Capítulo I: A autoridade da Sagrada Tradição.
1. Após ter entendido no que consiste a autoridade da
Sagrada Escritura, como expliquei de acordo com minhas capacidades noutro
escrito, convém ainda compreender no que consiste a autoridade da Sagrada
Tradição; pois, Sagrada Escritura e Tradição Apostólica são indissociáveis para
a fé cristã, assim como para o povo judeu eram indissociáveis a Lei e os
Profetas e as regras de costumes da tradição oral talmúdica.
Embora, se deva saber distinguir o que concerne a cada
uma, não somente do ponto de vista teológico, mas pelo próprio modo do
intelecto abstrair os saberes, na Santa Igreja tanto a Sagrada Escritura quanto
a Tradição Apostólica são mutuamente importantes em tudo quanto concerne a vida
eclesial.
Pois, tanto a Sagrada Escritura quanto a Tradição
Apostólica foram transmitidas aos fiéis pelos Apóstolos, confirmada pelos Pais
Apostólicos, preservada e defendida pelos Santos Padres, e deve ser conservada
incólume ao longo dos séculos. Pois, a fé verdadeira deve permanecer imutável
mesmo com o passar das épocas.
2. Entretanto, mesmo quanto a questões humanas
referentes ao desenvolvimento da Tradição sempre se tenha um ou outro erro, os
quais devam ser corrigidos sempre que percebidos, a autoridade da Sagrada
Tradição não falha, pois iniciou de maneira adequada com o testemunho apostólico
e foi confirmada de maneira cabal pelos sucessores dos apóstolos; e, como fora
dito, conquanto se possa ter erros na Sagrada Tradição, como a própria
Escritura demonstra, o testemunho da Tradição Apostólica continua tendo plena
validade na Santa Igreja; os erros da Sagrada Tradição não invalidam e nem
impugnam a autoridade da mesma no desenvolvimento da Tradição Apostólica, a não
ser quando no âmbito da Santa Igreja alguém atenta contra a Tradição Apostólica
(cf. 2Jo 1.10).
3. Deste modo, é parte da fé a preservação da Tradição
Apostólica, tal como São Gregório de Nissa afirmara de que a fé exposta pelo
Senhor em todas as Escrituras, “guardamos tal como a recebemos, palavra por
palavra, em pureza, sem falsificação, considerando até mesmo uma ligeira
divergência das palavras que nos foram transmitidas como extrema blasfêmia e
impiedade”, e nesta fé que “foi entregue por Deus aos apóstolos, não
admitimos nem subtração, nem alteração, nem acréscimo, sabendo com certeza que
aquele que ousa perverter a palavra divina com palavras desonestas, esse é
filho do Diabo”[1].
Ora, a fé que foi transmitida pelos Apóstolos nas
Escrituras, nos costumes, e que foi preservada pelos Pais Apostólicos
(discípulos dos Apóstolos), e corroborada pelos Santos Padres, deve permanecer
inalterada; pois, a fé verdadeira tem a propriedade clarividente da
imutabilidade; e esta imutabilidade é testemunhada na conformidade com a
Tradição Apostólica.
Capítulo II: Os erros na Sagrada Tradição.
4. No entanto, isso não impugna a necessidade de
reflexão e de elucubração; além disso, onde houve algum erro, seja pela
limitação do intelecto ao refletir sobre as questões divinas, seja por
manipulação humana ou por obra de demônios, etc., tal erro ao ser percebido e
corretamente entendido, deve ser corrigido; evidentemente, nem todos tem a
capacidade de se aperceber de quando isto ocorre; por isso, tais correções de
quando de erros ou de proposições ambíguas, devem ser efetuadas o mais rápido
possível, tanto para se evitar a manipulação demoníaca quanto para se evitar
qualquer acusação vil contra a Santa Igreja; pois, os inimigos da Santa Igreja
se aproveitam destes erros para se vociferar contra a Igreja, a fim de enganar
e levar a perdição os fiéis mais débeis e caluniar o testemunho da Santa Igreja
como coluna da verdade.
5. Ora, quanto a questões de erros na Sagrada Tradição
se deve entender isso corretamente, sem decair nos sofismas das críticas dos
hereges e de homens ímpios; pois, tais erros ocorreram algumas vezes na Sagrada
Tradição, até mesmo alguns dos Concílio Ecumênicos foram convocados justamente
por causa disso; quanto a isso, evoca-se um exemplo: São Gregório o Teólogo
abalizou e definiu corretamente tudo quanto concerne a doutrina da Santíssima
Trindade; no entanto, as sentenças de São Gregório o Teólogo, ainda que fosse
um homem genial em todos os sentidos, foram permeadas de algumas ambiguidades.
