26/12/2025

Explicação do “Epigrama sobre Hegel” de Karl Marx

Proêmio

 

O “Epigrama II” ou “Epigrama sobre Hegel” (1837)[1] é um texto fundamental da filosofia marxiana, e é um dos textos mais impressionantes sobre a interpretação de Hegel; certamente, neste poema, Marx evidencia que compreendeu Hegel melhor do que muitos de seus intérpretes mais eruditos; aliás, neste poema se tem mais princípios para compreender Hegel do que muitas análises que comportam centenas páginas.

Assim, compreender este poema é uma chave hermenêutica fundamental para se entender o marxismo; pois, o marxismo é fruto do sistema da ciência de Hegel; além do que, compreender este poema é compreender o efeito da efetivação do sistema da ciência; na verdade, compreender a análise marxiana sobre a filosofia de Hegel, ainda que feita em poucos versos, é compreender o modo mais adequado para se entender Hegel; pois, certamente numa coisa o pensamento marxista é útil, a saber: para compreender adequadamente a filosofia de Hegel; os marxistas são mestres por excelência na filosofia de Hegel.

Deste modo, este poema tem muito a ensinar, não somente sobre Hegel, mas sobre o próprio Marx; pois, ao descortinar no que consiste a filosofia de Hegel e o laborar de Hegel, Marx também demonstra no que consistirá sua filosofia e o seu laborar do ponto de vista intelectual.

 

§ 1

 

Hegel como “deus”. Nos cerca de vinte versos de Marx sobre Hegel, se compreende algo fundamental, que muitos, mesmo após análises aprofundadas da Fenomenologia do Espírito não compreendem, a saber, que Hegel se coloca como “deus”. As sentenças de Marx não somente interrogam de maneira exclamativa aspectos da filosofia de Hegel, mas principalmente Marx se coloca como Hegel para poder interpretá-lo; e, sob esta perspectiva, dir-se-ia que a análise de Marx sobre Hegel é quase que fenomenológica (no sentido husserliano).

Por isso, o primeiro verso, neste sentido, é assaz elucidador: “Desde que eu encontrei o mais alto das coisas e as profundezas delas também”, isto é, Hegel é aquele que encontrou, que conhece, o mais alto das coisas e as profundezas delas também; ou dito em outros termos, é aquele que tem o conhecimento do bem (o mais alto das coisas) e do mal (as profundezas delas também). Ora, só quem tem o conhecimento do bem e do mal é Deus; então, obviamente quem arrola para si isso quer se tornar como “deus”.

E isso também se comprova pelo próximo verso: “Rude sou eu como um Deus, envolto pela escuridão como um Deus”; o próprio Marx constata que o propósito de Hegel é ser como “deus”; mas, não como o Deus verdadeiro que por si é impossível; mas como um “deus” é que rude e envolto em escuridão; o Deus que Hegel quer se tornar, embora seja a tentativa de usurpar o verdadeiro Deus, na verdade é o que na Escritura se chama de “deus deste século (cf. 2Co 4.4); o “deus” que Hegel se torna é o “deus” rude e envolto em escuridão, a saber, Satanás.

E isto está em perfeita conformidade com o real propósito de Hegel em seu sistema da ciência; pois, a própria busca de Hegel é uma busca que envolve toda sua vida; por isso, Marx acertadamente afirma: “Por muito tempo procurei e naveguei no oceano profundo e ondulante do Pensamento”, isto é, Hegel adentrou as profundezas do pensamento, ou como ele mesmo diz as profundezas da Coisa, e assim ele navegou, ou seja, palmilhou por muito tempo o oceano profundo e ondulante do Pensamento para compreender a Coisa, pois só se chega as profundezas da Coisa pelo rigor do conceito[2], isto é, através do conceito de Ideia.

E ao chegar ao oceano profundo do Pensamento, Hegel descobre algo: “Lá eu encontrei a Palavra: agora eu me agarro a ela rapidamente”, isto é, na profundidade da Coisa, ele encontra a Palavra; mas, será que esta Palavra é Cristo ou a Escritura? Não, esta Palavra que Hegel encontra não é Cristo e não é a Sagrada Escritura; então, que significa esta Palavra? É a Ideia; Hegel encontrou a Ideia, e a ela se agarra rapidamente, ele a toma para si, e a estabelece em si rapidamente; ou seja, Hegel se torna a própria Ideia, pois para Hegel ele se torna a Palavra.

Por esta razão, Hegel afirmara que a Ideia é o poder absoluto que se dá a luz[3]; por isso, quem domina a Ideia domina todas as coisas; assim, é mais do que óbvio que o propósito de Hegel (e Marx o segue cabalmente nisso) é se tornar “deus”, o “deus” que concebe a Ideia. A filosofia de Hegel é uma filosofia de auto-deificação do próprio Hegel, o que se sumaria na seguinte proposição: com Hegel, em Hegel e para Hegel; e quem é subjugado por esta filosofia, procura fazer o mesmo que Hegel, só que sob o domínio de Hegel, como o próprio Marx constata no penúltimo verso.

 

§ 2

 

A consequência da filosofia de Hegel, confusão diabólica. A proposição de que ideias tem consequências é totalmente evidente em Hegel; pois, ao Hegel procurar ser como “deus”, ele na verdade instaura uma filosofia sistêmica com terríveis consequências; por isso, Marx sentencia as consequências da filosofia de Hegel (e de sua filosofia): “Palavras que eu ensino todas misturadas em uma confusão diabólica”, isto é, as palavras, os ensinamentos de Hegel, toda sua filosofia, ao serem misturadas, geram uma confusão diabólica, a qual destrói a inteligência e obnubila a consciência.

Ora, esta confusão por sua vez, não somente é para destruir a inteligência e obnubilar a consciência de uma vez, mas sim para gerar de início outra consequência, a saber: “Assim, qualquer um pode pensar exatamente o que quiser”, isto é, gerar ceticismo quanto ao conhecimento, já que se todo mundo pode pensar exatamente o que quiser não se tem mais certezas quanto ao conhecimento; em suma, fora isso que Kant propugnara; mas, Hegel vai além, ele estabelece que cada um pode pensar exatamente o que quiser, não em função do ato de livre pensar, algo inerente ao ser humano, mas sim que cada um institua a própria realidade ao pensar; em Hegel, o ato de pensar é o mesmo que criar a realidade (no marxismo também se tem a mesma proposição, embora seja algo mais específico quanto a esfera sócio-política).

E isso gera uma confusão total, já que assim não se tem certeza e nem verdade. No entanto, ainda que Hegel consiga efetuar isso cabalmente, ele defronta-se com alguns problemas, como Marx afirma: “Nunca, pelo menos, ele é cercado por limitações estritas”, isto é, ele nunca defronta-se com limitações estritas, apenas com limitações não-estritas (flexíveis), pois ainda que ele possa instituir que o ato de pensar é o mesmo que criar a realidade, e ordenar isso a partir das categorias do sistema da ciência, ele não pode medir e nem regular as consequências disso; por isso, Hegel não é cercado por limitações estritas, mas sim por limitações flexíveis, as quais, ele pode adequar ao seu próprio sistema.

