02/12/2025

Sobre a Autoridade da Sagrada Tradição

Capítulo I: A autoridade da Sagrada Tradição.

 

1. Após ter entendido no que consiste a autoridade da Sagrada Escritura, como expliquei de acordo com minhas capacidades noutro escrito, convém ainda compreender no que consiste a autoridade da Sagrada Tradição; pois, Sagrada Escritura e Tradição Apostólica são indissociáveis para a fé cristã, assim como para o povo judeu eram indissociáveis a Lei e os Profetas e as regras de costumes da tradição oral talmúdica.

Embora, se deva saber distinguir o que concerne a cada uma, não somente do ponto de vista teológico, mas pelo próprio modo do intelecto abstrair os saberes, na Santa Igreja tanto a Sagrada Escritura quanto a Tradição Apostólica são mutuamente importantes em tudo quanto concerne a vida eclesial.

Pois, tanto a Sagrada Escritura quanto a Tradição Apostólica foram transmitidas aos fiéis pelos Apóstolos, confirmada pelos Pais Apostólicos, preservada e defendida pelos Santos Padres, e deve ser conservada incólume ao longo dos séculos. Pois, a fé verdadeira deve permanecer imutável mesmo com o passar das épocas.

2. Entretanto, mesmo quanto a questões humanas referentes ao desenvolvimento da Tradição sempre se tenha um ou outro erro, os quais devam ser corrigidos sempre que percebidos, a autoridade da Sagrada Tradição não falha, pois iniciou de maneira adequada com o testemunho apostólico e foi confirmada de maneira cabal pelos sucessores dos apóstolos; e, como fora dito, conquanto se possa ter erros na Sagrada Tradição, como a própria Escritura demonstra, o testemunho da Tradição Apostólica continua tendo plena validade na Santa Igreja; os erros da Sagrada Tradição não invalidam e nem impugnam a autoridade da mesma no desenvolvimento da Tradição Apostólica, a não ser quando no âmbito da Santa Igreja alguém atenta contra a Tradição Apostólica (cf. 2Jo 1.10).

3. Deste modo, é parte da fé a preservação da Tradição Apostólica, tal como São Gregório de Nissa afirmara de que a fé exposta pelo Senhor em todas as Escrituras, “guardamos tal como a recebemos, palavra por palavra, em pureza, sem falsificação, considerando até mesmo uma ligeira divergência das palavras que nos foram transmitidas como extrema blasfêmia e impiedade”, e nesta fé que “foi entregue por Deus aos apóstolos, não admitimos nem subtração, nem alteração, nem acréscimo, sabendo com certeza que aquele que ousa perverter a palavra divina com palavras desonestas, esse é filho do Diabo[1].

Ora, a fé que foi transmitida pelos Apóstolos nas Escrituras, nos costumes, e que foi preservada pelos Pais Apostólicos (discípulos dos Apóstolos), e corroborada pelos Santos Padres, deve permanecer inalterada; pois, a fé verdadeira tem a propriedade clarividente da imutabilidade; e esta imutabilidade é testemunhada na conformidade com a Tradição Apostólica.

 

Capítulo II: Os erros na Sagrada Tradição.

 

4. No entanto, isso não impugna a necessidade de reflexão e de elucubração; além disso, onde houve algum erro, seja pela limitação do intelecto ao refletir sobre as questões divinas, seja por manipulação humana ou por obra de demônios, etc., tal erro ao ser percebido e corretamente entendido, deve ser corrigido; evidentemente, nem todos tem a capacidade de se aperceber de quando isto ocorre; por isso, tais correções de quando de erros ou de proposições ambíguas, devem ser efetuadas o mais rápido possível, tanto para se evitar a manipulação demoníaca quanto para se evitar qualquer acusação vil contra a Santa Igreja; pois, os inimigos da Santa Igreja se aproveitam destes erros para se vociferar contra a Igreja, a fim de enganar e levar a perdição os fiéis mais débeis e caluniar o testemunho da Santa Igreja como coluna da verdade.

5. Ora, quanto a questões de erros na Sagrada Tradição se deve entender isso corretamente, sem decair nos sofismas das críticas dos hereges e de homens ímpios; pois, tais erros ocorreram algumas vezes na Sagrada Tradição, até mesmo alguns dos Concílio Ecumênicos foram convocados justamente por causa disso; quanto a isso, evoca-se um exemplo: São Gregório o Teólogo abalizou e definiu corretamente tudo quanto concerne a doutrina da Santíssima Trindade; no entanto, as sentenças de São Gregório o Teólogo, ainda que fosse um homem genial em todos os sentidos, foram permeadas de algumas ambiguidades.

