que testemunha como sal da terra e luz do mundo.

Com isso, em relação ao testemunho, se desenvolve a teologia da cultura; a teologia pneumática ao se efetivar no testemunho, a partir deste, desenvolve a perspectiva da teologia da cultura; e a teologia da cultura é a reflexão teológica sobre a cultura e sobre como a cultura se desenvolve, mas também sobre os modos da influência do evangelho sob os mais diversos aspectos culturais; o cristão também é um ser cultural, então, em tudo o que produz para a glória de Deus, também está produzindo cultura; pois, as ações humanas, se feitas de maneira racional e sóbria, sempre produzem cultura; e a medida desta racionalidade é a medida da razão imbuída na produção cultural; quanto maior e mais bem burilada for esta expressão racional, mais significativa e importante será a produção cultural.

A teologia do terceiro artigo, pontua os princípios da teologia da cultura, a medida que se desenvolve com e sob os pressupostos bíblicos, e se amalgama com o entendimento sobre a ação humana e sobre os frutos da ação humana; isto, logicamente, é o que constitui a teologia da cultura, que é o testemunho do evangelho em cada aspecto da cultura, ao mesmo tempo em que produz cultura ao se testemunhar do evangelho.

4. [iv] Quarto, em relação a vida; a teologia do terceiro artigo diz respeito a vida; não somente a existência humana, mas a própria vida como dom de Deus e como responsabilidade do próprio ser humano; a teologia do terceiro artigo tem um princípio em relação a vida, e não somente em relação a uma teologia integral da vida, mas em relação ao próprio qualificativo de “vida”; pois, sendo o Espírito Santo a fonte da vida, é Ele mesmo quem outorga o entendimento sobre a vida e sobre o modo de viver; na verdade, a teologia integral da vida pressupõe a questão sobre a vida, sobre o modo como a vida se desenvolve.

Pois, a vida, se desenvolve a partir das leis fundamentais da própria vida; e a preservação das leis fundamentais da vida, é princípio da teologia do terceiro artigo; pois, onde há vida há a obra do Espírito em conservar e preservar a criação (cf. Sl 104.30); e como o próprio Deus é designado como manancial da vida (cf. Sl 36.9), então, onde há o irradiar do Espírito, haverá vida. Mas, esta dupla ênfase, com perspectivas distintas, em relação a vida, perfazem um princípio fundamental da teologia do terceiro artigo, no que concerne a ênfase na vida em relação a existência humana, e no que concerne a ênfase no elemento fundamental para a vida se desenvolver e ser vivida.

Com isso, em relação a vida, se desenvolve a teologia da liberdade; a teologia do terceiro artigo ao ter uma ênfase na teologia da vida, se coaduna com um princípio preponderante para o desenvolvimento da própria vida; por isso, em relação ao princípio da teologia do terceiro em relação a vida, se desenvolve a teologia da liberdade; pois, a liberdade é princípio preponderante para a vida se desenvolver; tanto que um dos pontos máximos da compreensão do direito, se tem a coadunação da vida e da liberdade como transcendentais dos direitos inalienáveis da pessoa humana (direitos humanos).

Portanto, a teologia da liberdade evoca a própria liberdade como pressuposto para o desenvolvimento da vida, pois, a liberdade é pressuposto estabelecido na ordem da realidade pelo Espírito Santo, e a liberdade é instituída pelo próprio Espírito como lei perfeita para a existência eclesial (cf. Tg 1.25, 2.12).

Deste modo, a teologia pneumática além de evocar uma teologia integral da vida, também evoca uma teologia da vida como dom de Deus e como responsabilidade humana, e assim, pressupõe e edifica a teologia da liberdade. Como diz o Apóstolo: “onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Co 3.17b); e onde o Espírito do Senhor está, aí há vida, porque há liberdade; sem liberdade, a vida se desintegra; sem liberdade, não há defesa da vida; logo, a teologia da liberdade é pressuposta pela teologia da vida, e isto para a defesa e a proteção da própria vida.