Ora, estas limitações são descritas com duas metáforas, a saber: “Borbulhando para fora da inundação, caindo do penhasco”, isto é, é como algo que borbulha para fora de uma inundação, e como o cair do penhasco; no entanto, estas duas metáforas não dizem respeito àqueles que são dominados por Hegel, mas sim sobre aqueles que buscam sair deste domínio; estes, por sua vez, serão como algo borbulhando fora da inundação, isto é, não conseguirão nadar contra a correnteza da inundação, ou então serão como aquele que cai do penhasco; e se sabe quais são os efeitos de se nadar contra a correnteza em uma inundação e de cair do penhasco.

Por isso, Marx continua a descrever no que consiste as palavras de Hegel: “Assim são as palavras e pensamentos de seu Amado que o Poeta inventa”, isto é, Hegel faz filosofia em função de um ser amado; e Hegel inventa palavras e pensamentos sobre este ser amado; no caso, o Amado seria para se referir a Deus; mas, como Hegel não busca ao Deus Verdadeiro, mas sim a Satanás, então o ser amado de Hegel é o próprio Demônio.

Por esta razão, se diz de Hegel que, “Ele entende o que pensa, inventa livremente o que sente”, isto é, Hegel entende o que pensa, e inventa livremente o que sente; ora, se Hegel inventa o que sente, ele não consegue entender o que pensa; se ele inventa o sentir, então ele também inventa o pensar; e de fato Hegel faz isso: ele inventa uma nova forma de pensar, com uma nova doutrina sobre as operações do intelecto, e com isso, institui o que as pessoas devem sentir.

Pois, ao fazer isso, chega-se ao estado de total sujeição ao seu sistema através da confusão diabólica causada, tal como Marx assevera: “Assim, cada um pode sugar por si mesmo o néctar nutritivo da sabedoria”, isto é, cada um inventa para si o que é a sabedoria, e toma esta sabedoria disposta por Hegel, que na verdade é confusão diabólica, como o néctar para si; ora, se alguém se alimenta de confusão diabólica, então será dominado por confusão diabólica - pois, do que a alma é alimentada delineia no que a alma se torna. E isto, por sua vez, instaura um subjetivismo terrível e enlouquecedor, já que se cada um pensa o que quer no sentido anteriormente descrito, então cada um se torna um “deus”. A cultura hegeliana é a cultura em que cada ser humano se torna um “deus”, ou no dizer de Nietzsche, no super-homem.

Assim, Hegel se torna o iniciador dos homens no conhecimento do bem e do mal; e isso o coloca como adjutor de Satanás; com isso, Marx constata o que Hegel causa e como Hegel se coloca ao causar isso: “Agora você sabe tudo, já que eu não disse nada para você!”, isto é, Hegel que conduz os homens por este caminho sem volta, ao instaurar o que quer, e ao seduzir os homens, não assume nada do que faz e se retira de cena; é como o processo bíblico da tentação do demônio: o demônio tenta, arma o laço, mas depois que alguém cai, ele sai de cena e trata de acusar aquele a quem engodou para cair no laço.

Hegel conduz os homens para a perdição, mas em hipótese nenhuma assume isso em seu sistema da ciência; e os frutos do sistema hegeliano procederão do mesmo modo. E, no sentido moral, isso é canalhice da pior espécie, da mais hedionda e abjeta forma de destruir uma pessoa. E esta é nuance por excelência da filosofia de Hegel.

 

§ 3

 

A falsa busca por descrever a realidade. Depois, de evocar uma espécie de “reviravolta”, não em si mesma, mas para demonstrar a confusão que é inerente a filosofia de Hegel, Marx prossegue para a terceira estrofe, onde explica em quatro versos a posição histórica da filosofia de Hegel entre Kant e Fichte. Pois, Hegel é homem de seu tempo, e sua filosofia também reflete isso; na verdade, ao explicar a posição histórica da filosofia de Hegel, ainda que veladamente, Marx descortina no que realmente consiste o sistema hegeliano em comparação com Kant e Fichte (também poderia ter comparado Hegel com Schelling ou com Schleiermacher).

Marx afirma: “Kant e Fichte sobem para o céu azul”, isto é, as filosofias de Kant e Fichte segundo a concepção de Hegel (e de Marx) são utopias, pois sobem ao céu azul sem trazer nada de útil para a vida cotidiana; pois, Kant e Fichte, estão “Procurando por alguma terra distante”, isto é, estão procurando algo no além, algo que não podem encontrar; em suma, esta é a concepção de Hegel sobre Kant e Fichte (e sobre Schelling também); Hegel os concebe como filósofos que não entendem a realidade; e nisso Hegel está em parte certo, pois com a exceção de Schelling, Kant e Fichte não concebem e nem entendem adequadamente a realidade.

E, embora Hegel os critique assim, principalmente na Fenomenologia do Espírito, o próprio Hegel também não compreende a realidade; tanto o é, que procura criar outra realidade, a saber, a Segunda Realidade, a realidade fora da realidade, a realidade paralela, a Matrix; no entanto, Marx assevera a concepção de Hegel diante de outras filosofias de sua época: “Eu apenas procuro compreender profundo e verdadeiro”, isto é, Hegel se concebe como aquele que procura compreender o profundo e verdadeiro, ou seja, a própria realidade, ou: “Aquilo que – na rua eu encontro”, isto é, aquilo que ele mesmo vê e entende no cotidiano. Para Hegel, apenas sua filosofia é a forma de compreender a realidade, os outros filósofos são “utópicos”.

Ora, embora Hegel arrole isso para si em contraste a Kant e a Fichte, tanto Kant quanto Fichte ainda continuam sob a realidade, ainda que não a compreendam e ainda que tenham ceticismo quanto a possibilidade de compreender a realidade; e, Hegel, nem sequer isso faz, ele busca transmogrifar a realidade, busca criar outra realidade, aprisionando as consciências dos homens a seu sistema da ciência.

Portanto, Hegel arrola uma falsa busca da realidade para descrever a realidade; e todo filósofo que não se baseia na realidade para fazer suas reflexões filosóficas, sempre é movido por algum propósito nefasto; e a filosofia de um filósofo que não se baseia na realidade sempre é expressão do divertimento de um homem em estado de tédio, de um niilista no sentido pleno do termo. A filosofia de Hegel, na verdade, é o desnudar niilista do próprio Hegel.

 

§ 4

 

A sujeição de todos a Hegel. E tendo feito estas considerações, Marx prossegue a quarta e última estrofe, fornecendo alguns princípios de sua análise cirúrgica da filosofia de Hegel em poucos versos; Marx, termina seu epigrama retomando a si a palavra, e não com o “eu-poético” de Hegel como faz em quase todos os versos anteriores; Marx afirma: “Perdoe-nos epigramatistas”, isto é, busca a benevolência dos epigramatistas dado as nuances dialéticas que foram manifestas neste epigrama sobre Hegel; aliás, Marx descortina a razão de buscar esta benevolência ao asseverar: “Para cantar músicas com reviravoltas desagradáveis”, isto é, ao poetizar sobre a filosofia de Hegel não pode deixar de manifestar as reviravoltas inerentes ao sistema hegeliano, ou mais propriamente não pode deixar de se expressar de acordo com a parafernalia dialética do sistema hegeliano.  