Ora, isso ocorrera porque mesmo um santo patriarca, mestre no conhecimento das Sagradas Escrituras e gênio nas disciplinas filosóficas, ainda assim se defronta com limitações para explicar os mistérios da divindade, assim como ocorre com qualquer ser humano; e se um homem dotado das mais geniais capacidades defronta-se com estas limitações, o que se dirá os fiéis mais simples, que compõem a maior parte da Santa Igreja em todas as épocas; por isso, São Máximo o Confessor ao se aperceber de algumas destas ambiguidades, direcionado pelo Espírito Santo, procurou explicar e solucionar estas ambiguidades em sua importantíssima obra intitulada “Ambígua”.

Assim sendo, esta é uma tarefa que concerne aos santos mais letrados da Santa Igreja, principalmente os que estão imbuídos de autoridade hierárquica, a fim de quando se aperceberam de alguma destas ambiguidades ou elas forem explicadas por alguém vocacionado por Deus e com autoridade teológica conferida e confirmada pelo próprio Deus, a fim de que as ambiguidades sejam corretamente entendidas e solucionadas para que a Santa Igreja seja edificada e Deus seja glorificado. E esta é uma tarefa necessária de tempos em tempos.

6. E este é apenas um exemplo; poder-se-ia evocar outros tantos; e quantos outros aspectos foram deixados de lado e não foram solucionados; e se se for evocar este aspecto na teologia latina, então o volume de questões ambíguas deixadas em aberto é muito maior.

No entanto, tais questões não podem ser relegadas ao ostracismo, nem podem ser menosprezadas, e nem analisadas segundo o critério dos críticos da fé cristã; na verdade, precisam ser analisadas e entendidas conforme a autoridade da Sagrada Escritura e em conformidade com a autoridade da Sagrada Tradição, para serem abalizadas em tudo quanto é necessário.

Pois, estas ambiguidades se não forem resolvidas adequadamente, gestam no seio da Santa Igreja o ímpeto para o secularismo, como de fato ocorrera com a cristandade latina a partir da baixa escolástica.

 

Capítulo III: A distinção entre tradição e Tradição.

 

7. Assim sendo, a Sagrada Tradição se desenvolve, isto é, avança, se autocorrige e se preserva, sempre em fidelidade ao testemunho apostólico; pois, tudo quanto é produzido no âmbito da fé cristã é chamado num geral de tradição (com “t” minúsculo); e tudo quanto é abalizado corretamente e está em estreita conformidade com o que é transmitido na Sagrada Escritura e de acordo com a Tradição Apostólica, é parte da Tradição (com “t” maiúsculo)[2].

Por isso, tudo aquilo que é de fato parte da Sagrada Tradição é algo imutável, embora alguns aspectos possam ser melhorados e ser mais bem burilados; e é justamente neste aspecto que se defronta com um problema, pois algumas proposições e reflexões teológicas, que ainda são tidas apenas como opinião, sem serem abalizadas e sem passarem pelos critérios devidos, foram tomadas como parte da Sagrada Tradição, e se criou e/ou formou práticas e dogmas que estão em contrariedade a Tradição Apostólica e a Sagrada Escritura.

8. Entretanto, o problema maior deste aspecto está justamente na raiz que leva a tais sentenças e afirmações; pois, não é só a afirmação de uma opinião no âmbito da teologia que é tomada como declaração dogmática; na verdade, isto é expressão de um subjetivismo doentio, o que fora corretamente definido como “dionisionismo afetivo[3]; embora a fé verdadeira seja experiência com Deus, a explicação da fé passa pela correta apreensão e entendimento da mesma; e o entendimento possui um modo de funcionar correto; o problema do “dionisionismo afetivo” é justamente mudar a experiência que concerne a consciência, para a experiência no intelecto; e isto causa uma desordem no ser; a fé verdadeira é experienciada na consciência, com a Graça de Deus, mas é entendida no intelecto a partir do conhecimento da Sagrada Escritura; e isto é o que ensinado na doutrina dos apóstolos (cf. 2Pe 3.18).