Ora, isso ocorrera porque mesmo um santo patriarca,
mestre no conhecimento das Sagradas Escrituras e gênio nas disciplinas
filosóficas, ainda assim se defronta com limitações para explicar os mistérios
da divindade, assim como ocorre com qualquer ser humano; e se um homem dotado
das mais geniais capacidades defronta-se com estas limitações, o que se dirá os
fiéis mais simples, que compõem a maior parte da Santa Igreja em todas as
épocas; por isso, São Máximo o Confessor ao se aperceber de algumas destas ambiguidades,
direcionado pelo Espírito Santo, procurou explicar e solucionar estas
ambiguidades em sua importantíssima obra intitulada “Ambígua”.
Assim sendo, esta é uma tarefa que concerne aos santos
mais letrados da Santa Igreja, principalmente os que estão imbuídos de
autoridade hierárquica, a fim de quando se aperceberam de alguma destas
ambiguidades ou elas forem explicadas por alguém vocacionado por Deus e com
autoridade teológica conferida e confirmada pelo próprio Deus, a fim de que as
ambiguidades sejam corretamente entendidas e solucionadas para que a Santa
Igreja seja edificada e Deus seja glorificado. E esta é uma tarefa necessária
de tempos em tempos.
6. E este é apenas um exemplo; poder-se-ia evocar
outros tantos; e quantos outros aspectos foram deixados de lado e não foram
solucionados; e se se for evocar este aspecto na teologia latina, então o
volume de questões ambíguas deixadas em aberto é muito maior.
No entanto, tais questões não podem ser relegadas ao
ostracismo, nem podem ser menosprezadas, e nem analisadas segundo o critério
dos críticos da fé cristã; na verdade, precisam ser analisadas e entendidas
conforme a autoridade da Sagrada Escritura e em conformidade com a autoridade
da Sagrada Tradição, para serem abalizadas em tudo quanto é necessário.
Pois, estas ambiguidades se não forem resolvidas
adequadamente, gestam no seio da Santa Igreja o ímpeto para o secularismo, como
de fato ocorrera com a cristandade latina a partir da baixa escolástica.
Capítulo III: A distinção entre tradição e Tradição.
7. Assim sendo, a Sagrada Tradição se desenvolve, isto
é, avança, se autocorrige e se preserva, sempre em fidelidade ao testemunho
apostólico; pois, tudo quanto é produzido no âmbito da fé cristã é chamado num
geral de tradição (com “t” minúsculo); e tudo quanto é abalizado corretamente e
está em estreita conformidade com o que é transmitido na Sagrada Escritura e de
acordo com a Tradição Apostólica, é parte da Tradição (com “t” maiúsculo)[2].
Por isso, tudo aquilo que é de fato parte da Sagrada
Tradição é algo imutável, embora alguns aspectos possam ser melhorados e ser
mais bem burilados; e é justamente neste aspecto que se defronta com um
problema, pois algumas proposições e reflexões teológicas, que ainda são tidas
apenas como opinião, sem serem abalizadas e sem passarem pelos critérios
devidos, foram tomadas como parte da Sagrada Tradição, e se criou e/ou formou
práticas e dogmas que estão em contrariedade a Tradição Apostólica e a Sagrada
Escritura.
8. Entretanto, o problema maior deste aspecto está
justamente na raiz que leva a tais sentenças e afirmações; pois, não é só a
afirmação de uma opinião no âmbito da teologia que é tomada como declaração
dogmática; na verdade, isto é expressão de um subjetivismo doentio, o que fora
corretamente definido como “dionisionismo afetivo”[3];
embora a fé verdadeira seja experiência com Deus, a explicação da fé passa pela
correta apreensão e entendimento da mesma; e o entendimento possui um modo de
funcionar correto; o problema do “dionisionismo afetivo” é justamente
mudar a experiência que concerne a consciência, para a experiência no
intelecto; e isto causa uma desordem no ser; a fé verdadeira é experienciada na
consciência, com a Graça de Deus, mas é entendida no intelecto a partir do
conhecimento da Sagrada Escritura; e isto é o que ensinado na doutrina dos
apóstolos (cf. 2Pe 3.18).