E, assim, Marx termina constatando um fato indubitável da vida na contemporaneidade, a saber: “Em Hegel estamos todos tão completamente submersos”, isto é, todos estão sujeitos a filosofia de Hegel, todos estão submersos no oceano do sistema hegeliano, todos estão na beira do penhasco do sistema da ciência; isto, por si, constitui-se na mais precisa sentença já escrita sobre a filosofia de Hegel; na verdade, Marx descortina o propósito da filosofia hegeliana, a saber: subjugar todos ao sistema da ciência; e, de fato, Hegel, de maneira cabal, conseguira efetuar tal domínio.

No entanto, Marx termina com uma sentença pragmática no último verso, ao afirmar: “Mas com sua Estética ainda temos que ser purgados”, isto é, Marx afirma que em conjunto com a estética de Hegel os homens vão enfrentar o purgatório, mas purgatório no sentido existencial-social; ou seja, os homens vão ser purgados em conjunto e em consonância com a estética de Hegel; o “purgatório” da vida sócio-cultural será feito com a estética de Hegel e pela estética de Hegel.

E aqui está uma das chaves hermenêuticas fundamentais para se antevê o que surgirá no âmbito da vida sócio-cultural até que este purgar seja completo, isto é, até que não exista mais expressão de beleza real na vida social; ou dito em outros termos, até subjugue todas as expressões reais, e transmogrife o ímpeto pela realidade, em ímpeto “artificial” movido pelo sistema da ciência.

A estética de Hegel é para purgar os transcendentais da vida humana, ou seja, para retirá-los totalmente da vida humana ou transmogrifá-los a partir das categorias do sistema da ciência.

 

***

 

Ora, o que fora dito basta quanto a uma explicação deste epigrama de Marx sobre Hegel; no entanto, que se saiba que neste epigrama são apresentadas, de maneira velada, várias referências cruzadas a filosofia de Hegel, que a explicam de maneira simples e sintética; e que se saiba uma coisa, tudo o que Marx afirma neste epigrama sobre a filosofia de Hegel é corretíssimo e assaz útil; quem quiser entender Hegel adequadamente, há de se debruçar sobre a interpretação aprofundada deste epigrama, e certamente colherá excelentes princípios para compreender o pensamento hegeliano. 

E termina aqui esta explicação. θεῷ χάρις



[1] In: Karl Marx e Friedrich Engels, Marx-Engels Collected Works Vol. 1: Karl Marx 1835-1843 [Lawrence & Wishart, 1975], pág. 576-577.

[2] cf. G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito [2ª ed. Petropólis, RJ: Vozes, 2003], pref., § 4, pág. 27.

[3] In: Johannes Hoffmeister, Dokument zu Hegels Entwicklung [Sttutgart: Frommann, 1936], pág. 348. 


24/12/2025

Explicação de “O Violinista” de Karl Marx

Proêmio

 

A poesia “O Violinista” (1837) é um dos textos mais impressionantes de Karl Marx[1] (mesmo que seja uma de suas obras de juventude); pois, Marx descreve a si mesmo, quem é e o que procurará fazer, através da alegoria com um violinista; Marx compara sua vida, suas capacidades, seus labores, ao laborar de um violinista; não porque não pudesse falar de si mesmo de maneira aberta e desvelada, mas porque através dos símbolos concernentes a atividade do violinista, ele poderia descrever melhor o ímpeto que o moveria em tudo o que procuraria fazer e as consequências de seus labores. E a procura por tais símbolos é evidência cabal de sujeição a Hegel.

Assim, o “violinista” neste poema é um signo que se refere, em primeiro lugar, ao próprio Marx, mas que, em segundo lugar e de maneira derivada, também diz respeito a todos os marxistas. O violinista mor, Marx, e os violinistas acompanhantes, os marxistas; a orquestra do marxismo só comporta violinos, não só pela falta de pluralidade na verdade do pensamento marxista, mas principalmente por causa do propósito que os move de maneira indivisa e inconcussa, tal como é assustadoramente desvelado nesta poesia.

Expliquemos, pois, alguns aspectos desse poema, o qual é a base para a exegese do pensamento marxiano, do qual se origina o pensamento marxista. Então, a compreensão desse poema (e de outros poemas de Marx) é o fundamento para quem busca entender e compreender o marxismo como um todo; pois, quem quer compreender filosoficamente e espiritualmente o propósito de Marx e do marxismo, deve iniciar pela análise e estudo das obras poéticas de Marx.

 

§ 1

 

O símbolo do violinista. A busca por símbolos, seja através de metáforas seja através de alegorias, demonstra ou a necessidade de encontrar meios de expressar sentimentos difíceis de serem descritos em prosa narrativa, ou então demonstra a tentativa de desvelar algo que está oculto, que se for expresso de maneira direta, descortinará o propósito real de quem escreve; por isso, alguns autores, movidos por propósitos hediondos, escondem seus verdadeiros propósitos através de metáforas e figuras em obras poéticas.

No caso de Marx, ele descortina quem é e o que faz através da figura do violinista. O violinista é aquele que serra as cordas, isto é, quem exerce uma arte com maestria: do mesmo modo é com Marx, é alguém que quer exercer sua arte com maestria (a arte de Marx é a eficácia em estabelecer seus propósitos, os propósitos do marxismo); pois, o violinista ao exercer sua arte com maestria, torna a mesma um hábito pelo qual ele é reconhecido; do mesmo modo é com aqueles que sabem exercer a arte a qual se dedicam de maneira maestrina.

Assim, se Marx conseguir exercer sua arte com maestria, ele conseguirá colocar todos aqueles a que influencia, de maneira direta ou indireta, conscientemente ou não, sujeitos aos propósitos do marxismo; ao serrar as cordas do marxismo, aqueles que são dominados pelos sons do violino da doutrina marxista, são por este sujeitados ao propósito marxista.

Por isso, o símbolo do violinista é para descrever alguém que exerce uma arte com maestria, bem como para descrever aas consequências que este exercer uma arte com maestria traz àquele que assim faz.

Mas, por que Marx se utiliza da alegoria do violinista? Simples, assim como muitos de sua época, alegorias com instrumentos musicais servia para demonstrar o que concerne a execução da arte praticada e seus efeitos naqueles a quem é direcionada.

Marx não é o único que se utiliza desta alegoria, vários no séc. XIX também o fizeram, mas Marx é o único que o faz com outros propósitos do que aqueles que também se utilizaram da mesma alegoria; outros autores utilizam desta alegoria apenas com propósitos poéticos, Marx além dos propósitos poéticos também a utiliza com propósitos descritivos tanto de si mesmo quanto de seus labores.

Pois, através da alegoria do violinista, Marx descreve a si mesmo e explica as consequências de seus labores.