9. A via afetiva na teologia transmuta isso (o “dionisionismo afetivo”); e ai está o problema, porque se se mudar esta regra, em relação aos assuntos da fé não se terá nem experiência verdadeira nem conhecimento verdadeiro. A maior parte dos erros em sentenças e proposições dogmáticas, alguns dos quais permearam até sínodos e assembleias conciliares, é justamente fruto desta transmutação, que é heresia monstruosa, já que torna o “eu” do indivíduo o elemento aferidor de medida para a doutrina da Santa Igreja, tornando a Santa Igreja sujeita a cada novidade propagada pelos ventos de doutrina (cf. Ef 4.14).

Especificamente, no catolicismo isto se torna mais evidente desde o acréscimo do filioque no Credo, no desenvolvimento do dogma da supremacia papal, etc., e se tornara ainda mais abrupto na mariologia que se desenvolveu no segundo milênio; a maior parte dos católicos tomam opiniões teológicas sem fundamento dogmático adequado como se fosse parte da Sagrada Tradição, e muitos ortodoxos enveredaram pelo mesmo caminho; e isto ocasiona secularidade no seio da Igreja; infelizmente, a secularização da fé é consequência direta do “dionisionismo afetivo”.

10. Deste modo, convém entender no que concerne a autoridade da Sagrada Tradição, que diferentemente da Sagrada Escritura não se desenvolve de maneira rápida; a Sagrada Tradição se desenvolve de maneira lenta e gradual, justamente para se evitar erros e desvios doutrinários; e a medida que se desenvolve um aspecto importante, outros hão de averiguar se há alguma ambiguidade e se houver, hão solucioná-la; é isto que é testemunhado pelos Padres da Igreja; na verdade, o testemunho apostólico, em tudo, testemunha desta bendita verdade, tanto para demonstrar que é o Espírito Santo quem guia a Santa Igreja, mesmo que os fiéis, sucessores dos apóstolos, etc., sejam imperfeitos e falhos.

E, se tem por certo, que sempre que o Espírito Santo quiser, Ele vocacionará e direcionará vasos escolhidos para analisar estes assuntos e colocá-los em ordem para a edificação da Santa Igreja e para a glória de Deus. Por esta razão, o Espírito Santo concede a vocação teológica à Santa Igreja, a algum vaso escolhido para tal finalidade, assim como fizera com São Gregório o Teólogo e com São Simeão o Novo Teólogo.

11. Assim, se entende que a autoridade da Sagrada Tradição sendo infalível, deve sempre ser manifesta em ordem a estes aspectos; aliás, a própria infalibilidade da Sagrada Tradição demonstra que a mesma tem autoridade e obrigação diante de Deus de corrigir os erros que passaram desapercebidos, ou por desatenção, ou por limitação humana, ou por qualquer outro motivo, etc.; pois, embora esta autoridade seja infalível, nesta vida os homens estão sujeitos as limitações humanas, tais como, o desenvolvimento do saber, a limitação do intelecto, as vicissitudes epocais, as tribulações pessoais, etc.

Portanto, em todas estas dificuldades, interiores e exteriores, a vida da Igreja passa pelas mesmas limitações; por esta razão, a autocorreção sempre é um fanal de bênçãos que a Sagrada Tradição sempre estabelece quando isto se mostra evidente e é necessário, tal como ocorrera na convocação do Concílio de Jerusalém (cf. At 15.1-11), e em tantos outros sínodos ou concílios; o testemunho apostólico demonstra isso: quando algo se torna repreensível, então este algo deve ser corrigido até se tornar novamente irrepreensível (cf. Gl 1.10ss), tanto em relação a moral quanto em relação a doutrina.

 

Capítulo IV: As características da autoridade da Sagrada Tradição.

 

12. Com isso, a partir da Sagrada Escritura, se pode evocar algumas propriedades da autoridade da Sagrada Tradição:

(i) infalibilidade, isto é, é uma autoridade que não falha (cf. Mc 13.31; Mt 16.19).

(ii) errância, isto é, é uma autoridade que está sujeita a cometer erros: como no caso da visão de São Pedro (cf. At 10.9-16), ou quando o próprio São Pedro se tornou repreensível (cf. Gl 1.11-14), ou ainda na desavença entre São Paulo e Barnabé (cf. At 15.36-39; 2Tm 4.11), etc.