9. A via afetiva na teologia transmuta isso (o “dionisionismo
afetivo”); e ai está o problema, porque se se mudar esta regra, em relação
aos assuntos da fé não se terá nem experiência verdadeira nem conhecimento
verdadeiro. A maior parte dos erros em sentenças e proposições dogmáticas,
alguns dos quais permearam até sínodos e assembleias conciliares, é justamente
fruto desta transmutação, que é heresia monstruosa, já que torna o “eu” do
indivíduo o elemento aferidor de medida para a doutrina da Santa Igreja,
tornando a Santa Igreja sujeita a cada novidade propagada pelos ventos de
doutrina (cf. Ef 4.14).
Especificamente, no catolicismo isto se torna mais
evidente desde o acréscimo do filioque no Credo, no desenvolvimento do
dogma da supremacia papal, etc., e se tornara ainda mais abrupto na mariologia
que se desenvolveu no segundo milênio; a maior parte dos católicos tomam
opiniões teológicas sem fundamento dogmático adequado como se fosse parte da
Sagrada Tradição, e muitos ortodoxos enveredaram pelo mesmo caminho; e isto
ocasiona secularidade no seio da Igreja; infelizmente, a secularização da fé é consequência
direta do “dionisionismo afetivo”.
10. Deste modo, convém entender no que concerne a
autoridade da Sagrada Tradição, que diferentemente da Sagrada Escritura não se
desenvolve de maneira rápida; a Sagrada Tradição se desenvolve de maneira lenta
e gradual, justamente para se evitar erros e desvios doutrinários; e a medida
que se desenvolve um aspecto importante, outros hão de averiguar se há alguma
ambiguidade e se houver, hão solucioná-la; é isto que é testemunhado pelos
Padres da Igreja; na verdade, o testemunho apostólico, em tudo, testemunha
desta bendita verdade, tanto para demonstrar que é o Espírito Santo quem guia a
Santa Igreja, mesmo que os fiéis, sucessores dos apóstolos, etc., sejam
imperfeitos e falhos.
E, se tem por certo, que sempre que o Espírito Santo
quiser, Ele vocacionará e direcionará vasos escolhidos para analisar estes
assuntos e colocá-los em ordem para a edificação da Santa Igreja e para a
glória de Deus. Por esta razão, o Espírito Santo concede a vocação teológica à
Santa Igreja, a algum vaso escolhido para tal finalidade, assim como fizera com
São Gregório o Teólogo e com São Simeão o Novo Teólogo.
11. Assim, se entende que a autoridade da Sagrada
Tradição sendo infalível, deve sempre ser manifesta em ordem a estes aspectos;
aliás, a própria infalibilidade da Sagrada Tradição demonstra que a mesma tem
autoridade e obrigação diante de Deus de corrigir os erros que passaram
desapercebidos, ou por desatenção, ou por limitação humana, ou por qualquer
outro motivo, etc.; pois, embora esta autoridade seja infalível, nesta vida os
homens estão sujeitos as limitações humanas, tais como, o desenvolvimento do saber,
a limitação do intelecto, as vicissitudes epocais, as tribulações pessoais,
etc.
Portanto, em todas estas dificuldades, interiores e
exteriores, a vida da Igreja passa pelas mesmas limitações; por esta razão, a
autocorreção sempre é um fanal de bênçãos que a Sagrada Tradição sempre
estabelece quando isto se mostra evidente e é necessário, tal como ocorrera na
convocação do Concílio de Jerusalém (cf. At 15.1-11), e em tantos outros
sínodos ou concílios; o testemunho apostólico demonstra isso: quando algo se
torna repreensível, então este algo deve ser corrigido até se tornar novamente
irrepreensível (cf. Gl 1.10ss), tanto em relação a moral quanto em relação a
doutrina.
Capítulo IV: As características da autoridade da
Sagrada Tradição.
12. Com isso, a partir da Sagrada Escritura, se pode
evocar algumas propriedades da autoridade da Sagrada Tradição:
(i) infalibilidade, isto é, é uma autoridade que não
falha (cf. Mc 13.31; Mt 16.19).
(ii) errância, isto é, é uma autoridade que está
sujeita a cometer erros: como no caso da visão de São Pedro (cf. At 10.9-16),
ou quando o próprio São Pedro se tornou repreensível (cf. Gl 1.11-14), ou ainda
na desavença entre São Paulo e Barnabé (cf. At 15.36-39; 2Tm 4.11), etc.
(ii) imutabilidade dos costumes, isto é, os costumes
corretos estabelecidos são inalteráveis (cf. 2Ts 2.15), embora em alguns
aspectos possam ser aperfeiçoados.