 

§ 2

 

O frenesi na música, expressão de alma em desordem. A primeira descrição é sobre o frenesi da música; a indagação de Marx, “por que esse som frenético?”, não é tanto em relação a um som dissonante; mas, é a indagação sobre a raiz do frenesi; pois, se Marx se descreve como um violinista (e de fato, ele entendia realmente de música), ele não indaga sobre a razão harmônica do som frenético, mas sim sobre sua causa; por isso, Marx indaga: “por que você olha tão descontroladamente em volta?”, isto é, indaga a causa do descontrole e da inquietação; depois, indaga ainda: “por que salta seu sangue, como o mar agitado?”, isto é, indaga a causa da ansiedade psíquica (música frenética causa ansiedade na alma); e, por fim, indaga: “o que impulsiona seu arco tão desesperadamente?”, isto é, indaga a causa do desespero.

Ou seja, através da música frenética, o próprio Marx constatou os efeitos deste tipo de música no indivíduo, a saber: descontrole, inquietação, ansiedade, desespero. Por isso, o frenesi na música e o frenesi ocasionado pela música é expressão de alma em desordem; assim, através da música frenética se consegue colocar as massas populares em desordem, isto é, em inquietação, ansiedade, desespero e similares.

Portanto, Marx constata uma coisa através da alegoria do violinista, dos efeitos da música frenética, isto é, da música ideologizada, da música utilizada com propósitos ideológicos; com isso, ele se compara ao violinista não somente para constatar isso, como de fato em poucos versos constatou de maneira magistral e de modo muito mais apurado do que os mais eruditos críticos musicais, mas principalmente para poder efetuar o mesmo através da impregnação ideológica nas mais variadas artes, isto é, em todas as manifestações culturais (em suma, o marxismo cultural é isso).

E, com isso, se descortina outro propósito de Marx, a saber, o de propagar cabalmente o que parece que ele na verdade critica; isso é fruto do sistema hegeliano, apresentar algo com aparência de “crítica”, mas na verdade propagar justamente este algo sob as máscaras da “crítica”; é isso que Marx descortina sobre si nesta poesia, ao ponderar sobre o frenesi na música; pois, parece que Marx critica ferrenhamente este frenesi, quando na verdade o próprio Marx desvela que é isso o que ele pretende fazer, não somente na música e nas artes, mas em toda a sociedade.

Por isso, os efeitos do marxismo na vida sócio-cultural são da mesma espécie que os efeitos do frenesi na música.

 

§ 3

 

A alma em desordem é ordenada ao inferno. A alma em desordem, pelo frenesi da música, tem um destino; pois, o frenesi, ao ocasionar desordem, traz consigo as consequências desta desordem; por esta razão, Marx indaga a razão dele tocar violino: “por que eu toco violino?”, isto é, indaga a razão do porque utiliza deste ofício, ou seja, a razão de seu laborar; e, na verdade, Marx não toca apenas o violino, ele produz ondas selvagem; por isso, indaga: “ou as ondas selvagens rugem?”, isto é, Marx compara o seu ofício como violinista, uma alegoria, como o rugir de ondas selvagens; ou seja, as consequências do frenesi musical produzido pelo Marx violinista é o rugir das “ondas selvagens”. O frenesi do pensamento marxista é uma tsunâmi contra os fundamentos da ordem social.

Ora, e por que Marx faz isso? Simples, ele mesmo responde: “para que eles possam bater na costa rochosa”, ou seja, Marx toca o violino para levar as embarcações – no caso aqui, alegoria para representa os seres humanos - a bater nas costas rochosas, a naufragar na vida; o frenesi propagado por Marx tem dois modos de levar as pessoas a naufragar na vida, como o próprio Marx assevera: “que o olho fique cego, que o peito inche”, isto é, que cegue a visão, ou seja, que cegue a capacidade de discernir racionalmente, e que seja inchado pela soberba; o propósito de Marx ao executar sua arte é fazer com que as pessoas naufraguem na vida através da cegueira da razão e da soberba no coração. E estes são os efeitos do pensamento marxista: cegueira da razão e soberba no coração.

Por isso, ao frenesi da música causar desordem na alma, ele causa desordem em todo o ser; e alma em desordem é alma gritante, é alma que ao ser dominada pela desordem, tem por consequência ser dominada pelo reino da desordem (aliás, pode-se explicar este grito aqui através de uma comparação com a explicação da obra “O Grito” de Edvard Munch); assim, alma em desordem é alma ordenada ao inferno, tal como Marx afirma: “o grito dessa alma desce para o inferno”; ora, a alma que desce ao inferno é a alma que entrou em desordem pelo frenesi propagado, seja por qual meio for (na alegoria de Marx neste poema, através da música).

E a guisa de complemento a explicação da sentença desta estrofe, se entende que tudo no pensamento marxiano tem dois sentidos: um literal e outro alegórico (um sentido além da letra); e isso, que não é mera coincidência, se assemelha muito com a exegese das coisas sagradas; por isso, o pensamento marxista busca substituir a religião e os dogmas religiosos; na verdade, o pensamento marxista busca substituir a Sagrada Escritura pelos textos de Marx; os sentidos do pensamento marxista buscam transmogrifar os sentidos da exegese religiosa; e embora não façam isso de jure, de facto conseguem açambarcar muitos nesta invectiva, até aqueles que se dizem “cristãos”.

Além do que, é por esta razão que é de ínvia dificuldade compreender o marxismo, já que não se entende o que está por detrás do texto escrito, isto é, não se entende as entrelinhas (os alegorismos marxianos); e nisso Marx segue a risca o que Hegel fizera, a saber, esconder seu real propósito através de figuras, alegorias, símbolos, signos, etc.

Outrossim, é que Marx compreende o que concerne ao destino eterno das almas; no entanto, o que ele propugna em seu laborar é para colocar uma desordem tal nas almas dos indivíduos que os leve para o inferno. Isso é o próprio Marx quem afirma de maneira direta e sem dubiedades. Portanto, o pensamento marxista tem por propósito encaminhar as almas para o inferno.

 

§ 4

 

O desprezo aos dons divinos. Após ter designado seu propósito, Marx passa a indagar a si mesmo como violinista; na verdade, não uma indagação do eu para com o próprio eu, mas utiliza-se da função do narrador, para indagar ao próprio violinista (no caso o próprio Marx indagando a si mesmo); por isso, Marx afirma: “violinista, com desprezo você rasga seu coração”, isto é, o violinista desvela a si mesmo, rasga o próprio coração, mas o faz com desprezo; não desprezo por si, mas desprezo por Deus. Marx despreza a Deus. Este é o sentido deste verso.

Ora, desprezar a si mesmo no “rasgar” do coração é o que Nietzsche chamara de niilismo, ou o que Dostoiévski chama de doença em “O Homem do Subsolo”; e essa doença é algo grave, pois, se “um Deus radiante emprestou-te a tua arte”, ou seja, se suas capacidades provém da bondade divina, então rejeitá-las é o mesmo que rejeitar a si mesmo; e Deus outorga tais capacidades para conduzir à beleza: “para deslumbrar com ondas de melodia”, isto é, para comover e deleitar, e também “para voar para a dança das estrelas no céu”, isto é, para encantar. Por isso, rejeitar estas capacidades é o mesmo que rejeitar a comoção, a deleição e a admiração.