(ii) imutabilidade dos costumes, isto é, os costumes corretos estabelecidos são inalteráveis (cf. 2Ts 2.15), embora em alguns aspectos possam ser aperfeiçoados.

(4) firmeza da disciplina eclesial, isto é, correção de erros e desvios doutrinários (cf. Tt 1.9-13), e disciplina moral aos que cometem pecados que requerem tais disciplinas (cf. Hb 12.6-11), com o propósito de preservar a fé tanto das heresias quanto da influência dos demônios (cf. 1Tm 6.3-5).

(5) análise das proposições teológicas para confirmar se as mesmas estão em conformidade com as palavras do Senhor Jesus e com a doutrina que é segundo a piedade (cf. 1Tm 6.3).

(vi) admoestar com a sã doutrina e convencer os contradizentes (cf. Tt 1.9), isto é, ensinar e corrigir de acordo com a doutrina dos apóstolos, e confutar e convencer os contradizentes em tudo que os mesmos se colocarem contra a Sagrada Escritura e contra a reta razão.

(vii) cuidado tanto com a sã doutrina quanto com a vida correta (cf. 1Tm 4.16), isto é, cuidado para que tanto a doutrina seja preservada incólume quanto para que a vida pessoal seja permeada pela piedade; pois, como Tomás de Aquino afirma a doutrina se corrompe tanto pelo que se ensina quanto pela intenção daquele que ensina[4].

13. Além disso, a partir dos Santos Padres, se pode evocar as seguintes propriedades da Tradição Apostólica:

(i) São Clemente de Roma assevera: “Os apóstolos receberam em nosso favor a boa-nova da parte do Senhor Jesus Cristo. E Jesus Cristo foi enviado por Deus. Portanto, Cristo vem de Deus e os apóstolos [vêm] de Cristo. Esta dupla missão realizou-se em perfeita ordem por vontade de Deus. Munidos de instruções e plenamente assegurados pela ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, confiantes na Palavra de Deus, saíram a evangelizar a próxima vinda do Reino de Deus na plenitude do Espírito Santo” (1Co 42.1-3); ora, os Santos Apóstolos são medianeiros da revelação, e por isso são transmissores da Sagrada Escritura, e transmissores da Tradição Revelacional ou Tradição Apostólica. Por isso, as instruções dos Apóstolos passadas a seus discípulos, e desses aos seus alunos, e assim por diante, preservadas pelos Santos Padres são munidas de autoridade divina, posto serem instituídas pelo Senhor através de Seus Santos Apóstolos.

(ii) Tertuliano afirmara: “Os Apóstolos no princípio afirmaram a fé em Jesus Cristo e estabeleceram Igrejas por toda a Judeia e logo a seguir, espalhados pelo mundo, anunciaram a mesma doutrina e uma mesma fé às nações e, por conseguinte, fundaram Igrejas por todas as cidades. Depois, delas, as outras Igrejas mutuaram a ramificação da sua fé e as sementes da doutrina, e continuamente a mutuam para serem precisamente Igrejas. Desta forma também elas são consideradas apostólicas como descendência das Igrejas dos Apóstolos[5]; ora, os Apóstolos levaram adiante a proclamação do Evangelho e estabeleceram Igrejas ao redor do mundo, tanto em conformidade com a Palavra da Escritura quanto em conformidade com as tradições que receberam do Senhor Jesus Cristo (cf. 2Ts 2.15); as Igrejas permaneceram com estas práticas e costumes, e por isso são chamados de Igrejas Apostólicas, isto é, são Igrejas que se mantém fielmente na doutrina dos apóstolos (cf. Ef 2.20); logo, as verdadeiras Igrejas são as que estão em conformidade plena com a Tradição Apostólica. A Tradição Apostólica é critério necessário para averiguar onde se tem verdadeiramente uma Igreja.

(iii) Santo Atanásio afirma: “Não devemos perder de vista a Tradição, a Doutrina e a Fé da Igreja Católica, tal como o Senhor ensinou, tal como os Apóstolos pregaram e os Santos Padres transmitiram. Com efeito, a Tradição constitui o alicerce da Igreja, e todo aquele que dela se afasta deixa de ser cristão e não merece mais assim ser nomeado[6]; ora, a sentença de Santa Atanásio é completa e cabal: não existe fé cristã longe da Tradição Apostólica; pois, o que o Senhor Jesus ensinou, foi proclamado pelos Apóstolos, e preservado e transmitido pelos Santos Padres; então, a fé verdadeira é a fé que está em conformidade com a Tradição Apostólica, e a que desenvolveu de forma correta a Sagrada Tradição.