(4) firmeza da disciplina eclesial, isto é, correção
de erros e desvios doutrinários (cf. Tt 1.9-13), e disciplina moral aos que
cometem pecados que requerem tais disciplinas (cf. Hb 12.6-11), com o propósito
de preservar a fé tanto das heresias quanto da influência dos demônios (cf. 1Tm
6.3-5).
(5) análise das proposições teológicas para confirmar
se as mesmas estão em conformidade com as palavras do Senhor Jesus e com a
doutrina que é segundo a piedade (cf. 1Tm 6.3).
(vi) admoestar com a sã doutrina e convencer os
contradizentes (cf. Tt 1.9), isto é, ensinar e corrigir de acordo com a
doutrina dos apóstolos, e confutar e convencer os contradizentes em tudo que os
mesmos se colocarem contra a Sagrada Escritura e contra a reta razão.
(vii) cuidado tanto com a sã doutrina quanto com a
vida correta (cf. 1Tm 4.16), isto é, cuidado para que tanto a doutrina seja
preservada incólume quanto para que a vida pessoal seja permeada pela piedade;
pois, como Tomás de Aquino afirma a doutrina se corrompe tanto pelo que se
ensina quanto pela intenção daquele que ensina[4].
13. Além disso, a partir dos Santos Padres, se pode
evocar as seguintes propriedades da Tradição Apostólica:
(i) São Clemente de Roma assevera: “Os apóstolos
receberam em nosso favor a boa-nova da parte do Senhor Jesus Cristo. E Jesus
Cristo foi enviado por Deus. Portanto, Cristo vem de Deus e os apóstolos [vêm]
de Cristo. Esta dupla missão realizou-se em perfeita ordem por vontade de Deus.
Munidos de instruções e plenamente assegurados pela ressurreição de Nosso
Senhor Jesus Cristo, confiantes na Palavra de Deus, saíram a evangelizar a
próxima vinda do Reino de Deus na plenitude do Espírito Santo” (1Co
42.1-3); ora, os Santos Apóstolos são medianeiros da revelação, e por isso são
transmissores da Sagrada Escritura, e transmissores da Tradição Revelacional ou
Tradição Apostólica. Por isso, as instruções dos Apóstolos passadas a seus
discípulos, e desses aos seus alunos, e assim por diante, preservadas pelos
Santos Padres são munidas de autoridade divina, posto serem instituídas pelo
Senhor através de Seus Santos Apóstolos.
(ii) Tertuliano afirmara: “Os Apóstolos no
princípio afirmaram a fé em Jesus Cristo e estabeleceram Igrejas por toda a
Judeia e logo a seguir, espalhados pelo mundo, anunciaram a mesma doutrina e
uma mesma fé às nações e, por conseguinte, fundaram Igrejas por todas as
cidades. Depois, delas, as outras Igrejas mutuaram a ramificação da sua fé e as
sementes da doutrina, e continuamente a mutuam para serem precisamente Igrejas.
Desta forma também elas são consideradas apostólicas como descendência das
Igrejas dos Apóstolos”[5];
ora, os Apóstolos levaram adiante a proclamação do Evangelho e estabeleceram
Igrejas ao redor do mundo, tanto em conformidade com a Palavra da Escritura
quanto em conformidade com as tradições que receberam do Senhor Jesus Cristo
(cf. 2Ts 2.15); as Igrejas permaneceram com estas práticas e costumes, e por
isso são chamados de Igrejas Apostólicas, isto é, são Igrejas que se mantém
fielmente na doutrina dos apóstolos (cf. Ef 2.20); logo, as verdadeiras Igrejas
são as que estão em conformidade plena com a Tradição Apostólica. A Tradição
Apostólica é critério necessário para averiguar onde se tem verdadeiramente uma
Igreja.
(iii) Santo Atanásio afirma: “Não devemos perder de
vista a Tradição, a Doutrina e a Fé da Igreja Católica, tal como o Senhor
ensinou, tal como os Apóstolos pregaram e os Santos Padres transmitiram. Com
efeito, a Tradição constitui o alicerce da Igreja, e todo aquele que dela se
afasta deixa de ser cristão e não merece mais assim ser nomeado”[6];
ora, a sentença de Santa Atanásio é completa e cabal: não existe fé cristã
longe da Tradição Apostólica; pois, o que o Senhor Jesus ensinou, foi
proclamado pelos Apóstolos, e preservado e transmitido pelos Santos Padres;
então, a fé verdadeira é a fé que está em conformidade com a Tradição
Apostólica, e a que desenvolveu de forma correta a Sagrada Tradição.