Na verdade, nestes versos Marx descortina o propósito dos dons e capacidades de cada um, e num sentido geral, acerta; pois, Deus outorga os dons para as artes, a fim de que os homens conheçam a verdade, e conduzam os homens a comoção, a deleição e ao encantamento.

No entanto, Marx o faz não somente para designar no que consiste isso; se assim fosse, seria uma definição assaz útil; Marx delineia esta concepção para demonstrar não o que ele de fato busca fazer, mas para mostrar que vai fazer completamente o contrário.

Nesta concepção, Marx propugna outra forma da encarnação do “espírito dialético”, isto é, aquele estado de alma que ao compreender algo da verdade, por ter compreendido este algo, passa a se portar contra este algo. E o “espírito dialético” é a pior forma de descaro já instituída entre os seres humanos.

Assim sendo, se compreende que Marx indaga a si mesmo enquanto violinista, não para mostrar que a arte que executa provém das capacidades que Deus lhe outorgou, mas sim para mostrar que a maestria que ele possui não provém do “Deus radiante”, mas de outro alguém.

Por isso, Marx descortinará o que está por detrás dele enquanto violinista, ou sem a alegoria, o que o conduz no que ele faz e labora. Assim, Marx não somente demonstra seu total desprezo para com os dons divinos, mas também seu total desprezo aos transcendentais; por isso, o pensamento marxista é um pensamento anti-transcendental.

 

§ 5

 

O que está por detrás do violinista, o Demônio. Ao indagar a si mesmo, Marx então passa a resposta pessoal a esta indagação com uma sentença exclamativa: “como assim!”, isto é, como se pode perguntar algo deste tipo, como se pode fazer tal indagação, pois o que ele faz está mais do que evidente do porque faz e para quem faz; Marx diz: “Eu mergulho, mergulho sem falhar”, isto é, ele exerce sua arte sem falha, pelo menos no que ele se propõe a fazer; no entanto, ele não diz que toca as cordas do violino, mas que mergulha; ou seja, no exercício de sua arte, o violinista Marx não o faz a fim de tirar os sons belos do violino, mas de mergulhar algo.

Mas o que é este algo? O próprio Marx afirma: “Meu sabre de sangue negro em sua alma”; Marx não toca as cordas do violino apenas, isto é, ele não apenas executa sua arte, mas mergulha o sabre negro dele (sabre negro é específico para ser usado em rituais de bruxaria, ainda mais sendo sabre de sangue), na alma de outrem, ou seja, este é o real propósito de Marx; ou dito de outro modo, Marx executa sua arte para colocar um sabre de sangue negro na alma dos indivíduos.

Por isso, ele mesmo constata: “Essa arte Deus não quer nem deseja”, ou seja, este tipo de arte Deus abomina (a arte imbuída de feitiçaria); pois, não é uma arte que cumpre seu propósito natural, mas a arte que Marx executa é a arte em função da bruxaria, com o sabre de sangue negro em suas mãos para adentrar as almas das pessoas.

Portanto, aquele que assim o faz não vai deslumbrar ou encantar; mas, antes, como o próprio Marx assevera: “Salta para o cérebro das névoas negras do Inferno”, isto é, aquele que exerce sua arte com o sabre de sangue negro para mergulhá-lo na alma de outrem, salta para a as névoas negras do inferno; ou seja, o destino da arte que não cumpre seu propósito é o inferno.

A arte que é anti-arte é permeada pelas névoas negras do inferno, pois estas névoas já dominaram o cérebro, a mente daquele que executa a arte deste modo. E é esta espécie de arte que Marx propaga; então, o pensamento marxista tem a mente permeada pelas névoas negras do inferno.

 

§ 6

 

O acordo do violinista com Satanás. E Marx assim o faz não somente tal como o mergulhar, isto é, como algo rápido e feroz, mas “até que o coração esteja enfeitiçado”, ou seja, até que o coração seja dominado pela bruxaria do sabre de sangue negro; e mais: “até os sentidos cambalearem”, isto é, até os sentido serem corrompidos de seu propósito natural; ora, em suma este é o linguajar da magia, da feitiçaria; por isso, quando Marx diz que ele usa o sabre de sangue negro para mergulhar nas almas, ele dá a entender que o propósito real é outro, e assim a alegoria com o violino desvela-se em seu real significado, a saber: evidenciar a feitiçaria que Marx propaga.

Por isso, o próprio Marx afirma: “Com Satanás eu fiz meu acordo”, isto é, Marx descreve em rodeios e sem metáforas, em meio a uma alegoria, que ele faz um acordo com Satanás; por isso, ao invés de usar o arco de violinista, ele usa o sabre negro dos rituais de bruxaria. O Marx violinista não é aquele que toca o violino, mas aquele que usa o sabre de sangue negro para os propósitos da bruxaria. E nisto o pensamento marxista se engendra: propaga bruxaria e impregna bruxaria não só nas artes, mas em todo o ímpeto das manifestações culturais.

Portanto, ao fazer seu acordo com Satanás, ao fazer seu pacto com Satanás, Marx desvela que é Satanás quem o conduz em sua arte, ao afirmar: “Ele risca os sinais, marca o tempo para mim”, isto é, Marx afirma que é Satanás quem o conduz em sua arte, ou seja, é Satanás quem o conduz no que ele faz e labora.

Assim, a arte que Marx propaga, e as artes que são influenciadas pelo marxismo, produzem um efeito terrível, tal como o próprio Marx afirma: “Eu toco a marcha da morte rápido e grátis”, isto é, ao ter Satanás como seu condutor, Marx afirma que o exercício de sua arte é a marcha da morte, ou seja, é o que conduz a morte, e isto de maneira “rápida e grátis”; por isso, o pensamento marxista é uma orquestra em função da marcha da morte, isto é, em função da propagação da morte e do inferno.

E Marx o faz totalmente consciente disso; por isso, o próprio Marx evoca a contradição hegeliana: “Devo jogar escuro, devo jogar luz”, isto é, ao mesmo tempo em que desvela o que concerne ao exercício da arte, também desvela que seu propósito está além disso, a saber, ao mostrar no que concerne a arte na verdade vela o que faz através da arte. E, ao ter feito diametralmente o oposto nos versos anteriormente, ao evocar esta contradição hegeliana, demonstra sua total sujeição a Hegel.

Além do que, Marx faz isso até que todo o seu ser seja dominado completamente: “Até que as cordas do arco partam meu coração completamente”, isto é, até que ele não tenha mais sentimentos, até que ele morra; Marx propugna ser um serviçal de Satanás enquanto viver, até a hora de sua morte, ou seja, até que seu coração seja partido pelo próprio sabre que ele se utiliza como arco.