E estes são apenas alguns entre tantos testemunhos entre os Santos Padres da Igreja que confirmam cabalmente a autoridade da Tradição Apostólica.

 

Capítulo V: A veneração da Sagrada Tradição.

 

14. Portanto, toda a Tradição Apostólica é venerada e tem primazia em toda a Santa Igreja, tanto sobre a confirmação da doutrina dos apóstolos quanto sobre a confirmação das proposições teológicas que devem ser estabelecidas e/ou sobre as que devem ser corrigidas e buriladas; a veneração a Sagrada Tradição é definida como prosquínese, que em suma é a afirmação eclesial da comunhão dos santos de todas as épocas, que por seus ícones se fazem presentes em todas as épocas e localidades, bem como é a veneração de tudo quanto concerne a Sagrada Tradição; portanto, a veneração da Sagrada Tradição é parte impreterível da fé.

Ora, quanto a isso, São Gregório Magno fornece um inestimável testemunho ao afirmar: “venero os quatro primeiros Concílios Ecumênicos igualmente como venero os quatro evangelhos[7]; ora, a veneração de um Concílio Ecumênico que não foi objeto de manipulação ou que não conteve alguma problemática teológica é parte da fé, como bem atesta de maneira límpida a autoridade de São Gregório Magno; os verdadeiros Concílios Ecumênicos são objeto de excelsa e fulgurante veneração e devoção.

E se deve explicar isso adequadamente: não que quanto ao conteúdo da fé os Santos Concílios tenham as mesmas propriedades da Sagrada Escritura, mas que como são convocados para resolver controvérsias sobre a fé e sobre a disciplina eclesial, ao fazê-lo de modo correto, testemunham da veracidade e da verdade infalível da Tradição Apostólica, se tornando assim parte da Sagrada Tradição, e por esta razão são dignos de veneração e devoção, posto testemunharem de uma prática instituída pelos Apóstolos sob o direcionamento do Espírito Santo.

15. Assim sendo, a Sagrada Tradição confirma a doutrina dos Apóstolos através de fórmulas precisas dos Santos Concílios; no entanto, se algum Concílio não formulou algo de modo preciso ou então ocorrera algum erro que impugna a autoridade conciliar, então, as declarações e formulações de tal Concílio devem ser reavaliadas, e se necessário for devem ou rejeitadas (se descoberto algum erro grave), ou então devem ser buriladas até que sejam possível formulações precisas para que as mesmas sejam consumadas como parte da Sagrada Tradição. Pois, mesmo um Concílio pode não avançar adequadamente quanto a estas fórmulas, dado as limitações já evocadas.

16. Além disso, também por esta razão se tem as inúmeras advertências na própria Escritura quanto aos falsos profetas e quanto aos lobos devoradores (cf. Mt 7.15-20; 2Tm 2.17-18); por isso, a veneração a Sagrada Tradição tem inserida o confronto e a confutação dos hereges; pois, as heresias se manifestam (cf. 1Co 11.19), como Santo Agostinho constatara, a fim de que os homens santos venham a ser sacudidos da preguiça e do sono pelos incômodos e afrontas por parte dos hereges para que assim anseiem conhecer a verdade[8]; neste sentido, as heresias surgem para atinarem os fiéis a buscarem a verdade de maneira mais ardente e desejosa.

Mas, o problema maior está na astúcia do engano que é promovida pelos hereges; e em relação a astúcia do engano promovida pelos hereges, São Vicente de Lérins faz as seguintes considerações: “para que possam enganar com mais astúcia as ovelhas desavisadas, conservando a ferocidade do lobo, eles se despojam de sua aparência e se envolvem, por assim dizer, na linguagem da Lei Divina, como em um velo, de modo que alguém, tendo sentido a maciez da lã, não tema as presas do lobo. Mas o que diz o Salvador? Pelos seus frutos os conhecereis; isto é, quando eles começarem não apenas a citar essas palavras divinas, mas também a expô-las, não apenas a se vangloriar delas como se estivessem do seu lado, mas também a interpretá-las, então essa amargura, essa acerbidade, essa fúria serão compreendidas; então o mau cheiro desse novo veneno será percebido, então essas novidades profanas serão reveladas, então podereis ver primeiro a cerca rompida, depois os marcos dos Padres removidos, depois a fé católica atacada, depois a doutrina da Igreja despedaçada[9]; em suma, estes são os frutos das obras os hereges; e a veneração da Sagrada Tradição, assim como a defesa da verdade, requerem que os mesmos, sempre que necessário, sejam confutados da maneira e do modo apropriado.  