E estes são apenas alguns entre tantos testemunhos
entre os Santos Padres da Igreja que confirmam cabalmente a autoridade da Tradição
Apostólica.
Capítulo V: A veneração da Sagrada Tradição.
14. Portanto, toda a Tradição Apostólica é venerada e
tem primazia em toda a Santa Igreja, tanto sobre a confirmação da doutrina dos
apóstolos quanto sobre a confirmação das proposições teológicas que devem ser
estabelecidas e/ou sobre as que devem ser corrigidas e buriladas; a veneração a
Sagrada Tradição é definida como prosquínese, que em suma é a afirmação
eclesial da comunhão dos santos de todas as épocas, que por seus ícones se
fazem presentes em todas as épocas e localidades, bem como é a veneração de
tudo quanto concerne a Sagrada Tradição; portanto, a veneração da Sagrada
Tradição é parte impreterível da fé.
Ora, quanto a isso, São Gregório Magno fornece um
inestimável testemunho ao afirmar: “venero os quatro primeiros Concílios
Ecumênicos igualmente como venero os quatro evangelhos”[7];
ora, a veneração de um Concílio Ecumênico que não foi objeto de manipulação ou
que não conteve alguma problemática teológica é parte da fé, como bem atesta de
maneira límpida a autoridade de São Gregório Magno; os verdadeiros Concílios
Ecumênicos são objeto de excelsa e fulgurante veneração e devoção.
E se deve explicar isso adequadamente: não que quanto
ao conteúdo da fé os Santos Concílios tenham as mesmas propriedades da Sagrada
Escritura, mas que como são convocados para resolver controvérsias sobre a fé e
sobre a disciplina eclesial, ao fazê-lo de modo correto, testemunham da
veracidade e da verdade infalível da Tradição Apostólica, se tornando assim
parte da Sagrada Tradição, e por esta razão são dignos de veneração e devoção,
posto testemunharem de uma prática instituída pelos Apóstolos sob o direcionamento
do Espírito Santo.
15. Assim sendo, a Sagrada Tradição confirma a
doutrina dos Apóstolos através de fórmulas precisas dos Santos Concílios; no
entanto, se algum Concílio não formulou algo de modo preciso ou então ocorrera
algum erro que impugna a autoridade conciliar, então, as declarações e
formulações de tal Concílio devem ser reavaliadas, e se necessário for devem ou
rejeitadas (se descoberto algum erro grave), ou então devem ser buriladas até
que sejam possível formulações precisas para que as mesmas sejam consumadas como
parte da Sagrada Tradição. Pois, mesmo um Concílio pode não avançar
adequadamente quanto a estas fórmulas, dado as limitações já evocadas.
16. Além disso, também por esta razão se tem as
inúmeras advertências na própria Escritura quanto aos falsos profetas e quanto
aos lobos devoradores (cf. Mt 7.15-20; 2Tm 2.17-18); por isso, a veneração a
Sagrada Tradição tem inserida o confronto e a confutação dos hereges; pois, as
heresias se manifestam (cf. 1Co 11.19), como Santo Agostinho constatara, a fim
de que os homens santos venham a ser sacudidos da preguiça e do sono pelos incômodos
e afrontas por parte dos hereges para que assim anseiem conhecer a verdade[8]; neste
sentido, as heresias surgem para atinarem os fiéis a buscarem a verdade de
maneira mais ardente e desejosa.
Mas, o problema maior está na astúcia do engano que é
promovida pelos hereges; e em relação a astúcia do engano promovida pelos
hereges, São Vicente de Lérins faz as seguintes considerações: “para que
possam enganar com mais astúcia as ovelhas desavisadas, conservando a
ferocidade do lobo, eles se despojam de sua aparência e se envolvem, por assim
dizer, na linguagem da Lei Divina, como em um velo, de modo que alguém, tendo
sentido a maciez da lã, não tema as presas do lobo. Mas o que diz o Salvador?
Pelos seus frutos os conhecereis; isto é, quando eles começarem não apenas a
citar essas palavras divinas, mas também a expô-las, não apenas a se vangloriar
delas como se estivessem do seu lado, mas também a interpretá-las, então essa
amargura, essa acerbidade, essa fúria serão compreendidas; então o mau cheiro
desse novo veneno será percebido, então essas novidades profanas serão
reveladas, então podereis ver primeiro a cerca rompida, depois os marcos dos
Padres removidos, depois a fé católica atacada, depois a doutrina da Igreja
despedaçada”[9];
em suma, estes são os frutos das obras os hereges; e a veneração da Sagrada
Tradição, assim como a defesa da verdade, requerem que os mesmos, sempre que
necessário, sejam confutados da maneira e do modo apropriado.