Outrossim, é que esta última sentença evoca uma síntese com o sistema hegeliano; assim como em Hegel, a meta (Ziel), só é alcançada na morte; por isso, no último capítulo do sistema da ciência de Hegel, morre-se a própria determinação individual, ou seja, morre o homem para Deus, e Deus morre para o homem; esta é a dialógica hegeliana; e Marx a segue a risca: não que Deus de fato tenha morrido, mas ao propugnar a própria morte para Deus e a morte de Deus para o homem, o homem pode partir seu coração completamente, isto é, pode ser completamente despessoalizado e despersonalizado.

E Marx faz isso: propugna a própria morte, e a morte de Deus para ele, para pode ser totalmente um serviçal de Satanás. Pois, tal como Hegel, somente assim Marx alcança seus reais objetivos, tal como já fora descrito. Mas, Marx não propugna a própria morte através de figuras fúnebres, mas através da alegoria do coração completamente partido.

E a guisa de conclusão, se deve explicar que a morte de Deus descrita por Nietzsche, fora propugna e sistematizada por Hegel, e vivenciada plenamente por Marx e pelos marxistas.

 

***

 

Ora, não se fizera uma explicação muito aprofundada deste poema, mas apenas explicou-se os principais aspectos alegóricos que servem para entender o real propósito de Marx e do marxismo; pois, Marx, na alegoria do violinista, um tipo de alegoria corriqueira em sua época, desvelou o real propósito de seus labores; por isso, compreender as nuances deste poema é o fundamento para a interpretação e compreensão do marxismo, dos fenômenos inerentes ao marxismo, já que neste poema é desvelado o motivo-base de todo o pensamento de Marx e, por consequência, de todos os marxistas. 

E termina aqui esta explicação. θεῷ χάρις



[1] In: Karl Marx e Friedrich Engels, Marx-Engels Collected Works Vol. 1: Karl Marx 1835-1843 [Lawrence & Wishart, 1975], pág. 22-23. 


20/12/2025

Encómio ao Primeiro Concílio de Niceia

1. Ó tu, cidade de Niceia, antiga glória do Império Romano, joia do Império Bizantino, viste ocorrer em vossas ruas empoeiradas um dos maiores Concílios Ecumênicos da história.

Que cidade, pois, fora digna de dignatária assembleia?

Não somente uma dignatária assembleia, mas a própria Santa Igreja, representada pelos sucessores dos apóstolos, se ajuntou para resolver questões teológicas e aperfeiçoar o que concerne a Sagrada Tradição.

Ó Niceia, cidade lendária, viste as resoluções de bispos santos abalizar e definir adequadamente o símbolo da fé.

Ó Niceia, o que tu não teria a nos contar se tu pudesses falar.

2. Assim, ao rememorar os 1700 anos do Primeiro Concílio de Niceia, não se poderia deixar de saudá-la, ó antiga cidade; mas, principalmente saudar este notável Concílio Ecumênico, um dos maiores e mais importantes de toda a história.

A teologia nicena é a teologia da cristandade; não que as fórmulas nicenas acoplaram todo o desenvolvimento teológico, o que por si seria impossível; mas as fórmulas nicenas definiram com precisão e síntese no que consiste a fé cristã enquanto conjunto de doutrinas reveladas.

A fé cristã é fundamentalmente experiência com Cristo, mas esta experiência também deve ser manifesta em formulações racionais precisas e sintéticas, não só para testemunho entre as gentes, mas também para glorificar a Deus através dos dons da inteligência.

3. A fé nicena é uma fé que concatena a verdadeira experiência com a explicação racional adequada; pois, aquilo que se crê há de ser corretamente entendido (cf. Is 7.9b); e fora isso que os padres nicenos fizeram, a saber, definiram da melhor maneira possível a experiência da fé verdadeira que lhes fora transmitida, a qual verdadeiramente experienciaram, e a qual preservaram e conservaram sem nenhuma alteração.

A teologia nicena é expressão da fé imutável da Santa Igreja; a fé na Santíssima Trindade, na obra de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, nos quais está a beatitude da vida cristã, e o esplendor do hábito da glória.

Convocados para lidar com as heresias de Ário, lidaram não somente com estas terríveis heresias de maneira magistral, mas legaram à toda Igreja um tesouro inestimável, que enriquecera e enobrecera grandemente a Sagrada Tradição. O símbolo niceno é uma das glórias da Sagrada Tradição.

4. Deste modo, o que provém das fórmulas nicenas é a mais límpida e útil teologia: glorificar a Deus por quem Ele é e louvá-lo e honrá-lo pelo que Ele faz; glorificar a Jesus Cristo, nosso bendito Redentor, por sua obra da cruz para nos salvar e livrar do inferno; glorificar ao Espírito Santo, Senhor nosso e que vivifica nossas almas para os mistérios santificantes; mas também honrar e dignificar a Santa Igreja, na qual se administra os Santos Sacramentos, proclamando aos fiéis e ao mundo a esperança da vida eterna.

Em suma, isto constitui a teologia dos padres nicenos; o que para alguns parece apenas uma simples fórmula antiga, para os verdadeiros cristãos é motivo de alegria e veneração, já que as fórmulas nicenas ao estarem em perfeita conformidade com o que é transmitido na Sagrada Escritura, engendram o verdadeiro propósito da Sagrada Tradição, desenvolver a fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos sempre em conformidade com o que os Santos Apóstolos ensinaram.

5. Por isso, veneramos o Primeiro Santo Concílio Ecumênico, por sua fidelidade ao mandamento de Cristo aos Apóstolos, e por terem laborado em honra a verdade, defendendo a reta fé, debelando os erros perniciosos dos hereges, e ensinando o caminho do bem, no qual se conforma disciplina correta e crença correta, ortodoxia e ortopraxia.

Ó Padres Nicenos, louvamos a Deus por vossas vidas e testemunho, que assistidos pelo imperador Constantino, preservastes a fé apostólica sob a liderança iluminada de São Ósio de Córdova, digno sucessor dos apóstolos, e testemunhastes a beleza da fé ortodoxa.

Por esta razão, a Santa Igreja, tanto no Oriente quanto no Ocidente, após algumas discussões, reafirmara em concórdia as fórmulas definidas, as quais deram testemunho fidedigno do que era proclamado desde os tempos apostólicos.

6. Assim sendo, a fé nicena é a manifestação da verdadeira unidade da Igreja, a unidade na verdade; a firmeza na verdade é o que manifesta plenamente a unidade da Igreja em todos os rincões do mundo; ó Padres Nicenos, vós fostes fanal para preservar a unidade e a proclamar em honra a verdade, que é o próprio Cristo (cf. Jo 14.6).

A beleza fulgurante da unidade da Igreja, se dá sempre que a Igreja confessa e honra toda a verdade, e permanece plenamente em conformidade com a verdade; assim a Santa Igreja cumpre sua função, sendo coluna e firmeza da verdade (cf. 1Tm 3.15).

A firmeza da verdade foste manifesta em vós, Padres Nicenos, que preservam esta firmeza na fidelidade a Tradição Apostólica, e em testemunharem de maneira fidedigna a fé que recebestes.