17. Ora, em suma, isto é o que concerne ao entendimento sobre a autoridade da Sagrada Tradição; e sempre a autoridade da Sagrada Tradição está em consonância e ressonância com a autoridade da Sagrada Escritura; a autoridade da Sagrada Escritura e a autoridade da Sagrada Tradição estão em concórdia absoluta, e por isso, quanto a fé, se estabelecem em uma só autoridade, ou seja, um único escopo que permeia o que é transmitido na Sagrada Escritura e o que é transmitido na Tradição Apostólica; por esta razão, esta autoridade, a autoridade da fé da Igreja, tem duas partes que se inter-relacionam; assim sendo, a autoridade da Sagrada Escritura e a autoridade da Sagrada Tradição, quanto a fé é uma só autoridade (embora sejam dois aspectos distintos), e por isso é ao mesmo tempo indissociável, subsequente, complementar, dialógica e interreferencial. Estas são as propriedades da relação entre Sagrada Escritura e Sagrada Tradição.

18. Portanto, a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição são indissociáveis, não podem se dissociar na Santa Igreja, já que estão em concórdia plena com a autoridade de Deus; a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição são subsequentes, a Escritura advém após a Tradição, e a Tradição advém após a Escritura, e esta relação orbita de modo circular; a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição são complementares, a Sagrada Escritura com o conteúdo firmíssimo da fé e a Sagrada Tradição com a disciplina corretíssima da fé, onde o conteúdo (doutrina) abaliza a disciplina (moral), de tal modo a fé ser conhecida através da disciplina e a disciplina ser melhor entendida a partir da fé; a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição são dialógicas, estão em estreito contato e relação, de forma a se ter um diálogo inalterável entre ambas; a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição são interrefenciais, pois tanto as referências bíblicas apontam a si mesmas e à Tradição Apostólica, quanto o desenvolvimento da Sagrada Tradição se dá em conformidade com a referenciação bíblica, e as referências da Sagrada Tradição em suma são referências abalizadas a partir das Escrituras, pois a Sagrada Tradição só é referência porque se abaliza a partir das Divinas Escrituras.

19. Por isso, a veneração e a estima pela Sagrada Escritura é demonstrada e confirmada tanto no estudo e na meditação do livro sagrado quanto na veneração da Sagrada Tradição; venerar a Sagrada Tradição é parte do que concerne ao estudo da Sagrada Escritura; portanto, quem ama as Divinas Escrituras também ama a Tradição Apostólica, e quem ama a Tradição Apostólica ama as Divinas Escrituras; pois, a fé cristã é uma fé escriturística; e fé escriturística é fé calcada na Tradição Apostólica; portanto, a fé cristã é manifesta tanto no conhecimento da Sagrada Escritura e na prática dos ensinamentos bíblicos, quanto no conhecimento da Sagrada Tradição e na obediência aos preceitos apostólicos.

20. E termina aqui esta explicação sobre a autoridade da Sagrada Tradição. Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém. 



[1] São Gregório de Nissa, Contra Eunomium, livro II, cap. 1. 

[2] A Tradição com “t” maiúsculo também é chamada de Sagrada Tradição. 

[3] Quanto a este aspecto em específico, consultar o escrito “Prefácio ao Corpus Dionysiacum”, e principalmente consultar os comentários que fiz as epístolas I-V de Pseudo-Dionísio (entre set. e dez. de 2024). 

[4] cf. Tomás de Aquino, Comentário a Tessalonicenses [Porto Alegre, RS: Concreta, 2016], 1ª Epist., cap. II, lect. 1, pág. 47. 

[5] Tertuliano, De Praescriptione Haereticorum, cap. XX. 

[6] Santo Atanásio, Epistolae ad Serapionem, epist. I, n. 28. 

[7] São Gregório Magno, Epistolarum, livro I, epist. XXIV. 

[8] cf. Santo Agostinho, De Genesi contra Manichaeos, livro I, cap. I. 

[9] São Vicente de Lérins, Communitorium, cap. XXV. 


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