17. Ora, em suma, isto é o que concerne ao
entendimento sobre a autoridade da Sagrada Tradição; e sempre a autoridade da
Sagrada Tradição está em consonância e ressonância com a autoridade da Sagrada
Escritura; a autoridade da Sagrada Escritura e a autoridade da Sagrada Tradição
estão em concórdia absoluta, e por isso, quanto a fé, se estabelecem em uma só
autoridade, ou seja, um único escopo que permeia o que é transmitido na Sagrada
Escritura e o que é transmitido na Tradição Apostólica; por esta razão, esta
autoridade, a autoridade da fé da Igreja, tem duas partes que se
inter-relacionam; assim sendo, a autoridade da Sagrada Escritura e a autoridade
da Sagrada Tradição, quanto a fé é uma só autoridade (embora sejam dois
aspectos distintos), e por isso é ao mesmo tempo indissociável, subsequente,
complementar, dialógica e interreferencial. Estas são as propriedades da
relação entre Sagrada Escritura e Sagrada Tradição.
18. Portanto, a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição
são indissociáveis, não podem se dissociar na Santa Igreja, já que estão em
concórdia plena com a autoridade de Deus; a Sagrada Escritura e a Sagrada
Tradição são subsequentes, a Escritura advém após a Tradição, e a Tradição
advém após a Escritura, e esta relação orbita de modo circular; a Sagrada
Escritura e a Sagrada Tradição são complementares, a Sagrada Escritura com o
conteúdo firmíssimo da fé e a Sagrada Tradição com a disciplina corretíssima da
fé, onde o conteúdo (doutrina) abaliza a disciplina (moral), de tal modo a fé
ser conhecida através da disciplina e a disciplina ser melhor entendida a
partir da fé; a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição são dialógicas, estão em
estreito contato e relação, de forma a se ter um diálogo inalterável entre
ambas; a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição são interrefenciais, pois tanto
as referências bíblicas apontam a si mesmas e à Tradição Apostólica, quanto o
desenvolvimento da Sagrada Tradição se dá em conformidade com a referenciação
bíblica, e as referências da Sagrada Tradição em suma são referências
abalizadas a partir das Escrituras, pois a Sagrada Tradição só é referência
porque se abaliza a partir das Divinas Escrituras.
19. Por isso, a veneração e a estima pela Sagrada
Escritura é demonstrada e confirmada tanto no estudo e na meditação do livro
sagrado quanto na veneração da Sagrada Tradição; venerar a Sagrada Tradição é
parte do que concerne ao estudo da Sagrada Escritura; portanto, quem ama as Divinas
Escrituras também ama a Tradição Apostólica, e quem ama a Tradição Apostólica
ama as Divinas Escrituras; pois, a fé cristã é uma fé escriturística; e fé
escriturística é fé calcada na Tradição Apostólica; portanto, a fé cristã é
manifesta tanto no conhecimento da Sagrada Escritura e na prática dos
ensinamentos bíblicos, quanto no conhecimento da Sagrada Tradição e na
obediência aos preceitos apostólicos.
20. E termina aqui esta explicação sobre a autoridade da Sagrada Tradição. Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém.
[1] São
Gregório de Nissa, Contra Eunomium, livro II, cap. 1.
[2] A Tradição com “t” maiúsculo
também é chamada de Sagrada Tradição.
[3] Quanto a este aspecto em
específico, consultar o escrito “Prefácio ao Corpus Dionysiacum”, e principalmente
consultar os comentários que fiz as epístolas I-V de Pseudo-Dionísio (entre
set. e dez. de 2024).
[4] cf. Tomás
de Aquino, Comentário a Tessalonicenses [Porto Alegre, RS: Concreta,
2016], 1ª Epist., cap. II, lect. 1, pág. 47.
[5] Tertuliano,
De Praescriptione Haereticorum, cap. XX.
[6] Santo
Atanásio, Epistolae ad Serapionem, epist. I, n. 28.
[7] São
Gregório Magno, Epistolarum, livro I, epist. XXIV.
[8] cf. Santo
Agostinho, De Genesi contra Manichaeos, livro I, cap. I.
[9] São Vicente
de Lérins, Communitorium, cap. XXV.
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