7. Por isso, diante da memória dos 1700 anos do Primeiro Concílio de Niceia, rendamos louvor ao Deus Trino, pelo testemunho e fidelidade dos Padres Nicenos, orando de maneira uníssona em todo o mundo:

Ó Santíssima Trindade, mistério altissonante de graça, bondade e comunhão, louvamos-te pelo Venerável Primeiro Concílio Ecumênico, pelos Padres Nicenos, os quais em razão da firmeza da fé que receberam e movidos pelo Espírito Santo, testemunharam da fé reta e sólida diante dos ataques dos hereges; Deus Glorioso, nos dê a graça de sermos fiéis a Ti como foram os Padres Nicenos, principalmente diante dos tempos difíceis que vivemos e diante das dificuldades que se apresentam a Santa Igreja; nos conduza, ilumine, e fortaleça no caminho da verdade, a fim de que sob o ímpeto niceno, testemunhemos da verdade e possamos sempre encontrar o mel saído da rocha, que o nosso bendito Senhor Jesus Cristo nos outorga sempre que o buscamos em Sua palavra revelada. Glória seja dada a Ti, Deus Uno e Trino, por Cristo nosso Senhor, na unidade do Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amém”. 


18/12/2025

Resposta a 7 indagações

Prólogo

 

Tendo recebido vossas indagações no início do mês passado, somente agora que consigo as responder; espero que minhas respostas o encontrem bem, bem como espero que estas respostas sirvam para sanar vossas dúvidas, pois estas também são dúvidas de muitos outros; cada indagação que fizeste tomei como um artigo, e os ordenei do modo como fizestes estas indagações; as respostas são breves e sintéticas, mas são respostas precisas e estão em perfeita conformidade com a autoridade da Sagrada Escritura e com a autoridade da Sagrada Tradição naquilo a que se referem.

 

Artigo 1: Se a desobediência aos preceitos morais tira a alma do caminho da divinização?

 

Os preceitos morais são outorgados pelo Salvador para curar a alma, como afirma São Clemente de Alexandria no livro I do Pedagogo (cap. II); ora, como eles são dados para curar a alma, e a alma é cada vez mais curada a medida que usufrui os mistérios da divinização, então, a desobediência aos preceitos morais retira a alma do caminho da divinização e a coloca no processo de infernização; por esta razão, a Sagrada Escritura intitula como apostasia a desobediência deliberada e orgulhosa dos preceitos divinos (ou preceitos morais); com isso, se há desobediência deliberada e orgulhosa dos preceitos morais, então a alma se torna em pasto no qual os demônios agem, retirando-a do caminho glorioso da verdadeira divinização. Portanto, é imprescindível e inalterável que os fiéis desenvolvam suas vidas espirituais sempre em obediência absoluta aos preceitos morais, tanto para evitar os engodos de Satanás, quanto para evitarem que suas almas sejam presas nas correntes da infernização.

 

Artigo 2: Se a desobediência aos preceitos morais gera obstinação?

 

A desobediência deliberada e continuada dos preceitos morais gera obstinação com relação as coisas espirituais; na verdade, todo indivíduo que fica obstinado com relação a coisas espirituais, já sendo participante dos mistérios da fé, é porque está em completa desobediência aos preceitos morais; a desobediência aos preceitos divinos gera obstinação; e esta obstinação, por sua vez, é insuflada pelos demônios através de práticas luxuriosas; pois, o demônio da luxuria se deleita com obstinação espiritual, e a obstinação espiritual semeia no próprio coração a volúpia, que uma vez semeada, frutifica rapidamente; por isso, a obstinação espiritual atina o coração para a luxuria, e esta, por sua vez, acaba por obnubilar o intelecto e cauterizar a consciência para a compreensão dos efeitos terríveis da desobediência aos preceitos morais; além do que, o demônio da luxuria é totalmente avesso aos preceitos morais; por isso, onde se tem desobediência aos preceitos morais se tem a ação do demônio da luxuria.

 

Artigo 3: Se o consumo de tabaco é pecado?

 

Depende; sim, depende; pois, como se tem uma série de preceitos morais nas Escrituras Sagradas sobre o devido cuidado com o corpo e com a saúde, como parte do que concerne ao fiel no caminho da verdadeira divinização, então se o consumo de tabaco inferir algo deste tipo, o mesmo se torna pecado; obviamente isto tem a ver com o modo como o fiel vive no equilíbrio que convém a vida na fé.

Por isso, nem em todo caso se pode afirmar que o consumo de tabaco é pecado, como no caso dos charutos, que nem sempre são maléficos a saúde; e isto depende da constituição física de cada um: para uns faz mal, para outros não; para aqueles que faz mal é pecado, já para aqueles que não faz mal não é pecado. Todavia, em outros casos, se pode afirmar que o consumo de tabaco sempre é pecado, como no caso dos cigarros que são totalmente prejudiciais a saúde (por isso, o consumo de cigarro sempre é pecado).

Portanto, se requer equilíbrio e discernimento sobre o que convém a prática do consumo de tabaco: se for por necessidade de relaxamento ou lazer, que se averigue se isso faz mal ou não a si mesmo. Ora, se não for prejudicial a si mesmo que se o consuma com bom senso e moderação; no entanto, se o consumo de tabaco faz mal a si mesmo, então é pecado.

Por isso, o consumo de tabaco, para aqueles a quem é permitido, se quiserem consumir, que seja expressão de relaxamento e lazer, e não de divertimento; pois, se o consumo de tabaco for expressão de divertimento se tornará em um vício totalmente pecaminoso.

Além disso, a proibição ou não do consumo de tabaco se vincula a costumes; por isso, se tem denominações cristãs que proíbem totalmente o consumo de tabaco, enquanto outras não o proíbem, e outras ainda que o incentivam; não é errado a proibição, nem é errado a permissão; todavia, se alguém está em alguma denominação que proíbe o consumo de tabaco convém que obedeça aos costumes da mesma, senão tal pessoa está em estado de esquizofrenia; agora os que praticam tal ato dentro dos conformes não se utilizem disso para querer gerar provocação e brigas com aqueles que o proíbem - pois, tal tipo de provocação evidencia obstinação.

Outrossim, é que o consumo de tabaco sempre é pecado para quem teve problemas com vício; se uma pessoa foi viciada em tabaco, então o consumo do tabaco para essa pessoa sempre é pecado; portanto, se alguém perdeu a sobriedade por causa de vício em tabaco, ao vencer esse vício que nunca mais consuma tabaco, senão decairá em pecado e sofrerá com a recaída no vício (que sempre é sete vezes pior).

Então, num geral a exortação é que se evite; pois, as mais das vezes, não se tem moderação para tais atos, principalmente na cultura brasileira; pois, pode ocorrer, dado aos desequilíbrios inerentes da cultura brasileira, que alguém comece consumindo tabaco e acabe ficando viciado neste consumo; por isso, se alguém ainda tem fraquezas na fé, ou na própria personalidade (como é o caso de todo brasileiro), que se evite o consumo de tabaco, mesmo que tal consumo possa não ser pecado.