 

III

 

Deste modo, a partir destes princípios do múnus da teologia do terceiro artigo, se pode afirmar que a reflexão teológica se desenvolve, como fora dito, sob o agir do Espírito; o princípio preponderante da reflexão teológica, da pesquisa teológica, é compreensão sobre a soberania do Espírito Santo em relação a própria pesquisa teológica; pois, o Espírito age como quer e quando quer (cf. Jo 3.8); portanto, a compreensão deste princípio serve de fanal iluminador para o entendimento de como se deve prosseguir na reflexão teológica, de como se deve efetivar a pesquisa teológica.

Pois, se o Espírito é soberano, então, Sua soberania também é demonstrada na reflexão teológica, e isto livra aqueles que se dedicam a reflexão teológica de cair no pedantismo e na uniteralidade, bem como ensina que tudo de bom que se faz se deve atribuir a Deus (cf. Is 26.13); e isto impede que o coração decaia da graça através da vanglória e do orgulho; como diz São Máximo o Confessor: “atribuir a Deus tudo o que se faz de bom destrói o orgulho[2].

A experiência com a soberania do Espírito na reflexão teológica, ensina a atribuir a Deus tudo de bom que se faz e que se alcança, e, isso, por sua vez, destrói o orgulho; portanto, a experiência com a soberania do Espírito na reflexão teológica impede o orgulho e a vanglória de se assenhorarem do coração daqueles que se colocam nos ínvios caminhos da pesquisa teológica.

E a experiência com a soberania do Espírito, conduz a compreensão da liberdade do Espírito; como diz Barth, “o Espírito Santo é o poder vital que se compadece em liberdade tanto da comunidade com da teologia, a qual necessita e continua necessitando dele sob todas as circunstâncias[3]; portanto, o Espírito se compadece em liberdade, de acordo com Sua soberania; a teologia, que necessita sempre do Espírito, é sempre renovada e ajudada pelo Espírito que se compadece em liberdade; pois, “o Espírito deu forma à Igreja segundo sua fidelidade absoluta à revelação em Cristo e segundo sua liberdade divina de interpretá-la[4].

A liberdade do Espírito, segundo a qual Ele deu forma à Igreja, é a mesma liberdade com a qual o Espírito dá forma à teologia; como o Hermeneuta da Revelação, o Espírito a aplica de maneira sempre nova e de maneiras sempre inesperadas, a partir das quais, a reflexão teológica recebe seu ímpeto, e, assim se estabelecem os insights necessários para a teologia se desenvolver.

Nestes aspectos, se compreende o que é e do que se constitui a teologia do terceiro artigo; por isso, que aqueles que buscam compreender os maravilhosos e gloriosos aspectos revelacionais sobre o Espírito Santo, devem rogar a Deus tal como ensinara Anselmo da Cantuária: “Vem, Espírito Santo, vem, Mestre dos humildes... Vem, glorioso adorno de todos os viventes, de todos os mortais única salvação. Vem, Espírito Santo, comisera-te de nós. Prepara-nos, instrui-nos, dispõe-nos, e concede-nos, com a tua ajuda, o dom de uma caridade humilde, suave e paciente”. 

Bendito seja Deus para sempre. Amém. 



[1] Jürgen Moltmann, A Fonte da Vida: O Espírito Santo e a Teologia da Vida [São Paulo: Edições Loyola, 2002], pág. 29.

[2] São Máximo o Confessor, Capítulos sobre o Amor, 3ª Centúria, cap. LXII.

[3] Karl Barth, Introdução à Teologia Evangélica [11ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2016], pág. 40.

[4] Hans Urs von Balthasar, Deus, Eternamente jovem e surpreendente: Textos escolhidos sobre Trindade e Cristologia [São Paulo: Paulus, 2023], pág. 37-38. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Explicação do “Epigrama sobre Hegel” de Karl Marx

Proêmio   O “ Epigrama II ” ou “ Epigrama sobre Hegel ” (1837) [1] é um texto fundamental da filosofia marxiana, e é um dos textos mais...