E a guisa de conclusão, se aplique também tudo o que foi dito sobre o tabaco nesta resposta à questão do consumo de bebida alcoólica. Num geral, é o mesmo raciocínio.

 

Artigo 4: Se a vida espiritual está sujeita a liberdade?

 

A vida espiritual está sujeita a lei da liberdade, tanto no sentido da liberdade enquanto um bem da natureza, como uma verdade eterna, que deve ser preservada incólume e inviolável; quanto no sentido da liberdade enquanto um dom da graça; mas, principalmente neste segundo aspecto, da liberdade enquanto um dom da graça; pois, a vida espiritual só se desenvolve a medida da obediência a perfeita lei da liberdade (cf. Tg 1.25); na verdade, a verdadeira espiritualidade está em conformidade com a perfeita lei da liberdade; a piedade é aferida pela lei da liberdade; por isso, a vida espiritual está sujeita a liberdade, pois a vida espiritual, a vida no caminho da verdadeira divinização, é uma vida permeada pelos ensinamentos do Santo Evangelho, o qual é a perfeita lei da liberdade. Assim sendo, a bem-aventurança da vida espiritual é estar em conformidade plena com a perfeita lei da liberdade, já que é por esta lei que os fiéis vão ser julgados perante Deus de acordo com o modo como vivem (cf. Tg 2.12).

 

Artigo 5: Se é correto a utilização do vocábulo sobrenatural?

 

Não é correto a utilização do vocábulo sobrenatural; no entanto, se tem uma exceção quanto a utilização deste termo, que é no âmbito dos autores escolásticos; mas, em suma, este vocábulo é errado; e isto se evidencia por três razões: primeiro, não existe nada sobre-natureza, ou está na natureza (coisas naturais) ou além da natureza (coisas espirituais); assim, tanto fisicamente não existe nada sobre-natureza quanto teologicamente não existe nada sobre-natureza.

Segundo, o termo sobrenatural foi criado para tentar focalizar uma sub-esfera na esfera natural; ora, isto é um erro crasso; pois, só se tem na natureza duas esferas: a das operações visíveis e a das operações ocultas; o termo sobrenatural passou a ser designado para as operações ocultas; com isso, cometeu-se o erro de afirmar que a obra de Deus se dava nas operações ocultas da natureza, na esfera quântica; por isso, se afirmar coisas como o “sobrenatural de Deus” e similares é um erro teológico monstruoso, pois coloca a obre extraordinária de Deus como se fosse apenas a das operações quânticas da natureza. Portanto, falar no “sobrenatural de Deus” é querer colocar as coisas reveladas como se fossem as operações ocultas da natureza.

Terceiro, o termo sobrenatural é parte da secularização da compreensão sobre a natureza; embora os escolásticos tenham desenvolvido muitos aspectos, a questão sobre a natureza (physis) ficara em grande parte incompleta, e como ninguém abalizou esta questão, a mesma serviu para gestar um secularismo na compreensão sobre as esferas da realidade; assim, acoplou-se as operações ocultas da natureza como “sobrenatural”, e reduziu-se as coisas reveladas a meras operações quânticas; por esta razão, cresceu-se muito uma espiritualidade mágica, focada nas “mensagens” do universo e similares; mas tudo isso não passa de pensamento mágico; portanto, utilizar do termo sobrenatural acabou por se tornar expressão de um pensamento xamanista.

Deste modo, que se afirme e se reafirme que não existe “sobrenatural de Deus” e que Deus não age de modo “sobrenatural”; Deus age além da natureza de maneira gloriosa, mas nunca Sua obra poderosa pode ser apenas classificada como “sobrenatural”, pois isto seculariza a compreensão sobre o infinito poder de Deus e sobre o próprio modo como Ele revelou que age no mundo. Assim, só se aceite, com ressalvas, o termo “sobrenatural” em reflexões permeadas pela teologia da escola, do contrário se rejeite de maneira cabal qualquer coisa dita sobre o “sobrenatural” de Deus.

 

Artigo 6: Se é soberba falar do que não se sabe?

 

Uma das manifestações da soberba é falar do que não se sabe; pois, querer arrolar um saber que não se possui, em si, é ato de vanglória; além disso, falar do que não se sabe é jactância; e a jactância é uma das manifestações de soberba, especificamente em relação ao conhecimento; e a soberba se manifesta de dois modos em relação ao conhecimento: a jactância e a imbecilidade; portanto, seja a imbecilidade seja a jactância são manifestações da soberba; aliás, na Sagrada Escritura aqueles que “não investigam” (investigar aqui tem o sentido de inquirir, de buscar o saber), isto é, aqueles que rejeitam o conhecimento, são dominados pelo orgulho (cf. Sl 10.4); portanto, biblicamente, as manifestações da soberba quanto ao conhecimento são equiparadas ao orgulho de Satanás (cf. Ez 28.15-17); assim, os imbecis e os jactantes são filhos de Satanás. Por isso, falar do que não se sabe é soberba, e rejeitar o saber também é soberba; e ambos são evidência da obra de Satanás, já que tanto a imbecilidade quanto a jactância são frutos do impedimento da razão que é algo operado pela eficácia de Satanás (cf. 2Ts 2.9-10).

 

Artigo 7: Se convém tratar com severidade os soberbos?

 

Obviamente, convém tratar com severidade os soberbos; pois, os soberbos são aqueles que atentam de maneira obstinada e sofística contra a verdade; e tais práticas são parte das fortalezas que os demônios levantam contra o conhecimento de Deus (cf. 2Co 10.5); por isso, os soberbos devem ser tratados consoantes ao tipo de soberba que propagam: se no sentido moral, então que sejam repreendidos e exortados duramente; se no sentido intelectual, então que sejam confrontados e confutados de maneira veemente e firme; pois, a permissividade para com os soberbos corrompe as pessoas símplices, e vitupera a simplicidade espiritual inerente a própria fé; na verdade, os soberbos roem como gangrena na vida eclesial (cf. 2Tm 2.17-18), bem como são como pragas que destroem uma lavoura na vida social; assim, quem respeita os soberbos acaba por se tornar soberbo. Por isso, os soberbos devem ser tratados consoantes as suas soberbas, e isto sempre com severidade; pois, quanto mais grave é a doença mais dosado deve ser o remédio; a doença da soberba só é tratada corretamente com doses fortes do remédio da repreensão e/ou pela disciplina moral.

***

Com cordiais saudações, e cumprimentos sinceros, rogo as bênçãos de Deus sobre vossa dileção, com votos cada vez maiores para que adentres a leitura e ao estudo das Divinas Escrituras, sabendo que estas te tornarão sábio para a salvação em Jesus Cristo (cf. 2Tm 3.15); não deixe de ler, meditar, estudar, escrutinar as Divinas Escrituras, pois estas são sempre mel saído da rocha para aqueles que estão nas sendas do Bom Pastor. 

Bendito seja Deus para sempre. Amém. 


Explicação do “Epigrama sobre Hegel” de Karl Marx

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